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quinta-feira, 1 de outubro de 2020

cotidianas #691 - O Açougueiro




Minha mãe vivia me assustando dizendo que o açougueiro pegava as crianças que não se comportavam bem pra fazer carne moída. O que para mim era uma ameaça muito séria considerando que meu comportamento não era lá dos melhores. O problema é que certa vez, impossibilitada de sair de casa pela ausência da empregada e tendo que ficar com meu irmãozinho menor, ela incumbiu a mim de ir ao açougue comprar, exatamente, carne moída. Logicamente, dado meu comportamento cotidiano naturalmente pouco elogiável e o inegável efeito que as constantes histórias a respeito do açougueiro produzima sobre mim, num primeiro momento me recusei a atendê-la, contudo, diante da ameaça de confiscar justamente meu estilingue, objeto fiador da minha má conduta, fui obrigado a ceder e encarar a apavorante tarefa.
Quando entrei no açougue do Seu Elias ele estava de costas para a porta destrinchando um pedaço de carne na bancada auxiliar. Ele era  um homem grande, de ombros largos, bigode espesso e bochechas rosadas, coradas como as de um bebê. Assim que percebeu a presença de um cliente, voltou-se para o balcão, olhando-me por dentro dele, pelo vidro embaçado onde a carne se mantinha fresca  e na temperatura ideal para seu bom estado.
- Ah, você por aqui - exclamou ao me reconhecer - Não via você há tempos. Está crescido..., gordinho. Dona Lúcia não pode vir? - e sem esperar que eu respondesse, perguntou - O que vai querer?
- Carne moída. - eu respondi apertando as palavras entre os lábios.
- Ah, sim. Muito bom, muito bom - disse abrindo a porta deslizante do balcão à sua frente e pegando um corte de carne espesso e vermelho. E se aquele pedaço fosse do Rafa que disseram que tinha se mudado para Portugal? E se fosse do Diego que disseram que não podia sair de casa porque tinha, tipo, uma doença muito grave?
- Vem cá, bem. - a voz do açougueiro me despertou de meus pensamentos sinistros.
"Faz a volta no balcão", insistiu aquele homem com o avental branco manchado de sangue. "Que que tá parado aí com essa cara? Pode vir, eu não vou te morder", riu.
Não sei ao certo se aceitei o convite por curiosidade, inconsequência, pelo desafio ou por um súbito surto de coragem mas o fato é que lentamente contornei o balcão e me posicionei atrás dele, próximo à bancada contígua.
- Vem ver como se mói carne - disse ele.
Então ele se virou para o balcão.
Ia pegar uma enorme faca branca que estava cravada numa tábua de carne à sua frente.
Me antecipei e peguei outra que ficava grudada a um imã na parede.
A faca entrou-lhe bem no meio das costas.
ele tombou para a frente e ainda tentou se apoiar na bancada mas deslizou para o chão.
Naquela tarde eu aprendi a moer carne.

******

- Demorou com essa carne! Tava com medo do açougueiro, é?
Olhei séria e fixamente para minha mãe.
- Eu não tenho mais medo do açougueiro.
Cruzei a porta da cozinha e a passos firmes caminhei até a mesa. Deixei sobre ela um pacote pardo cuidadosamente amarrado com barbante.
- Taí a sua carne.



Cly Reis



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