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quinta-feira, 14 de março de 2024

"Olha pra Elas", de Tatiana Sager (2023)

 

Um pai com a filha ao colo grita palavras de consolo por detrás da cerca distante alguns metros do prédio onde a esposa, através de uma escura janela, tenta responder. Ela atende imediatamente ao chamado do marido, mas é como se seu grito – diferentemente do dele – não tivesse força suficiente para chegar-lhe de volta. Como se sua insuficiente e combalida voz, cansada de urrar para fora e para dentro de si mesma, já estivesse emudecida de antemão por força da sociedade e da história.

Essa breve descrição da cena inicial do novo documentário da cineasta e jornalista gaúcha Tatiana Sager, "Olha pra Elas", sobre a realidade de mulheres encarceradas, além de tocante como todo o restante da obra, faz-se bastante simbólica no que se refere à condição da mulher – e do homem – no sistema penitenciário brasileiro. Além disso, a cena simboliza também a real antítese daquilo que o filme propõe, de que se volte o olhar àquelas mulheres. Sua invisibilidade significa, na mesma medida, uma não escuta em diversos níveis, do familiar ao social, da Justiça ao Estado. Metaforicamente, até o marido, um ex-detento do Presídio Central, têm voz. Ela, mulher, não.

A estratégia narrativa de Tatiana é pungente e traça o caminho que a cineasta escolhe para, a partir daí, colocar o cinema a serviço da missão de dar voz a quem foi destituída dela. Autora de outros dois documentários fundamentais para a recente cinematografia nacional a respeito do sistema carcerário, "O Poder Entre as Grades", de 2015 (codirigido por Zeca Brito), e "Central – O Poder das Facções no Maior Presídio do Brasil", de 2017 (no qual divide a direção com Renato Dorneles), Tatiana dá continuidade à mesma questão em sua nova produção, porém a aprofunda com um olhar mais acurado e pautado pelo humanismo.

Em "Olha pra Elas", as lentes funcionam como olhos atentos aos sentimentos daquelas que, por ações pessoais ou alheias, cederam ao mundo do crime quase como uma decorrência. As histórias de Adelaide, Tatiana, Tatiane, Naiane e Roselaine, retratadas no filme, têm em comum, além de ser mães e viver longe dos filhos, o de estar aprisionadas por crimes menores, como roubo, furto e tráfico, realidade da maioria das milhares de detentas no país. Entregues a prisões precárias e inadequadas, elas sofrem, principalmente, pelo abandono e pela desestruturação do lar.

A triste realidade de mulheres encarceradas 

Embora a população carcerária feminina brasileira seja a terceira maior do mundo, com cerca de 49 mil mulheres nessa condição, na comparação com os homens o volume é 818 mil vezes menor, segundo dados do Departamento Penitenciário Nacional. Raça, gênero e falta de acesso a condições dignas de cidadania juntam-se para, sobre a égide do machismo, condenar essas mulheres não só às grades, mas à brutal restrição a alternativas sadias quando libertas. Fora do presídio, elas já estão presas antes de serem presas. Assim, condenam-nas duas vezes, pois o afastamento dessa mulher do lar promove outras desestruturações tão graves (fome, abuso, prostituição, violência doméstica, drogadição), que impossíveis de serem estimadas.

O funcionamento machista de um país atrasado socialmente é tamanho que a simples associação da mulher a um homem criminoso é suficiente para puni-la, a se ver pela personagem Clair trazida no filme. Confundida com outra pessoa de mesmo nome, ela foi presa por engano por alarmantes 11 meses. O fato é que não há engano e, sim, um projeto de feminicídio não declarado, mas sorrateiro e perverso, que se deflagra na histórica invisibilidade dos corpos periféricos e marginalizados. Quanto mais femininos.

Inquietante, "Olha pra Elas" guarda semelhança com outro documentário, "O Cárcere e a Rua" (2004), de Liliana Sulzbach. Primeiramente, uma parecença geográfica, uma vez que também se trata de uma produção gaúcha sobre a vida de prisioneiras da penitenciária Madre Pelletier, em Porto Alegre – cenário onde "Olha pra Elas" basicamente se passa. Mas, sobretudo, por um aspecto que não está na tela, porém a tece: a visão feminina sobre uma questão feminina. Assim como fez Liliana em seu filme, Tatiana sensibiliza sua câmera através do exercício da empatia e da identificação. Realidade distante à da própria diretora, mas nem por isso incapaz de torná-la cúmplice e atenta. Numa abordagem mais do que jornalística, e, sim, humanista, "Olha pra Elas" prova que, pelo cinema, é possível enxergar essas sofridas mulheres não com só os olhos, mas com o coração.

texto originalmente publicado no caderno Doc do jornal Zero Hora em maio de 2023

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trailer de "Olha pra Elas", de Tatiana Sager



Daniel Rodrigues

sexta-feira, 12 de maio de 2023

CLAQUETE ESPECIAL 15 ANOS DO CLYBLOG - Cinema Brasileiro: 110 anos, 110 filmes (parte 2)

 

O novíssimo "Marte Um" já figurando
na lista dos melhores da história
A lista dos 110 filmes dos 110 anos de cinema brasileiro continua. Nesta segunda parte, na ordem decrescente iniciada da última posição, são mais 20 títulos, e a diversidade e criatividade típicas do cinema nacional se fazem cada vez mais presentes. Obras marcantes da retomada, como “Bicho de Sete Cabeças” e “O Invasor” convivem com clássicos combativos do cinema novo (“O Desafio”), documentários de décadas distintas (“Partido Alto”, dos anos 70, e “Jorge Mautner, O Filho do Holocausto” e “O Fim e o Princípio”, anos 2010) e longas recentíssimos. Entre estes, “Marte Um”, o mais novo de toda a lista, que precisou de menos de um ano de lançamento para carimbar seu lugar ao lado de consagradas chanchadas ou de produções inovadoras, tal o experimental "A Margem" e “A Velha a Fiar”, primeiro “videoclipe” do Brasil em que o tarimbado Humberto Mauro ilustra a canção popular de mesmo nome do Trio Irakitã.

A ausência, pelo menos neste novo recorte, são os filmes dos anos 80, que geralmente pipocam entre os escolhidos, mas que certamente virão mais adiante. Interessante perceber que cineastas mundialmente consagrados como Babenco, Karim e Coutinho se emparelham com novos realizadores como os jovens Gabriel Martins e Gustavo Pizzi. Tradição e renovação. Fiquemos, então, com mais uma parte da listagem que a gente traz como uma das celebrações pelos 15 anos do Clyblog.

