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sábado, 12 de outubro de 2013

"A Arca de Noé" - 1 e 2 - Vinícius de Moraes, Toquinho e Convidados (1980/1981)




“A poesia é capaz de coisas que você nem imagina.
Eu sou a porta que o poeta imaginou”
“A Porta”, de Vinicius de Moraes


Numa das conversas que tivemos sobre as nossas infâncias, confessei ao Clayton e ao Daniel, com muita emoção que “A Arca de Noé” é a trilha sonora que eu mais gostava e lembrava a minha primeira infância. Nada em termos fonográficos, nenhum outro disco podia se comparar a “Arca de Noé” e olha que o páreo tinha as obras “Os Saltimbancos”, “Sítio do Pica-pau Amarelo”, "Plunct-Plact-Zum!", “Pirlimpimpim” e o “Grande Circo Místico” só para começar a listinha básica de musicais das crianças que cresceram entre 1973 a 1983.

Na época da Arca, eu, uma guria entre 7 e 8 anos de idade, me divertia com a minha irmã repetindo muitas vezes as canções que minha mãe ajudava a gente a lembrar, porque não tínhamos os LPs. “A Arca de Noé” ficou na minha memória musical depois que assisti ao programa de televisão de mesmo nome exibido no início da década de 80, na Rede Globo. Os registros sonoros se fixaram tão fortemente nas minhas retinas, ouvidos e coração, que por muitos anos, lembrava dos detalhes visuais de cada apresentação. Lembrava dos gestos e dos figurinos/cenografias dos convidados que fazem parte do elenco musical dos volumes 1 e 2.

Eu e minha irmã na época em
que conhecemos "A Arca de Noé"
Muitos anos se passaram e já adulta me deparei com os dois volumes da Arca em CD e relembrei, faixa a faixa, cada poema. As músicas estavam tão vivas em mim que cheguei a apresentar “Corujinha”, da “Arca de Noé 1”, numa audição em 2008 promovida por todos os estudantes da Profª de música Maria Beatriz Noll. Aliás, foi ela também quem me mostrou a versão italiana de “A Casa”, no LP “L´Arca – Canzoni per bambini” a partir da produção de Sergio Endrigo  que reuniu vários intérpretes italianos em versões das canções do volume 1 feitas por Vinícius de Moraes.

Cada vez que escuto a “Arca de Nóe” de Vinicius de Moraes, acompanho em poesia as vozes e a respiração de Milton Nascimento, Moraes Moreira, Alceu Valença, MPB 4, Elis Regina, Frenéticas, Fabio Jr., Boca Livre, Ney Matogrosso, Marina e Walter Franco só para citar os intérpretes do volume 1. O mais interessante é que parte deles já fazia parte do repertório diário que eu colocava na vitrola, após chegar da escola diariamente para fazer meus shows dublados com o som no volume máximo.

A “Arca de Noé” é o último trabalho poético-musical de Vinicius de Moraes lançado nos anos de 1980 e 1981 – este último, póstumo. Em entrevista ao jornalista Tárik de Souza, o produtor Fernando Faro reafirma que Vinicius trabalhou até pouco antes de morrer. “Na madrugada em que se foi, vertia do italiano para o português os poemas da Arca. E cobrava de mim: ‘Faro, me dá logo esse treco!’. Ele respirava esse disco, atento a todos os detalhes”, conta o produtor dos shows e dos álbuns da dupla Toquinho-Vinicius.

No volume 2, alguns intérpretes se repetem, mas as participações de Fagner, Jane Duboc, Elba Ramalho, Grande Otelo, Clara Nunes, Céu da Boca e Paulinho da Viola são muito especiais, diversificando os temas e os gêneros musicais.

A poesia de Vinicius é tão imensamente bela e se ampliou tanto na voz desses intérpretes que  está na memória de crianças, jovens e adultos por sua qualidade, irreverência e pureza. A poesia d’“A Arca de Noé” é capaz de coisas que você nem imagina, como, por exemplo, reencontrar a sua criança toda a vez que a escuta. Experimente.

