Curta no Facebook

terça-feira, 10 de julho de 2018

cotidianas #577 - A primeira



Não sei de que material é feita a bola de futebol, hoje. Quando ganhei a minha primeira bola, ela era feita de couro. Tinha uma câmara dentro, como nos pneus. Enchia-se a câmara com ar de uma bomba de bicicleta - ou com os pulmões mesmo, naquele tempo se tinha fôlego - e ajeitava-se o mamilo da câmara dentro do couro da melhor maneira possível, antes de amarrar os cordões da bola, que tinham cadarços como as chuteiras.Minha primeira bola tinha o tamanho regulamentar, era uma número cinco autêntica. Os locutores de rádio chamavam a bola de futebol de " a número cinco", além de "o esférico", "a pelota" etc. O couro da bola tinha cor de couro, ou então era um pouco mais vermelha. A bola pintada de branco só era usado em jogos noturnos, não era a verdadeira. O couro reluzia.
Hesitava-se muito antes de dar o primeiro chute na bola nova, pois o couro começaria a ficar arranhado no primeiro toque. Era um dilema, você não conseguia resistir ao impulso de levar a bola para a calçada e começar a narrar seus próprios movimentos com ela como um locutor entusiasmado - "Domina a número cinco, atenção, vai marcar, dá de charles... goooool! Sensacionaaaaaaal!" - e ao mesmo tempo queria prolongar ao máximo aquela sensação do couro novo, intocado, em suas mãos. A compulsão de sair chutando ganhava. Depois de dois dias de futebol na calçada, a bola nova estava irreconhecível. O couro ia empalidecendo como um doente. E a primeira coisa que desaparecia era o que depois mais perdurava na memória, o cheiro de novo. Nenhum prazer do mundo se igualava ao do cheiro do couro de uma bola de futebol recém-desembrulhada latejando em suas mãos. (Ainda não se tinha descoberto a revistinha de sacanagem.) Imagino que o nosso antepassado que pela primeira vez meteu a mão num buraco de uma árvore e depois  lambeu mel nos seus dedos tenha tido uma sensação parecida, a de que a criação é difícil mas dadivosa, e que há mais doçuras no mundo do que as que se têm em casa. Quase tão bom quanto o cheiro da primeira bola era correr atrás dela, mesmo que só fôssemos craques na nossa própria apreciação ("Que lance, senhoras e senhores!", eu gritava, mesmo que só estivesse fazendo tabela com a parede.) Correr atrás da primeira bola é o que nós todos continuamos fazendo, tamanhos homens, até hoje. E continua bom.

****
"A Primeira"
Luís Fernando Veríssimo

Um comentário:

  1. Meu maior sonho na infância era ter uma bola de capotão,era um desejo inalcançável pra quem era pobre feito Jó,Ló e Tó,rs.

    ResponderExcluir