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quarta-feira, 18 de julho de 2012

cotidianas #170 - Maratona



A Juventus, time de futebol sete no qual eu jogava, chegou um momento que ficou grande demais para os domínios locais. Ganhávamos praticamente tudo de torneios de bairro e arredores. Começamos então a participar dos torneios da Federação Gaúcha de Futebol Sete e os jogos passaram a ser então nas sedes determinadas pela organizadora. Uma das sedes era na Ilha da Pintada, localidade próxima a Porto Alegre, já no município de Eldorado do Sul, do outro lado da Ponte Elevadiça, que é um dos cartões postais da cidade.
Os jogos da FGF7 costumavam ser pela manhã, sendo às vezes o primeiro horário, às 8 e meia, indo até uma ou duas das tarde no máximo, o que nos obrigava no caso de sermos sorteados nos primeiros jogos a nos mobilizarmos muito cedo.
Como éramos amadores, jogávamos mais pela curtição, muitas vezes, eu na condição de ‘dirigente’ tinha que me desdobrar para garantir que tivéssemos o número mínimo de jogadores no domingo de manhã, às vezes muito cedo. Às vezes era difícil. Tinha que encarar a falta de comprometimento de alguns, dificuldade financeira de outro que não tinha sequer dinheiro pra passagem, compromissos familiares ou profissionais de fulano, resultados de noitadas de cicrano e assim por diante. Por mais que fôssemos um time de bairro, e a maioria morasse próxima, alguns moravam em outros bairros e por isso, tínhamos como ponto de encontro o terminal de ônibus da Praça XV, no Centro de Porto Alegre, em frente ao Mercado Público. Lá os que chagavam, esperavam os demais até um horário limite para que pegássemos um ônibus até a Ilha da Pintada onde aconteciam nossos jogos. O problema é que o ônibus tinha pouca freqüência, poucos horários e tínhamos que contar com a possibilidade da ponte estar levantada e nos atrasar, então o horário limite de saída do Centro, tinha que ser seguido rigorosamente.
Um dos nossos jogadores, o Testa, tipo folclórico, meio bronco, dono de uma ingenuidade tal que o fazia passar por burro muitas vezes, mas que no fundo revelava uma pessoa extremamente afável, trabalhava em uma padaria durante a noite toda e mesmo assim ia direto para os jogos, e quando os jogos eram da Federação, na Ilha, se juntava a nós no ponto de encontro, no terminal do centro da cidade.
Naquele domingo tínhamos jogo na Ilha e havia um agravante que poderia nos atrasar: acontecia a Maratona de Porto Alegre e uma parte do trajeto passava pelo Centro. Marcamos de nos encontrarmos mais cedo ainda para não correr o risco de que ruas fossem interditadas, que o trânsito ficasse ruim, que fosse interrompido, que o itinerário fosse muito alterado ou que qualquer coisa acontecesse. Não queríamos ser surpreendidos pelo acaso.
Por azar aquele domingo era um daqueles dias que estávamos contadinhos: dos confirmados no dia anterior, teríamos SETE jogadores certinho, contando com o Testa que nos encontraria lá. Não tinha muito risco, o Testa não era de faltar, era fiel. Podia ter trabalhado a noite toda diante de um forno de pão mas não nos deixava na mão. Assim, nós, eu, meu irmão Daniel e mais 4 fominhas, tendo chegado antes, esperaríamos o Testa até o horário marcado.
O problema é que a hora foi passando, o horário se aproximando e nada do Testa. O que teria acontecido? Ele não era de atrasar. Teria pego um trecho da maratona em outra parte da cidade? Teria ficado até mais tarde na padaria? Não teria podido ir? E o tempo passando e nada do Testa. Tínhamos que embarcar. Não tinha como esperar. O próximo ônibus pra Ilha era só dali há uma hora e se perdêssemos aquele fatalmente perderíamos o jogo por WO.
Embarcamos. Melhor 6 jogadores em campo do que nenhum. O motorista deu a partida. Ainda mantínhamos uma esperança de que nosso atleta aparecesse na última hora mas nada. O ônibus pôs se andar, andou alguns metros e, sentados no banco do fundo, olhamos ainda mais uma vez para trás. O ônibus ia então dobrando a esquina que dá do terminal para a Av. Júlio de Castilhos quando para nossa feliz surpresa avistamos o Testa descendo em desabalada carreira a Rua Marechal Floriano. Foi aquele alvoroço. “O Testa, o Testa!” gritávamos em comemoração. Mas nossa festa foi um tanto precoce pois, não tendo nenhum ponto ali imediatamente, o motorista recusou-se a parar mesmo sob os nossos insistentes pedidos.
