O disco “Qualquer Coisa”, de Caetano Veloso, sempre me encantou. Tanto
que me fez cometer um fora que, na minha adolescência, foi motivo de um
engraçado episódio, do qual achei por bem contar como uma homenagem aos 70 anos
desse grande artista de nosso tempo completos neste 7 de agosto. Ali pelos 13,
14, eu já era amante e consumidor inveterado de música. Curioso, ia atrás de
coisas novas e velhas, que me empolgavam em descobrir. Era um mundo novo que se
abria diante de mim. Desses, um universo dos que mais me encantava era a MPB, a
música produzida no meu próprio país a qual eu já começava a suspeitar naqueles
idos que dava de 10 a 0 na maioria do que se produzia no estrangeiro – o que
não demorei muito a me certificar. Nessa busca voraz por conhecer as coisas,
uma das práticas que mantinha era a de ir ao Centro de Porto Alegre vasculhar
as lojas de discos de vinil. Como a grana da mesada não era muita, não dava pra
comprar tudo que eu queria. Então, a solução era abrir os encartes, admirar as
capas dos bolachões, ler as fichas técnicas e, o melhor de tudo, escutar. Pois
uma das alternativas que as lojas davam era que o próprio cliente escolhesse
alguns LP’s e os ouvisse em toca-discos privativos com fones de ouvido,
daqueles grandes e de ótima qualidade.
Numa dessas ocasiões, na antiga loja Pop Som, na Galeria Chaves, estava
eu escutando e desvendando os discos de Caetano Veloso, arrebatado com aquela sonoridade,
com aquela voz, com aquela musicalidade que me surpreendia a cada volver do
prato. Um dos que escutei naquela tarde foi “Qualquer Coisa”. Desde a capa a
pop art de Rogério Duarte até as músicas, tudo me encantava. Escutei faixa por
faixa. Depois guardei de novo o disco no plástico interno, admirei novamente a
capa e, sem ter como comprá-lo naquele momento, saí dali um tanto desolado mas
ainda tomado de emoção. Já cruzando a porta de saída, ouvi uma voz feminina ralhar
comigo: “Ô, guri, aonde tu vai com esse disco?” Absorto naqueles sons que
ouvira, eu estava saindo da loja com o disco debaixo do braço sem perceber. A
vendedora, obviamente pensou que eu fosse roubá-lo, e eu, na ingenuidade
desarmada da mocidade, entreguei o volume sem me defender. Imaginem eu
argumentando naquela época: “Eu não queria roubar: foi que eu fiquei encantado
com a música!” Era inimaginável. Que vergonha que me deu!
Mas antes do constrangimento eu me deliciei ouvindo o disco. Com
arranjos super bem elaborados, pensados por Caetano com apoio ora do craque
Perinho Albuqerque, ora do mestre João Donato, “Qualquer Coisa” me espantava naquela
audição pela coesão aliada a um repertório quase improvável, que misturava
Beatles ,
Jorge Ben , composições próprias de Caê, Chico e Chabuca Granda.
Tudo junto e muito bem misturado. O assombro iniciava de cara com a voz e
violão de Caetano entrando direto, sem me deixar respirar, no clássico que abre
e dá título ao disco: uma bossa-nova sensual meio portenha, meio nordestina,
meio cubana. Literalmente, qualquer coisa! A letra, verborrágica e de sentido
vago, servia para formar versos impactantes e musicalmente sonoros – tão
marcantes que são sempre cantados pelo público inteiro nos shows: “Esse papo já tá qualquer coisa/ Você já tá pra lá de Marrakesh”.
Em seguida, continuando a verborragia e a sensualidade, “Da Maior
Importância”, cuja letra, cheia de anacolutos, expele tesão por todos os lados,
pois narra uma tentativa desesperada de autoconvencimento de não transar com
uma amiga (“Teria sido na praia/ Medo/
Vai ser um erro.”). O clima mantinha-se sexy, mas agora nos versos boêmios
de Chico Buarque na linda versão para “Samba e Amor”, com aqueles silêncios capciosos
entre um verso e outro. A esta altura, eu já percebia que o lado A do LP era todo
neste clima, pois as próximas eram “Madrugada e Amor” e, depois, uma das
melhores do disco e de toda a obra deste baiano: “A Tua Presença Morena”. Letra
moderninsta, é marcada por anáforas, que, com sua proposital repetição no
início dos versos, reforçam a ideia de admiração e amplitude que Caetano devota
à sua musa tropical. Nessa, ele cria versos de um lirismo impressionante como: “A tua presença coagula o jorro da noite
sangrenta”, ou “A tua presença se
espalha no campo derrubando as cercas.” “Drume Negrinha”, só ao piano de
Donato, fechava o lado A do LP num tom leve e malicioso: “Drume Negrinha, que eu te transo uma nova caminha”.