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90.
“A Morte e a Morte de Quincas Berro D’Água”, Walter Avancini (1978)

Possivelmente, em algum momento o brasileiro viu uma cena em que Paulo Gracindo bebe um martelinho num boteco pensando que fosse cachaça e, indignado com a enganação, grita: “Água!”. A palavra ecoa enquanto a imagem congela e uma música brasileiríssima divina começa a tocar anunciando os créditos iniciais. Tanto quanto uma cena como a da nudez na praia de Norma Bengell em “Os Cafajestes” ou da operação do Bope no baile funk em “Tropa de Elite”, este começo do “teledrama” baseado no conto de Jorge Amado tem ainda a primazia de ser uma obra feita para a televisão, o que a coloca em tese em inferioridade diante do comum 35mm do cinema. Mas a questão instrumental não interfere neste média absolutamente brilhante dirigido por Avancini. Atuações e diálogos memoráveis, arte primorosa, ritmo perfeito, figurino geniais de Carybé, trilha magnífica de Dori Caymmi. Não à toa deu um dos Emmy conquistados pela TV Globo.


89. “O Invasor”, de Beto Brant (2001) 
88. “O Desafio”, Paulo César Saraceni (1965) 
87. “Jorge Mautner, O Filho do Holocausto”, Pedro Bial e Heitor d'Alincourt (2013)
86. “Dzi Croquetes”, Tatiana Issa, Raphael Alvarez (2005)
85. “Dois Filhos de Francisco”, Breno Silveira (2005)


84, “Partido Alto”, Leon Hirszman (1976-82)
83. “Eu, Tu, Eles”, de Andrucha Waddington (2000)
82. “O Xangô de Baker Street”, de Miguel Faria Jr. (2001) 
81. “O Homem do Sputnik”, Carlos Manga (1959)

80.
“Bicho de Sete Cabeças”, Laís Bodanzky (2000)

Da leva do início dos 2000, que sinalizam o começo do fim da retomada. Símbolo desta fase, “Bicho...” é um dos filmes que denotaram que o cinema brasileiro saíra da pior fase e entrava numa outra nova e inédita. Além de lançar a cineasta e o hoje astro internacional Rodrigo Santoro, conta com uma estética e edição arrojadas, com sua câmera nervosa e atuações marcantes, tanto a do jovem protagonista quanto dos tarimbados Othon Bastos e Cássia Kiss. Vários prêmios: Qualidade Brasil, Grande Prêmio Cinema Brasil, Troféu APCA de "Melhor Filme", além de ser o filme mais premiado dos festivais de Brasília e do Recife. Ainda, está nos 100 da Abracine. Trilha de André Abujamra e com músicas de Arnaldo Antunes.


79. “Marte Um”, Gabriel Martins (2022)
78. “Madame Satã”, de Karim Ainouz (2002) 
77. “Babilônia 2000”, Eduardo Coutinho (2001)
76. “Benzinho”, Gustavo Pizzi (2018)
75. “A Margem”, Ozualdo Candeias (1967)


74. “Estômago”, de Marcos Jorge (2007) 
73. “Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia”, Hector Babenco (1976) 
72. “O Fim e o Princípio”, Eduardo Coutinho (2006)
71. “A Velha a Fiar”, Humberto Mauro (1964)


Daniel Rodrigues

terça-feira, 21 de fevereiro de 2023

Sete Documentários sobre Carnaval



Cena do filme "Nossa Escola de Samba"
É farta a filmografia sobre o samba e seus autores. O gênero musical, assim como o Carnaval brasileiro, ao qual está associado, é tema e/ou perpassa histórias ficcionais das mais diversas no cinema desde que o samba é samba. Porém, é interessante perceber (e até talvez sintomático) que haja poucos documentários sobre a tradicional festa do Momo. É fato que os filmes, inclusive os de ficção, enquanto resultado da produção artística de suas épocas, assim como quaisquer outras artes, são reflexo da sociedade e da cultura da qual se originam. Neste contexto, entretanto, o documentário pode ser visto como ainda mais incisivo e fiel à sociedade que representa, visto que a concepção documental tem exatamente este propósito de registro histórico. Independentemente se o objeto retratado é do passado ou algo que esteja acontecendo no “presente”, o documentário será sempre um anal de seu tempo.

Por esta ótica é estranho não se encontrar tantos documentários sobre Carnaval no Brasil, o país ao qual o mundo atribui a verdadeira realização de tal festa. Mesmo com o crescimento exponencial da produção documental no País nos últimos 30 anos, o volume de filmes deste gênero não parece ter seguindo a tendência, restando não muitos que versam especificamente sobre o tema. O que explicaria isso? Há motivos socioculturais que interfiram nesta desatenção? Teria a ver com a dificuldade brasileira de assumir sua identidade? Seria a confirmação da pecha do “país sem memória”? Que não se enxerga? Que tem vergonha de sua face? Que não se questiona? 

Perguntas que ficam no ar, mas que os docs aqui listados talvez respondam em parte. Há desde realizações dos anos 60, num Brasil ainda subdesenvolvido, a filmes dos anos 90 e século XXI de abordagens distintas, da grandeza do Carnaval carioca, à religiosidade e o paganismo da festividade e à analogia com outras realidades. Para este Carnaval, então, entre uma pulada no bloco de sua cidade e uma parada em casa pra tomar um refresco, quem sabe ver-se retratado na tela?

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“As Pastoras - Vozes Femininas do Samba”, de Juliana Chagas (2018)

Um tocante e revelador retrato do envolvimento das mulheres com o samba, a comunidade e o carnaval. No caso, da Escola Portela, em que as figuras femininas que dão título ao filme são personagens centrais. As vozes das pastoras, como as mulheres cantoras são chamadas na escola, dão leveza ao samba. Nos primórdios, eram elas que, ao cantar em coro as composições que mais gostavam, determinavam qual seria o samba vencedor na quadra. Hoje, as pastoras fazem parte da Velha Guarda e continuam a emprestar suas vozes aos sambas mais tradicionais de suas escolas. Além de colher depoimentos vivos e destacar a condição feminina, fato raro dentro do samba e da cultura popular, o documentário traz momentos sublimes, como o acompanhamento dos momentos de tensão da apuração dos resultados dos desfiles na casa de Dona Nenê, viúva do bamba Manacéa, ao lado de sua filha Áurea Maria, uma das pastoras pertencentes à Velha Guarda.