“Fodeu!”, pensamos enquanto víamos pelo vidro traseiro o Testa ainda correndo quase desanimando ao perceber que o motorista, provavelmente seguindo as rigorosas regras da empresa, não lhe abriria aquela exceção e pararia fora do ponto. O ônibus já seguia um bom pedaço da avenida quando avistamos bem ao fundo o Testa, persistente, acelerando a corrida esperançoso de embarcar. Já que não contávamos com a boa vontade do motorista, passamos então a torcer para que o Testa conseguisse, favorecido por um ritmo mais lento, pelos sinais vermelhos dos semáforos, alcançar o veículo até o próximo ponto. Chegou perto disso em algum momento mas pondo-se em marcha novamente, mesmo sob nossas súplicas para que permanecesse mais um pouco no ponto, o carro afastara-se novamente do nosso colega. Nossa torcida vivaz e barulhenta dentro do ônibus começava a contagiar outros passageiros, que víamos, já atentos à possibilidade do rapaz conseguir ou não embarcar no carro. Mas a chance pareceu se esvair quando o coletivo fez a curva na altura da rodoviária e a figura do corredor se perdia lá atrás. Nosso entusiasmo com a até então heróica corrida arrefeceu e sentamos desanimados lamentando. A próxima parada seria longe dali, na avenida Voluntários da Pátria mas muuuito adiante. Não dava mais.
O ônibus dobrou na Voluntários e mesmo desesperançosos, ainda demos uma olhadinha pra trás por ‘desencargo de consciência’. Vai que ele tivesse insistido. “Não, ninguém insistiria”. Mas eis que...Não era possível!!! Lá estava ele! Ele pegara um atalho pela Coronel Vicente e estava ali ainda, tenaz, nos seguindo como um cavalo de raça. O ônibus então ‘veio abaixo’! Não apenas nós mas todos os passageiros, agora já envolvidos no nosso drama e no drama do Testa, vibraram com a aparição milagrosa do negro na esquina da Voluntários, e como ali a circulação de veículos, separada por uma faixa, se misturava à da Maratona de Porto Alegre, o Testa pôs-se a passar um a um, por cada participante da prova, sem lhes tomar conhecimento. Qualquer um daqueles atletas deve ter pensado, “eu não sei quem é esse queniano, mas com certeza esse cara vai ganhar a prova”. E passou um, dois, e outro e outro... Os atletas boquiabertos eram ultrapassados como se fossem tartarugas.
A essas alturas até o inflexível motorista já se sensibilizara com o esforço do garoto e começava a diminuir a marcha de modo a permitir sua aproximação. A torcida era tamanha, os pedidos de todos, inclusive dos que não tinham nada a ver com a situação, tão insistentes, que o condutor se rendeu e parou fora do ponto até que o heróico corredor se aproximasse e entrasse ovacionado no veículo. Exausto, esgotado, esbaforido, exaurido, desabou num banco qualquer até recuperar o fôlego não levantando dali até chegarmos ao local do jogo.
Depois nos explicou que saíra mais tarde da padaria, perdera o ônibus que o levaria até o Centro ou algum outro motivo que não lembro. Não interessava. Estava ali e só pelo seu esforço nosso dia já tinha valido. Sua prova de fidelidade e lealdade tinha valido por todos aqueles que tinham ficado dormindo e nos deixaram com o número mínimo de jogadores para encarar uma parida difícil como a que teríamos.
O jogo?
Ah!
Ganhamos por 2x1 do time da casa.
Nós ganhamos o jogo mas pode-se dizer que o Testa ganhou o jogo e a maratona também.



Cly Reis

4 comentários:

  1. Incrível a saga do Testa contada com tamanho talento e riqueza de detalhes. Lembro como se estivesse naquele momento, revivi. Ficou joia, Clayton, parabéns.

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  2. Cara! Remocei 25 anos agora! O testa nos proporcionou momentos de alegria dentro e fora de campo. Pessoa de uma lealdade, comprometimento e honestidade. Por onde será que anda? Quanto ao relato, parabéns... muito bom! (Não podia ser diferente vindo de quem escreveu)

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    Respostas
    1. Valeu, Nilson!
      Que bom que um texto, uma crônica tem esse poder de nos levar de volta a bons momentos das nossas vidas.

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  3. Cara, muito bacana a história!!!!! Mesmo não estando presente me senti sentado ao lado de vc´s torcendo pra o Testa entrar logo no buzão!!!! rs..rs.. e claro, querendo dar uns tapas nesse motorista lazarento!!!!! rs..rs..

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