Aí vinha o lado B. Virei o disco. O que eu encontraria ali? Continuaria
naquele clima “fogoso”? Soltei a agulha. Logo percebi que aquilo tomava outro
rumo, pois abria com uma versão para “Jorge de Capadócia”, que talvez seja tão
clássica quanto a de Jorge Ben. Com arranjo mais acústico que a eletrificada
original, não perdia, contudo, o tom épico e ritualístico da composição, que conclama
tanto com São Jorge quanto Ogum. Excelente. Em seguida, outra surpresa. Aliás,
tripla surpresa: três versões para canções dos The Beatles: “Eleanor Rigby”,
magnífico samba lento só ao violão e percussão, com um tempo marcado e
cadenciado, além de contar com um show de vocal; “For no One”, sem dúvida a
melhor delas em que Caetano, com extremo lirismo, traduz a melancólica peça de
Lennon e MacCartney para uma bossa suingada que remetia novamente à
sensualidade do lado A; e “Lady Madonna”, na qual faz o inverso: tira todo o
gás da esfuziante original dos rapazes de Liverpool e fica quase que só com a
melodia. “Qualquer Coisa” tem ainda “La Flor de la Canela” e “Nicinha”, uma
curta e doce homenagem à irmã que faz Caetano voltar a Santo Amaro, onde nasceu,
numa volta à origem. Final do disco, ruídos da agulha no final da faixa.
Caetano completando 70 anos
neste dia 7 de agosto
Se na época aquela gafe na loja de discos me traumatizou – a ponto de,
por anos, não contar a ninguém –, hoje o relembro com carinho e entendimento.
Afinal, “Qualquer Coisa” é realmente de tirar qualquer um do chão. Álbum de
conceito, é a primeira parte de um duo de discos que se completaria com “Joia”,
de um ano depois. Também é a afirmação do ex-exilado artista, que, já
consagrado, havia voltado ao Brasil abaixo de pedrada quando do lançamento do
concretista e malcompreendido “Araçá Azul” (1972), um dos maiores fracassos de
venda da história da indústria fonográfica brasileira. “Qualquer Coisa”, bem
aceito por gregos e troianos, vinha assentar a posição que Caetano Veloso
sempre fez jus em ocupar: o de um dos maiores gênios da música ainda vivos, um
artista dono de uma obra não só descomunal como permanentemente criativa e
criadora. Por isso, neste 7 de agosto, comemoro as sete décadas de mano Caetano
reouvindo “Qualquer Coisa”. Mas não pensem que ouvirei qualquer coisa do
“Qualquer coisa”. Não! Ouvirei o meu LP, curtindo faixa a faixa com o encarte
debaixo do braço.
vídeo de"A Tua Presença Morena",Caetano Veloso
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FAIXAS:
1. Qualquer coisa (Caetano Veloso) 2. Da maior importância (Caetano Veloso) 3. Samba e amor (Chico Buarque) 4. Madrugada e amor (José Messias) 5. A tua presença morena (Caetano Veloso) 6. Drume Negrinha (Drume negrita) (Ernesto Grenet) 7. Jorge de Capadócia (Jorge Ben) 8. Eleanor Rigby (McCarney, Lennon) 9. For No One (McCartney, Lennon) 10. Lady Madonna (McCartney, Lennon) 11. La flor de la canela (Chabuca Granda) 12. Nicinha (Caetano Veloso)
Quase ao fechar das cortinas de 2020 assisti, finalmente, uma elogiada produção deste ano sobre um dos artistas que mais admiro: “Narciso em Férias”, documentário com e sobre a vivência de Caetano Veloso dos 54 dias da prisão entre 1968 e 69 durante a ditadura militar. Dirigido pela dupla Renato Terra e Ricardo Calil – afeita a documentários sobre artistas da música brasileira, visto que têm na bagagem os ótimos “Uma Noite em 67”, de 2010, e “Eu Sou Carlos Imperial”, de 2016 –, o filme traz coisas boas e outras nem tanto, embora as qualidades superem os problemas.
O projeto, motivado pelo recente descobrimento dos documentos com os interrogatórios concedidos por Caetano ao exército, que o havia prendido em dezembro de 1968 – quatro dias depois da instituição do AI5 – por causa de uma apresentação supostamente difamadora na boate Sucata, no Rio de Janeiro, é por si admirável. O formato também. Basicamente, composto por depoimentos de um Caetano filmado de frente (apenas com variações de plano/profundidade), fotografia fria, poucos cortes e cenografia tão seca como uma prisão: uma cadeira escura sem braços e a figura do entrevistado engolida por um cenário cinza, opressor, monocromático e sem respiro, semelhante à cela sem janela que Caetano descreve quando recorda os dias de solitária.
