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sábado, 11 de março de 2023

"Argentina, 1985”, de Santiago Mitre (2022)

 

“Marte Um” é um dos melhores filmes brasileiros do século XXI e um dos melhores do cinema nacional. Mas por que abrir falando deste filme e não de “Argentina, 1985”? Pelo fato de que, mais uma vez, o Brasil não é representado no Oscar. O filme de Gabriel Martins era o candidato brasileiro a concorrer à estatueta, o que não se confirmou mais uma vez como vem ocorrendo há 25 anos, desde “Central do Brasil”, em 1998. E por que a comparação entre os países? Porque, embora “Marte Um” tenha sido preterido a títulos de outros quatro países que não só a Argentina, é inevitável a comparação entre o cinema feito no Brasil e na terra de Gardel, vizinhos e afins em uma série de aspectos. O fato é que este último vem, há aproximadamente duas décadas, se sobrepondo de tal maneira ao primeiro – inclusive no próprio Oscar, com a indiscutível vitória de “O Segredo dos Seus Olhos”, em 2004, e a indicação de “Relatos Selvagens”, em 2015 – que chega a eclipsar um grande filme como “Marte Um”.

Esta comparação denota o quanto o cinema argentino soube encontrar o seu lugar na indústria internacional. “Argentina, 1985” traz as qualidades e o hibridismo que caracterizam a produção audiovisual recente dos hermanos. Baseado em fatos reais, o filme conta a história dos promotores públicos Julio Strassera (o lendário Ricardo Darín) e Luís Moreno Ocampo (Juan Pedro Lanzani, ótimo no papel) e sua jovem equipe, que tomam a inédita missão de processar os militares da ditadura argentina. Sob forte pressão política, pública e militar, a dupla encabeçou uma longa pesquisa antes de começar a julgar os cabeças do regime argentino naquele que é conhecido como Julgamento das Juntas.  O processo todo ouviu 850 testemunhas e durou cerca de 530 horas de audiência, vindo a resolver-se no fatídico ano que denomina o título.

Impressiona a capacidade do cinema argentino de saber contar histórias de forma equilibrada e sem pesar demasiadamente para o superficial ou para o denso. Isso coloca a obra no difícil limiar entre o cinema de arte e o filme popular, química facilmente identificada em outros títulos argentinos como “Família Rodante”, “Um Conto Chinês” e “Medianeiras”. No longa de Santiago Mitre, há sempre porções bem conjugadas de drama, humor, romance e registro histórico-documental. Neste ponto, a reconstituição de cenas, principalmente as de tribunal, são capazes de fazer reviver o passado. Além disso, o roteiro vale-se do recurso da construção de narrativas “paralelas” (o pretensamente perigoso namoro da filha Strassera) e a complementaridade de perfis entre os personagens, o que transmite uma percepção de coesão ao espectador.

Recuperando a história: acima, foto do julgamento
original; abaixo, a reconstituição do filme

Há de se ressaltar também aquele que é a cara e o coração do novo cinema argentino: Ricardo Darín. Em mais um exímio papel, ele interpreta Strassera com a habilidade cênica a que o público já se acostumou. Resultado este, porém, nada fácil de se encontrar, visto que perscruta a alma do personagem. O público sabe o que isso quer dizer, basta lembrar de seu protagonismo em filmes como “Neve Negra”, “A Odisseia dos Tontos”, “Koblic”, “Truman” e nos já citados “O Segredo dos Seus Olhos” e “Relatos Selvagens”. A entrega de Darín é tocante, pois capaz de transmitir as inseguranças, as mudanças e os conflitos deste funcionário público tão essencial para a história recente da Argentina, humanizando-o para o espectador. Mais do que humanizá-lo, é um trabalho de recriação e materialização de um personagem que supera o simples cargo de um promotor. É. sim, um símbolo da democracia, da justiça e de resistência.

Darín em mais uma atuação de pura entrega
Afora estes aspectos técnicos comumente impecáveis no cinema da Argentina, este também cumpre outra função fundamental, visto que espelha questões culturais e sociológicas que muito servem de exemplo para a América Latina (incluso Brasil). A porta aberta pelo corajoso e também oscarizado “A História Oficial”, de 1985, denota a consciência de um povo latino-americano que não foge ao compromisso cívico de mexer nas próprias feridas. A sangrenta ditadura que acometeu o país é talvez a principal delas. No momento em que vizinhos como o Brasil saem de um período de trevas pelo conflito permanente entre o comando de um ditador e um regime democrático, bem como a ebulição política recente de países como o Chile, Peru, Nicarágua e Bolívia por motivos semelhantes, que é a sombra fétida do totalitarismo, filmes como “Argentina, 1985” têm muito a ensinar.

Tudo indica que a Argentina levará mais uma vez a estatueta para casa. A se medir pelo grande adversário, o alemão “Nada de Novo no Front” (o qual também concorre a Melhor Filme, pelo qual pode ganhar), a obra de Mitre tem tudo para deixar este e os outros para trás. Assim como deixou o belo “Marte Um”, que por melhor que seja, evidencia o quanto não o Brasil, mas a Argentina achou o caminho para um cinema representativo da América Latina.

trailer de "Argentina, 1985"



Daniel Rodrigues

2 comentários:

  1. Muito bom,só faltou ressaltar a ditadura venezuelana.

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    1. Quando tiver um filme, relevante, sobre a ditadura venezuelana, a gente fala. Se for pertinente)

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