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sexta-feira, 14 de maio de 2021

Aquisições porto-alegrenses

Quem me acompanha nas redes sociais vê que vira e mexe estou escutando alguma coisa “na vitrola”. Embora tenha uma boa coleção, sabe como é, né? Colecionador de discos está sempre de olho em outros para comprar. Não é comum eu ir aos sebos de Porto Alegre (ainda mais agora na pandemia), até por causa dos horários comerciais, durante os quais geralmente estou ocupado, e porque, afinal, acaba sendo mais um gasto. Mas quando surgem boas oportunidades, é impossível resistir. Pois dias atrás, vi uma postagem do antenado e generoso amigo Juarez Fonseca sobre um amigo seu que estaria, em suas palavras, “se desfazendo de sua coleção de discos de vinil. Tem Chico, Caetano, Gil, Milton, Elis, Mercedes Sosa, Jaime Roos, Jimi Hendrix, muita coisa de jazz e raridades da música gaúcha. Uma mina de ouro.” E Juarez arremata o post alertando: “todas as capas estão reproduzidas no Facebook.”

Não deu outra: com tamanha propaganda, fui conferir. O amigo era Raul Boeira, músico, compositor e violonista de Porto Alegre com mais de 50 anos de estrada. E realmente: centenas de ótimos títulos em LPs e todos visivelmente bem cuidados por Raul, que me confessou posteriormente em troca de mensagens fazer cerca de 10 anos que não mais tinha toca-discos e que não havia “razão para esse som todo ficar aprisionado aqui no armário”. Não demorou muito para eu saber que outros dois colecionadores como eu, os também amigos Marcello Campos e Lucio Brancato, já estavam empenhados em alforriar tamanha qualidade musical. Diante do desprendimento e simpatia de Raul – e, claro, do meu desejo – adquiri sete unidades da encarcerada discoteca, os quais descrevo aqui brevemente um a um. Alguns já foram parar direto na vitrola:


“Do Romance ao Galope Nordestino”,
 Quinteto Armorial (1974)

Um dos fenômenos mais originais da história da moderna música brasileira, o Quinteto Armorial representa mais do que música, mas um conceito de brasilidade. Com a benção de Ariano Suassuna, líder intelectual do movimento Armorial, que buscava criar bases brasileiras para todas as formas de arte - entra as quais, a música - a banda que lançou o hoje famoso Antonio Nóbrega, em seu primeiro disco, traz sua sonoridade sui generis que alia clássico medieval e barroco aos sons formativos do Nordeste. E o que é essa capa de Gilvan Samico?! Uma obra-prima por dentro e por fora.



“Nice Guys”,
Art Ensemble of Chicago (1979)
A banda de Lester Bowie, Malachi Favors Maghostut, Joseph Jarman, Roscoe Mitchell e Don Moye num de seus mais celebrados discos. Os inventores do pós-jazz passeiam pelo bop, avant garde, blues, fusion, reggae e art music em sua musicalidade intergaláctica. “É possivelmente o mais representativo álbum da banda, uma vitrine variada que ilustra muito do que eles fazem de melhor”. Isso não sou eu quem digo, mas a Down Beat. Destaque para “Já”, "Folkus" e "Dreaming of the Master" . E a arte caprichada da capa e contra! Impecável como qualquer produto ECM. 



“Lilás”,
Djavan (1984)
Já totalmente inserido no mercado norte-americano, Djavan lançava em grande estilo, com produção gringa caprichada, um de seus discos de maior sucesso lá e aqui no Brasil. Embora tenha recebido certas críticas pelo excesso de elementos eletrônicos à época, o disco, sexto do artista, praticamente repete o antecessor “Luz”, pois é daqueles álbuns de carreira que parecem coletânea: a faixa-título, “Íris”, “Esquinas” e “Infinito” integram o repertório, por exemplo. Suingue, complexidade harmônica, arranjos ricos, vocais grandiosos. Um luxo.