As falas extensas, respeitando o fluxo de raciocínio de Caetano, tem o ganho de, semiologicamente, simbolizarem o marasmo e a opressão do tempo de encarceramento. É a voz dele e silêncios apenas. Mas em termos de conteúdo passam longe de serem monótonas. Pelo contrário, visto que carregadas de detalhes, ponderações, emotividade e surpresas, A própria música, diretamente ligada à sua figura, é quase ausente, servindo muito bem para amarrar os três "blocos" que o filme forja com bastante sensibilidade. No entanto, os diretores-entrevistadores, fora do enquadramento mas de frente para Caetano, pecam ao deixar o curso da conversa correr em alguns momentos. Num deles, bem nas primeiras declarações, Caetano menciona algumas vezes "a gente" ao referir-se a quem estava junto com ele no momento da prisão em São Paulo. Não é muito difícil de se suspeitar - ainda mais sendo ele uma personalidade famosa e essa história já ter sido contada em outras ocasiões - que se está falando de Gilberto Gil. Mas até mesmo eu, que tenho intimidade com a biografia de ambos, fiquei em dúvida dessa suposta afirmativa. Afinal, estava assistindo um documentário que podia trazer revelações novas.
Não eram. Nem mesmo uma tática narrativa, visto que a resposta confirmativa do mais provável veio sem nenhum requinte. Espera-se que, uma vez escolhido um formato como este, que todas as informações que se precise saber estejam expostas e ordenadas. Igualmente, que os entrevistadores ajudem a conduzir o andamento quando necessário. Cinema não é jornalismo, sei, mas quando o primeiro busca fazer as vezes do segundo, há de se lhe respeitar um dos princípios básicos, que é o da não presunção do conhecimento por parte do receptor. Naquele ponto, ainda mais em se tratando do começo do filme, quando o espectador ainda está se familiarizando com a narrativa, soou como uma leve lacuna, até certo descuido.
Noutra sutil inconsistência, Caetano fala e toca um pedaço de uma das três músicas presentes no filme, "Irene" (as outras são "Terra", também autoria dele, e "Hey Jude", dos Beatles, todas fortemente ligadas à experiência da prisão). O que não se diz (e nem se questiona a Caetano na hora certa) é que a canção foi composta dentro das grades, o que apenas se supõe uma vez que, noutro trecho mais adiante, o músico relata que lhe foi negado o pedido feito pela então esposa Dedé aos militares para que lhe permitissem ter um violão na cadeia. Ou seja, ele inventou a melodia só na imaginação e a guardou na cabeça. Este fator, se tornado mais claro, seria bastante contributivo à obra, haja vista que é a única música escrita por ele em tal condição e ainda mais em se tratando de um artista que, mesmo com a reclusão brutal e injusta, tentou com todas as forças manter-se lúcido e íntegro.
Caetano Velosocantando"Hey Jude", dos Beatles
Aliás, a integridade do baiano é exaltada por ele próprio não com afetação, mas com a consciência de um homem experiente revivendo aquele episódio traumático. Os próprios documentos, a que Caetano há pouco havia tomado conhecimento da existência, visto que por muito tempo confinados à confidencialidade, evidenciam essa integridade. Mesmo não criticando abertamente o regime militar durante os depoimentos aos oficiais (o que seria, se não suicídio, no mínimo uma autoincitação à tortura), também não deixa de se posicionar, por exemplo, quando perguntado da inocência do amigo e parceiro Rogério Duarte, vítima muito mais séria do que ele das barbaridades do regime. Poderia ter lhe comprometido, mas por sorte, não.
De tudo, é evidente que a grande força de “Narciso...” está, justamente, nos depoimentos de Caetano. A lucidez e a memória do autor de “Alegria Alegria” são admiráveis a um senhor de quase 80 anos, pois possibilitam montar um documento fundamental para se entender o nefasto período de ditadura no Brasil de alguém ainda vivo e nestas condições de discernimento. Há outros registros dele ao longo dos mais de 50 anos que dividem o episódio em questão do filme, como entrevistas, filmes e livros. Porém, nenhum se concentra tanto e tão bem neste recorte específico, o que garante ao filme uma saudável concisão.