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“Ensaio Geral”, de Arthur Fontes (2000)

Indicado ao Emmy Internacional de melhor documentário, este doc produzido para a TV mostra com riqueza de detalhes os bastidores e a linha de frente de todo o processo de construção do carnaval da Mocidade Independente de Padre Miguel para o ano 2000, desde o sorteio da ordem dos desfiles até o seu ápice, o desfile propriamente dito. Num enfoque distanciado, sublinha a influência dos bicheiros na escola, expõe a disputa pela escolha do samba-enredo (na qual são feitas, inclusive, ameaças de morte) e esmiuça a tensão entre conceitos estéticos do carnavalesco Roberto Lage e a vontade de presidentes de ala de colocar mulheres semidespidas na passarela. "Ensaio Geral" é um painel de matizes contraditórios, expondo um Carnaval que surge como produto bonito, mas de um trabalho estafante, fragmentado e mal pago. Um trabalho cujo fundamento é a alegria da identidade comunitária, mas na qual a alienação está sempre presente.



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“Escola de Samba", Alegria de Viver", de Cacá Diegues (1962) - Episódio do filme "5 Vezes Favela"

Embora “ficcional”, este episódio do longa “5 Vezes Favela”, um dos marcos do Cinema Novo brasileiro dos anos 60, tem todas as características de documentário, colocando-se na fronteira entre um gênero e outro tal como este movimento cinematográfico propôs. A história retrata o jovem sambista vivido por Oduvaldo Viana Filho, que assume a direção da escola de samba de sua comunidade poucos meses antes do Carnaval, enfrentando problemas de dívidas, rixa com uma escola rival e discussões com a esposa, a cobiçada mulata Dalva. Primeiro filme do mestre Cacá Diegues, que se tornaria expoente do cinema brasileiro, embora encenado, tem como conceito a aproximação do Brasil de suas realidades até então obscurecidas como a pobreza e a vida das periferias. A história, muito crível dentro do contexto social daquelas pessoas, se passa na agremiação Unidos do Cabuçu, de Engenho Novo, o “Rio, Zona Norte” que Nelson Pereira dos Santos começava a desvendar para o cinema brasileiro anos antes. Realizado dois anos antes do golpe militar, “5 Vezes Favela” já denotava as forças “subversivas” que a Ditadura combateria com unhas e dentes. No caso de “Escola de Samba”, além de montagem de Ruy Guerra e produção executiva de Eduardo Coutinho, dois cineasta diretamente ligados ao comunismo, foi viabilizado pelo CPC - Centro Popular de Cultura, da tão perseguida UNE.



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“Fevereiros”
, de Marcio Debellian (2017)

Não é o primeiro documentário que tem Maria Bethânia como protagonista, a se ver por “Maria Bethânia - Pedrinha de Aruanda”, “Bethânia Bem de Perto”, "Maria - Ninguém Sabe Quem Sou Eu", “Os Doces Bárbaros” e outros. Mas o seu universo é tão rico e mágico que um filme como “Fevereiros” traz qualidades muito próprias não antes exploradas. O diretor faz um feliz paralelo entre o registro da vitória da escola de samba carioca Estação Primeira de Mangueira, em 2016, que teve um enredo homenageando a cantora baiana, com os seus momentos na cidade-natal, Santo Amaro, no Recôncavo, durante as festas da Nossa Senhora da Purificação, ambas ocorridas no mês de fevereiro. As correlações dos aspectos religiosos, ancestrais e sociais entre uma festividade e outra, entre um ritual e outro, são de grande riqueza. Fora, claro, a linda trilha sonora que vai naturalmente pontuando o filme, seja na voz da Abelha-Rainha, seja na de artistas correlatos a ela, como o irmão Caetano Veloso, Chico Buarque, D. Edith do Prato, os sambistas da Mangueira, entre outros. Mais um doc de Bethânia, mas Bethânia nunca é demais. 



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“Nossa Escola de Samba”
, de Manuel Horacio Giménez (1968) - episódio do filme "Brasil Verdade"

Mais antigo registro formalmente documental sobre o Carnaval, esta preciosidade tem como a figura central de Antônio Fernandes da Silveira, conhecido por Seu China, morador do bairro carioca que abriga a Escola de Samba Unidos de Vila Isabel, a qual ele mesmo foi um dos fundadores, em 1945. Com influências do cinéma vérité francês de Edgar Morin e Jean Rouch, em voga nos meios intelectuais à época, este documentário social traz um olhar sociológico-antropológico a um tema até então pouco explorado, com off narrado na própria voz de Seu China, evidenciando as dificuldades sociais da população pobre e o quanto o Carnaval representa um sopro de alegria para o povo. Além disso, intercala episódios cotidianos “encenados”, que se misturam a captações de lances espontâneos da “câmera-olho” de Giménez. Tudo sob um P&B rigoroso, magistralmente bem fotografado por Thomas Farkas e Alberto Salvá. Este curta, integrante do longa "Brasil Verdade", foi filmado no ano do golpe militar e um antes da chegada de um personagem essencial para o desenvolvimento da Escola vindo, ironicamente, de dentro do quartel: um jovem de 27 anos chamado Martinho da Vila, ainda um sargento burocrata do Exército.



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“Estou me Guardando pra Quando o Carnaval Chegar”
, de Marcelo Gomes (2019)

Parafraseando o samba moroso de Chico Buarque, o filme de Gomes traz uma abordagem bem diferente do comum quando se pensa em Carnaval, até por não ser um filme sobre a festa, mas sobre a fuga dela. Nada de Marquês de Sapucaí, circuito Barra-Ondina ou blocos de rua pelas capitais brasileiras. Na cidade de Toritama, interior de Pernambuco, considerada capital nacional do jeans, mais de 20 milhões do tecido são produzidos anualmente em fábricas caseiras. Orgulhosos de serem os próprios chefes, os proprietários destas fábricas trabalham sem parar em todas as épocas do ano, exceto o Carnaval: quando chega a semana de folga eles vendem tudo que acumularam e descansam em praias paradisíacas. Exibido na mostra competitiva do 24º festival É Tudo Verdade, o filme recebeu menção honrosa do júri oficial e da Associação Brasileira de Documentaristas e Curta-Metragistas, além de ser escolhido como melhor filme pelo júri da Associação Brasileira de Críticos de Cinema.



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“Imperatriz do Carnaval”
, de Medeiros Schultz (2001)

Assim como “Ensaio Geral”, trata-se de outro longa-metragem sobre a preparação de uma escola de samba para o Carnaval do marcante ano de 2000. Porém, esta, ao invés de abordar a Mocidade, traz os preparativos da Escola de Samba Imperatriz Leopoldinense para os desfiles na Sapucaí. O diretor acompanhou todo o processo de preparação da escola: a composição e a escolha da música, a criação dos figurinos e alegorias, o trabalho no barracão, a produção das fantasias, os ensaios, a vida dos carnavalescos em casa e na escola e, por fim, o vitorioso desfile de bicampeã. No total, foram gravadas 50 horas de material, incluindo uma gravação inédita da bateria da escola em sistema surround. Segundo o jornalista e pesquisador Sérgio Cabral, narrador do documentário e autor do livro “As Escolas de Samba do Rio de Janeiro”, Imperatriz do Carnaval é “a melhor, mais profunda e mais completa radiografia audiovisual de uma escola de samba já realizada no Brasil”.




