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terça-feira, 15 de dezembro de 2015

cotidianas #408 - O Comediante


ilustração: Cly Reis
Parou resfolegante atrás de uma reentrância na parede e olhou em volta ainda assustado. Parecia que os havia despistado. Assim que se refez e realinhou-se para seguir em frente, sentiu uma mão puxando-o para trás imobilizando-o ao meso tempo que o silenciava pressionando sua boca. Sentiu ao mesmo tempo algo pressionando no meio de suas costas. Uma arma provavelmente.
O homem que o segurava foi soltando-o lentamente e retirando a mão de sua boca, não sem antes tomar o cuidado de apresentar-lhe a pistola que segurava como uma advertência para que o outro não tentasse nada.
- Quem é você? O que faz aqui? - perguntou o homem com a arma.
- Eu... eu... Estão atrás de mim. Eu não sei. Eu não fiz nada.
- Quem é você?  - insistiu.
- Eu sou um comediante. Eu estava contando uma piada quando soou uma espécie de alarme, as pessoas correram e uma viatura chegou... Eu não sei... - tentou explicar confusamente.
- Um comediante, é? - fez o homem armado em tom de desconfiança - Pode provar?
- Uma loira, um crioulo um judeu e uma bicha entram  num bar...
- Tá bom, tá bom. Você é mesmo um de nós.
- Um de nós? Como assim? O que está acontecendo? - quis saber o foragido, curioso.
- Onde é que você esteve nos últimos anos cara, cara? Não tá sabendo do que aconteceu?
- Eu estava participando de um reality-show enclausurado numa casa cheio de gostosas e saradões descerebrados, sem comunicação com o mundo exterior.
- Sério? - perguntou o da arma.
- Claro que não. Brincadeira. Eu estava na Interzona, para onde levam os Duplo I, "Ideologicamente Indesejáveis". Não que eu seja. é meu irmão. ele é escritor, filósofo, intelectual. Foi considerado comunista e "recomendado" para que se retirasse para lá. Só que ele tem um problema na perna e tal e aí fui levá-lo até lá. O problema é que entrar é uma coisa e sair é outra, e quando eu fui tentar voltar, na Triagem e Controle, eles me barraram. Eu disse que não tinha nada a ver com aquilo, que só tinha ido levar uma pessoa mas eles ameaçaram me prender se eu insistisse. Tive que ficar lá por quase dois anos. Só que lá mal chega comida e as comunicações foram cortadas. Não se sabe o que acontece na Metrópole. Aí que dei um jeito de sair. Fui pela linha de trem até até os limites do isolamento e entrei pela Zona 3 porque sabia que lá eles não iriam atrás de mim porque é considerada radiativa. Encontrei estradas fechadas, barricadas do exército e então tive que me embrenhar pelo mato. Entrei clandestino num vagão, peguei uma carona, até achei estranho quando o motorista me botou pra fora quando fiz uma gracinha qualquer, mas dei um jeito e cheguei à cidade. E agora que já sabe pelo que eu passei nestes últimos anos pode me explicar que diabos está acontecendo aqui?
- Pois então fique sabendo que o rir está proibido, meu chapa. Não é mais permitido fazer humor, comédia, sátira, piada, galhofa, qualquer coisa que faça rir, interpretar papéis cômicos falados ou não, imprimir ou divulgar material considerado burlesco, caricato ou jocoso. Qualquer um que seja flagrado fazendo qualquer coisa assim é preso, conduzido a um rápido julgamento e em seguida executado. 
- Mas... Como isso foi acontecer? - perguntou o fugitivo estupefato.
- Ah, amigo, tudo começou com a coisa do bullying, lembra? Uma coisa comum, corriqueira como tirar um sarro de um colega narigudo, gordinho, baixinho virou caso sério quando "vítimas" começaram a procurar ajuda psicológica, uns enlouqueciam, alguns se matavam, outros matavam seus algozes e foi o primeiro passo para o limite do humor. Depois veio a coisa do 'politicamente correto' que limitou ainda mais nossa área de atuação: até podia fazer piada mas tinha que falar com jeitinho pra não ofendia ninguém. Aí veio o tal do negócio do racismo, depois da homofobia, depois do feminismo e só foi piorando.
- Aí que se criou a Lei de Regulamentação do Humor, não foi? - interrompeu o outro que até então só ouvia. 
