"Marie no Jardim" - Kroyer, Peder Severin (1893) |
- Causou-me certa estranheza vosso convite, Mademoiselle Marie.
- Ora, a que se deve tal espanto, Monsieur Fabien? Pois não nos temos especialmente em alta estima recíproca? – retrucou Mademoiselle Marie, empunhando elegantemente o bule e servindo um pouco de chá a ambos. - Açúcar?
- Sim, por favor. Dois cubos apenas. Mas... - tentando retomar o assunto - estando nós, cá a sós e tenho certeza de não necessitarmos simular personas ou encenar uma peça: bem sabemos que, há não muito, afirmar sermos apenas amigos seria no mínimo um eufemismo, e também é de nossa mútua ciência que o modo como se encerrou esta suposta ‘amizade’ não pode ser considerado dos mais satisfatórios e felizes, sobremaneira para mademoiselle... – encerrou a fala deixando propositalmente o pensamento em suspenso.
- É pretensiosa a afirmação, Monsieur. - saltou ela com um leve acento de surpresa na voz.
- Mas inverídica? – retrucou ele.
- Não – respondeu com segurança – Acredito que possa-se, sim, afirmar que saí, sim, deveras magoada de nossa pequena aventura, se podemos assim chamar. Mas é sinal de falta de inteligência ficar-se atrelado ao passado e, embora tenha-me deixado levar por vossos encantos outrora, para pacóvia creio não servir...
- Por certo que não – disse interrompendo-a.
- Assim sendo, este acontecido deve ficar relegado ao nosso esquecimento e enterrado em nosso passado. – falou como se orientasse a copeira de como servir a mesa.
- Está certa disso, Mademoiselle Marie? – fez sugerindo alguma desconfiança.
- Subestima-me, Monsieur. Deve tomar-me por alguma infanta que insiste em morrer de amores por quem não lhe quer. Não foi sem pretexto que vos convidei para este encontro informal. Com este singelo chá entre amigos, pretendo exatamente vos afiançar minha boa vontade e nova disposição. Suponho seja este gesto suficiente a demonstrar que não guardo por vós rancores quaisquer.
Monsieur Fabien iniciaria a dizer alguma coisa em resposta mas interrompeu-se de brusco por um pequeno engasgo.
- O que dissestes, Monsieur? Perdoai-me mas não vos compreendo muito bem.
O sufocamento parecia piorar e ele levava agora então a mão ao pescoço e arregalava os olhos fixando-a acusativamente.
- Ah, sim – disse ela com calma enquanto dava voltas com a colherinha em sua xícara – creio que já começa a fazer efeito – ao que ele arregalou mais ainda os olhos.
- Tomei a liberdade de acrescentar ao vosso chá uma substância que obtive com o alquimista. Disse-me ele ser assaz eficiente. Em pouco tempo enrijece a glote, logo depois obstrui as vias e em pouco tempo vosso sofrimento estará findo. Paciência, paciência. – troçou antes de beber mais um gole.
- Deveis estar vos perguntando como fi-lo se estou a beber tão animadamente meu delicioso chá. A propósito, quereis mais um pouco? Não, creio que não. – apressou-se em responder ela mesmo – Lembra do anel que mo destes, aquele com compartimento para veneno? Pois, sim: resolvi fazer bom uso dele e enquanto tratávamos de amenidades, despejei discretamente em vossa xícara. Espero que me perdoe. – concluiu ironicamente enquanto ele agora já despencava da cadeira e agarrava-se à toalha da mesa como se aquilo pudesse de alguma forma salvá-lo.
- Com efeito, tenho nosso caso sepulto no passado. E é verdade que não vos quero mais nem me importo consigo, contudo não podia permitir que pensásseis que sairíeis incólume depois de tamanha desfaçatez com minha pessoa. Lamento que tivesse que ser desta forma para aprender que assim não se age com dama como eu. – concluiu cruel.
Neste momento as últimas resistências de Monsieur Fabien finalmente se esgotavam e ele, sem vida, caía levando a toalha, toda a louça e prataria da mesa, com o que Mademoiselle Marie nem demonstrou incomodar-se. Apenas tratou de levantou-se, desviou para não pisar no corpo, olhou ainda para baixo mais uma vez como se enxergasse ali um excremento ou algo parecido e então chamou o criado:
- Naru. – chamou sem gritar e, quase do nada, logo apareceu um negro alto, retinto, espadaúdo, de olhar delicado porém decidido.
- Pois não.
O criado Naru viera das colônias e fora por ela retirado da escravidão e levado para serviços mais domésticos por, segundo mademoiselle Marie, ter aptidões superiores. Com ela Naru que já sabia ler, aprendeu piano, esgrima, equitação e sempre a surpreendia com novas habilidades. Atendia às lides da casa, do castelo, mas não raro era encarregado de Tarefas mais específicas, de maior exigência.
- Naru, limpa toda essa sujeira agora e depois livra-te disso à noite na ponte Saint Veniz.
- Sim, Senhora.
- Quando retornar, sobe aos meus aposentos pois tenho coisas a tratar consigo.
Deixou Naru às suas costas limpando os cacos de xícaras e maçarocas de doces espalhadas pelo chão e pôs-se a passear calmamente entre os canteiros. Aproximou-se de uma azaléia, aspirou seu perfume, fechou os olhos por um momento e logo pôs-se novamente a caminhar pelas vielas estreitas do jardim. Aquela era verdadeiramente uma bela tarde.
(para Marie)
Cly Reis
Olha: nota 10! Da mais alta qualidade literária. Parabéns!
ResponderExcluirÉ mesmo? Gostaste?
ResponderExcluirQue bom!
Obrigado.
Tinha a ideia na cabeça mas (como de costume) não tive muito tempo para desenvolver. Especialmente as partes narradas saíram meio assim sem muito experimento.
Legal que tu e a Marie gostaram.