Daniel Rodrigues

sábado, 3 de dezembro de 2022

“Racionais - Das Ruas de São Paulo Pro Mundo”, de Juliana Vicente (2022)


“Ai o cara assiste o show do Dr. Dre, vê os caras saindo de um telão tridimensional, fica inspirado e pensa o seguinte: ‘Vou fazer um Rap, porque rap é o que liga!’ E então o cara acorda!”
Mano Brown

Eu poderia começar esse texto com um milhão de relatos iguais a esse, inclusive o meu, e de outros tantos pretos periféricos que um dia ouviram e sentiram o peso da batida rap e a sensação de ser protagonista de alguma coisa relevante pelo menos uma vez!

Mas estou aqui sentado teclando no meu notebook para falar a história de quatro negros periféricos que foram salvos pelo rap: os Racionais MC’s simplesmente o maior grupo de rap do País, que ultimamente estrearam com um documentário maravilhoso na Netflix, “Racionais - Das Ruas de São Paulo Pro Mundo”, de Juliana Vicente. Lógico, eu assisti e tenho certeza que como os outros tantos pretos que citei antes, eu me identifiquei... mas logo mais eu explico.

Verão de 1988, Vila Jardim, Porto Alegre. Tenho claro em minha memória o dia que ouvi a primeira vez as palavras RAP FUNK SOUL saindo da boca de um falecido primo, o Sandro, Lembro de estarmos nos preparando para ir até a Mariland, uma rua próxima ao Centro Histórico, para ajudar o Sérgio, seu irmão mais velho, a guardar uns carros e fazer uns trocos para ir curtir um baile no Jara Musisom. Naquele momento eu senti a onda funk, o movimento vivo, a mobilização da massa black para ter um momento de diversão, uma folga do sofrimento cotidiano.

Cena do filme com a banda reunida lembrando e
refletindo sobre o passado, o presente e o futuro
Os bailes black eram como templos sagrados. Os irmãos vestiam a melhor roupa, erguiam seus black powers e celebravam a vida... Por que estou contando isso?

Porque aconteceu em todo o País, como contam os Racionais no documentário. As equipes de som eram quem faziam os eventos. Elas tinham a máquina nas mãos. Comigo foi a JS Musisom que tive o primeiro contato com o rap sendo feito ao vivo e nós, pretos, às vezes tínhamos uma oportunidade de mostrar na dança ou na expressão falada do rap algum tipo de talento. Nessa época, ainda não conhecíamos Racionais. As rimas eram toscas e feitas basicamente para animar o público. O show era do DJ, Nessa época, conheci o Nego Jay e montamos os Donos da Noite, que veio a ser um embrião da Código Penal.

Lá em São Paulo, os integrantes da Racionais (Mano Brown, Ice Blue, KL Jay e Edi Rock) se encontravam na São Bento, na região central. Aqui, era na Rua dos Andradas, Centro de Porto Alegre, e assim como lá, aqui as equipes davam essa abertura com festivais de música e tudo acontecia. Essa revolução aconteceu meio que simultaneamente em todo mundo, um levante negro como eu vejo acontecendo hoje, em 2022, desde o movimento #Blackslivesmetter até os festivais Afropunk por aí afora.

Mas voltando aos Racionais MCs, vejo organização, vejo atitude, vejo uma revolução necessária para um país recém saído de uma ditadura onde o jovem negro sempre foi visto como marginal, padrão e, mesmo parecendo redundante, não tem como escrever sem comparar a história deles com a minha. Os caras mudaram a forma do Brasil fazer rap, mudaram a linguagem e tiveram a coragem que muitos até hoje não têm. 

“Racionais - Das Ruas de São Paulo Pro Mundo”, no Netflix. Imperdível!

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trailer de “Racionais - Das Ruas de São Paulo Pro Mundo”


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Algumas referências: 

“Fear of a Black Planet, da Public Enemy

“The Revolution Will not be Televised”, de Gil Scott-Heron

“Power”, de Ice T

Lucio Agacê


sexta-feira, 25 de fevereiro de 2022

“Summer Of Soul (...ou, Quando a Revolução Não Pôde Ser Televisionada)”, de Ahmir "Questlove" Thompson (2021)

 

Não parece aceitável que seja apenas o aperfeiçoamento dos recursos técnicos, capazes de recuperar com tecnologia digital filmes antigos, o motivo que explique porque estejam vindo somente agora a público certos registros do passado cujos espinhosos temas são necessários e urgentes para se entender a sociedade do hoje. O racismo, seja estrutural, velado ou institucionalizado, de alguma forma colabora para essa justificativa. Por que, então, não fosse por isso, somente após 60 anos de carreira, Tina Turner sentira-se à vontade para divulgar questões até então sujeitas à crítica de sua vida pessoal no documentário “Tina”? Igualmente, por que apenas dos últimos anos para cá tenham fervilhado docs  abordando abertamente este tema como "Os Panteras Negras: Vanguardas da Revolução" (2015), "What Happened, Miss Simone?" (2015), "Eu Não Sou Seu Negro" (2016), "A 13ª Emenda" (2016) e "Libertem Angela Davis" (2012)?

Esse esquecimento perverso quase fez o mundo perder de conhecer uma história praticamente apagada das mentes, mas que, salva pelas mãos do cineasta Ahmir "Questlove" Thompson, foi resgatada para a eternidade. “Summer Of Soul (...ou, Quando a Revolução Não Pôde Ser Televisionada)”, o magnífico e arrebatador documentário que concorre, com todo merecimento, ao Oscar nesta categoria, explora o Harlem Cultural Festival de 1969, evento que reuniu multidões de pessoas negras pela primeira vez em um acontecimento público e ao ar livre nos Estados Unidos e grandes nomes da música negra para celebrar a cultura afro-americana. Apesar da magnitude do festival, as imagens recuperadas pelo filme ficaram guardadas por décadas – acredite-se – numa cave. A referência no título à música de Gil Scott-Heron, escrita originalmente naquele mesmo explosivo ano de 1969, deixa claro o tom de denúncia que choca e encanta ao mesmo tempo. Como essa história tão rica nunca havia sido contada?