“Jogos de Dança”,
Edu Lobo (1983)
Imagino que quando convidaram Edu Lobo - que já havia coescrito com Chico Buarque para o Balé Guaíra o clássico "O Grande Circo Místico" dois anos antes - uma nova trilha para dança somente instrumental ele, afeito muito mais à música do que ao canto, vibrou com a oportunidade. O resultado é um dos melhores discos da discografia do autor de "Disparada", que antecipa em pelo menos 10 anos o conceito de trilhas que o Grupo Corpo adotaria: artistas nobres da MPB compondo para balé trabalhos especiais e que vão além dos palcos: são música para se ouvir dançando ou parado.




“Tempo Presente”,
 Edu Lobo (1880)
Outro lindo disco de Edu Lobo que consagra sua década mais produtiva, os anos 70. Junto com “Missa Breve”, “Limite das Águas” e “Camaleão”, forma a quadra de álbuns em que o legítimo filho musical de Tom Jobim passeia pelos variados estilos, da bossa nova ao baião, do jazz ao clássico. Parcerias principalmente com Cacaso e Joyce, primor de arranjos, produção caprichada de Sérgio de Carvalho. Edu, assim, em plena fase criativa é ouro em pó.





“Bandalhismo”,
João Bosco (1980)
Dos discos de Boscão da fase com Aldir Blanc que não tinha. Além da arte sempre magistral de Elifas Andreato, que aproveita cortes e dobraduras diferentes, “Bandalhismo” é mais um documento da resistência à ditadura militar e a opressão social que o Brasil vivia como os vários que a dupla compôs nessa época. Abre com a sarcástica “Profissionalismo é Isso Aí”, mas também guarda joias como “Siri Recheado e o Cacete” e “Sai Azar”, que também são deste repertório.





“Atlantis”,
Wayne Shorter (1985)
Único da leva de compras que não tenho conhecimento de como é. Disco dos anos 80 de um dos imortais do jazz, que nunca decepciona. O que se sabe de antemão é que traz ritmos brasileiros e funk em várias faixas em arranjos muito bem elaborados. São 11 músicos em estúdio contando com Shorter revezando numa instrumentação entre o elétrico e o acústico. Boas expectativas.







**********

+ 2

Além dos LPs que adquiri, generosamente ganhei do próprio Raul Boeira em CD dois de seus discos: “Raul Boeira: Volume 1”, de 2009, e “Cada Qual com Seu Espanto”, dele e de Márcia Barbosa, de 2016. Assim como o Shorter, ainda não tive tempo de soltá-los na vitrola, mas não demorará.



Daniel Rodrigues

segunda-feira, 5 de novembro de 2018

Exposição "Jean-Michel Basquiat - Obras da Coleção Mugrabi" - Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) - Rio de Janeiro/RJ



O bom senso jornalístico sugere que se use com muita parcimônia o termo “gênio” para classificar alguém. A explicação é bem lógica, como ironizou certa vez Ariano Suassuna: se for empregar o adjetivo a alguém como Chimbinha – tal como irresponsavelmente o fizeram para com o apenas esforçado guitarrista de brega music brasileiro –, o que resta para um Mozart ou Shakespeare? Raras são as personalidades na humanidade que atingiram esse status e que, por consenso, podem ser tidas de geniais. Caso de Jean-Michel Basquiat (1960-1988), o artista visual nova-iorquino que, em seus meteóricos 27 anos de vida, edificou uma obra gigantesca em quantidade e simbologias, assemelhando-se, a seu modo, a outros gênios das artes visuais como Michelangelo, Picasso ou Cézanne. Um pouco de sua extensa e marcante obra pude conferir, juntamente com Leocádia Costa e Cly Reis, na exposição de retrospectiva no CCBB do Rio de Janeiro.

Duas coisas me impressionaram sobremaneira na mostra, até pelas lógicas praticamente antagônicas de ambas, mas, justamente, oriundas da mesma natureza: a brutal naturalidade com que Basquiat criava sua arte, quase instintiva e sem travas, e, ao mesmo tempo, uma igualmente brutal força interna, esta, capaz de transformar o natural aparentemente banal em algo grandioso, acima da média. Motivações grandiosas, como a crítica à Igreja ou a condição do negro norte-americano, dividem espaço com temas aparentemente vulgares, como personagens de desenho animado, produtos descartáveis e “rabiscos” infantis “despretensiosos” (“Tiranossaurus”, “A House Build by Frank Lloyd Wright for his Son“), Mas que, de modo feroz, expressam a mais profunda intenção artística. Há, por exemplo, quadros inteiros com apenas o uma frase escrita, como em “A Shadow in his Space”. E é de encher os olhos.

