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quinta-feira, 30 de agosto de 2018

cotidianas #586 - Jogo da Forca


- Nove letras... 
- Por favor, por que você tá fazendo isso comigo? Por que? Me deixa ir embora. Eu faço  o que você  quiser.
- Eu quero que você arrisque uma letrinha. Vai arrisca. É a única  maneira de você sair daí. - apontando para o banquinho sobre o qual se apoiava, a muito custo, quase na ponta dos pés, aquele homem desesperado com a corda no pescoço. - Completa a palavra e eu te solto. 
- Mas por que eu? Por que?
- Acho que você  sabe... Lembra de um assalto na Via Leste? Uma mulher sozinha num Ride preto?...
Os olhos do homem amarrado às costas se arregalaram.
- Pelo visto, acredito que você tenha lembrado?
- Eu não queria... Eu pensei que ela tava armada. Por favor, cara. Eu não fui eu. Foi um acidente. Eu..  eu não tinha o que comer. Minha filha tava morrendo. Me dá uma chance...
- Eu estou te dando uma chance. - retorquiu calmamente. - Ao contrário do que você fez com ela, eu estou lhe dando uma chance.
Caminhou lentamente pelo galpão abandonado dando uma volta em torno do refém equilibrado naquele apoio nada estável e prosseguiu:
- Poderia simplesmente lhe dar um tiro agora e pronto, mas você  não merece morrer rapidamente. No jogo da forca, normalmente se acrescenta um bracinhos, uma perninha, ao enforcado pra cada letra que errada.  Não teria como acrescentar membros a você, não, amigo? Imagina, você ficaria uma espécie de polvo ou algo assim. - riu - Então resolvi, e espero que não se incomode, mudar um pouco as regras do passatempo.
Disse esta última frase abaixando- se para pegar alguma coisa numa espécie de baú que encontrava-se ali por perto, no chão. Ergueu-se empunhando uma motosserra cuja mera visão alvoroçara a tal ponto o cativo que chegara mesmo a quase comprometer seu vital equilíbrio sobre a banqueta.
- Eu sou meio que um assassino como você, sabe. Sou escritor. De romances policiais. Você usa balas, eu uso letras. Cada um usa as armas que tem, não? Pois então decidi apelar para a minha arma para decidir essa questão de justiça. Adoro as palavras, sabe? Amo-as quase tanto quanto amava minha esposa. Já que um de meus amores não está aqui para me ajudar a decidir sobre seu destino, por sua causa, diga-se de passagem, nada mais justo que minha outra paixão tenha o poder de lhe salvar a vida ou condená-la. Pois seja, se você desvendar a palavra oculta sob aqueles enigmáticos tracinhos, - apontando para uma parede já bastante suja e pichada - mostrará ser, apesar de um assassino, um homem de algum valor, de bom vocabulário e eu aprecio muito pessoas inteligentes. Você será absolvido pelas palavras. Para ver como eu as prezo, hein. - observou ironicamente - Do contrário, para cada letra errada de seu palpite, ao invés  de colocar uma parte do corpo, eu terei que tirar uma. - e anunciou isso dando alguns leves tapinhas na motosserra que carregava consigo.
O homem agora gritava e, com algum cuidado para não se desequilibrar totalmente, se debatia.
- Não, não... Não  adianta de nada essa gritaria toda. Eu quero letras. Uma letra de cada vez. Conscientize-se, meu caro. É sua única chance. Melhor sair sem uma mão, um braço, do que sem a vida, não  acha? Arriscando você pode acertar ou não, mas não tentando você será cortado da mesma forma sem possibilidade de lucro algum. O que acha? E então?
Em meio ao desespero mas suficientemente lúcido para perceber que melhor era um chute lotérico que lhe trouxesse algum benefício do que a inutilidade de seu choro ou suas súplicas, mal conseguindo pronunciar o som de uma letra pelo cansaço que as horas ali dependurado chorando lhe causaram, optou por simplesmente abrir a boca e deixar escapar um som que ao mesmo tempo exprimia sua dor, sua fadiga e atendia ao que lhe exigia seu algoz:
- A...
- Boa escolha! "A" é uma letra que costuma aparecer muito. - observou o macabro mediador do jogo - Vamos ver...
Foi até a parede onde o jogo estava traçado com giz, olhou os nove espaços colocados em sequência, fez uma expressão como se estivesse avaliando a palavra invisível sobre as lacunas e por fim anunciou:
- Hum... que azar. Nessa palavra não tem "A". - disse já puxando a corda da motossera.
O ronco ameaçador e impio da máquina cortou o silêncio da noite.




Cly Reis

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