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quarta-feira, 29 de agosto de 2012

cotidianas #176 - Pano Torcido



 Sentado no banquinho branco, preto de tão engraxado que ninguém lembrava mais que um dia foi branco, ele fixava o olhar no nada do horizonte. Carros passavam barulhentos na avenida movimentada e de calçada estreita, amplificando o ronco dos motores dentro da oficina. Canos de descarga despejavam sua fumaça, intoxicando o ambiente. Porém, nem percebia. Nada o distraía, afinal, já estava suficientemente distraído e entorpecido torcendo aquele pano sobre o balde de metal. As gotas sujas que escorriam escureciam mais e mais a água, adensando-a. E ele seguia torcendo. Torcia, torcia repetidas vezes e numa sincronia exata, de tempos quase simétricos de tão regularmente espaçados. Cada mão fazia um movimento para um lado. Três vezes, em espaços de cinco segundos cada movimento. Até que estendia com a ponta dos dedos o tecido e o sacudia para extrair mais algum conteúdo que tivesse. Mas não pingava mais nada há bastante tempo, pois o pano, de tantas vezes torcido, já estava seco, ainda mais com a quentura que suas mãos. Mãos que aquela noite iriam, enfim, agir. Estava decidido: era chegada a hora de acabar com aquela pouca-vergonha com as próprias mães. Planejara tudo. Daquela noite não passava.
"Trama Sangrada" -
Rodrigues, Daniel
Chegou em casa pelas seis e quarenta e cinco da tarde, como regularmente chegava todos os dias. Entrou pelo portão frontal e passou pela primeira casa em direção à sua, nos fundos. No estreito corredor lateral, nem percebeu o cumprimento de dona Eulália, a vizinha idosa, boa gente e muito carente, que logo, logo ia se recolher. Ela, sem atenção dos parentes, o esperava naquela hora todos os dias para dar um simples “boa noite”. Mas aquele dia não era “todos os dias” para ele: era um dia diferente. Era o dia em que, finalmente, acabaria com aquela agonia.
A porta de madeira envelhecida e de pintura gasta estava entreaberta como sempre. Empurrou-a com a palma e entrou. A mulher, como de costume àquela hora, estava na pia, lavando louça. Ela não tirou os olhos da água, mas obviamente percebeu a chegada do marido, já tão corriqueira e banal que não merecia o esforço de um “oi”. Mas ele, ao invés de entrar e ir direto em direção da térmica na mesinha para servir seu cafezinho tradicional, parou logo depois da porta a olhar para a mulher. De pé, com o macacão sujo de graxa, mas com as mãos limpíssimas e fedidas de querosene. Largou cuidadosamente a maleta de ferramentas ao lado da pia e continuou ali parado, fitando-a com um olhar curioso mas ao mesmo tempo desamparado e doentio. Não deu muito tempo e ela, notando-lhe a falta de reação, parou a lavagem impaciente:
- Qué qui foi, hôme?! – rosnou-lhe. – Vai ficá aí parado feito jerivá? Não me diz que tu já tá com aqueles piri-paque de novo?
- Qui piri-paque qui nada, mulhé! Joga essa boca pra lá! – desviando o até então fixo olhar.
- Olha, Jair, eu já te falei qui se tu não cuidá dessa pressão eu também não te cuido. Vai morrê tendo um tréco na minha frente sozinho qui eu não vô nem te acudí!
- Não é pressão, Nilza. Pára de falá berstêra!
- Hum... se eu não te conheço – falou desconfiada, mirando-o com a testa franzida e voltando-se de novo para a louça.
Calaram-se novamente. Ouvia-se apenas o latido insistente do Bóbi vindo do pátio, que não parava desde que ele chegou. Os latidos o incomodavam, mas, por outro lado, ele estava comemorando no seu íntimo pela reação da mulher. Não pela grosseria, com a qual já estava acostumado, afinal quem iria dar valor para um homem fraco, doente, sem instrução e que “mal consegue botar arroz e feijão dentro de casa”? Ninguém, nem mesmo ele. Tinha consciência de que era um fracassado (afinal, não era assim que seu pai lhe chamou a vida toda enquanto esteve vivo: “fracassado”?). A comemoração era, sim, por ela ter creditado que o seu comportamento diferente se devia à saúde. Que bom, pois isso a despistava. A não-desconfiança da mulher (sempre muito atenta a todos os movimentos dele, como se sempre antevisse o que ele ia fazer ou dizer), assim, era menos um obstáculo para o que tinha em mente. Maria Cristina não voltaria, porque tinha ido dormir numa amiga. Só faltava agora dona Eulália se recolher, o que fazia todos os dias pontualmente às sete da noite, bem cedo, coisa de velha. Mas ainda faltavam alguns minutos, e aquela postura estática era porque ele estava uma pilha de nervos. Soava frio debaixo do macacão, meio inebriado, tão nervoso que seus movimentos pareciam congelados, pois ainda permanecia de pé no mesmo lugar de quando chegou. Como um jerivá plantado ali há séculos.