A brutal simplicidade do traço da criança
Basquiat era muitos e ao mesmo tempo uno. Como outros gênios, incorporou as ondas e tensões de sua época e as traduziu em arte. Sua obra personifica o caráter de Nova York nos anos 1970/80, quando a mistura de empolgação e decadência criou um espaço importante de criatividade. Estava tudo no ar: a Guerra Fria, a questão dos negros e dos imigrantes, a cultura pop, as ditaduras sangrentas na África e América, a era Reagen/Tatcher,  o rap enquanto música de protesto e de reelaboração da cultura negra, a publicidade dos anos yuppie, a tradição da arte clássica e o desmonte desta pela arte moderna. Tudo estava em Basquiat, à flor da pele, a cada jato de spray, a cada pincelada, a cada borrão, a cada palavra escrita ou rasurada, a cada ironia ou protesto. A intensidade do traço, compulsão expressiva, a obsessiva reelaboração da ideia – peculiar de uma mente inquieta e criativa –, o uso instintivo da palheta cromática, as camadas ora de tinta, ora de colagens ou mesmo do suporte da tela, bem como os escritos poéticos e multilíngues e as figuras cadavéricas e não menos constrangidas pela vida.

A Mesquita, de 1982, multiplicidade de técnicas
e de signos
Tudo é de um impacto tamanho, que se demora a elaborar internamente.

Estou fazendo isso até agora. Não sei com que grau de maldade, discriminação ou simples ignorância veículos de imprensa noticiaram esta mesma mostra, quando ocorrida em São Paulo, no início do ano, classificando Basquiat como “grafiteiro”. Basta apreciar algumas das 80 quadros, desenhos e gravuras expostos para perceber o quão desrespeitoso se é ao reduzi-lo como se fosse um mero vândalo urbano. A quantidade de técnicas e suportes que se utilizava para montar uma obra eram extremante variados, indo das mais tradicionais, como a pintura a óleo ou acrílica, a outras mais pop e adequadas à sua realidade, como colagem, tinta spray, xerox ou serigrafia. “A Mesquita” (1982), “Coelho Vermelho” (1982) e “Bracco di Ferro” (1983).

Igualmente, impressiona o domínio de Basquiat do desenho. Mesmo sem uma formação tradicional, como se “exige” de artistas visuais para serem aceitos no metiê, Basquiat não apenas suplantou isso pela qualidade como, inovador, adicionou-lhe elementos estéticos e simbólicos ao que se convencionou chamar de neoexpressionismo. Há momentos em que na sua obsessão pela estrutura humana, vista nas repetições de esqueletos e ossos (dos negros como ele, segundo ressaltava o próprio) e nas figurações distorcidas, há traços tão elegantes quanto um Picasso de "As senhoritas de Avignon" ou dos cartazes publicitários de Tholouse-Lautrec, ambas as referências do início do século XX. Mais atual, porém anterior a Basquiat, o alemão Joseph Beuys, de quem comungava do mesmo sarcasmo e olhar crítico, e Andy Wahrol, também uma forte inspiração, tanto que motivou a ambos amigarem-se e a trabalharem juntos na segunda metade dos anos 80, produzindo quadros brilhantes – embora a crítica, ignorante, tenha virado a cara à época. Na sala especialmente reservada a esta fase, podem ser vistas obras em que o talento de um não se sobressai ao do outro, impulsionando-se mutuamente. A serigrafia e o traço elegante de Wahrol – algo que ele não fazia desde os anos 60 – convive com as intervenções espontâneas de Basquiat.

