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sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

cotidianas #132 - Noite de Silêncio


-Tide... – insistia ela com voz de reclamação e cansaço.
E a resposta dele era apenas um grunhido que mal sugeria que estivesse ouvindo.
- Hmf... – respondia ele sem sequer abrir os olhos.
- Tide, cê tá roncando de novo – reclamava num tom copioso.
- Ãrrã... hnf... – e continuava dormindo.
Desde que casaram sempre fora aquela coisa. Já se iam 42 anos de casados e nunca tinha tido uma noite de silêncio. Acabava dormindo porque precisava, pela necessidade, pelo cansaço não raro com o ronco do Aristides se intrometendo nos seus melhores sonhos; ou só lá pelas 6 da manhã quando ele já estava pra acordar.
- Tide... - E dava-lhe um cutucão, um bundaço, uma cotovelada. O Aristides até parava por 10, 30 segundos, um minuto no máximo, mas logo recomeçava aquele troar infernal que volta e meia acordava até o próprio roncolho, que assustado abria os olhos abobalhado até perceber o que o havia despertado. Então voltava a dormir meio encabulado e, naquele curto espaço de tempo entre a vergonha e o novo sono, percebia o porquê da mulher tanto reclamar com ele. Mas logo caía no sono pesado de novo e o martírio da dona Cleide recomeçava.
Em determinado momento das madrugadas, ela resignada, levantava, ia até a cozinha, tomava um copo de água ou de leite e voltava para tentar pegar no sono. E naquela noite não foi diferente; depois de alguns cutucões, empurrões e trombadas, Dona Cleide, desistente de qualquer recurso, levantou, calçou os chinelos foi até a cozinha mas daquela vez não abriu a torneira e não foi à geladeira. Girou a chave da porta e sumiu no pátio por alguns minutos. No fundo do sonho do Aristides pareciam se misturar às vozes das pessoas, o latido de um cão mas que estranhamente parara abruptamente. Ainda bem! O sonho era tão bom. Era recebido num jantar de luxo por uma bela mulher que lhe indicava o lugar onde deveria sentar. A mesa era farta, um jantar suntuoso, pessoas bonitas e animadas, e o sonho continuava com tratamentos de nobre e outras regalias.
Então Dona Cleide surgiu no quarto e parou ao lado da cama com o machado da lenha na mão. Parecia hipnotizada. Não piscava. Só mirava o Aristides, ali, roncando que nem um porco. O primeiro golpe foi nas costelas, o Aristides urrou de dor e mal teve tempo de olhar e ver que Dona Cleide lhe golpeava mecanica e desordenadamente porque os golpes seguintes já atingiam pontos vitais. Pescoço, cabeça, peito, peito, peito, cabeça... E foram muitos. Descontrolados e raivosos.
Dona Cleide só parou de bater quando o braço lhe ficou dormente, talvez um minuto, um minuto e meio depois. Ofegante apenas olhava para a cama. Apenas olhava fixo. Mas era como se não estivesse vendo nada. Olhos num vazio.
Então, depois de um longo suspiro, soltou o machado apenas deixando-o escorregar ao lado do corpo e, ignorando o sangue que empapava os lençóis e a massa moída sobre o colchão deitou para dormir sem sequer se dar ao trabalho de afastar alguns dedos que ficaram ali sobre o travesseiro. Deitava exausta. Finalmente teria uma noite de silêncio.

Cly Reis

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