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FAIXAS - "Arca de Nóe 1":
1 - A Arca de Noé-Abertura - Chico Buarque e Milton Nascimento
2 - O Pato - MBP 4
3 - A Corujinha - Elis Regina
4 - A Foca - Alceu Valença
5 - As Abelhas - Moraes Moreira
6 - A Pulga - Bebel
7 - Aula de Piano - Frenéticas
8 - A Porta - Fábio Jr.
9 - A Casa - Boca Livre
10 - São Francisco - Ney Matogrosso
11 - O Gato - Marina
12 - O Relógio - Walter Franco
13 - Menininha - Toquinho
14 - Final - Instrumental

FAIXAS - “Arca de Noé 2”:
1 - Abertura - A Arca de Noé - Dionísio Azevedo
2 - O Leão - Fagner
3 - O Pinguim - Toquinho
4 - O Pintinho - Frenéticas
5 - A Cachorrinha - Tom Jobim
6 - O Girassol - Jane Duboc
7 - O Ar (O vento) - Boca Livre e Vinicius de Moraes
8 - O Peru - Elba Ramalho
9 - O Porquinho - Grande Otelo
10 - A Galinha d'angola - Ney Matogrosso
11 - A Formiga - Clara Nunes
12 - Os Bichinhos e o Homem - Céu da Boca
13 - O Filho Que Eu Quero Ter - Paulinho da Viola

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domingo, 5 de fevereiro de 2012

cotidianas #135 - Dentro



“... se conduzíssemos o otimista crônico pelos hospitais,
enfermarias e salas de operações cirúrgicas,
pelas prisões, câmaras de tortura e choças de escravos, por campos de batalha e locais de execuções;
se abríssemos para ele todas as moradas da miséria (...)
e, finalmente, deixássemos que ele olhasse para dentro dos famintos calabouços de Ugolino,
 também ele iria compreender, afinal, a natureza deste ‘melhor de todos os mundos possíveis’”.

de “O Mundo como Vontade e Ideia”