- É, mas a LRH era só uma recomendação oficial. Não valia nada na verdade. A coisa encrespou mesmo quando entrou religião no meio. Lembra daquela revista satírica francesa? 
- Como é que não lembraria...
- Aquilo foi só o início. Brincar com aqueles caras dos islã era morte certa. Redações de revistas eram frequentemente invadidas e cartunistas eram executados a sangue frio à luz do dia. Daqueles radicais era de se esperar algo assim, mas o incrível é que logo outras religiões começaram a reagir também às crônicas, piadas, tirinhas, comentários, performances, e atores, cartunistas, blogueiros, jornalistas simplesmente sumiam ou eram encontrados mortos com cartazes com alguma advertência à nossa classe. A pressão foi tanta que o governo criou um Ato Complementar que estendeu a LRH às religiões e logo, espertos como são, percebendo que ainda eram o único, e sempre produtivo, alvo dos humoristas, proibiram também qualquer manifestação minimamente maliciosa ou provocativa em relação a políticos, governantes e pessoas publicas. No entanto, nossa insistência com inteligência para driblar a Lei acabou os irritando e, os homens percebendo que não havia jeito de nos calar tão facilmente criaram o AC-3 que proibia definitivamente toda e qualquer produção ou divulgação humorística, qualquer coisa que faça rir. Voltamos ao tempo de Jorge de Burgos. 
- E aqui estamos, nós homens que outrora levamos um pouco de alegria à vida de corações desesperados, vidas sem-graça, corações angustiados, nos esgotos da cidade, nos escondendo da polícia... Seria cômico se não fosse trágico.
- Pois é... - concordou o portador da arma - E a propósito: como chegou aqui?
- Por acaso! Estava conversando com umas pessoas num barzinho no cais, quando uma situação me lembrou de uma piada. Mal comecei  a contar e já me vi cercado pela polícia. Aí corri, pulei no rio e ele dava nessas galerias. Corri pra despistar o caras e você me deu um baita susto com esse negócio aí... - e interrompeu-se surpreso - Ei, espera aí, cara!
O homem à sua frente voltava a empunhar a arma ameaçadoramente apontando em sua direção.
- Você pensa mesmo que eu vou acreditar nessa sua história? Você é um deles, não é?
- Não, cara, eu juro! Eu sou um humorista, como você.
- Fale a verdade. Você é um informante da polícia!
- Não, não sou. Eu vim parar aqui por acaso. Eu...
- Chega das suas mentiras! Isso é pra você. - disse esta última frase já apertando o gatilho.
O outro levou a mão à altura do peito e sentiu os dedos molhados. O fino jato d'água que saíra da pistola deixara uma mancha arredondada em seu casaco.
- Isso não teve graça nenhuma! - protestou indignado o homem atingido pela arma de brinquedo.
- Eu precisava ter certeza que você não era um infiltrado.
- Cara, isso não é brincadeira que se faça. Eu quase me mijei todo. Você podia ter me...
- Shhhh! - fez o outro saltando os olhos em atenção.
- Ah, você quase me mata do coração e não quer que eu fa...
- Shhhhhhh. - fez novamente agora abanando as mãos enfaticamente para que o outro se calasse. - Está ouvindo?
Um burburinho. Vozes misturadas. De onde estava já era possível visualizar alguns focos de lanterna se confundindo entre os túneis do subterrâneo.
- Você foi seguido.
- Seguido?
- É. Venha por aqui.
Mal começara a se mexer para sair dali e perceberam que também havia homens na galeria pela qual pretendiam seguir.
- Estamos cercados.
- E agora? - perguntou o fugitivo.
- Bom, acho que não podemos enfrentar eles com isso, não? - afirmou em tom jocoso mostrando a arma de brinquedo e em seguida jogando-a na água pobre do esgoto.
- E então, o que vamos fazer? - insistiu o comediante fugitivo.
- Bom, vamos contar piadas para eles e matá-los de tanto rir. É nossa única arma.
- Está falando sério?
- É claro que não. Vamos dar o fora daqui. - puxando o outro pela manga. - Conheço um caminho por onde eles não conseguirão nos seguir.



Cly Reis


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