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sábado, 3 de dezembro de 2016

cotidianas #485 - Pílulas Surrealistas #7





A mãe lhe contava quando pequena que aquela sementinha que ela comia ia um dia brotar e fazer crescer uma árvore dentro da sua barriga. A mulher adulta, embora tenha crescido acreditando em muita coisa igualmente fantasiosa, como príncipe encantado e amores perfeitos, já havia superado pelo menos as crenças da infância: Papai Noel, Fada do Dente, Velho do Saco, essas coisas.
A frustração (ou melhor, a repetição delas) fez com que, como costumeiramente, a vida de executiva, o bom casamento, o casal de filhos e toda a aparelhagem inerente a uma vida social invejável, não fossem suficientes para sentir-se alguém.
Nunca fora alguém. Intimamente, sempre se comparou com as árvores que via na rua escurecidas pela película do vidro do carro. Sua vida era aquilo: movia-se, mas era como se estivesse sempre no mesmo lugar. A não pensar em nada, aceitando tudo que lhe jogassem por cima, passiva como uma folhagem.
Não pestanejou em tomar tal atitude: abriu a maçã e não comeu a polpa. Cavocou e tirou-lhe do miolo as sementes, as quais engoliu com a facilidade de quem acredita que encontrou finalmente seu deus.
O tronco avantajou-se e rompeu-lhe os órgãos internos. Em seguida, os galhos rasgavam sua pele pelas laterais, costas, tronco, seios, boca e ouvidos. Isso, no quarto, e ali ficou.
Ocupados, ninguém da família notou que uma árvore florescera dentro de casa. O marido, aliás, sentiu-se livre para levar a amante para a cama do casal, agora somente dele enquanto gente.
Na primavera, algumas maçãs caíram podres no carpete de tão maduras e desaproveitadas. Foi quando a criada foi chamada para limpar aquela sujeira.



Daniel Rodrigues

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