Alice Coltrane viu seu marido descer as escadas vindo da sala onde costumava trabalhar na casa em que viviam em Long Island, Nova York. Fazia cinco dias que mal saía de lá. Musicista e compositora como ele, Alice entendia muito bem a situação. Ele parecia cansado das obsessivas horas de trabalho, mas “inusitadamente sereno”, relatou Alice. “Parecia Moisés descendo a montanha. Foi lindo. Ele me disse: ‘Esta é a primeira em vez que me veio toda a música que quero gravar, como uma suíte. Pela primeira vez, tenho tudo, tudo pronto.’” O ano era 1964. Visivelmente, não se tratava de uma situação comum. O desgaste dele era justificável, visto que também altamente recompensador. Naquele dia de setembro, começo do outono nos Estados Unidos, John William Coltrane, depois de horas de concentração (e, ao que tudo indica, também contrição), havia composto integralmente todas as músicas daquela que se tornaria sua obra-prima e um marco da música em todos os tempos: “A Love Supreme”.
Gravado
em apenas uma sessão, em 9 de dezembro de 1964, e lançado em
fevereiro do ano seguinte, “A Love Supreme” logo se tornaria uma
referência essencial não só para toda a geração posterior do
jazz como Archie Sheep, Pharoah Sanders, Grant Green, Wynton e Brandford Marsalis, John McLaughlin e o próprio filho Ravi Coltrane, mas para músicos de outros estilos: a turma do rock
clássico (Greatful Dead,Joni Mitchell, Santana, Jimi Hendrix), punks (Patti Smith, Tom Verlaine, Bono Vox), roqueiros mais atuais (Bob Gillespie, Moby, Peter Buck), músicos da soul (Gil Scott-Heron, Marvin Gaye, Stevie Wonder) e da vanguarda (Steve Reich, Carla Bley, Lester
Bowie, Frank Lowie). Porém, mais do que somente um espelho musical,
“A Love Supreme” passou a dar também inspiração tanto
política, visto que, na época, seu sucesso ajudou a inflamar o
discurso racial de um grupo em formação chamado Black Panthers,
quanto espiritual, como um manuscrito sagrado a ser decifrado. “Você
entenderá a mensagem [de ‘A Love Supreme’] quando estiver
pronto, como nos ensina a filosofia hindu. Se não estiver pronto,
terá de recuar, se preparar e caminhar tudo de novo”,
sentencia o baixista Reggie Workman, que
tocara na banda de Coltrane em 1961, no livro “A Love Supreme: a
criação do álbum clássico de John Coltrane”, do jornalista e
pesquisador norte-americano Ashley Kuhn.
O livro do jornalista Ashley Kuhn
que disseca o grande álbum de Coltrane
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É
justamente a trajetória de Coltrane como band leader que o
impulsionaria ao status de um dos maiores músicos de sua
época, formando a mística em torno de si e de sua obra. Se todas as
experiências anteriores ajudaram a forjar o solista sui generis
e o compositor criativo cunhado no be-bop, hard-bop,
jazz modal e free-jazz, foi o contato com o pianista
Thelonious Monk, no final dos anos 50, a chave para o encontro
interior de Coltrane. Era a liga que faltava a este neto de bispo
protestante com fortes raízes religiosas que tencionava transmitir
em música algo transcendente e pessoal, numa concepção que
incorporasse o hinduísmo, a astrologia, a filosofia ocidental, a
cabala, a herança africana e, obviamente, um autorreconhecimento da
presença de Deus.