Tudo rangia. “Que saco!”, praguejava. Mas também não fazia nada para arrumar. “Que importa?” Lembrava-se de sua mãe, curvada e ridiculamente velha, dizendo: “apartamento velho é assim” – como se ela também não fosse; como se ela também não rangesse. Mas quando o apartamento é velho e descuidado, o resultado não pode ser outro. Tudo rangia: portas, chão, pia, janelas, cama, latrina, cadeiras, sofá. Arrepiava-se sempre que tinha que adentrar ao quarto, pois o som que a porta e o piso produziam sinfonicamente juntos era quase uma frase atonal: torta, irritante e sem sentido. Mas nem por isso fazia alguma coisa. Deixava assim. Ia deixando. “Uma hora isso se resolve. Ou então que vá tudo prum buraco mesmo!”
Sempre que ia à privada, por exemplo, a engrenagem da descarga produzia um urro sufocado que parecia humano, e que ia ficando cada vez mais humano semana após semana. Na verdade, a tubulação toda produzia tanto ruído que lhe parecia haver uma comunidade inteira viva por detrás do reboco, com pessoas que hora e outra conversavam, discutiam, riam, choravam, mexiam-se, e isso mesmo quando não corria água – o que lhes justificaria minimamente a existência dentro daqueles canos de metal tomados de ferrugem e limo. Às vezes tinha clara a impressão de que morava gente ali.
Mas o que importavam esses “dejetos materiais”, os objetos, as coisas inanimadas? Era tudo um saco, mas viver sozinho, pelo menos, lhe garantia que ninguém ia lhe importunar. Nenhuma voz pra incomodar, nem de mãe, nem de filho, nem de ex-mulher, nem de putas. Uma vez, depois de gozar dentro de uma vadia, acometeu-lhe uma certeza inexplicável de que só se sentira feliz nessa vida porca e suja quando estivera no útero. Hoje, ele ri do episódio, pois acha engraçado lembrar como terminou aquela transa: mandando-a embora de sua casa, irado e chorando, a golpes com o fio do abajur. Ela gritava: “pára! Pára, seu merda!” E ele dizia, sabe-se lá porque: “Ixíon, sua vadia!! Ixíon!!” Esbravejava, num prazer enlouquecido bem melhor do que o da gozada. Acordou todo o prédio aquela noite.
Agora, lembrava-se e ria, ria. Ria muito, convulsivamente. Babava-se. E para si. Para a casa. Pois nada fazia diferença: podia gritar ou emudecer-se que não faria a menor diferença. Para que mantinha aqueles livros empoeirados na estante? Letras, Filosofia, mais letras, hunff! Para que, se já lera e embaralhara tantas nesses mais de 50 anos? O que isso lhe trouxe? E as fotos sobre a mesa: “para quê?”, indagava-se, mas não achava resposta alguma. Estavam lá os porta-retratos do filho crescido e ausente, outro do filho morto, outro da ex-mulher – infelizmente viva e presente –, da sacal mãe e até daquele cachorro insuportável que enchia de pelo toda a casa (e que graças a Deus já morreu também!). E por que não os recolhia e socava tudo num baú? Não sabia. Talvez porque não tivesse baú... só por isso.
Sem ter outra coisa pra fazer, foi mijar. Acendeu a luz do banheiro, tão clara que resplandecia até o teto daquele pé direito tão alto que parecia tocar o céu. Descarregou a urina com toda a autocomplacência que nem achava que merecia e, num automatismo estúpido e sem vontade, deu a descarga.
- Ei, você.
Falou.
- É, você mesmo.
Fez-se um breve silêncio, mas logo em seguida, na boa acústica típica dos banheiros, a voz reverberou novamente:
- Não vai me responder? – disse, naquele tom falsamente choroso de quem fica magoado pelo silêncio do outro.
- Si... sim, mas... o que você quer? – respondeu àquela voz que emanava de dentro do vaso como se aquilo fizesse algum sentido.
- É, meu amigo: “Quanto mais distintamente o homem souber, mais dor ele terá”, não é, senhor das vontades já cumpridas?
Silêncio (de concordância).
- Está em Schopenhauer...
- Quê, Schopenhauer?! – saltou-lhe com violência da boca a pergunta, que recebeu, em troca, uma resposta cinicamente leve:
- É: Schopenhauer. Arthur Schopenhauer – disse a voz –. Sei que se decepassem tua cabeça do corpo agora ela ia imediatamente cravar os dentes no teu braço. Iam lutar entre si como idiotas, feito uma formiga-buldoque, não é? Rárá! Claro que sim! Eu sei, eu sei. Tu bem sabes também.
- É... eu sei...
A voz do urro, até então irônica mas sempre no mesmíssimo timbre sufocado de quando só urrava, endureceu:
- Então, o que vai ser?
- ...
- E?...
- É, eu vou.
- Muito bem, meu rapaz! Muito bem. Assim é que se fala. Isso: faça assim mesmo como estás.
Hesitou um pouco no silêncio gélido do banheiro. Mas foi. Não tirou nem a roupa. Entrou dentro do vaso, escorregando com desenvoltura pela louça. Já totalmente lá dentro, tirou para fora o antebraço e, com o indicador, deu um toquinho no tampo, que caiu quicando sobre o assento.
Depois daquele estrondo, o eco se perdeu e a calmaria reinou. Tudo ficou escuro, quente e úmido outra vez.

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quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Chico Buarque - "Construção" (1971)



"Ao entregar a letra, num golpe de ironia e audácia, o advogado da gravadora pediu que a proibissem; os censores então, como que para contrariá-lo, liberaram "Construção" sem cortes."
relatado pelo escritor Humberto Werneck,
no livro "Tantas Palavras - Letra e Música",
songbook de Chico Buarque