Wonder dando adeus ao sufixo "Little"
e ganhando maturidade
no Harlem Cultural Festival


Montado com sensibilidade e perspicácia, “Summer...” une em sua narrativa didática jornalística com arqueologia urbana. Focado nos vários números musicais que se apresentaram no palco montado em pleno Mount Morris Park, as apresentações são entrecortadas por breves mas extremamente precisas informações documentais sobre aspectos sociais, políticos e biográficos que sustentam o objeto do filme, fazendo com que não seja apenas um amontoado de músicas seguidas umas das outras (o que, neste caso, já seria interessante). Minitelejornais sobre determinado artista, imagens de fatos sociais recentes como manifestações contra o racismo, ou contextualizações históricas necessárias, como a coincidência do festival com o dia da chegada do homem à Lua, 20 de julho, dão ainda mais peso àquelas performances que se veem no palco, agigantando-as de significado e importância.

Afora isso, a variedade de estilos (R&B, funk, gospel, blues, jazz) e o nível de qualidade do cast é de encantar qualquer admirador da música feita nos últimos 60 anos. B.B. King, Nina Simone, Mahalia Jackson, Stevie Wonder, Sly & Family Stone, Gladys Knight & the Pips, The 5th Dimension, Max Roach e outros desfilam à frente dos olhos dos espectadores, dando a impressão de quase não se acreditar que aquilo um dia aconteceu. Mas está ali, vivo novamente. Afortunados que estavam na plateia e alguns daqueles artistas, como Marilyn McCoo e Ronald Townson, da The 5th Dimension, juntam-se aos espectadores comuns nesse assombro. Noutro grande mérito do filme de Thompson, pessoas que presenciaram o festival, seja assistindo ou se apresentando, são convidadas a reverem as imagens até então perdidas. Profundamente tocados, pois a revivência lhes retraz alegrias e dores, é impressionante perceber o quanto todos demonstram surpresa com o que veem, não só por somente agora terem a oportunidade disso, mas porque, não fosse a força intrínseca da imagem, do mistério divino que o cinema guarda, as memórias tendem a irem se apagando até, um dia, desaparecerem por completo. É o cinema documental exercendo suas duas primordiais funções: revelar e eternizar.

trailer de "Summer of Soul"

Além de um retrato do momento sociocultural de final dos conturbados anos 60, o filme serve também para se entender o próprio estágio em que se encontravam àquela época os artistas participantes, visto que, para alguns, o festival foi crucial para a carreira. Wonder, então com 19 anos, por exemplo, sobe ao palco do Harlem Cultural Festival exatamente no ínterim entre sua tutela artística pela Motown, iniciada quando ainda era uma criança, e o começo da maturidade criativa, que o levaria a se tornar um dos mais consagrados artistas de todos os tempos a partir de então. A Sly & Family Stone, igualmente. É impressionante perceber que “Stand!”, revolucionário disco de estreia da banda que mesclava o funk negro ao psicodelismo do rock com o grito contra as desigualdades, havia sido lançado apenas um mês antes da realização do festival e, mesmo assim, já era uma febre junto ao público. E o que dizer da apresentação explosiva de Nina?! Ou da homenagem a Martin Luther King, protagonizada por Mavis Staples e Mahalia!? De arrepiar. Se o assassinato do pastor e líder político ainda hoje não é totalmente assimilado pela comunidade negra, imagine-se à época, pouco mais de um ano anos após o trágico ocorrido e em que as feridas estavam abertas.

Mavis e Mahalia protagonizando
um dos momentos mais
emocionantes do filme
O paralelismo com fatos históricos daquele efervescente período está presente a cada minuto do longa, como a onipresença dos Black Panthers (responsáveis pela segurança do evento), a presença de figuras emblemáticas para a causa negra como o ativista Jesse Jackson e o protagonismo de Tony Lawrence, agitador cultural e organizador do festival. Somente assistindo-se o filme se entende com mais clareza, por exemplo, o porquê das críticas que sempre pairaram em relação à política de financiamento da corrida especial, intensificada pelos Estudos Unidos naquela década de 60 de Guerra Fria e disputa de poder com a União Soviética. Num dos momentos do filme, mostram-se reportagens da época com pessoas sendo entrevistadas durante o festival dizendo ser um absurdo o governo gastar bilhões de dólares para ir à Lua enquanto a população, ali, pobre e em sua maioria negra, passa por tanta dificuldade. Noutro ponto, mais um aspecto elucidativo de “Summer...”: o festival foi realizado, curiosamente, durante o mesmo verão que outro megaevento, o de Woodstock, o qual levantava não a perigosa bandeira da luta contra o racismo e dos direitos civis, mas a utópica máxima hippie de “paz e amor”. Não é difícil de saber qual festival entrou para a história e qual foi esquecido num porão...

“Summer...” não é só provavelmente o melhor documentário deste ano e forte candidato à estatueta da Academia, como um dos mais brilhantes sobre música da história do cinema, tranquilamente equiparável a clássicos do gênero como “O Último Concerto de Rock”, “Gimme Shelter” e “Amazing Grace”. Sua narrativa, que casa metalinguística e documentação histórica, é tão eficiente que lhe potencializa o caráter de espetáculo e de denúncia social num só tempo. A realização milagrosa de “Summer...” é, por si, reveladora, visto que funciona como uma metáfora da vida da América escravagista: preso num calabouço, o negro, até então fadado ao apagamento social, sai da condição subumana para forjar, com talento ímpar e força interior ainda mais admirável, toda a arte musical moderna como se conhece hoje.


Daniel Rodrigues

quinta-feira, 17 de junho de 2021

“Sergio Mendes no Tom da Alegria”, de John Scheinfield

 

E dizer que eu virava a cara para Sergio Mendes... Visão totalmente equivocada a minha, como se, para ser músico, precisasse necessariamente ser um prolífico compositor. De fato, esso não é o caso de Mendes, pianista que erigiu sua carreira em grande parte sobre o repertório de outros autores elaborando engenhosos arranjos que unem sofisticação harmônica à satisfação pop. Foi isso que ele fez com maestria em temas como “Mais Que Nada”, do Jorge Ben, “Água de Beber”, de Tom Jobim e Vinícius de Moraes, e "Fool on the Hill", dos Beatles, por exemplo, para citar três clássicos de seu cancioneiro. Mas parecia-me insuficiente, pois dava-me a impressão de que tanto sua obra era menor por causa disso quanto seu êxito se dava justamente pelo critério muitas vezes simplista do público norte-americano. Superados meus preconceitos e já admirador da obra de Mendes há algum tempo, assisti com muito prazer a “Sergio Mendes no Tom da Alegria”, documentário dirigido e roteirizado por John Scheinfield, premiado documentarista norte-americano afeito aos registros audiovisuais de músicos como John Coltrane, Herb Albert, John Lennon e Bing Crosby.

