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Ildo, o garçom mais querido da cidade. |
Não sou um andarilho de Porto Alegre. Já fui, não sou mais. O perímetro
limitador do círculo casa-trabalho ajuda a isso. Mas não SÓ por isso. Cada vez
mais desinteressada consigo, minha cidade vem ficando cada vez mais
desinteressante para os outros. Políticas públicas burras, mal pensadas, não planejadas,
intransigentes e corruptas a acinzentam diariamente. É resultado visível o atraso
econômico, social e cultural a cada meio-fio sem pintura, a cada negócio de
anos que fecha as portas, a cada buraco que aniversaria, a cada reestreia de peça
teatral igual há 30 anos, a cada mão de via pública invertida sem por que. Não
que deixe de circular e ir a lugares, teatros, museus, parques, shows,
restaurantes, bares, etc. Faço; entretanto, em virtude de alguma atração ou
programação prévia. Ir pelo prazer de ir, deriva, raramente.
Essa “desidentidade” que a cidade Porto Alegre (ou seria uma
“des-cidade”?) vem sofrendo de mais de uma década para cá (assim como o Estado
gaúcho, haja vista esse atual governo, a institucionalização do escapismo) com
certeza é o que vem me afastando dela mesma. Adoro suas ruas, sua luminosidade
subtropical, seu céu de azul paralelo 30, a beleza inequívoca de suas gentes, sua
infinita e mal aproveitada capacidade intelectual. No entanto, de lugares,
pontos-chave da urbanidade porto-alegrense, aqueles que são sinônimos e se
confundem com a urbe, poucos se salvaram da despersonalização. Poucos, cabem
nos dedos, mas existem. E a Lancheria do Parque é um deles, graças a Deus.
Por essas coisas que talvez somente Ele possa explicar (se quiseres,
estou aqui de ouvidos atentos, combinado?), estávamos livres
Leocádia, Carolina
e eu antes do show de
Caetano Veloso e
Gilberto Gil, no
Araújo Vianna, quase
ali de fronte para a Lancheria. A conclusão foi óbvia: paramos antes na “Lanchéra”
e depois “s’imbora pro show!”. Além do mais, fazia anos que cada um de nós não
voltava lá. Desavisados de que um fato importante ocorreria dali a horas (menos
de 48), sentamos no aperto das mesas e pedimos a um dos garçons mais novos xis
e um balde de suco a preço de um copo cada um, como todo bom frequentador dali
faz.
A emblemática Lancheria, de tão homogeneizada com o Bom Fim, com as
imediações da
Redenção, com a cidade de uma forma geral, parece existir ali
desde que éramos ainda a Porto dos Casais (Não é essa a impressão que lhes dá
também?). QG dos alternativos, cozinha dos moradores do bairro, ponto de
encontro e turístico. Circulam ali jovens, velhos, crianças,
hippies, punks, rajneeshes e até gente
normal. E todo mundo convive todos os dias, como se o exótico não fosse exótico
aos normais e como se os normais não fossem normais aos exóticos. Ou
vice-versa. Essa naturalidade é tão mais democrática e simbólica do que
qualquer protocultura de CTG nativista, muitas vezes segregadora e sexista. Uma
Porto Alegre que tenta dar certo.