Enquadreamento, fotografia, cenário e figurino frios para lembrar os dias de "férias forçadas" do "Narciso"
Mais do que ser conciso, entretanto, “Narciso...” é também incisivo. Há lances comoventes, como quando Caetano emociona-se ao rever um exemplar da mesma revista que Dedé lhe apresentou na cadeia do batalhão de paraquedistas em Deodoro, no Rio, trazendo notícias sobre a chegada do homem à Lua (e que motivaria a criação da música “Terra” anos depois). Ou quando relembra do militar negro e conterrâneo seu que, sensibilizado com a situação, autorizou que ele e a esposa tivessem encontros íntimos na cela. Mas a construção narrativa pensada por Terra e Calil é, certamente, a grande responsável por tal contundência. Ao concentrar a ação em quase 100% da fita em praticamente a mesma imagem de Caetano, deixando para o final apenas um pequeno percentual que quebra a linearidade a qual os diretores acostumaram os olhos do espectador por mais de uma hora, dão, assim, a devida carga de suspense ao tão mencionado interrogatório, que Caetano conta ter sido o motivo de sua captura, mas que demorou meses para acontecer. Valendo-se de um expediente fílmico bastante interessante, que é o de gerar expectativa a algum elemento onipresente, quando finalmente o trazem à tela é quase como se estivessem dando-lhe um caráter de personagem até então escondido.
Mas o que havia realmente motivado a prisão? Caetano conta, por exemplo, que um oficial mais intelectualizado chamou-lhe à sua sala somente para discursar-lhe que foi, inconsciente ou conscientemente, a subversão do tropicalismo que o levara ao cárcere. Para ele, nas entrelinhas tropicalistas estava a verdadeira mensagem de rebeldia contra o governo militar. E Caetano diz-se obrigado a concordar. O motivo da prisão, aliás, por muitos anos nebuloso, fica mais bem explicado também no documentário por conta da revelação dos tais documentos, uma vez que está registrado com todas as letras que foi o jornalista Randal Juliano, da TV Record, quem dedurou aos militares que Caê e Gil haviam cantado o hino nacional na boate Sucata com uma letra “subversiva”. Provavelmente, este se referia a “Tropicália”, o tema-manifesto do movimento tropicalista que, em sua estrutura e abordagem inovadoras, expõe o Brasil daqueles novos tempos: com suas belezas (“A Banda”, “a bossa”, “Carmem Miranda”) e mazelas (“a palhoça”, “a criança feia e morta”). Ou seja: com ufanismo, mas também com crítica.
O que me soa – e que talvez até escape a Caetano por mais leonino que este seja – é que Juliano ouviu, sim, o hino nacional. Na sua mentalidade conservadora e mal resolvida, a música, em letra e em música, fez-lhe identificar o nacionalismo de um hino mesmo que jamais pronunciados os versos oficiais, visto que foi provado ser mentira a acusação. Este é o lado inconsciente. No consciente, Juliano ofendeu-se com os versos, aí sim, da própria canção, a parte crítica que nenhum intransigente quer aceitar. Perversa ou desavisadamente, o fato é que Juliano fez um elogio a “Tropicália” e ao movimento que a turma de Caetano e Gil formaram. Tanta subversão que acabaria por levá-los à prisão por razões inconscientes ou não.
Outro
dia, logo após postar no Facebook que havia revisto um dos meus
filmes favoritos da cinematografia nacional, “Bye Bye Brasil”
(sobre o qual comentarei melhor em um próximo post), surtiram, como
geralmente ocorre, alguns comentários. Na ocasião, entretanto, um
dos que comentou foi meu primo e colaborador do ClyBlog (especialmente para da seção Claquete) Vagner Rodrigues. Amante de cinema, ele revelou não apenas querer conhecer o filme em questão
quanto se aprofundar mais no cinema brasileiro das décadas de 60, 70
e 80.
Dispus-me,
então, a elencar para ele títulos que dessem um panorama da
produção de cada década no combalido e combativo cinema no Brasil.
Até aí, nada incomum, considerando que gosto de compartilhar
conhecimento sempre que posso e o considero suficiente para tal. O
que eu mesmo não esperava era que, ao comentar brevemente cada filme
somente de forma a justificar ao Vágner o porquê de sua presença
numa classificação tão seleta, fui me empolgando não apenas com
cada anotação, como, principalmente, com a seleção em si. Tanto
que, somando-se os três períodos, cheguei a 55 títulos!
Afora
a trabalheira prazerosa que sei que dei ao meu primo, acabaram
surgindo três listas bem interessantes que dão a dimensão da
qualidade, importância, versatilidade e profundidade artística,
estilística, sociológica e política do cinema brasileiro em cada
uma destas décadas, sem dúvida as melhores em nível qualitativo em
toda a história dessa arte no Brasil (e olha que tem como
concorrentes os fortes anos 50 e a primeira década do séc. XXI). Ao
mesmo tempo, juntos, dão uma mostra bem real do quanto já foi muito
mais difícil fazer cinema no Brasil, tanto pela questão técnica
(produções quase sem recurso, tecnologia defasada e falta de mão
de obra) quanto, principalmente nos 60 e 70, pelo cenário político,
tendo em vista que muitos desses filmes – mesmo os corajosamente
denunciadores – sofreram com a censura do governo militar antes,
durante ou depois de lançados.