A produção gringa, no caso de Mendes, se justifica plenamente. Desde que o Regime Militar o afugentou do Brasil dias após o Golpe de 1964, o músico, que já tinha contatos e nutria certo respeito na terra de Charlie Parker já da época em que a bossa nova estourara por lá no início dos anos 60 (havia gravado, em 1963, por exemplo, um disco em parceria com Cannonball Adderley), decide fazer as malas e seguir carreira por lá. E dá muito certo. Depois de alguma batalha inicial na nova terra, sua inteligência musical o condicionou a criar a Brasil 66, banda que contava com músicos brazucas e ianques e com a qual gravou nove discos entre 1966 e 1971 de estrondoso sucesso. Com o grupo, Mendes juntava a brasilidade do samba e a levada do jazz e da soul, criando um híbrido até então inédito que virou cult. Os gringos, desde então, o reverenciam - até mais do que os brasileiros. Nessa lista de admiradores, estão Quincy Jones, Herb Albert, Lani Hall, John Legend e Black Eyed Peas.

Mendes e sua Brasil 66:a música
brasileira ganha os EUA
A abordagem do documentário se dá pelo olhar estrangeiro, mas mantém o tempo todo ligação com o Brasil. Isso porque, mesmo tendo se integrado tão bem ao mercado norte-americano, sua música e referências sempre foram essencialmente brasileiras e latinas. Aliás, isso é o que lhe diferenciou num momento pós-bossa nova em meados dos anos 60, quando mundo ansiava por uma continuidade ao caminho aberto por Tom, João Gilberto e outros. Como dizem Nelson Motta e Boni em depoimento, o sentimento com relação à Mendes à época em que ele começara a fazer sucesso nos Estados Unidos era o de que ele havia “vencido”, ou seja: um brasileiro que conseguira achar a química certa para levar a cultura do Brasil mundo afora sem deturpá-la, e sim, adaptando-a. Entre os feitos de Mendes está o de praticamente ter sido o primeiro artista do mítico selo A&M Records, então iniciante e pelo qual o próprio Tom gravaria anos mais tarde discos históricos da segunda fase da bossa nova.

No que toca ao filme, essa visão de fora tem suas vantagens e desfavorecimentos. O que não é tão bom é o tom meio didático, principalmente do início da fita, quando é necessário explicar “o que é bossa nova” ou “o que foi o Golpe Militar”, o que, ao invés de ampliar o entendimento, resultam numa generalização um tanto superficial. Não que um documentário não deva explicar, mas é possível partir de um ponto menos simplório. Porém, nada que comprometa, até porque as virtudes do longa compensam, como a disponibilidade de um rico material audiovisual e fotográfico – o apreço documental que norte-americanos têm muito mais em relação a várias outras nações, a começar pela brasileira – e, principalmente, o acesso a entrevistados. Não que seja impossível a uma equipe brasileira chegar a fontes estrangeiras – vejam-se os docs “Milton Nascimento: Intimidade e Poesia” e "O Dia que durou 21 Anos", exitosos nesta ponte EUA-Brasil – mas, convenhamos: quem mais conseguiria com facilidade que alguém como o ator Harrison Ford (responsável, no início da carreira, pela construção do estúdio de Mendes em Los Angeles) desse depoimento que não fosse conterrâneo seu? Fora isso, é mais fácil agregar à obra fontes do Brasil estando nos Estados Unidos do que o contrário.

“Sergio Mendes no Tom da Alegria” - trailer

Essa fronteira entre EUA e Brasil que o filme se põe ao documentar um artista com um pé em cada extremo da América também traz coisas curiosas. A visão dos norte-americanos é a principal delas. Muito bonito de ver, por exemplo, a reverência de Quince e Will.I.Am ao colega brasileiro. Este último, inclusive, faz um comentário interessante próximo ao fim do longa, quando, falando da longevidade do trabalho de seu ídolo, diz que, durante sua trajetória, vários presidentes entraram e saíram e ele continua ativo. Will.I.Am´, porém, está referindo-se a presidentes dos Estados Unidos e não do Brasil, raciocínio que, obviamente, só poderia vir de um norte-americano.

Numa narrativa um tanto comum, mas eficiente, “Sergio Mendes no Tom da Alegria” faz uma louvação aos então 80 anos que o artista completara em 2020, pontuando momentos em que este, um apaixonado pela música, reinventou-se. Invariavelmente com um sorriso cativante no rosto, é o próprio Mendes que conta sobre a adaptação inicial a outro país e mercado, a composição do megassucesso AOR “Never Gonna Let You Go”, cantada por Joe Pizzulo e Leza Miller nos anos 80 (sim, é de Mendes!), o renascimento com o disco “Brasileiro”, nos anos 90, a sua redescoberta pela nova geração dos últimos 20 anos para cá e a indicação ao Oscar de Melhor Trilha Sonora por "Rio". Tudo feito com um homenageado em vida, participativo e lúcido, outro bom exemplo que podíamos copiar mais dos norte-americanos.

Sergio Mendes e seu sorriso contagiante: 80 anos de amor pela música


Daniel Rodrigues

segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

“Narciso em Férias”, de Renato Terra e Ricardo Calil (2020)


"Quando eu me encontrava preso/
Na cela de uma cadeia."
Versos iniciais de "Terra"

Quase ao fechar das cortinas de 2020 assisti, finalmente, uma elogiada produção deste ano sobre um dos artistas que mais admiro: “Narciso em Férias”, documentário com e sobre a vivência de Caetano Veloso dos 54 dias da prisão entre 1968 e 69 durante a ditadura militar. Dirigido pela dupla Renato Terra e Ricardo Calil – afeita a documentários sobre artistas da música brasileira, visto que têm na bagagem os ótimos “Uma Noite em 67”, de 2010, e “Eu Sou Carlos Imperial”, de 2016 –, o filme traz coisas boas e outras nem tanto, embora as qualidades superem os problemas.

O projeto, motivado pelo recente descobrimento dos documentos com os interrogatórios concedidos por Caetano ao exército, que o havia prendido em dezembro de 1968 – quatro dias depois da instituição do AI5 – por causa de uma apresentação supostamente difamadora na boate Sucata, no Rio de Janeiro, é por si admirável. O formato também. Basicamente, composto por depoimentos de um Caetano filmado de frente (apenas com variações de plano/profundidade), fotografia fria, poucos cortes e cenografia tão seca como uma prisão: uma cadeira escura sem braços e a figura do entrevistado engolida por um cenário cinza, opressor, monocromático e sem respiro, semelhante à cela sem janela que Caetano descreve quando recorda os dias de solitária.