Ainda atida aos pratos, ela observou-o de canto, mais com a sobrancelha do que com o olho, e soltou:
- Teu irmão Oswaldir que teve aqui mais cedo...
Silêncio dos dois. Dela, de expectativa pelo o que ele iria falar, e dele, de total incômodo com o fato. Tanto desacomodou que o fez sair daquela inércia e, finalmente, dar passos em direção à mesa da cozinha. Bóbi, lá fora, seguia latindo. Parou de novo ali, em pé. Virou a cabeça e observou pela basculante acima da pia a casa da frente: dona Eulália já tinha fechado a janela. A luz ainda estava acesa, mas já havia fechado a janela. Bom sinal; sinal de que em minutos poderia entrar em ação e acabar com aquela humilhação, com aquela sem-vergonhice de uma vez por todas. Meu Deus, pensava, era muito rebaixamento para um homem. Se ainda fosse com um outro... mas... o próprio irmão! E dentro da sua casa! Que descaramento! O que dona Leni (“que-Deus-a-tenha”), ia pensar daquilo? Seria muita tristeza para uma mãe, pensava, ainda mais para ela, que teve a vida tão sofrida.
Ele entendia o porquê das risadinhas e piadas maliciosas dos colegas e até de clientes na oficina. Claro que entendia! Mas fazia-se de tonto, o que, porém, não diminuía sua dor. Não conseguia nem pensar nos dois na cama se tocando, se alisando, se beijando, babando um no outro... Dava-lhe náusea, e a pressão, que andava cada dia pior, subia nas alturas. Mas naquele dia ele controlou a pressão com o remédio e segurou a ansiedade o dia todo, concentrado, como um assassino frio e calculista. Agora, no entanto, seu estado nervoso lhe traía. Suava feito um porco testa abaixo, costela abaixo.
- Esse cachorro não pára de latí... – disse ele baixinho num tom assutado, como se tivesse sido descoberto pelo cão.
- É esse cusco duz’inferno! – praguejou ela. – Um dia ainda jogo esse bicho no mato.
Mexeu no bigode e não respondeu nada para não dar prosseguimento no assunto, num medo idiota de que a mulher fosse traduzir o latido em palavras.
- Vai ficá com esse macacão gosmento a noite toda, hein? E não vai tomá o teu café? Recém passei.
Depois de uma pausa, retomou:
– Teu irmão trouxe umas coisa da feira, umas fruta, uns verde. Tudo coisa boa, de qualidade.
- Já te disse que não gosto que ele fique trazendo coisa aqui pra casa. Já te falei, não te falei? Ele não tem nada que ficá trazendo coisa aqui pra casa. Essa não é a casa dele! Tu não é mulher dele, ora essa!... Se ele não se arranja c’as mulhé por aí, problema dele. Não sei purquê tu continua aceitando essas coisa?
- Mas e eu vô negá coisa boa? Quem ouve falá até parece que tem condições de trazê coisa boa pra casa! Rá! Um inútil que trabalha, trabalha e mal consegue botá arroz e fejão dentro de casa! Teu irmão, não. Ele sim sabe o que é bom, sabe agradá as pessoa. Sabe agradá uma mulhé... – disse essa última frase num tom mais baixo, mas suficiente para que o marido ouvisse. – Ah! E os istudo da tua filha, nem preciso te dizê, né?, qui sô eu que pago com as custura e com a pensão da mãe. Se fosse dependê de um molerão como tu, rá!, a gente tava era muito rúim, isso sim.