Comecemos,
então, com a melhor de todas: a década de 60, marcada pelo boom do
Cinema Novo – que revelou os gênios Glauber Rocha e Julio
Bressane, mestres como Leon Hirszman, Joaquim Pedro de Andrade e Cacá
Diegues e técnicos de primeira linha como Dib Lufti e Eduardo
Escorel – mas que presenciou, tanto quanto, obras memoráveis não
necessariamente ligadas ao movimento. Enfim, uma seleção de 20
títulos com seus respectivos diretores e em ordem cronológica de
ano que me deram muito trabalho para escolher, mas que dão uma ideia
legal da produção da época pelo filtro daquilo que gosto e
acredito como arte – a sétima, neste caso.
1 - "O Pagador de Promessas", Anselmo Duarte (60) – Com
absoluta convicção, o melhor de todos os tempos no Brasil. Perfeito
do início a fim: fotografia, atuações, roteiro, trilha, edição,
cenografia. E tem um dos papeis mais memoráveis do cinema: Leonardo
Villar como Zé do Burro. E ainda é um Palma de Ouro em Cannes que
venceu Antonioni, Pasolini e Buñuel. Tá bom pra ti? Irretocável.
2 –
“Barravento”, Glauber Rocha (62) – Primeiro filme do
Glauber, coloca-se num ponto entre o Neo-Realismo e o Cinema Novo.
Extremamente poético, é o filme que melhor retrata o universo
místico do candomblé e da vida dos pescadores do interior, aqueles
que raramente temos acesso no mundo urbano. Venceu prêmio na
República Checa e tem montagem do Nelson Pereira, quer mais?
3 -
“Assalto ao Trem Pagador”, Roberto Faria (62) – Outro
daqueles filmes essenciais. O Roberto Faria sempre fez filmes com
arte e apelo popular. Esse é bem assim: com uma cara ainda de
Atlântida dos anos 40/50, mas com um pé no Neo-Realismo. Atuações
fantásticas do irmão Reginaldo Faria, do Grande Otelo e do ator
principal, Eliezer Gomes, como o inesquecível Tião Medonho.
4 -
“Os Cafajestes”, Ruy Guerra (62) – Clássico do Cinema
Novo, tem toda a questão da câmera na mão, do enquadramento
intuitivo, do aspecto documental, da inspiração estética e
temática na nouvelle vague. Fala sobre a decadência da
burguesia, pondo em evidência seu vazio e a falta de sentido. Daniel
Filho e Jece Valadão ótimos. E ainda tem o primeiro nu frontal da
história do cinema, e quando a Norma Bengell era tri gata!
5 -
“Cinco Vezes Favela”, Cacá Diegues, Joaquim Pedro de
Andrade, Miguel Borges, Leon Hirzsman e Marcos Farias (62) – Filme
de episódios (5, obviamente), todos retratando algum aspecto das
então pouquíssimo retratadas favelas, papel de denúncia que o
Cinema Novo foi hiperimportante. O do Cacá, embora ainda cru em
termos de estilo, é bem interessante, pois fala sobre uma escola de
samba e os problemas da comunidade num dia de carnaval. “Couro de
Gato”, do Joaquim Pedro, chegou a ganhar Cannes. O de Leon também
é incrível, “Pedreira de São Diogo”, sobre trabalhadores da
pedreira que são obrigados a fazer implosões perto de uma
comunidade que iria para os ares. O do Miguel Borges, sobre um lixão,
é claramente uma das inspirações do “Lixo Extraordinário” e
com o recente britânico-brasileiro “Trash”.
6 –
“Vidas Secas”, Nelson Pereira dos Santos (63) - Genial.
Precursor em muitas coisas: fotografia seca, roteiro, cenografia,
atuações. Daquelas adaptações literárias tão boas quanto o
livro, ouso dizer. Tem uma das cenas mais tristes que já vi, a o
sacrifício da cachorra Baleia. Limite também entre Neo-Realismo e
Cinema Novo. Indicado a Palma de Ouro. Aula de cinema.
8 -
“Os Fuzis”, Ruy Guerra (64) – Um soco no estômago. Sobre
um cerco militar que se forma numa cidade do sertão nordestino,
pondo à mostra toda a miséria social e moral gerada pelo Estado,
quase um presságio do derramamento de sangue que ocorreria com os
que combateriam a ditadura militar, então recém-iniciada. Dos
filmes preferidos de gente como Gustavo Spolidoro e Eduardo Valente,
foi Urso de Prata em Berlim em Direção.
