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terça-feira, 22 de novembro de 2011

cotidianas #117 - Daniéis


Eram dias de pavor. Ou pelo menos de desagrado. Toda vez que se anunciava ou, pior ainda, éramos surpreendidos com a não-anunciada visita da tia Terezinha esse pavor batia. Não por causa da tia Terezinha, mas pelo “o que” a acompanhava, sempre, como um rabicho: seu filho, ou seja, meu primo.
Aquele conotativo “ah, não!” era sempre manifestado quando o guri apontava na frente de casa, o que significava um real motivo para esconder os brinquedos – mesmo os não muito valiosos – e o iogurte da frigidér, claro.
Mas eu devia aceitar, afinal, era meu primo. Adotado, não tinha o meu sangue (minha mãe, estudada em Direito, ajudou a tia Terezinha a cometer a adoção...). Mas... tá! Pertencia à família, é como se fosse dela. Só que ele era um chato! Pequeno, inocente, mais criança do que eu, inconveniente, meio aloprado. Um chato. E pior: um chato meu primo. E pior 2: um chato meu primo e meu xará! Pois é: a cria se chamava Daniel também – teria sido uma imposição “coruja” de minha mãe feita à pobre tia com a condição de que, se esta tivesse a coragem de adotar um chato, pelo menos lhe pusesse um nome empiricamente nobre?...
Estava dado o conflito. O Daniel (eu) era criança. Aninhos mais velho do que o Daniel (ele), diferença que me dava, mesmo sendo igualmente um piá, mais direitos. Ora essa! E o Daniel (ele) vinha ao mundo indiscriminadamente, sem a minha permissão tanto para integrar a ilustre genealogia dos Rodrigues quanto, muito menos, ter a petulância de copiar meu “provado e comprovado” nome. O Daniel (ele) se metera na verdadeira cova dos leões, onde o leão Daniel (eu!) era o mais faminto.
Pra fermentar ainda mais meu desprezo pelo pirralho, certa vez, numa festinha de família, entre as crianças estava lá meu adversário, com aquele seu caráter mais-criança do que eu nas fuças. Minha mãe (começo a julgá-la como a grande culpada pelo crime), a certa altura da festa, ao observá-lo com candura, comentou: “Olha, Daniel (eu...), ele até parece um homenzinho!” Aquela frase me apunhalou. Mas nem por isso perdi a pose! Dono de mim, respondi num reflexo que o Daniel (ele) até podia parecer mais velho, mas que o tal era igual à antiga propaganda da Denorex: “parece, mas não é”. Ela caiu na gargalhada, e eu consegui disfarçar, inteligentemente (como talvez ainda o faça...), meu ciúme.
............................
Indo para o Centro, ali, pela Tristeza, adentrou ao ônibus Renascença o tal Daniel. Ele. Grande, adulto, maior do que eu, cortês, meio comedido. Conversamos rápida e alegremente no calor dos bancos de trás. Casado, mostrou-me a foto da filha (bela menina; não recordo o nome). Estava lá eu, admirado com ele e tentando esconder a surpresa, indo em direção ao Centro e rememorando, adultamente (?), aquela inveja subconsciente.
Despedimo-nos como primos.
Não vou abrir inquérito contra minha mãe, quanto menos a tia Terezinha, mas contra o Daniel. O Daniel eu. O Daniel chato meu que eu, infantilmente, projetei no Daniel outrora chato, porém vulnerável e simplesmente infantil como qualquer criança, ele. O chato era e talvez seja eu. Pelo menos foi o que eu suspeitei ao reviver aquela crise de identidade ali, bem próximo do Bom Fim, entre a Redenção e o ponto final desta linha.



Daniel Rodrigues
(escrito originalmente em 1997 e revisto em 2011)

4 comentários:

  1. Cara! Nem lembrava do tal do Daniel!!! Te asseguro que não era algum possível ciúme, algum porblema de identidade ou algo assim, o pirralho era uma peste mesmo. Compratilhava do teu mesmo desespero quando se anunciava a chegada da Terezinha, que por sua vez tb não era lá das muito simpáticas. Fofoqueeeeeira! hhehehe
    (os podres da família)
    Adorei o final do texto. O ponto final.

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  2. Ao Dan:
    Que bom que conseguiste escrever sobre esse assunto, porque à partir do momento que te chamei àtenção para o Daniel "homenzinho", senti que aquilo te feriu profundamente, só que não foi, nem de longe com a intenção de te ferir ou te comparar com ele e sim porque eu não tinha outro elogio para fazer, no momento que a mãe dele, falava com faceirice à respeito do guri que estava ao seu lado, me olhando, todo vestido como se fosse uma miniatura de homem, sem ser convidado para brincar, pelos meninos da casa. Foi quando, num ato quase que automático, chamei a atenção do Daniel(morador), para que olhasse para o piá e o convidasse para brincar, como era usual naquela época. Juro que notei naquele episódio que Daniel(meu filho), ficou com muito ciúme de eu ter dito aquelas palavras para agradar o outro Daniel e sua mãe que por ser adotiva e ter contado com minha ajuda para "cometer" a adoção, esperava ouvir de mim,alguma palavra de aprovação da forma com que vinha cuidando do adotado; só que eu deveria ter desfeito aquela "mágua", do meu filho naquele momento ou imediatamente após a saída das visitas, e, foi ai que eu errei, não dei importância e tal episódio calou tão fundo, que gerou uma rejeição por parte do meu Daniel em relação ao outro que nem desconfia o motivo de tal, pelo resto da vida. Porisso eu repito que bom que estas falando sobre esse episódio, porque ao falar, desmanchas o nódulo que criaste, com aquele ciúme, que virou raiva, que virou mágua, que se transformou em antipatia com o passar dos anos. Se alguém ali errou, este alguem foi eu. Me perdoa. Iara.

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  3. hahahaha D. iara, não encuca! Como o exercício literário pede, dei uma boa valorizada e exagerada em alguns pontos e, pra ser sincero, já na época que escrevi (1997) já me sentia muito bem resolvido quanto a isso. É que a situação do encontro no ônibus aconteceu e vi ali uma boa oportunidade de criar uma crônica. A tua manifestação, assim toda preocupada, me serve como elogio, porque é sinal de que consegui criar um texto tão literário que acabei te convencendo. Beijos e não tem nada do que ser perdoada.
    Dã.

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  4. Agora entendi as duas personalidades!! Adorei o texto. Dani Bohrer.

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