Ele ouvia tudo quieto, mas cuspindo ódio pelos olhos. Pensava consigo que ela iria engolir todo aquele desacato e desonra que o fazia passar. Cada palavra, cada insulto. Ela e o cafajeste do seu irmão iriam ver. Era isso todo dia! Já tinha passado dos limites. Voltou-lhe à mente, no entanto, a imagem dos dois juntos. Imaginou-os agora suados deitados no chão da cozinha, em frente ao fogão, nus, engordurados. Podia ter sido ali naquela tarde, debaixo de onde estava pisando agora... que eles... que eles... Não! Não conseguia nem dizer pra si mesmo. Não podia mais aguentar! Aflito, verificou se dona Eulália já tinha se recolhido. Sim: janela fechada e luz apagada. Passavam alguns minutos das sete, então ela já caíra no sono. A filha, igualmente, não voltaria naquela noite, pois ele teve o cuidado de ligar-lhe mais cedo quando, emocionado, quase deixou escapar um ”adeus”.
A caixa de ferramentas permanecia ao lado da pia, pois estava tudo ali, no lugar certo, como planejou. Arquitetara tudo: primeiro, quando a mulher estivesse de costas, dava-lhe uma pancada forte com o alicate de pressão, pesado o suficiente. Em seguida, enchia-lhe a boca com buchas de estopa para não ouvirem os gritos. Depois usaria os dedos para esgoelá-la e amolecê-la. Por último, cravava no seu olho a chave de fenda mais comprida que tinha. Sabia que ia espirrar muito sangue e que ela iria se debater até desvanecer, sabia disso. Mas tinha visto num filme que, quando se perfura o globo ocular com profundidade em direção ao osso occipital, se atinge o cérebro, e, aí: adeus. Por isso mesmo não tirava o macacão, já ensopado de tanto suor. Aliás, esses pensamentos faziam suas mãos tremerem. Seu corpo todo se tomava ao mesmo tempo de cólera e medo. Chegara, enfim, a hora. Mas, de repente, a mulher se vira pra ele:
- Qué isso, Jair?! Derramou todo o café na mesa que eu acabei de limpá! Imporcalhô tudo! Tu só sabe fazê porcaria, hein? É tão abestalhado que não sabe nem serví mais o teu próprio café?!
Absorto, ele nem notara que a canequinha de metal já se enchera daquele café escuro feito breu.
- Limpa essa imundícia com esse pano de prato. Faz alguma coisa útil – ralhou, entregando-lhe um esfregão úmido.
Ele segurou firme naquele pano com as duas mãos, amarrotando-o, fazendo saltar ainda mais as veias azuladas e já sobressalentes de seus braços pálidos, magros e morrudos. De repente, sua bochecha esquerda começou a tremer involuntariamente. Seu ser inteiro era um misto de inquietação, vergonha, medo e horror. Chegava a enjoar. Não sabia o que sentir. Mesmo jamais tendo sido um homem violento, teria que ter coragem para isso. Vinha matutando há meses: não podia falhar agora. Não podia mais bancar o fraco, como a mulher, a sogra e até os outros lhe diziam. Precisava provar o contrário, mostrar do que o “fraco” era capaz. Provar que era um homem. Mas não conseguia controlar os nervos. Mal articulava um pensamento lógico. Várias imagens, vários sons se misturavam em sua cabeça: o Bóbi latindo, dona Eulália cumprimentando, a mulher e o irmão trepando, o som do pingo da água preta no balde. Uma confusão total. Mas, enfim, tinha que se controlar, pois aquela era a hora: era tudo ou nada. Então, decidido, chamou-a firme e com rispidez:
- Nilza!
Imediatamente ela se voltou e o mirou de cima a baixo com espanto e descrédito, o mesmíssimo olhar desabonador que dedicava ao Bóbi quando pedia comida.
- Qui é, hôme?!... Vâmo: fala!
Ele hesitou, hesitou e disse:
- Ééé... Não. Não é nada, Nilza. Não é nada.
- Iiiih, tu tá é muito isquisito hoje, isso sim. Toma o teu café que eu logo te sirvo a janta e depois tu vai é te deitá. Amanhã é ôtro dia, si Deus quisé.
Sem retrucar, ele baixou a cabeça, esfregou a mão melada de café açucarado no pano de prato e sentou-se infantilmente e quase sem forças à mesinha. Deu um gole do café, que lhe desceu tão amargo que nem parecia já conter açúcar.


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