9
– “Noite Vazia”, Walter Hugo Khouri (64) – O Khouri
sempre teve o seu jeito de fazer cinema, abordando temas como a
depressão das altas classes, o vazio existencial, a anestesia da
vida moderna, e bastante inspirado em Antonioni. “Noite Vazia”,
no entanto, não é uma cópia brasileira de “A Noite”: é um
filme com personalidade e referencial. Trilha do Duprat, tá louco! E
concorreu a Palma de Ouro. Depois, o Khouri só se repetiu, mas esse
é demais.
10
- “A Hora e a Vez de Augusto Matraga”, Roberto Santos (65) –
Uma joia meio esquecida. Leonardo Villar, de novo ele, faz o papel
principal, que ele literalmente encarna. Baseado no conto-novela do
Guimarães Rosa, é daquelas adaptações ao mesmo tempo fiéis mas
que souberam transportar a história pra outro suporte. Obra-prima
pouco lembrada.
11
– “São Paulo S/A”, Luis Sérgio Person (65) – Outro
clássico. Walmor Chagas tá ótimo. Na linha d’”Os Cafajestes”,
mas sob outra ótica, mostra a asfixia da classe média (paulistana,
no caso), imersa na impessoaliadade da vida industrial e maquinal da
grande cidade. Recebeu prêmios na Itália, México e São Paulo.
Muito atual.
12
– “O Desafio”, Paulo César Saraceni (65) – Parece
loucura, mas o diretor fez um filme sobre a ditadura em plena
ditadura. Haja peito! E mostra em detalhes a vida daqueles que não
se enquadram naquilo, a tristeza de ver seu país tomado sem lado
para correr. É um filme revoltado, corajoso e triste com todos os
elementos de Cinema Novo: câmera na mão, fotografia natural,
improvisação, tom documental, trilha sonora da MPB combativa da
época.
13
- “O Padre e a Moça”, Joaquim Pedro de Andrade (66) - Lindo.
Primeira ficção do Joaquim Pedro, que foi um contista de mão
cheia. Sobre um padre (o maravilhoso Paulo José) que se apaixona por
uma moça de família no interior. Claro que dá merda, né?
Fotografia PB rigorosa e pouco diálogo, que dá um clima sufocante à
história. Indicado ao Urso de Ouro em Berlim.
14
– “O Caso dos Irmãos Naves”, Luis Sergio Person (67) –
Filme de tribunal sobre uma história real de um julgamento injusto
ocorrido no interior de Minas na Era Vargas envolvendo os tais irmãos
da família Naves. Super bem narrado e fotografado. Alto nível.
Interpretações, idem. Interessante que, por se passar em uma época
antiga, o filme passou pela censura, é os militares burros não
perceberam ser uma baita crítica ao governo. Até torturas mostra...
Venceu Brasília (Roteiro e Atriz Coadjuvante) e foi indicado em
Moscou.
15
- "Terra em Transe", Glauber Rocha (67) - Pra muitos, o
melhor do Glauber. Também altamente referencial do que foi o Cinema
Novo e a visão dos artistas daquela época no Brasil. Algumas das
cenas – captadas pela câmera-personagem de Dib Lufti – e ícones
do movimento estão diretamente ligadas a essa filme. Premiado em
Cannes, Locarno e Havana. Não menos que genial.
16
- “O Dragão da Maldade Conta o Santo Guerreiro”, Glauber
Rocha (68) - Espécie de continuação do “Deus e o Diabo...”,
porém num outro conceito e contexto. Altamente Teatro de Arena e
Teatro Oficina, considero-o uma “ópera do Sertão” em cores, uma
tragédia shakesperiana nordestina. Texto incomparável. Filme amado
por Scorsese. Metafórico e forte. Melhor Direção em Cannes.
17
- “O Estranho Mundo de Zé do Caixão”, José Mojica Marins
(68) – O genial Mojica traz indiretamente seu célebre personagem,
que não aparece mas “representa” os 3 episódios que compõem o
longa. Sua melhor produção, que mostra o quanto ele, um dos maiores
mestres do terror trash mundial, ao lado de Argento, Carpenter e Bava, é capaz de fazer miséria com um pouquinho mais de recurso.
18
- “O Bandido da Luz Vermelha”, Rogério Sganzerla (68) – Se
existe cinema marginal, é “O Bandido...”. Transgressor, louco,
efervescente, non-sense, crítico, revolucionário. Adjetivos
são pouco pra definir. Grande vencedor do Festival de Brasília
daquele ano. O filme que fez o “terceiro mundo explodir” de
criatividade.