As falas extensas, respeitando o fluxo de raciocínio de Caetano, tem o ganho de, semiologicamente, simbolizarem o marasmo e a opressão do tempo de encarceramento. É a voz dele e silêncios apenas. Mas em termos de conteúdo passam longe de serem monótonas. Pelo contrário, visto que carregadas de detalhes, ponderações, emotividade e surpresas, A própria música, diretamente ligada à sua figura, é quase ausente, servindo muito bem para amarrar os três "blocos" que o filme forja com bastante sensibilidade. No entanto, os diretores-entrevistadores, fora do enquadramento mas de frente para Caetano, pecam ao deixar o curso da conversa correr em alguns momentos. Num deles, bem nas primeiras declarações, Caetano menciona algumas vezes "a gente" ao referir-se a quem estava junto com ele no momento da prisão em São Paulo. Não é muito difícil de se suspeitar - ainda mais sendo ele uma personalidade famosa e essa história já ter sido contada em outras ocasiões - que se está falando de Gilberto Gil. Mas até mesmo eu, que tenho intimidade com a biografia de ambos, fiquei em dúvida dessa suposta afirmativa. Afinal, estava assistindo um documentário que podia trazer revelações novas. 

Não eram. Nem mesmo uma tática narrativa, visto que a resposta confirmativa do mais provável veio sem nenhum requinte. Espera-se que, uma vez escolhido um formato como este, que todas as informações que se precise saber estejam expostas e ordenadas. Igualmente, que os entrevistadores ajudem a conduzir o andamento quando necessário. Cinema não é jornalismo, sei, mas quando o primeiro busca fazer as vezes do segundo, há de se lhe respeitar um dos princípios básicos, que é o da não presunção do conhecimento por parte do receptor. Naquele ponto, ainda mais em se tratando do começo do filme, quando o espectador ainda está se familiarizando com a narrativa, soou como uma leve lacuna, até certo descuido.

Noutra sutil inconsistência, Caetano fala e toca um pedaço de uma das três músicas presentes no filme, "Irene" (as outras são "Terra", também autoria dele, e "Hey Jude", dos Beatles, todas fortemente ligadas à experiência da prisão). O que não se diz (e nem se questiona a Caetano na hora certa) é que a canção foi composta dentro das grades, o que apenas se supõe uma vez que, noutro trecho mais adiante, o músico relata que lhe foi negado o pedido feito pela então esposa Dedé aos militares para que lhe permitissem ter um violão na cadeia. Ou seja, ele inventou a melodia só na imaginação e a guardou na cabeça. Este fator, se tornado mais claro, seria bastante contributivo à obra, haja vista que é a única música escrita por ele em tal condição e ainda mais em se tratando de um artista que, mesmo com a reclusão brutal e injusta, tentou com todas as forças manter-se lúcido e íntegro.

Caetano Veloso cantando "Hey Jude", dos Beatles

Aliás, a integridade do baiano é exaltada por ele próprio não com afetação, mas com a consciência de um homem experiente revivendo aquele episódio traumático. Os próprios documentos, a que Caetano há pouco havia tomado conhecimento da existência, visto que por muito tempo confinados à confidencialidade, evidenciam essa integridade. Mesmo não criticando abertamente o regime militar durante os depoimentos aos oficiais (o que seria, se não suicídio, no mínimo uma autoincitação à tortura), também não deixa de se posicionar, por exemplo, quando perguntado da inocência do amigo e parceiro Rogério Duarte, vítima muito mais séria do que ele das barbaridades do regime. Poderia ter lhe comprometido, mas por sorte, não.

De tudo, é evidente que a grande força de “Narciso...” está, justamente, nos depoimentos de Caetano. A lucidez e a memória do autor de “Alegria Alegria” são admiráveis a um senhor de quase 80 anos, pois possibilitam montar um documento fundamental para se entender o nefasto período de ditadura no Brasil de alguém ainda vivo e nestas condições de discernimento. Há outros registros dele ao longo dos mais de 50 anos que dividem o episódio em questão do filme, como entrevistas, filmes e livros. Porém, nenhum se concentra tanto e tão bem neste recorte específico, o que garante ao filme uma saudável concisão.

Enquadreamento, fotografia,
cenário e figurino frios para
lembrar os dias de "férias
forçadas" do "Narciso"
Mais do que ser conciso, entretanto, “Narciso...” é também incisivo. Há lances comoventes, como quando Caetano emociona-se ao rever um exemplar da mesma revista que Dedé lhe apresentou na cadeia do batalhão de paraquedistas em Deodoro, no Rio, trazendo notícias sobre a chegada do homem à Lua (e que motivaria a criação da música “Terra” anos depois). Ou quando relembra do militar negro e conterrâneo seu que, sensibilizado com a situação, autorizou que ele e a esposa tivessem encontros íntimos na cela. Mas a construção narrativa pensada por Terra e Calil é, certamente, a grande responsável por tal contundência. Ao concentrar a ação em quase 100% da fita em praticamente a mesma imagem de Caetano, deixando para o final apenas um pequeno percentual que quebra a linearidade a qual os diretores acostumaram os olhos do espectador por mais de uma hora, dão, assim, a devida carga de suspense ao tão mencionado interrogatório, que Caetano conta ter sido o motivo de sua captura, mas que demorou meses para acontecer. Valendo-se de um expediente fílmico bastante interessante, que é o de gerar expectativa a algum elemento onipresente, quando finalmente o trazem à tela é quase como se estivessem dando-lhe um caráter de personagem até então escondido.

Mas o que havia realmente motivado a prisão? Caetano conta, por exemplo, que um oficial mais intelectualizado chamou-lhe à sua sala somente para discursar-lhe que foi, inconsciente ou conscientemente, a subversão do tropicalismo que o levara ao cárcere. Para ele, nas entrelinhas tropicalistas estava a verdadeira mensagem de rebeldia contra o governo militar. E Caetano diz-se obrigado a concordar. O motivo da prisão, aliás, por muitos anos nebuloso, fica mais bem explicado também no documentário por conta da revelação dos tais documentos, uma vez que está registrado com todas as letras que foi o jornalista Randal Juliano, da TV Record, quem dedurou aos militares que Caê e Gil haviam cantado o hino nacional na boate Sucata com uma letra “subversiva”. Provavelmente, este se referia a “Tropicália”, o tema-manifesto do movimento tropicalista que, em sua estrutura e abordagem inovadoras, expõe o Brasil daqueles novos tempos: com suas belezas (“A Banda”, “a bossa”, “Carmem Miranda”) e mazelas (“a palhoça”, “a criança feia e morta”). Ou seja: com ufanismo, mas também com crítica. 