Nas
breves semanas que esteve com o didático e transgressor Monk,
jazzista de fortes influências em Messiaen e Bártok que não se
furtava em criar estranhas transições melódicas e mudanças
rítmicas, Coltrane achou seu caminho. Foi quando vieram, por
exemplo, obras autorais como “Blue Train”, "My Favourite Things", “Giant Steps”, “Africa/Brass” e
“Olé”, todos essenciais a qualquer discoteca. É nesta época,
também, que ele forma a banda que o acompanharia em várias
gravações e shows e que comporia o time de “A Love...”: McCoy Tiner (piano), Elvin Jones (bateria) e Jimmy Garrison (baixo). Há três anos apoiado por esta
formação, Coltrane caminhava firmemente para a música de
vanguarda, espelhando-se nos trabalhos Charles Mingus, Ornette
Coleman e Cecyl Taylor. Após o bem recebido “Crescent”, de 1963,
“A Love...” era o sucessor aguardado pela crítica e público. “O
que John Coltrane trará dessa vez?” “Em que ponto ele evoluirá
com sua música?”, indagavam.
A
resposta a essas perguntas não foi difícil de ser respondida. “A
Love...” trazia o ápice da genialidade composicional, de arranjo e
improvisação de John Coltrane. Além disso, carregava, do primeiro
ao último acorde, todo um misticismo e espiritualidade que de pronto
foram captados pelos fãs. E, ao invés de ser taxado como algo
“menor” ou meramente “religioso”, este fator engrandeceu a
obra. Não por acaso: “A Love...” consegue, em sua musicalidade
vanguardista mas universal referenciar todo seu legado precedente, do
jazz clássico de Count Basie e Dexter Gordon, o jazz moderno de
Miles e Monk, passando pelo erudito de Messiaen e Stravinsky e pelos contemporâneos dele (Coleman, Herbie Hancock, Lee Morgan, Sonny Rollins, Wayne Shorter) sem suprimir sua subjetividade como indivíduo, como
ser espiritual.
As
quarto faixas de “A Love...” compõem uma “oferenda a Deus”,
ideia que o próprio Coltrane deixaria clara no poema da contracapa
original. “Vamos cantar todas as canções a Deus”, diz em
um dos versos. E é isso que se sente na música. “Acknowledgement”
acende os caminhos. Numa das mais marcantes aberturas de álbum da
discografia jazz, um gongo rufa, como se soltasse cristais sonoros
pelo ar. Surge a imagem de uma portada celeste abrindo-se sob uma
radiante luz branca. É a elevação do espírito materializada em
sons. No que o ressono oriental começa a apagar-se, vem o sax alto
junto aos pratos, o piano e o baixo, que entram para manter de forma
suave a seriedade da introdução. Um fraseado de sax é
vigorosamente tocado, numa benção de boas-vindas. A invocação
dura aproximadamente 35 segundos e, antes que a sensação de
levitação se dissipe, Garrison entra com um acorde de quatro notas,
que é o verdadeiro riff da canção, pois transforma em som
as cadências do nome do álbum – afinal, como não intuir que
naquele dedilhado está sendo dito: “A Love Supreme”?
Tanto o é que, no final da faixa, depois de um verdadeiro show
multitonal de Trane, de uma explosão polirrítmica de Jones e de um
passeio pelos acordes de Tyner, Coltrane larga o bocal do instrumento
e, com humildade e devoção, entoa com sua própria voz ao
microfone: “a love supreme/ a love supreme...”, repetidas
vezes.
Antes,
no entanto, “Acknowledgement” nos dá uma sensação de
intensidade e paixão. Coltrane inicia seu solo com acordes suaves e
firmes, tal um orador de igreja. À medida que a emoção toma conta,
sua “fala” vai se tornando insistente, adicionando ao lirismo
inicial altas cargas de solenidade, graça e pesar. Vêm, então,
ondas de alegria, acompanhadas com sabedoria pela mão esquerda de
sensibilidade astral de Tyner e pela batida 6/8 de Jones, a qual
remete aos ritmos latinos e afro-caribenhos. O baterista ainda
sustenta a condução rítmica nos pratos, como lhe é
característico. Coltrane pula de tom para tom repetidamente, numa
desconstrução melódica que normalmente soaria desconfortável aos
ouvidos, mas que, no contexto, demonstra sua “profunda
ressonância espiritual”, como diz o escritor e biógrafo Lewis
Porter. No ápice, o saxofonista dá uma guinada que joga o tom lá
para cima, elevando a emotividade. Até que a intensidade cai e,
depois das impressionantemente simétricas 37 repetições do riff
pelo sax, a voz entra para entoar o mantra. No final, a banda desce
um tom inteiro, preparando a cama para a parte 2 da suíte.