19
– “O Anjo Nasceu”, Julio Bressane (69) – Gênio do cinema
autoral da atualidade (haja vista que é vivo e segue produzindo),
junto com Sganzerla originou o chamado cinema “udigrudi”,
o underground brasileiro, que subvertia ainda mais a estética
e narrativa do que o Cinema Novo. Segundo filme dele, que, embora
tenha um pouco mais de história (o que o diretor praticamente
abandonou a partir do final dos 70), é tomado de simbologias e
metáforas, que, por sinal, embaralharam a cabeça dos militares, que
o proibiram sem saber porquê.
20
– “Brasil Ano 2000”, Walter Lima Jr. (69) – Fala-se muito
do “Macunaíma” (referencial certamente, mas um filme confuso),
mas esse do Walter Lima é exemplar no que seria um cinema
“tropicalista” e “antropofágico”. É um musical com trilha
original do Gilberto Gil cujos temas são muito bem integrados à
história, pois se trata de uma ficção surrealista inteligente e
engraçada. Muita criatividade com pouco.
a inventar instrumentos, misto de músico e escultor,
de
filósofo e profeta,
uma das figuras mais extraordinárias da arte
brasileira."
Jorge Amado
“Sou
um descompositor contemporâneo.”
Walter Smetak
Uma
das coisas que mais queria ver quando fosse a Salvador, se esta ainda
estivesse lá, era a exposição de obras de um cara que tenho grande
admiração: Walter Smetak. O gênio da música microtonal que,
a partir de uma obra pautada pela originalidade, didática e
hermetismo, abriu caminho para toda a música moderna brasileira,
influenciando e ensinando diretamente figuras como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé, Rogério Duprat, Rogário Duarte, Walter Franco, Gereba, Marco Antônio Guimarães, entre outros.
Já
apreciador de sua música e trajetória (gravou dois discos:
“Smetak”, de 1973, produzido por Caetano e Roberto Santana, e
“Interregno”, com o Conjunto de Microtone, de 1980), em 2008,
conheci em São Paulo sua neta, Jessica, jornalista como eu com quem
estabeleci saudável amizade. No final do ano passado, no que
confirmei minha ida à Terra de Todos os Santos , prontamente me
comuniquei com ela para perguntar-lhe se ainda se mantinham em
exposição as obras de seu avô. Um agravável “sim” recebi como
resposta, indicando que o material se encontrava na Galeria Solar
Ferrão, em pleno Pelourinho – quadras adiante de onde Leocádia e
eu nos instalaríamos.
O
Solar em si já é uma atração: um casarão construído entre o fim
do século XVII e início do XVIII (tombado pelo IPHAN em 1938) sem
os rebuscamentos da arquitetura colonial mas exuberante em dimensões:
quatro andares com longas salas e um terraço, um subsolo e um pátio
traseiro. Este abrigava três ricas exposições: a de arte africana
(do colecionador italiano Claudio Masella), outra de arte sacra (de
acervo pertencente ao artista plástico e também colecionador baiano
Abelardo Rodrigues) e a terceira, a que eu tanto ansiava ver:
“Plásticas Sonoras”, de Smetak.
Anton
Walter Smetak, ou somente “Tak Tak” – como era apelidado por
Gil devido à sua postura séria de educador europeu, mas também
numa alusão onomatopeica à sua procedência da terra dos relógios
–, era violoncelista, compositor, inventor de instrumentos
musicais, escultor e escritor nascido em Zurique em 1913. Fugido da
2ª Guerra, veio parar no Brasil nos anos 30. Sua primeira cidade
foi, por essas coincidências da vida, a minha Porto Alegre, tendo
atuado como professor da recém-inaugurada faculdade de música da
Universidade Federal do RS. Também na capital gaúcha, formou o Trio
Schübert, juntamente com outros dois músicos de descendência
europeia como ele, grupo de câmara com o qual se apresentava na
antiga rádio Farroupilha. Trocando informações com sua neta tempo
atrás, soube que ela estava escrevendo um livro sobre o avô
(“Smetak: Som e Espírito”) e me prontifiquei a pesquisar alguma
coisa nos arquivos do Museu de Comunicação Social Hipólito da
Costa, aqui em Porto Alegre. Achei alguns anúncios
da programação da rádio em que o Trio Schübert se
apresentava em exemplares do jornal Correio do Povo de 1937. Embora
pequena, minha contribuição foi parar no livro como bem podem ver.
Porém,
como disse, minha contribuição foi pequena. Só podia, pois Smetak,
depois de uma passagem pelo Rio de Janeiro iniciada em 1941,
encontrou-se como cidadão e pessoa no destino seguinte: Salvador.