Histórias dali? Eu, como qualquer jovem porto-alegrense e roqueiro,
tenho. Lembro de uma vez que, ainda redigindo meu livro
"Anarquia na Passarela", estava com a bíblia punk “Mate-me, por Favor” a tiracolo para
pesquisa. Lá pelas tantas, na mesa com alguns amigos meus, um frequentador, um
cara vestido de forma simples mas com uma expressão nada simples – perturbada,
pra ficar por aqui – vidrou no meu livro e veio até mim pedir-me emprestado
enquanto eu permanecesse ali – e fez isso com toda a educação que podia,
registre-se, até porque era evidente que queria MUITO ler o que desse e não
podia correr o risco de receber de mim uma negativa. Claro que disponibilizei
(não sou louco de negar pra um maluco daqueles!). Enquanto conversava com meus
amigos, de vez em quando percebia o “colega” parar a leitura e virar
devagarzinho não só para mim, mas para todos no bar, como numa panorâmica de
filme de terror que antecede uma cena horripilante. Os olhos vidrados e um
sorriso entre o sarcástico e o psicótico na boca. De arrepiar! Ficava
imaginando e comentando na mesa: “que parte ele deve estar lendo pra ter essa
reação?” Na hora de ir embora, mesmo com certo receio de pedir o volume de
volta, tomei coragem e, em troca, fui até abraçado por ele num esfuziante
agradecimento.
Coisas de Lancheria do Parque.
Pois uma dessas coisas peculiares ocorreu não naquela ida que nós três
fizemos antes do show, mas logo depois. Espetáculo assistido, corações ainda
pulsando, demos passos desnorteados pela Osvaldo Aranha em direção ao HPS pela
quadra da esquerda. Ao passarmos pela Lancheria, brinquei:
- Vamos, então, na Lancheria? – num tom de como não tivéssemos feito
isso a menos de quatro horas.
Já passos adiante da porta de entrada, Leocádia e Carolina param e
respondem:
- Ué, por que não?
Voltamos. Para encerrar a noite com um derradeiro café e acalmar os
ânimos daquele momento glorioso do qual vínhamos. Entramos no mesmo fuzuê de
sempre: muita gente na porta, muita gente na frente do caixa, muita gente nos
corredores estreitos, todo o tipo de gente sentada tomando uma ceva, comendo um
lanche, mandando ver num suco. Nós queríamos um simples café. Já nos bastava.
Naquela mesa lá do fundo, aquela encostada na escadinha que dá para a
cozinha (a mesma em que vi Nei Lisboa certa vez, sozinho e de porre), sentamos
e enxergamos no cardápio a palavra que queríamos encontrar: “Café”. Estava
completo nosso fechamento da noite. Até estranhamos nós, que não voltávamos lá
fazia anos, estarmos ali pela segunda vez no mesmo dia... Quem veio nos
atender? Não o mesmo garçom de horas atrás, mas o Ildo. Ele, que seria dali a
menos de 48 horas o tal fato importante ao qual me referi. Pedi-lhe três cafés
e ele, na sua simpatia de sempre, desculpou-se:
- Puxa, meu amigo, vou ficar te devendo. A essa hora a gente não serve
mais café.
Entreolhamo-nos e, antes de nos esboçarmos frustração, Ildo largou uma
joia:
- Café a essa hora só na Rodoviária!
Sim: em Porto Alegre, cujos atrasos e intransigências não preciso
repetir, café àquelas alturas só mesmo na deslocada Rodoviária. Não falo de uma
desértica madrugada de domingo, mas de um horário antes da meia-noite de uma
agitada sexta-feira. Contudo, não ficamos chateados com o Ildo, afinal, a
própria Lancheria fecharia dali a 15 minutos. De resto, é mais uma nesse poço
que a cidade e seu comércio, por consequência, se meteu. Nem um local de
circulação garantida 24 horas por dia com ali resiste ao empobrecimento social,
econômico e cultural dos melancólicos dias atuais da metrópole gaúcha.
Segurança? Hábito? Invalidade da demanda? Não sei; só sei que saímos com mais
uma desgostosa confirmação da cidade onde vivemos.
Afora isso, Ildo, simpático e espirituoso, nos deu ao menos uma
sensação de acolhimento, mesmo sem os cafés. Tentei argumentar, em vão, e foi
então que ele completou com algo que me marcou. Simbólico por demais o diálogo:
- É que a gente teve aqui mais cedo, e agora só voltamos pra tomar um
cafezinho – disse eu, ao que ele me responde:
- Eu sei que vocês tiveram aqui. Eu conheço todo mundo.
Tinha essa sensação de acolhimento na infância no antigo
Naval, no
Mercado Público, sobre o qual já falei noutra crônica. Paulo Naval e Mauro, os
eternos garçons de lá, nos recebiam, desde guris, com esse mesmo espírito
atencioso, honesto e alegre, invariavelmente com brincadeiras comigo ou com meu
pai, com quem ia sempre. Era nítida a percepção de que eles, igualmente a Ildo,
conheciam “todo mundo” que passava por ali. Embora de épocas diferentes em
minha vida, ambos os estabelecimentos carregam o mesmo clima de um lugar que
você entra e se sente bem. Digo sempre que a Lancheria, especificamente, é tão
legal que não tem nada de especial: não há um prato campeão de concurso
gastronômico, uma bebida conhecida da casa, nada suficientemente marcante de
sua cozinha ou geladeiras que justifique tamanha fama. O legal da Lancheria é a
Lancheria. E ponto. A atmosfera; o movimento; a luz branca forte; a permanente
fila do banheiro feminino; a comida indigesta que passa o dia inteiro próximo à
porta que dá pra avenida; a visão da Redença quando se está dentro.
E pessoas como o Ildo, ele, símbolo desse ambiente, desse universo.
Ildo estava, sim, sempre de olho em tudo e sabia quem entrava e quem saía, por
anos a fio, dia a dia. Até que resolveu dignamente recolher de vez o guarda-pó,
o boné e o paninho úmido no armário.
Ildo está indo embora.
Soube pela Carolina, no dia seguinte, que Ildo se despediria da
Lancheria, dos fregueses e amigos no último dia 30 de agosto. Estava explicada
nossa misteriosa segunda ida na noite anterior. Uma comoção bonita na cidade a
fez ganhar quase esquecidas cores de beleza e sinceridade, abafando um pouco o
cinzento cotidiano. Ildo recebeu centenas de pessoas, que foram se despedir dele
num domingo de sol quente em temperatura e afetividade. Mal trabalhou: ficou
ali tirando fotos e selfies, dando
entrevistas, brindando com a cerveja que era acostumado a servir. Recebendo o
destaque que alguém como ele raramente recebe. E que bom que numa época como a
de hoje alguém com ele receba. Vendo a mobilização, uma amiga postou no face
algo como: “às vezes, ainda creio na humanidade”.
Não fui à despedida oficial do Ildo. Nosso último encontro dentro da
Lancheria valeu como uma. Informal, como ele sempre agiu com todos que atendia.
Afinal, não acredito (e é aí que Tu entras, viu, Deus?) que aquele improvável e
até mal explicado retorno nosso à Lancheria, quase à meia-noite, como que
empurrados para retroceder os passos que já dávamos adiante, tenha sido uma
coincidência. Foi algum toque dos deuses do Bom Fim (Scliar, Nêga Lu,
Röhnelt,
Nico,
Hartlieb), das forças míticas oswaldeiras que nos puseram lá de novo para
sermos atendidos pela derradeira vez por Ildo. Justo por ele entre tantos
garçons. Definitivamente, não era o café que nos aguardava. Era ele, para um
último aperto de mão engendrado pelo destino.
Embora sutil e desavisada, foi uma despedida como a que não pude ter
com Paulo e Mauro do
Naval: quando voltei lá, uma nave espacial
clean e carioquesada havia aterrissado
sobre o verdadeiro boteco. Mas a Lancheria do Parque permanece lá, orgânica e
resistente. Mesmo sem o querido Ildo. Diferente de lugares como o próprio
Naval, irremediavelmente solapados pela nossa “desidentidade/des-cidade”. Não
sou um andarilho de Porto Alegre; já fui, como disse. Mas bem que vale a pena
às vezes circular, mesmo numa cidade que está se indo a olhos vistos. E pior: sem
a integridade com que Ildo o fez.