Rudy Van Gelder, o técnico de som com mãos de cirurgião, faz a
colagem perfeita para a entrada do outro take: “Resolution”
– minha preferida do disco. Talvez a mais “tradicional” do
álbum, visto que, a priori, trata-se de um hard-bop bluesy
como os que todos ali eram profundamente conhecedores. Porém, parece
que, mais uma vez, a carga incorpórea dada à música por Coltrane e
a banda eleva o “material” a outro patamar. O baixo abre sozinho,
engenhosamente quieto, num preâmbulo lento e carregado de blues.
Isso antecipa uma virada ruidosa, quando a banda entra explodindo e
Coltrane, principalmente, detonando o riff. Ele novamente
exercita saltos de modulação, subindo e descendo as escalas e
imputando drama com seu saxofone. Tyner, invariavelmente inteligente,
providencia um acompanhamento de ambivalência harmônica, dando
liberdade ao solista. Em seguida, o líder empurra todo o quarteto
para uma série de clímaces marcados por gritos ríspidos de seu
sax, instigados pelos rolos da bateria e os pratos nervosos de Jones.
Garrison, por sua vez, destaca-se pela combinação de notas curtas e
precisas com outras longas e ressonantes.
Cabe a
Jones fechar “Resolution” com uma virada na caixa e uma batida no
prato de condução, pois é o baterista quem, num solo exuberante –
que celebra os mestres do instrumento do jazz (Jo Jones, Art Blakey,
Max Roach) e os influenciados do rock (Ginger Baker, Keith Moon, Mitch Mitchell) –,
inicia a terceira sequência de “A Love...”: “Pursuance”.
Usando baquetas de madeira, retoma a polirritmia africana e o toque
caribenho, estabelecendo um ritmo saltitante e gingado que se
incorpora ao seu estilo democrático da bateria, o qual se vale dos
timbres de todo o aparato: caixa, tan-tan, pratos, tambor e
bumbo.
A
“procura” pela iluminação de Coltrane atinge limites épicos
nesta faixa – gravada de primeira num irrepreensível take.
Na primeira parte, sobre o ainda improviso da bateria (Jones, na
verdade, não para de solar até o fim de sua participação na
faixa), apenas apresenta o tema, dando a deixa para a rica e
engenhosa improvisação de Tyner. O pianista sai ordenando uma
sucessão de frases livres de pura inventividade melódica, criando
quase uma nova estrutura à música. Aparecem com clareza seus
característicos voicings, saltos de três intervalos acima da
tônica da melodia que fazem o ouvinte saltar do sofá. Pura energia,
pura música.
Detalhe
para ouvidos atentos: a “deixa” de Tyner para Coltrane acontece
segundos antes do esperado, forçando o atento e novamente cirúrgico
Van Gelder a aumentar o volume do microfone do sax (detalhe
perceptível na amplitude do som dos pratos de Jones). É quando
Coltrane entra para serpentear em vários motivos surgidos ali, no
calor do momento, conduzindo frases frenéticas até as alturas.
Erupções, dissonâncias, ruídos roucos, ideias cíclicas do tema
original, citações do riff de “Acknowledgement”. Tudo
isso condensado em apenas 2 minutos e meio. É o momento de maior
expressividade de improviso de Trane, quando a minissinfonia que é
“A Love...” atinge o que seria seu allegro vivace. Como
diz Kahn: esta parte é “o coração do álbum”.