Lá, a partir de 1950, casou-se, formou família e estabeleceu
residência (até sua morte, em 1984). Profissionalmente, passou a
integrar a Orquestra Sinfônica da Universidade da Bahia, onde também
lecionava música. Em um período de forte impulso à cultura em
Salvador, artistas do teatro, cinema, dança, artes visuais e, claro,
música, surgiam de todas as partes incentivados pelos programas
públicos. E a ida de Smetak para lá, a convite do maestro alemão
Hans Joachim Koellheutter, foi de uma química inusitadamente
acertada.
Adaptado
ao clima, à cultura, ao misticismo e às gentes da Bahia, Smetak
achou na calorosa Salvador um terreno fértil para expandir sua carga
erudita a serviço de uma nova visão musical-espiritual. Volta-se
para o experimentalismo, numa pesquisa que chamava de “Iniciação
pelo Som”, sob o impacto de estudos realizados na Eubiose –
corrente teosófica dedicada à ciência da vida focada na evolução
humana, levando em conta os planos espirituais da mente. Passa a
investigar o silêncio (tal como fizera John Cage), o som (a exemplo
dos modernistas da vanguarda europeia) e as suas relações com o
homem (numa visão que trazia para reflexão a cultura milenar
oriental).
Na
sala/galpão que recebe da Universidade, já nos anos 60, monta uma
oficina de ideias e objetos. É quando, para encontrar esse “novo
som”, passa a criar instrumentos, intitulados, justamente, de
“Plásticas Sonoras”. Para construí-las, Smetak empregou
cabaças, madeira, cordas, tubos de PVC, latas e qualquer material
que estivesse a seu alcance. Particularmente, acho maravilhosas essas
composições plásticas de Smetak, uma vez que unem com muita
propriedade e conhecimento o equilíbrio físico e espiritual que o
autor buscava, com uma precisão digna de um relojoeiro suíço, a
uma brasilidade profunda pela utilização de materiais típicos da
natureza local com outros reciclados (olha aí a mentalidade
sustentável de Smetak 40 anos antes de isso virar moda).
Além
dessa fusão tão distinta e original entre velho e novo nundos, as
Plásticas Sonoras, engenhocas de utilização não apenas visual mas
prática, ainda me impressionam por outro motivo: o bom humor. Vindo
de um homem refugiado de sua terra-natal, desbravador de um país
distante do seu, tanto em quilômetros quanto em emotividade, e cuja
formação foi pautada na rigidez do ensino europeu do início do
século XIX, não seria de estranhar que essas obras transmitissem
certo grau de amargura ou secura. Pelo contrário. Smetak, eterno
subversor da arte, na Bahia, reinventou a si através da música. Ele
uniu os microtons (comuns na tradição musical de países orientais),
Stockhausen, Cage, Ives e Obuhov e seu arsenal bachiano às
sonoridades e harmonias folclóricas brasileiras, buscando nisso
produzir uma música que ampliasse as percepções humanas a caminho
de um autoconhecimento amplo da alma. Algo de um exotismo e
imparidade apenas reduzidos pela larga aplicabilidade pedagógica que
teve. As Plásticas Sonoras, assim, são uma extensão de sua música
e filosofia, o que fica evidente nos títulos das peças: “Mulher
faladora movida pelo vento”, “Mr. Play-Back”, “Caossonância”,
“Piston Cretino”. De um humor que muito tupiniquim “original”
não teria.
Se a
Tropicália mudou a música brasileira no final do século XIX,
reverenciando as dissonâncias agradáveis da bossa-nova e o legado
tonal dos sambistas antigos, foi o lado avant-garde aprendido
com Walter Smetak que deu lastro para a ligação da Tropicália com
o modernismo, concretismo, neoconstrutivismo e atonalismo. Não foi
a orquestração de George Martin nem o exemplo composicional
engenhoso de Lennon/McCartney (pelo menos, não apenas). É Smetak
que está fortemente nos arranjos de Duprat, na divisão harmônica
de Tom Zé, no ”canto-de-ruídos guturais” de Caetano (como
definiu Augusto de Campos), na ênfase minimalista do Uakati, no
atonalismo de Walter Franco, na aproximação Brasil-Japão de
“"Refazenda"-Refavela” de Gil. Este último, sabiamente como lhe é
de costume, bem definiu a amplitude da obra do mestre e irmão:
“Smetak é um mergulhador de excelente performance e
vários records de profundidade no oceano da Dúvida”. "Música dos Mendigos"- Walter Smetak
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"Plásticas
Sonoras", de Walter Smetak
onde:Galeria Solar Ferrão (R. Gregório de Matos, 45, Pelourinho,
Salvador/BA)
quando:Sábados, domingos e feriados, das 12h às 17h