O que me soa – e que talvez até escape a Caetano por mais leonino que este seja – é que Juliano ouviu, sim, o hino nacional. Na sua mentalidade conservadora e mal resolvida, a música, em letra e em música, fez-lhe identificar o nacionalismo de um hino mesmo que jamais pronunciados os versos oficiais, visto que foi provado ser mentira a acusação. Este é o lado inconsciente. No consciente, Juliano ofendeu-se com os versos, aí sim, da própria canção, a parte crítica que nenhum intransigente quer aceitar. Perversa ou desavisadamente, o fato é que Juliano fez um elogio a “Tropicália” e ao movimento que a turma de Caetano e Gil formaram. Tanta subversão que acabaria por levá-los à prisão por razões inconscientes ou não.

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trailer de "Narciso em Férias"


Daniel Rodrigues

sexta-feira, 24 de março de 2017

Os meus 20 melhores documentários brasileiros (e os 20 da Abracine também)



Coutinho e seu "Cabra Marcado para Morrer", 1º lugar
absoluto entre os docs brasileiros
Venho pensando há meses (quiçá, anos) em fazer alguma lista para o blog sobre documentários brasileiros. Além de gostar muito do que é produzido no gênero no Brasil, principalmente a partir da década de 60, chama-me a atenção não apenas a variedade de temas, estéticas, narrativas e estilos – coisa que um país como o Brasil é capaz de fornecer mais do que muitos outros – como também a riqueza de recortes possíveis de serem feitos. Eu fiquei naquelas de montar uma lista dos “meus melhores documentários dos anos 2000”, “melhores documentários brasileiros sobre música”, “melhores cinebiografias”, melhor isso, melhor aquilo e... nunca pus no papel de fato.

Tanto posterguei que, com toda a sumidade que lhe é conferida, a Abracine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, enfim, listou os 100 melhores documentários brasileiros de todos os tempos. A mesma comporá um livro que a entidade lançará ainda este ano a exemplo do já referencial “100 Melhores Filmes Brasileiros”, editado em 2016. Fim de papo.

Nem tão "fim" assim para um cinéfilo que adora criar as suas próprias listas como eu. Muito bem escolhida, a seleção da Abracine acerta praticamente em tudo. Vários eu, confesso, não assisti, e sei que são lacunas importantes. Mas posso assegurar, igualmente, de que com aqueles que vi consigo satisfatoriamente montar também uma lista representativa. Por que, agora, claro, o desafio ficou óbvio: expor os meus melhores de todos os tempos. Tomei vergonha na cara, trocando em miúdos. Entretanto, para não encompridar demasiadamente, faço aqui uma lista dos meus 20 preferidos e não da centena cheia embora o pudesse, destacando, a título de comparação e informação, os 20 primeiros da listagem da associação.

Hirszman aparece com 3 títulos
Interessante vislumbrar que há vários títulos de 2000 em diante (50% dos meus), mostrando o quanto o gênero documentário evoluiu no Brasil, tornando-se, aliás, uma das principais fontes do cinema brasileiro pós-Retomada. A temática social e política, não raro pela via da corajosa denúncia, é massiva, norte para 18 dos 34 títulos citados ao todo. Outro ponto legal de se constatar é a presença de grandes cineastas, como Eduardo Coutinho, documentarista por natureza e dono do 1º lugar em ambas, mas também de Glauber RochaLeon Hirzsman, Joaquim Pedro de Andrade e João Batista de Andrade, diretores que sempre se impuseram, além dos seus filmes de ficção, o ofício quase cívico do registro documental.

Ainda, vale a menção ao gaúcho Jorge Furtado, que aparece tanto em minha lista quanto na outra com o referencial “Ilha das Flores”, curta presente em diferentes rankings em todo o mundo, como no livro “1001 Filmes para se Assistir Antes de Morrer” ou entre os próprios 100 melhores filmes brasileiros pela Abracine. Dele, ainda seleciono “Esta não É a sua Vida”, que pela associação ficou em 87º lugar.

Os meus selecionados:
1 – “Cabra Marcado para Morrer”, Eduardo Coutinho (1984)
2 – “Edifício Master”, Eduardo Coutinho (2002)
3 – “Estamira”, Marcos Prado (2006)
4 – “Santiago”, João Moreira Salles (2007)
5 – “Garrincha, Alegria do Povo”, Joaquim Pedro de Andrade (1962)
6 – “Di”, Glauber Rocha (1977)


7 – “Ilha das Flores”, Jorge Furtado (1989)
8 – “Aruanda”, Linduarte Moreira (1960)
9 - “O Fim e o Princípio”, Eduardo Coutinho (2005)
10 – “Janelas da Alma”, João Jardim e Walter Carvalho (2001)
11 – “Partido Alto”, Leon Hirszman (1982)
12 – “Vlado – 30 Anos Depois”, Joaquim Batista de Andrade (2005)
13 – “O Mistério do Samba”, Carolina Jabor e Lula Buarque (2008)

Filme sobre a Velha Guarda
da Portela: preferência minha


















14 - “Iracema – Uma Transa Amazônica”, Jorge Bodanzky e Orlando Senna (1976)
15 - “Esta não é a Sua Vida”, Jorge Furtado (1991)
16 - “O Prisioneiro da Grade de Ferro”, Paulo Sacramento (2002)
17 – “Jorge Mautner – O Filho do Holocausto”, Pedro Bial e Heitor D´Alincourt (2013)
18 - “Dzi Croquetes”, Tatiana Issa e Raphael Alvarez (2010)
19 – “Greve!”, João Batista de Andrade (1979)
20 – “Cidadão Boilensen”, Chaim Litewski (2009) e “Ônibus 174”, José Padilha (2002)

Os selecionados da Abracine:
1. “Cabra Marcado para Morrer”
2. “Jogo de Cena”, Eduardo Coutinho (2007)
3. “Santiago”
4. “Edifício Master”
5. “Serras da Desordem”, de Andrea Tonacci (2006)
6. “Ilha das Flores”


7. “Notícias de uma Guerra Particular”, João Moreira Salles (1999)
8. “Ônibus 174”, José Padilha (2002)
9. “Di”
10. “Aruanda”
11. “O Prisioneiro da Grade de Ferro”
12. “O País de São Saruê”, Vladmir Carvalho (1979)
13. “Viramundo”, Geraldo Sarno (1965)
14. “ABC da Greve”, Leon Hirzsman (1979-80)
15. “Jango”, Sílvio Tendler (1984)
16. “Garrincha, Alegria do Povo”

Clássico de Joaquim Pedro, presente nas duas listas















17. “Imagens do Inconsciente”, Leon Hirszman (1984)
18. Estamira
19. “Santo Forte”, Eduardo Coutinho (1999)
20. Janela da Alma

por Daniel Rodrigues