Mas
não para por aí: Coltrane chama Jones para a prece. Extremamente
cúmplices, o sax e a bateria de um e de outro, velhos parceiros,
atingem um nível de diálogo telepático. Jones dispara uma
fuzilaria de rolos, estrondos e batidas nos pratos. Coltrane responde
com grunhidos tumultuosos do seu arco. Ambos se homogeneízam, sem
definir quem comanda e quem acompanha. Para finalizar, Jones metralha
viradas na caixa e Garrison, já em pleno improviso, tem sua vez de
realce com um solo de três minutos. Idas e vindas, menções ao tema
do primeiro número e, claro, da própria “Pursuance”, são
ouvidas num improviso hábil e “intrigante” do contrabaixo, como
classificou outro craque do instrumento, Ron Carter.
Depois
da fúria de “Pursuance” e do balanço de “Resolution”, o
clima meditativo do início do disco vem com força total para
finalizá-lo na tocante “Psalm”. Tão distinta que parece
isolar-se do restante, como um recolhimento ao altar para a oração.
Sequência de “Pursuance” (foi gravada no mesmo histórico take),
é nada mais nada menos do que a declamação quieta e etérea de
Coltrane do seu poema da contracapa. Frase por frase, sem melodia
cantarolável, sem centro tonal. Apenas acompanhado dos acordes
atmosféricos do piano de Tyner e do baixo de Garrison, além dos
pratos de Jones, que ainda surpreende ao operar inusitados tímpanos
de orquestra, os quais dão um ar ao mesmo tempo introspectivo,
solene e raveliano. E quem “declama”
é o sax, e não a voz. Num movimento inverso ao de
“Acknowledgement”, quando começa o disco indo da melodia para a
palavra, aqui, no final dele, Coltrane vai da palavra para a melodia.
Lê-se num dos versos a citação de um trecho dos salmos bíblicos
do livro do Gênesis: “Vi a Deus face a face, e a minha alma foi
salva”. Ninguém duvida que John Coltrane de fato tenha tocado
o divino.
Em
vida, ainda deu tempo de o músico gravar mais um trabalho
fundamental do jazz, “Ascension”, de 1966, ponte determinante
entre o free-jazz e a avant-garde. Se é coincidência
que seus últimos dois discos se chamam “um amor supremo” e
“ascensão”, não se tem certeza. O fato é que, acometido de um
câncer (o qual se desconfia que ele já soubesse da existência
antes de compor “A Love Supreme”) foi, um ano depois, levado por
seus colegas alados para habitar, definitivamente, nos céus. E ao
que tudo indica, em paz. Pelo menos é o que o seu testamento musical
nos diz. A morte prematura; a aura espiritual de “A Love...”; a
única apresentação ao vivo do repertório do disco (em Antibes, na
França, show que compõe a edição especial do CD); a dimensão de
sua influência ao longo dos tempos; tudo isso dá corpo à mitologia
em torno de Coltrane e sua obra.
No
entanto, mais do que qualquer atributo, o fato é que “A Love...”
foi concebido com a alma, e é isso que emana do sulco toda vez que
se põe o disco para tocar mesmo hoje em 2015, 50 anos depois de seu
lançamento. Elvin Jones, talvez o músico que melhor tenha se
entendido com Coltrane entre os diversos que tocaram com ele nos 28
anos de carreira do saxofonista, parece compreender com profundidade
o porquê da passagem do colega e amigo por essas bandas terrenas e o
legado de “A Love...”: “Quem quiser saber o que foi John
Coltrane tem de conhecer ‘A Love Supreme’. É como o apogeu da
vida de um homem, a história completa de uma vida inteira. Quando
alguém quer se tornar um cidadão americano, deve fazer o juramento
de fidelidade diante de Deus. ‘A Love Supreme’ é o juramento de
John.”
Não
tenho dúvida que a alma de John Coltrane foi salva.
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FAIXAS:
1. A
Love Supreme, Pt. 1: “Acknowledgement” - 7:47
2. A
Love Supreme, Pt. 2: “Resolution” - 7:25
3. A Love Supreme, Pt. 3: “Pursuance” – 10:43
5. A Love Supreme, Pt. 4: “Psalm” – 7:40
todas
as composições de John Coltrane
por Daniel Rodrigues