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sexta-feira, 4 de novembro de 2016

cotidianas #477 - Pílulas Surrealistas #3



Seu Bastos era um espirituoso contador que mantinha aquele velho escritório de contabilidade num prédio antigo do Centro Histórico avizinhado de sex shops que mais pareciam jaulas de tão gradeadas, casas de massagem largamente suspeitas quanto a suas atividades-fim e várias outras salas, a maioria desocupadas e com placas de “vende-se”. Compartilhando com ele as atividades e a solidão dos números, dona Lurdes, tão velha quanto o escritório e o prédio, provavelmente brotada um dia daqueles amontoados de papeis, pois era impossível imaginá-la fora daquele ambiente do qual fazia parte integrante há anos, bem como, de forma prática, era difícil mesmo visualizá-la conseguindo se livrar da montanha gigantesca de pastas e papeis que ocupavam mais de 80% dos 40 metros quadrados do conjunto para sair pela porta. Como seu Bastos sempre saía mais cedo do que ela e nunca a via indo embora, não era estranho que ele presumisse que ela jamais saía dali. Ademais, não precisava ter uma cabeça muito piadística como a de seu Bastos para supor que ali, no meio de traças e celulose encanecida, era o habitat de dona Lurdes. A cena facilmente se formava: batia o sono da noite, ela recostava-se na própria cadeira sem braços e estofado gasto, improvisava a pasta sanfonada como travesseiro, estendia o papelão de uma caixa arquivo-morto para cobrir-se e cumpria, sem grandes confortos mas com muita praticidade, sua característica mais marcante, mais uma noite de sono.A rotina do dia de trabalho só lhes era rompida de quando em vez quando alguém aparecia para demandar-lhes mais trabalho e levar-lhes mais papeis. O irreverente Bastos, ao ouvir o sinal do interfone, sempre gracejava, perguntando à dona Lurdes de um jeito antiquado de se referir àquilo, coisa de séculos que não se usava:
- Quem vem lá? Anuncia-te, ó, ser vindo de terras e tempos longínquos!
Numa dessas tardes quaisquer alguém bate ao interfone, Bastos graceja sua tradicional frase e dona Lurdes manda subir. Ela abre a porta e entram dois altíssimos cavaleiros feudais de armadura e espada. Um deles levanta o elmo à altura da testa e toca uma trombeta, que ecoa em todo o corredor. Era o anúncio de uma entrega a dona Lurdes de um rolo de papel cor fúcsia. Ela desenrola e lê atentamente aquelas letras escritas a punho em bico de pena pelo escriba da Corte. O carimbo, feito de sinete encarnado. Ao terminar a leitura oficial apenas para si, faz aos dois oficiais um sinal de positivo com a cabeça, que imediatamente obedecem e, marchando, levam Seu Bastos.
Já dominado pelos militares medievos e sendo levado arrastado porta afora, Seu Bastos volta-se para dona Lurdes tentando uma explicação:
- Mas... dona Lurdes?...
Foram só essas palavras que lhe saíram, talvez pelo espanto, talvez por resignação, talvez até por inconsciente concordância. Ela não lhe dá atenção, sacudindo a mão aos dois para que o tirassem dali de vez. Tiraram-no. Seu Bastos agitava-se entre aqueles dois brutamontes talhados a vida inteira para as operações repressivas, e até por isso agitava-se em silêncio, sem gritos nem grandes esperanças de se desvencilhar de fato. Fazia-o para cumprir protocolo, como fez a vida toda. Uma prisão silenciosa foi aquela. Quando dobraram no sentido da escada, sumindo do corredor, dona Lurdes trancou novamente a porta e jogou sobre a pilha o rolo de papel, quiçá o último dos milhões que um dia entraram naquela sala.


Daniel Rodrigues

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