Rosto cujos traços lembram Picasso primitivo
A sensação que se sai de uma exposição tão rica e instigante como esta é que qualquer um pode expressar-se artisticamente – ainda mais a quem, como nós três, têm facilidade no traço .“Por que não nos aventuramos mais na pintura, no desenho?” Saímos nos questionando. Por outro lado, a percepção de que, independente do que fizermos, jamais atingiremos o que um Basquiat produziu, e essa é um sentimento de profunda admiração e gratidão. No caso dele, o fato de ter sido um totem de motivações histórico-sociais, que introjetou e reelaborou as tensões do seu tempo, não explicam na totalidade o porquê da qualidade daquilo que legou. Afinal, para se tornar um ícone não basta apenas a atribuição externa: tem que ser intimamente capaz disso. E Basquiat o foi, mesmo que inconscientemente. Mais do que isso, Basquiat foi aquilo que explica tudo o que se viu: um gênio. Assim mesmo, adjetivo superlativo.

Confira um apanhado de algumas das obras expostas de "Jean-Michel Basquiat - Obras da Coleção Mugrabi":

"Braccio di Ferro", impressionante e sua complexidade

"Elefante Rosa com Caminhão de Bombeiros", de 1984, das melhores

Peça com a assinatura estilística de Basquiat

Frank Lloyd Wright ficaria orgulhoso de seu filho

Foto de uma das intervenções assinadas como SAMO na NY do final dos 70

"Coelho Vermelho", das peças mais impactantes da mostra

A construção fragmentada dos quadrinhos e da televisão em "Old Cars", de 1981

Detalhe de "Old Cars"

Díptico de duas das principais referências de Basquiat, o negro e a músico dos negros

"Cantor", de 1980-85, lápis de cor e crayon sobre papel

Música da Cabeça versão Basquiat

"Moisés Jovem", outro soco tomado de sagacidade e bom-humor

Detalhe de "Quatro Grandes", de 1982, religiosidade, sexo e ídolos

Basquiat e Wahrol, união de talentos dialogando numa linguagem ultramoderna
"Ovos", de 1986, Wahrol, com seu inconfundível traço, voltando a pintar depois de 20 anos por causa do amigo

Precisa mais que isso para ser arte?

"Natchez", profusão e sobreposições que remetem à multitela, profetizando a era do mobile

Detalhe de "Natchez" com os escritos repetidamente obsessivos do artista

"Fifty Nine Cents" (1983), acrílico sobre tema, a influência da publicidade e a ironia ao capitalismo

Cly e eu tentando desvendar a lógica deste "Xadrez" tão fora dos padrões

Convivência da elegância do traço no rosto abaixo e da inquietude logo acima

Ironia metalinguística na era dos fakes: de Basquiat  falsificando a si próprio

As raízes africanas expostas em cores e símbolos na obra do final de carreira

Admiração e espanto de quem vê um Basquiat ao vivo que chega a dar um passo pra trás ("Sem Título", 1981)

As impressionantes cerâmicas desenhadas com caneta de tinta permanente
e
O coração jazzístico de Basquiat
Quem não enxerga aí crítica à Igreja e à condição do negro não entendeu nada

Obra que nos leva a questionar, por que não fazer a própria arte?

Cultura pop, religião, violência, ecologia e capitalismo: caldeirão ideológico

Mais uma vez a influência da publicidade e da sociedade de consumo

Pura genialidade em "Ciclista", de 1984, das mais poéticas da mostra

"Venus 2000 B.C.", de 1982, simplicidade genial que se conecta ao alemão Joseph Beuys

Colagem, spray, óleo, pintura: várias técnicas de Basquiat sobre suas figuras geralmente cadavéricas

Merece até um abraço por tamanho assombro que causa

A referência aos HQs e o universo dos super-heróis  de "Il Flash" (1984) atraiu a criançada presente no CCBB

Absorvendo a paulada desta obra até agora...

Das obras do final da carreira nos fez questionar: onde iria parar a arte Basquiat se vivo?

Os cabelos de Basquiat e meus

texto: Daniel Rodrigues
fotos: Leocádia Costa

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exposição "Jean-Michel Basquiat:
Obras da Coleção Mugrabi"
local: Centro Cultural Banco do Brasil Rio de Janeiro
endereço:Rua Primeiro de Março, 66 - Centro
visitação: de quarta a segunda, das 9h às 21 horas.
período: até 7/01/2019
entrada: gratuita