"Nunca os temas negros de candomblé tinham sido tratados com tanta beleza, profundidade e riqueza rítmica (...) é esta sem dúvida a nova música brasileira (...) digo-o em consideração a sua extraordinária qualidade artística, à misteriosa trama que os envolve: um tal encantamento em alguns que não há como sucumbir à sua sedução, partir em direção ao seu patético apelo."
Vinícius de Moraes,
na contracapa da edição original
Assim que aquilo começou a tocar foi como seu eu tivesse
sido capturado por um canto de sereia. Aquele coro feminino quase hipnótico,
aquele batuque, aquele aquela voz sussurrada, aquele violão mágico. O que era
aquilo? O violão sofisticado de Baaden
Powell, unido à poesia característica e ao vocal arrastado de Vinícius de
Moraes, explorando os ritmos afro-brasileiros com classe, estilo, requinte, ao
mesmo tempo que com simplicidade e crueza, compunham um dos álbuns mais
notáveis da música brasileira, “Os Afro-Sambas”,
de 1966.
Uma perfeita mescla de técnica, poesia, brasilidade,
africanidade, sincretismo, tradições, folclore e genialidade em um trabalho que
leva ao limite a multiplicidade e as possibilidades dentro da linguagem do
samba e das vertentes da música brasileira desde suas mais remotas origens.
“Canto de Ossanha”que abre o disco é simplesmente
emocionante com seu dueto inicial de Vinícius com a atriz Betty Faria, naquela
espera com voz ofegante para a introdução do refrão e finalmente na explosão do
estribilho com o coro do Quarteto em Cy. Lindíssima,
espetacular, fantástica!
O Quarteto em Cy, que a propósito, faz os vocais de apoio em
todas as canções do álbum, são destaque na incrível “Canto de Xangô”, de
arranjos vocais admiráveis de linhas clássicas contrastando com uma percussão
marcante bem característica de pontos de umbanda; e na linda “Bocoché” na qual
as vozes parecem emergir do fundo do mar.
“Tempo de Amor” é bem samba-de-raiz, bem samba de
fundo-de-quintal, que aliás foi a intenção de como o disco deveria soar. Puro, primário como uma roda de samba, rústico
como um terreiro de candomblé. “Canto do Caboclo Pedra-Preta” também soa bem
crua, bem básica e o destaque é para a interpretação magistral de Vinícius, que nem sequer era um grande cantor. Já “Tristeza e Solidão” é mais requintada,
e embora tenha o instrumental percussivo, a bateria, os agogôs, os atabaques, bem
destacados e evidentes, aparece como uma espécie de bossa-nova bem trabalhada.
O disco fecha com “Lamento de Exu”, faixa sem letra, marcada
apenas pela técnica da execução de Baden, emoldurada por evoluções vocais
líricas do coro feminino, constituindo, então, um encerramento grandioso e
digno de um grande álbum.
Um dos discos que mais me impactou nos últimos tempos. Assim
que comecei a ouvi-lo na casa do meu irmão,
Daniel , conforme descrevi acima, me apaixonei. Até copiei
um arquivo para mim, mas como sou chato e gosto mesmo de mídias originais, recentemente
adquiri uma edição inglesa do álbum. Foi meio difícil achar, mas valeu o
esforço. Aqui no Rio, por exemplo, estive em uma loja de discos bem conceituada
em MPB, a Toca do Vinícius, à cata deste “Afro-Sambas” e de uma boa coletânea do
Nelson Cavaquinho. Chagar a ir até lá era algo do tipo “se não tiver na Toca do
VINÍCIUS, não tem mais em lugar nenhum”. O dono da loja indicou-me que encontraria
facilmente algum do Nélson
em uma Loja Americanas da vida, mas meio que me
desanimou quanto ao “Afro-Sambas”, dizendo-me que somente com muita sorte o encontraria
em LP no Brasil, e em CD só encontraria no exterior, mas que me parabenizava pelo
bom gosto. Agradeço, caro comerciante, ainda mais sabendo dos títulos que lida
e manuseia todos os dias em sua loja, mas o elogio não é para mim. Não sou eu, o
disco que é de muito bom gosto. De muitíssimo bom gosto. Eu só fui capturado.
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FAIXAS:
- Canto de Ossanha - 03:23
- Canto de Xangô - 06:28
- Bocoché - 02:34
- Canto de Iemanjá - 04:47
- Tempo de amor - 04:28
- Canto do Caboclo Pedra-Preta - 03:39
- Tristeza e solidão - 04:35
- Lamento de Exu - 02:16
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Ouça: