Curta no Facebook

Mostrando postagens classificadas por relevância para a consulta Stravinsky. Ordenar por data Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens classificadas por relevância para a consulta Stravinsky. Ordenar por data Mostrar todas as postagens

quarta-feira, 1 de abril de 2015

John Coltrane - “A Love Supreme” (1965)




"Vi a Deus.”
Genesis 32:30





Alice Coltrane viu seu marido descer as escadas vindo da sala onde costumava trabalhar na casa em que viviam em Long Island, Nova York. Fazia cinco dias que mal saía de lá. Musicista e compositora como ele, Alice entendia muito bem a situação. Ele parecia cansado das obsessivas horas de trabalho, mas “inusitadamente sereno”, relatou Alice. “Parecia Moisés descendo a montanha. Foi lindo. Ele me disse: ‘Esta é a primeira em vez que me veio toda a música que quero gravar, como uma suíte. Pela primeira vez, tenho tudo, tudo pronto.’” O ano era 1964. Visivelmente, não se tratava de uma situação comum. O desgaste dele era justificável, visto que também altamente recompensador. Naquele dia de setembro, começo do outono nos Estados Unidos, John William Coltrane, depois de horas de concentração (e, ao que tudo indica, também contrição), havia composto integralmente todas as músicas daquela que se tornaria sua obra-prima e um marco da música em todos os tempos: “A Love Supreme”.

Gravado em apenas uma sessão, em 9 de dezembro de 1964, e lançado em fevereiro do ano seguinte, “A Love Supreme” logo se tornaria uma referência essencial não só para toda a geração posterior do jazz como Archie Sheep, Pharoah Sanders, Grant Green, Wynton e Brandford Marsalis, John McLaughlin e o próprio filho Ravi Coltrane, mas para músicos de outros estilos: a turma do rock clássico (Greatful Dead,Joni Mitchell, Santana, Jimi Hendrix), punks (Patti Smith, Tom Verlaine, Bono Vox), roqueiros mais atuais (Bob GillespieMobyPeter Buck), músicos da soul (Gil Scott-Heron, Marvin Gaye, Stevie Wonder) e da vanguarda (Steve Reich, Carla Bley, Lester Bowie, Frank Lowie). Porém, mais do que somente um espelho musical, “A Love Supreme” passou a dar também inspiração tanto política, visto que, na época, seu sucesso ajudou a inflamar o discurso racial de um grupo em formação chamado Black Panthers, quanto espiritual, como um manuscrito sagrado a ser decifrado. “Você entenderá a mensagem [de ‘A Love Supreme’] quando estiver pronto, como nos ensina a filosofia hindu. Se não estiver pronto, terá de recuar, se preparar e caminhar tudo de novo”, sentencia o baixista Reggie Workman, que tocara na banda de Coltrane em 1961, no livro “A Love Supreme: a criação do álbum clássico de John Coltrane”, do jornalista e pesquisador norte-americano Ashley Kuhn.

O livro do jornalista Ashley Kuhn
que disseca o grande álbum de Coltrane
De fato, para muitos Coltrane é um anjo que pousou por aqui com saxofone e asas e que, por apenas 41 anos, promoveu prodígios, deixando um lastro de beleza e amor. Nascido na Carolina do Norte em 1926 e criado na Filadélfia, o habilidoso instrumentista começou tocando clarinete, mas logo passou para o sax alto. Nos anos 40, integrou a bjg-band de Dizzie Gillespie, escola para a maioria dos jazzistas de alto nível, e a King Kolax Band ao lado de Charlie Parker, quando trocou o sax alto pelo tenor tendo em vista que o Bird já dominava o alto como ninguém. Nos anos 50, dado o seu reconhecível talento e estilo, é chamado para integrar o mágico quinteto de Miles Davis ao lado de Red Garland, Paul Chambers e Philly Joe Jones. Também com Miles, no final daquela década, compõe a banda que gravaria o mítico "Kind of Blue", considerado por muitos o melhor disco da história do jazz. O vício em heroína (comum aos músicos de jazz da época), no entanto, quase o faz abandonar a carreira. Mas após uma tortuosa recuperação, por volta de 1957, limpa-se das drogas e volta à ativa em alto nível e decidido a cumprir uma “missão musical”.

É justamente a trajetória de Coltrane como band leader que o impulsionaria ao status de um dos maiores músicos de sua época, formando a mística em torno de si e de sua obra. Se todas as experiências anteriores ajudaram a forjar o solista sui generis e o compositor criativo cunhado no be-bop, hard-bop, jazz modal e free-jazz, foi o contato com o pianista Thelonious Monk, no final dos anos 50, a chave para o encontro interior de Coltrane. Era a liga que faltava a este neto de bispo protestante com fortes raízes religiosas que tencionava transmitir em música algo transcendente e pessoal, numa concepção que incorporasse o hinduísmo, a astrologia, a filosofia ocidental, a cabala, a herança africana e, obviamente, um autorreconhecimento da presença de Deus.

Nas breves semanas que esteve com o didático e transgressor Monk, jazzista de fortes influências em Messiaen e Bártok que não se furtava em criar estranhas transições melódicas e mudanças rítmicas, Coltrane achou seu caminho. Foi quando vieram, por exemplo, obras autorais como “Blue Train”, "My Favourite Things", “Giant Steps”, “Africa/Brass” e “Olé”, todos essenciais a qualquer discoteca. É nesta época, também, que ele forma a banda que o acompanharia em várias gravações e shows e que comporia o time de “A Love...”: McCoy Tiner (piano), Elvin Jones (bateria) e Jimmy Garrison (baixo). Há três anos apoiado por esta formação, Coltrane caminhava firmemente para a música de vanguarda, espelhando-se nos trabalhos Charles Mingus, Ornette Coleman e Cecyl Taylor. Após o bem recebido “Crescent”, de 1963, “A Love...” era o sucessor aguardado pela crítica e público. “O que John Coltrane trará dessa vez?” “Em que ponto ele evoluirá com sua música?”, indagavam.

A resposta a essas perguntas não foi difícil de ser respondida. “A Love...” trazia o ápice da genialidade composicional, de arranjo e improvisação de John Coltrane. Além disso, carregava, do primeiro ao último acorde, todo um misticismo e espiritualidade que de pronto foram captados pelos fãs. E, ao invés de ser taxado como algo “menor” ou meramente “religioso”, este fator engrandeceu a obra. Não por acaso: “A Love...” consegue, em sua musicalidade vanguardista mas universal referenciar todo seu legado precedente, do jazz clássico de Count Basie e Dexter Gordon, o jazz moderno de Miles e Monk, passando pelo erudito de Messiaen e Stravinsky e pelos contemporâneos dele (Coleman, Herbie Hancock, Lee Morgan, Sonny Rollins, Wayne Shorter) sem suprimir sua subjetividade como indivíduo, como ser espiritual.

As quarto faixas de “A Love...” compõem uma “oferenda a Deus”, ideia que o próprio Coltrane deixaria clara no poema da contracapa original. “Vamos cantar todas as canções a Deus”, diz em um dos versos. E é isso que se sente na música. “Acknowledgement” acende os caminhos. Numa das mais marcantes aberturas de álbum da discografia jazz, um gongo rufa, como se soltasse cristais sonoros pelo ar. Surge a imagem de uma portada celeste abrindo-se sob uma radiante luz branca. É a elevação do espírito materializada em sons. No que o ressono oriental começa a apagar-se, vem o sax alto junto aos pratos, o piano e o baixo, que entram para manter de forma suave a seriedade da introdução. Um fraseado de sax é vigorosamente tocado, numa benção de boas-vindas. A invocação dura aproximadamente 35 segundos e, antes que a sensação de levitação se dissipe, Garrison entra com um acorde de quatro notas, que é o verdadeiro riff da canção, pois transforma em som as cadências do nome do álbum – afinal, como não intuir que naquele dedilhado está sendo dito: “A Love Supreme”? Tanto o é que, no final da faixa, depois de um verdadeiro show multitonal de Trane, de uma explosão polirrítmica de Jones e de um passeio pelos acordes de Tyner, Coltrane larga o bocal do instrumento e, com humildade e devoção, entoa com sua própria voz ao microfone: “a love supreme/ a love supreme...”, repetidas vezes.

Antes, no entanto, “Acknowledgement” nos dá uma sensação de intensidade e paixão. Coltrane inicia seu solo com acordes suaves e firmes, tal um orador de igreja. À medida que a emoção toma conta, sua “fala” vai se tornando insistente, adicionando ao lirismo inicial altas cargas de solenidade, graça e pesar. Vêm, então, ondas de alegria, acompanhadas com sabedoria pela mão esquerda de sensibilidade astral de Tyner e pela batida 6/8 de Jones, a qual remete aos ritmos latinos e afro-caribenhos. O baterista ainda sustenta a condução rítmica nos pratos, como lhe é característico. Coltrane pula de tom para tom repetidamente, numa desconstrução melódica que normalmente soaria desconfortável aos ouvidos, mas que, no contexto, demonstra sua “profunda ressonância espiritual”, como diz o escritor e biógrafo Lewis Porter. No ápice, o saxofonista dá uma guinada que joga o tom lá para cima, elevando a emotividade. Até que a intensidade cai e, depois das impressionantemente simétricas 37 repetições do riff pelo sax, a voz entra para entoar o mantra. No final, a banda desce um tom inteiro, preparando a cama para a parte 2 da suíte.

Rudy Van Gelder, o técnico de som com mãos de cirurgião, faz a colagem perfeita para a entrada do outro take: “Resolution” – minha preferida do disco. Talvez a mais “tradicional” do álbum, visto que, a priori, trata-se de um hard-bop bluesy como os que todos ali eram profundamente conhecedores. Porém, parece que, mais uma vez, a carga incorpórea dada à música por Coltrane e a banda eleva o “material” a outro patamar. O baixo abre sozinho, engenhosamente quieto, num preâmbulo lento e carregado de blues. Isso antecipa uma virada ruidosa, quando a banda entra explodindo e Coltrane, principalmente, detonando o riff. Ele novamente exercita saltos de modulação, subindo e descendo as escalas e imputando drama com seu saxofone. Tyner, invariavelmente inteligente, providencia um acompanhamento de ambivalência harmônica, dando liberdade ao solista. Em seguida, o líder empurra todo o quarteto para uma série de clímaces marcados por gritos ríspidos de seu sax, instigados pelos rolos da bateria e os pratos nervosos de Jones. Garrison, por sua vez, destaca-se pela combinação de notas curtas e precisas com outras longas e ressonantes.

Cabe a Jones fechar “Resolution” com uma virada na caixa e uma batida no prato de condução, pois é o baterista quem, num solo exuberante – que celebra os mestres do instrumento do jazz (Jo Jones, Art Blakey, Max Roach) e os influenciados do rock (Ginger Baker, Keith Moon, Mitch Mitchell) –, inicia a terceira sequência de “A Love...”: “Pursuance”. Usando baquetas de madeira, retoma a polirritmia africana e o toque caribenho, estabelecendo um ritmo saltitante e gingado que se incorpora ao seu estilo democrático da bateria, o qual se vale dos timbres de todo o aparato: caixa, tan-tan, pratos, tambor e bumbo.

A “procura” pela iluminação de Coltrane atinge limites épicos nesta faixa – gravada de primeira num irrepreensível take. Na primeira parte, sobre o ainda improviso da bateria (Jones, na verdade, não para de solar até o fim de sua participação na faixa), apenas apresenta o tema, dando a deixa para a rica e engenhosa improvisação de Tyner. O pianista sai ordenando uma sucessão de frases livres de pura inventividade melódica, criando quase uma nova estrutura à música. Aparecem com clareza seus característicos voicings, saltos de três intervalos acima da tônica da melodia que fazem o ouvinte saltar do sofá. Pura energia, pura música.

Detalhe para ouvidos atentos: a “deixa” de Tyner para Coltrane acontece segundos antes do esperado, forçando o atento e novamente cirúrgico Van Gelder a aumentar o volume do microfone do sax (detalhe perceptível na amplitude do som dos pratos de Jones). É quando Coltrane entra para serpentear em vários motivos surgidos ali, no calor do momento, conduzindo frases frenéticas até as alturas. Erupções, dissonâncias, ruídos roucos, ideias cíclicas do tema original, citações do riff de “Acknowledgement”. Tudo isso condensado em apenas 2 minutos e meio. É o momento de maior expressividade de improviso de Trane, quando a minissinfonia que é “A Love...” atinge o que seria seu allegro vivace. Como diz Kahn: esta parte é “o coração do álbum”.

Mas não para por aí: Coltrane chama Jones para a prece. Extremamente cúmplices, o sax e a bateria de um e de outro, velhos parceiros, atingem um nível de diálogo telepático. Jones dispara uma fuzilaria de rolos, estrondos e batidas nos pratos. Coltrane responde com grunhidos tumultuosos do seu arco. Ambos se homogeneízam, sem definir quem comanda e quem acompanha. Para finalizar, Jones metralha viradas na caixa e Garrison, já em pleno improviso, tem sua vez de realce com um solo de três minutos. Idas e vindas, menções ao tema do primeiro número e, claro, da própria “Pursuance”, são ouvidas num improviso hábil e “intrigante” do contrabaixo, como classificou outro craque do instrumento, Ron Carter.

Depois da fúria de “Pursuance” e do balanço de “Resolution”, o clima meditativo do início do disco vem com força total para finalizá-lo na tocante “Psalm”. Tão distinta que parece isolar-se do restante, como um recolhimento ao altar para a oração. Sequência de “Pursuance” (foi gravada no mesmo histórico take), é nada mais nada menos do que a declamação quieta e etérea de Coltrane do seu poema da contracapa. Frase por frase, sem melodia cantarolável, sem centro tonal. Apenas acompanhado dos acordes atmosféricos do piano de Tyner e do baixo de Garrison, além dos pratos de Jones, que ainda surpreende ao operar inusitados tímpanos de orquestra, os quais dão um ar ao mesmo tempo introspectivo, solene e raveliano. E quem “declama” é o sax, e não a voz. Num movimento inverso ao de “Acknowledgement”, quando começa o disco indo da melodia para a palavra, aqui, no final dele, Coltrane vai da palavra para a melodia. Lê-se num dos versos a citação de um trecho dos salmos bíblicos do livro do Gênesis: “Vi a Deus face a face, e a minha alma foi salva”. Ninguém duvida que John Coltrane de fato tenha tocado o divino.

Em vida, ainda deu tempo de o músico gravar mais um trabalho fundamental do jazz, “Ascension”, de 1966, ponte determinante entre o free-jazz e a avant-garde. Se é coincidência que seus últimos dois discos se chamam “um amor supremo” e “ascensão”, não se tem certeza. O fato é que, acometido de um câncer (o qual se desconfia que ele já soubesse da existência antes de compor “A Love Supreme”) foi, um ano depois, levado por seus colegas alados para habitar, definitivamente, nos céus. E ao que tudo indica, em paz. Pelo menos é o que o seu testamento musical nos diz. A morte prematura; a aura espiritual de “A Love...”; a única apresentação ao vivo do repertório do disco (em Antibes, na França, show que compõe a edição especial do CD); a dimensão de sua influência ao longo dos tempos; tudo isso dá corpo à mitologia em torno de Coltrane e sua obra.

No entanto, mais do que qualquer atributo, o fato é que “A Love...” foi concebido com a alma, e é isso que emana do sulco toda vez que se põe o disco para tocar mesmo hoje em 2015, 50 anos depois de seu lançamento. Elvin Jones, talvez o músico que melhor tenha se entendido com Coltrane entre os diversos que tocaram com ele nos 28 anos de carreira do saxofonista, parece compreender com profundidade o porquê da passagem do colega e amigo por essas bandas terrenas e o legado de “A Love...”: “Quem quiser saber o que foi John Coltrane tem de conhecer ‘A Love Supreme’. É como o apogeu da vida de um homem, a história completa de uma vida inteira. Quando alguém quer se tornar um cidadão americano, deve fazer o juramento de fidelidade diante de Deus. ‘A Love Supreme’ é o juramento de John.”

Não tenho dúvida que a alma de John Coltrane foi salva.
**************

FAIXAS:
1. A Love Supreme, Pt. 1: “Acknowledgement” - 7:47
2. A Love Supreme, Pt. 2: “Resolution” - 7:25
3. A Love Supreme, Pt. 3: “Pursuance” – 10:43
5. A Love Supreme, Pt. 4: “Psalm” – 7:40

todas as composições de John Coltrane









quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

James Brown – “Live At the Apollo – Volume II” (1968)



“- O groove é uma batida do coração.
Mexe com tudo em você, forte e simples.
Isso é groove.
- E como você se define exatamente?
- Acabei de definir, moça.”
 Diálogo entre James Brown e uma repórter do filme
“James Brown – Get on Up”,
que estreia no Brasil este ano



Considero-me uma pessoa do meu tempo, por isso não lamento não ter vivido determinado momento no passado. Com raras exceções. Queria ter estado, por exemplo, em 1913, na estreia d’”A Sagração da Primavera”, de Stravinsky, quando a companhia Ballets Rousses, coreografada por Nijinsky, escandalizou Paris e o mundo com aquilo que se tornaria uma revolução nas artes cênicas e na música contemporânea. Também, se pudesse, estaria em 1940, na première de "Cidadão Kane", clássico divisor de águas do cinema moderno, de Orson Welles, quando, indignados com tamanhos “atrevimento” e “impropriedade”, exibidores jogavam na calçada da entrada de seus cinemas os rolos do filme para quem quisesse ficar com “aquilo”. Queria ter visto a surpresa na cara dos espectadores dentro da sala de cinema deparando-se com aquela narrativa irregular e até então inédita (vejam que não tem nada de homem pisando na lua ou título da Seleção de 70).

Pois outro desses raros eventos que gostaria de ter vivido é o show que James Brown apresentara no Apollo Theatre, casa de espetáculos encravada no bairro negro do Harlem, em Nova York, naquelas duas históricas noites de 24 e 25 de junho de 1967.  À época, nem pensava em nascer ainda. Mas para a minha felicidade e de toda a humanidade, esta apresentação foi registrada e transformada em dois LP’s um ano depois, o que diminui em parte meu pesar. Não dá pra enxergar Mr. Dynamite dançando enlouquecidamente, seus trejeitos sensuais, sua boca gesticulando para cantar, a expressão delirante no rosto do público, o suor escorrendo de sua testa e da dos integrantes da banda enquanto sustentam o som minutos a fio para Brown entreter a plateia. Não, não dá pra ver. Mas se sente. O show é tão contagiante, tão efusivo, tão emocionante que é quase como estar lá presente, no meio da galera. Delirando.

A exemplo do primeiro volume por ele gravado no mesmo teatro, em 1962, “Live at the Apollo” é esfuziante. Uma aula de soul music. O script em si já contém pompas de grande espetáculo. Antes de começar o show, o mestre-de-cerimônias Charles Bobbit entra no palco e anuncia, em ordem cronológica, os números que serão executados, ditando o título de cada um intercalado por um golpe na caixa da bateria. Como que dissesse: “preparem-se, pois vem aí chumbo grosso!”. E de fato é o que acontece. Finalizada a abertura, ouve-se Bobbit dizendo efusivamente: “James Brown, ladies and gentlemens!” A partir dali entra-se no mundo do Godfather of Soul. Brown sobe ao palco, enlouquecendo a plateia, que explode em festa. Imediatamente, o clássico “Think” começa a tocar seu ritmo contagiante de mais puro rithum n’ blues. Em dueto com Marva Whitney, Brown dá início àquela apresentação, que se tornaria memorável.

Mal “Think” termina e já emenda com “I Wont to be Around”, uma das baladas do repertório, que fez o ritmo desacelerar. Em compensação, os ânimos continuam a mil, dada a sensualidade e o groove que se emitem da rouca voz de Brown. Que vocal! Uma naturalidade e um alcance de tons impressionantes, que variam da emissão mais sussurrada ao famoso grito agudo, sua marca registrada, que só um verdadeiro cantor gospel criado nas igrejas Batista americanas é capaz de fazer. A banda, bem como a Famous Flames, dupla vocal formada por Bobby Byrd e Bobby Bennett que acompanha o grupo, está afiadíssima. É o que se vê no R&B “That’s Life” e no bluesão “Kansas City”. Depois de uma pausa, anunciada por Bobbit, o show reinicia, passando a ter apenas composições do próprio Brown (à exceção da linda “Prisioner of Love”), e aí a coisa esquenta de verdade! Uma sequência funk de tirar o fôlego engata “Let Yourself Go”, “There Was a Time”, “I Feel All Right” (na qual ele começa sua interatividade com a plateia, brincando com os tempos da música e gesticulando tão sugestivamente que dá pra enxergá-lo tal a reação do público) e “Cold Sweet”, esta, a música que inspirou o riff da clássica "So What" de Miles Davis (que, fã, inteligentemente apenas inverteu as notas). A já citada bateria de John “Jabo” Starks e Clyde Stubblefield, aliada à percussão de Ronald Selico, dão um show à parte. Timbre perfeito, encaixe perfeito, ritmação perfeita. Igualmente, as guitarras de Jimmy “Chank” Nolen e Alpholson “Country” Kellum seguram todas do início ao fim.

Comandados por Alfred “Pee Wee” Ellis, arranjador da banda e responsável pelo órgão e sax alto, Brown e Cia. arrasam na terceira parte do show. O naipe de metais (que ainda conta com Maceo Parker e L.D. Williams nos saxofones tenor; St. Clair Pinckney, no sax barítono; Waymon Reed e Joe Dupars, nos trumpetes; e Levi Harbury, no trombone de vara) manda a irresistível “It May Be the Last Time”, das melhores do mestre. O hit “I Got You (I Feel Good)” – talvez seu maior sucesso tanto na versão original, de 1964, quanto na mais funkeada, que gravara em 1975 – vem, aqui, num pequeno e agitado R&B, quase uma vinheta. Em seguida (antecedida pela ótima “Out of Sight”, também curta), “Try Me”, de seu primeiro disco, de 1959, tira o pé do acelerador novamente, noutra balada melodiosa. Aí vem talvez o melhor do show – o que, a esta altura, é uma atitude quase improvável. A quarta parte começa com a matadora “Bring it Up”, que põe todo mundo pra dançar (sei que não é possível ver, mas quem teria ousado ficar parado?).

Depois de incendiar bem o público é hora de descansá-los, certo? Mais ou menos. Que o ritmo cai, é fato. Mas o que os próximos 17 minutos e 27 segundos promovem é daquelas coisas que, essas sim, me deixam com inveja de não ter estado lá. “It's a Man's Man's Man's World”, das mais célebres canções de sua carreira, e “Lost Someone”, irrepreensível, formam um medley em que, se o compasso é mais lento, a interpretação de Brown, sua entrega, sua qualidade vocal, sua alma, sua interação orgânica e quase sexual com o público, ao contrário, deixam o clima realmente agitado.

Nestas duas, Brown despeja toda a intensidade existencial de ex-boxeur e quase marginal que, por essas obras divinas, virou um dos maiores artistas de seu tempo. Na letra de “It’s a Mans...”, ele critica a sociedade machista e se revela: “o homem está perdido na selva/ Ele está perdido na amargura”. E ainda complementa filosófica e romanticamente: “O homem fez os carros para nos levar para a estrada/ Homem fez os trens para transportar cargas pesadas/ O homem fez a luz elétrica para nos tirar do escuro/ O homem fez o barco para a água, como Noé fez a arca/ Trata-se de um homem, um homem, um mundo de homens/ Mas não seria nada, nada sem uma mulher ou uma garota. Gritos ensandecidos do público a cada frase cantada, a cada suspiro, a cada movimento sugestivo no palco, tomados por aquela força negra avassaladora à sua frente. Ele domina a plateia como um encantador de serpentes. O público, hipnotizado, acompanha todos os seus passos, atende a todos os seus comandos. Estão magnetizados.

O final disso? A apoteose. “Please, Please, Please”, num soul mil vezes mais quente que sua original, é a despedida e também quando e acontece uma cena tão marcante que chega a ser visível só ouvindo-a. Num estado catártico, Brown, tomado pela música, pelo show, pelo clima, pelo público, canta, grita e dança. O Apollo Theatre vem abaixo! No meio da performance, o rei do soul deixa o pedestal do microfone cair no chão mas, inebriado, nem percebe e segue dançando, enquanto a galera quase desvanece de tanto êxtase. O apresentador Charles Bobbit, então, recolhe o microfone e, sem mais o que dizer, simplesmente exalta aquele mito que está ali no palco, a seu lado, concluindo um show sabidamente histórico já naquele exato momento. “James Brown! James Brown! James Brown! Esse é Sr. Dynamite, o rei do rithum n’ blues. James Brown!”. O que mais ele conseguiria dizer, né?

A importância de James Brown para a história da música é incalculável. Criador de um dos gêneros musicais mais difundidos e absorvidos do mercado do entretenimento, o funk, foi inspiração para toda a geração em estilo, sonoridade, estética e atitude. A soul music, o rock, o jazz, a MPB, todos beberam nele. De Sly & Family Stone a Beatles, de George Clinton a Erasmo Carlos, de Rolling Stones a Lenny Kravitz, de Miles a Morcheeba. O rap ou o britpop dos anos 90 nem existiriam, pra se ter ideia. Além disso, foi Brown quem, de fato, ensinou o mundo pop a dançar, liberando o salão para outros grandes bailarinos populares como Michael JacksonMadonnaPrince e John Travolta. “Live at the Apollo”, evidentemente, não é o seu único grande álbum, mas é certamente um exemplo fiel da magnitude de sua obra. Ainda mais por superar o fato de ser duplo e ao vivo, o que me contraria duplamente, que geralmente prefiro os trabalhos de estúdio e em formato simples.

Contraria, entretanto, mais do que somente meu gosto pessoal. Lembro-me da difundida tese do filósofo da comunicação Walter Benjamin de que a obra de arte perde a sua “aura” quando reproduzida, ou seja, quando passada para outra plataforma, submergem-lhe junto suas autenticidade e alma, mesmo quando tecnicamente bem copiada. Parece que James Brown consegue, misteriosamente, subverter essa lógica e preservar intacta toda a emoção do “aqui e agora” que se presenciou naquelas fatídicas noites de junho de 1967. Quem esteve lá, viu; mas quem não esteve, consegue captar o calor da emoção, a “aura” do momento apenas ouvindo. Isso é possível perceber-se até hoje, quase 50 anos depois, através das milhares de cópias que o mundo tecnológico oferece. E quem há de duvidar um feito desses vindo de um cara cujo apelido é justamente “o padrinho da alma”?
*******************************

FAIXAS:
1. Introduction – 0:32
2. Think – com Marva Whitney (Pauling) – 2:54
3. I Wanna Be Around (Mercer/Vimmerstadt) – 3:09
4. James Brown Thanks – 1:11
5. That's Life (Duke/Harburg) – 4:05
6. Kansas City (Leiber/Stoller) – 4:49
7. Medley – 14:54:
- "Let Yourself Go" (Brown/Hobgood) – 6:34
- "There Was a Time" (Brown/Harris/Hobgood) – 2:45
- "I Feel All Right" (Brown/Hobgood) – 5:35
10. Cold Sweat (Brown/Ellis/Ellis/Lindup) – 4:43
11. It May Be the Last Time (Brown/Wright) – 3:06
12. I Got You (I Feel Good) (Brown) – 0:38
13. Prisoner of Love (Columbo/Gaskill/Robin) – 7:25
14. Out of Sight (Brown/Wright) – 0:26
15. Try Me (Brown/Marley) – 2:54
16. Bring It Up (Hipster's Avenue) (Brown/Jones) – 4:38
17. Medley – 17:27
- “It's a Man's Man's Man's World” (Brown/Jones/Newsome) – 11:16
- “Lost Someone (Brown/Byrd/Stallworth/Stallworth) – 6:21
18. Please, Please, Please (Brown/Terry) – 2:44

***********************
OUÇA O DISCO:






quinta-feira, 3 de agosto de 2017

Meus 10 melhores baixistas de todos os tempos

Não é a primeira vez – nem deve ser a última – que, abismado com alguma lista de supostos “melhores” publicada na imprensa, eu venha aqui por meio do Clyblog manifestar a minha contrariedade. E preferências. O modo de fazê-lo é, no entanto, não apenas criticando, mas montando a minha própria lista em relação àquele mesmo tema. Desta vez, o alvo é uma listagem publicada pela famosa revista de música britânica New Musical Express, que elencou os 40 maiores baixistas de todos os tempos (?!).

De novo, minha ressalva é pelos critérios. Como respeitar uma seleção que não inclui, pelo menos entre os 40, nomes fundamentais do instrumento para o desenvolvimento da música pop como Geddy Lee, do Rush, ou Steve Harris, do Iron Maiden? “Ah, Simon Gallup (The Cure) e Matt Freeman (Rancid) não são ‘dinossauros’ virtuosos”. Mas Krist Novoselic (Nirvana) nem Colin Greenwood (Radiohead) o são – e estão entre os votados. E mais: está lá – por merecimento, diga-se – o jazzista Charles Mingus. Ok, mas, se vai entrar na seara do jazz, da qual diversos músicos são de altíssima qualidade, técnica e influência, como não abarcar os óbvios nomes de Ron Carter, Paul Chambers, Jimmy Garrison, Stanley Clarke, Marcus Mïller e Dave Holland? Ou ainda: em 40, nenhum brasileiro? Nem Dadi, Bi Ribeiro ou Arthur Maia? Num mundo globalizado e conectado como o de hoje, foi-se o tempo em que músicos como eles eram meros desconhecidos de um país de música desimportante para o cenário mundial.

Como dizem por aí: “se não sabe brincar, não desce pro play”! Parece, sinceramente, que a tão consagrada NME não tem gente suficientemente entendedora daquilo que está tratando. As lacunas, sejam pelos critérios tortos, desconhecimento ou até preconceito, comprometem as escolhas largamente. Além disso, a ordem de preferências é bastante questionável. Parece terem optado por contemplarem baixistas de todos os estilos e subgêneros dentro daquilo que se considera música pop e deram “com os burros n’água”. Claro que há acertos, mas muito mais pela obviedade (seriam também loucos de não porem Jaco Pastorius, John Paul Jones, Kim Deal ou John Entwistle), fora que há aberrações como Flea aparecer numa ridícula 22ª posição - a Rolling Stone, em 2011, havia escolhido o baixista do Red Hot Chili Peppers como 2º melhor...

Pois, então, minimamente tentando “corrigir” o que li, monto aqui a minha lista de 10 preferidos do contrabaixo. Toda classificação deste tipo, inclusive a minha, é cabível de julgamento, sei. Porém, ao menos tento, com o conhecimento e gosto que tenho, desfazer algumas injustiças a quem ficou inexplicavelmente mal colocado ou, pior, nem incluso foi. E faço-o com algumas regrinhas: 1) sem ordem de preferência; 2) lançando breves justificativas e; 3) ao final de cada, citando três faixas em que é possível ouvir bons exemplos do estilo, performance e técnica de cada um dos escolhidos.

1 - Peter Hook
Um dos mal colocados da lista da NME, Peter Hook é certamente o baixista da sua geração que melhor desenvolveu sua técnica, tornando-se quase que o principal “riffeiro” do New Order. Entretanto, seu estilo próprio e qualidade já se notam desde o 1º disco da Joy Division. Baixo inteligente, potente e de muita personalidade.

Ouvir: “She’s Lost Control” (Joy Division); "Leave Me Alone" (New Order); “Regret” (New Order)



2 - Ron Carter
Qualquer um que pense em elencar os melhores contrabaixistas de todos os tempos, jamais pode deixar de mencionar o mestre do baixo acústico, cujo toque inconfundível tem inequívoca presença para a história do jazz, da MPB e da música pop moderna. O homem simplesmente tocou no segundo quinteto clássico de Miles Davis, participou da gravação de “Speak No Evil”, do Wayne Shorter, e tocou nos discos “Wave” e “Urubu” de Tom Jobim, pra ficar em três exemplos. Aos 80 anos, Ron Carter é uma lenda vida.

Ouvir: “Blues Farm” (Ron Carter); “O Boto” (com Tom Jobim); “Oliloqui Valley” (com Herbie Hancock)


3 - Flea
O cara parece de outro mundo. Compõe linhas de baixo complexas e não apenas sustenta tal e qual durante os show como o faz improvisando e pulando enlouquecidamente. Vendo Flea no palco, seja na mítica banda punk Fear, no Chili Peppers ou em participações como as com Jane’s Addiction e Porno for Pyros, parece fácil tocar baixo. Como diziam Beavis & Butthead: “Flea detona!”

Faixas: “Sir Psycho Sexy” (Red Hot Chili Peppers); “Pets” (Porno for Pyros); “Ugly as You” (Fear)


4 - Jaco Pastorius
Dos acertos da lista da revista. Afinal, como deixar de fora a maior referência do baixo do jazz contemporâneo? O instrumentista e compositor, presente em gravações clássicas como “Bright Size Life”, de Pat Metheny, e “Hejira”, de Joni Mitchell, equilibra estilo, timbre peculiar e rara habilidade. Como seria diferente vindo de alguém que se diz influenciado (nessa ordem) por James Brown, Beatles, Miles Davis e Stravinsky?

Ouvir: “Birdland” (com Weather Report); “The Chicken” (Jaco Pastorius); “Vampira” (com Pat Metheny)


5 - Geddy Lee
Quando o negócio é power trio, fica difícil desbancar qualquer um dos três no seu instrumento. Caso de Geddy Lee, do Rush. Mas acreditem: ele não está na lista da NME! Pois é: alguém que cria e executa linhas de baixo altamente criativas, de estilo repleto de contrapontos (e ainda toca teclado com o pé ao mesmo tempo), não poderia deixar de ser citado jamais. Pelo menos aqui, não deixou.

Ouvir: “La Villa Strangiato”; “Xanadu”, “Spirit Of The Radio


6 - Les Claypool
Outro dos gigantes do instrumento que não tiveram sua devida relevância na lista da NME (29º apenas). Principal compositor de sua banda, o Primus (outro power trio), Claypool, além disso, é um verdadeiro virtuose, que faz seu baixo soar das formas mais improváveis. Tapping, slap, dedilhado, com arco: pode mandar, que ele manja. Domínio total do instrumento.

Ouvir: “My Name is Mud”; “Tommy The Cat”; “Mr. Krinkle


7 - Simon Gallup
Se Peter Hook aperfeiçoou o baixo da geração pós-punk, colocando-o à frente muitas vezes da sempre priorizada guitarra no conceito harmônico do Joy Division e do New Order, o baixista do The Cure não fica para trás. Dono de estilo muito próprio, seu baixo é uma das assinaturas do grupo. Se a banda de Robert Smith é uma das bandas mais emblemáticas dos anos 80/90 e responsável por vários dos hits que estão no imaginário da música pop, muito se deve às quatro cordas grossas de Gallup.

Ouvir: “Play for Today”; “Fascination Street”; “A Forest


8 - Mark Sandman
Talvez a maior injustiça cometida pela NME – pra não dizer amnésia. Se fosse apenas pela mente compositiva e pelo belo canto, já seria suficiente para Sandman ser lembrado. Mas, além disso, o líder da Morphine, morto em 1999, era um virtuose do baixo capaz de inventar melodias com a elegância do jazz e a pegada o rock. Fora o fato de que seu baixo soava a seu modo, com a afinação totalmente fora do convencional, que ele fazia parecer como se todos os baixos sempre fossem daquele jeito: geniais.

Ouvir: “Buena”; “I'm Free Now”; “Honey White



9 - Bernard Edwards
A Chic tinha na guitarra do genial Nile Rodgers e no vocal feminino e no coro de altíssima afinação uma de suas três principais assinaturas. A terceira era o baixo de Bernard Edwards. O toque suingado e vivo de Edwards é um patrimônio da música norte-americana, fazendo com que a soul disco cheia de estilo e harmonia da banda influenciasse diretamente a sonoridade da música pop dos anos 80 e 90.

Ouvir: "Good Times" (Chic); “Everybody Dance“ (Chic); “Saturday” (com Norma Jean)"



10 - Bootsy Collins
Quando se pensa num contrabaixista tocando com habilidade e alegria, a imagem que vem é a de Bootsy Collins. Ex-integrante das míticas bandas Parliament-Funkadelic e da The J.B.’s, de James Brown, Bootsy é um dos principais responsáveis por estabelecer o modo de tocar baixo na black music. Quem não se lembra dele no videoclipe de “Groove is in the Heart” do Deee-Lite? A NME não lembrou...

Ouvir: “P-Funk (Wants to Get Funked Up)” (com Parliament); “Uncle Jam” (com Funkadelic); “More Peas” (com James Brown & The J.B.'s)



por Daniel Rodrigues
com a colaboração de
Marcelo Bender da Silva
e Ricardo Bolsoni