Tijolo por tijolo num desenho mágico. Assim foi construído "Construção"(1971), disco espetacular de Chico Buarque de Holanda; o primeiro gravado após sua volta do exílio, provavelmente o melhor do artista e um dos maiores da música brasileira. Ao contrário da boa parte dos discos de Chico que eram verdadeiras colchas de retalho com músicas feitas em épocas diferentes, com parceiros variados, para fins diferentes (filmes, peças, homenagens), "Construção" fora planejado para ser efetivamente um álbum e provavelmente por isso mostre uma coesão, uma unidade, uma encaixe tão perfeito entre as músicas que o tornam diferenciado na obra do cantor.
Constitui praticamente uma grande sinfonia cotidiana, uma grande ópera do homem comum, com tragédias, amores, sangue e emoção. Reforçam esta sensação de obra erudita os arranjos ousados e intensos do maestro Rogério Duprat, com suas cordas e metais poderosos. Já em "Deus lhe Pague" que abre o disco esta intensidade fica demonstrada: ela é forte, ela é densa, com sua condução grave, sua percussão pesada e com as vozes do MPB4 intensificando o sarcasmo da gratidão.
"Cotidiano" que a segue alivia o clima num samba descontraído faz um infinito ciclo do dia-a-dia. "Desalento", um samba triste com uma cuíca chorosa, parceria com Vinícius de Moraes, é um dos poucos casos de música que não deveria estar ali uma vez que faria parte originalmente do compacto de "Apesar de Você" que acabou não saindo, vetado pela censura.
A faixa título, "Construção" é a verdadeira ópera trágica cotidiana: dramática desde sua sonoridade até seus versos pessimistas. Um dia na vida de um operário de obra; aquele dia que ele, cansado da vida, da injustiça, da mesmice, decidira ser o último de sua vida. E Chico descreve isso de maneira mágica, brincando com as palavras, jogando com os versos, num exercício formal absolutamente bem engendrado, amarrando a letra toda por uma anáfora que serve de fio condutor e mantendo uma admirável regularidade silábica de dodecassílabos. A dramaticidade da letra, da situação do operário, do incidente fatal ganham proporções ainda maiores novamente com a orquestração de Duprat e com o coro do MPB4 até chegar a um final  onde repete-se um trecho de "Deus lhe Pague" (dentro de "Construção") reafirmando toda e desesperança.
Segue com o gostoso samba "Cordão"; com a lamentosa "Olha, Maria" parceria com Vinícius e Tom Jobim, bem com a cara do maestro soberano; com o desafiador "Samba de Orly" que não se privou, mesmo em época de censura forte e violenta, de falar de quem estava fora do país morrendo de saudades mas que não podia voltar por 'forças maiores'. "Minha História", uma adaptação de uma canção italiana de Lucio Dalla chamada "Gesù Bambino", também teve seus problemas com a censura e com a igreja pela menção a um Menino-Jesus de procedência indigna e vida marginal e boêmia, à qual Chico então teve que se contentar em deixar o nome que pretendia traduzir simplesmente, apenas entre parênteses e no original em italiano.
O disco baixa a rotação totalmente na última faixa, numa espécie de canção de ninar, como que num convite a um relaxamento depois de tantos dramas, compromissos e agruras, em que Chico se despede com "Acalanto". A última peça. O último tijolo.
A obra estava completa.
Álbum mais que fundamental! E não sou apenas eu que digo: "Construção" é um dos poucos discos brasileiros na publicação "1001 Discos Pra Ouvir Antes de Morrer", livro que conta com avaliações de críticos especializados do jornalismo internacional; além disso, foi eleito o terceiro melhor disco brasileiro de todos os tempos na edição brasileira da Rolling Stone, e também pela mesma revista, a canção "Construção" foi considerada a melhor música brasileira da história.
É pouco?
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FAIXAS:
  1. "Deus lhe Pague" – 3:19
  2. "Cotidiano" – 2:49
  3. "Desalento" (C. Buarque, Vinícius de Moraes) – 2:48
  4. "Construção" – 6:24
  5. "Cordão" – 2:31
  6. "Olha Maria" (C. Buarque, V. de Moraes, Tom Jobim) – 3:56
  7. "Samba de Orly" (C. Buarque, Toquinho, V. de Moraes) – 2:40
  8. "Valsinha" (C. Buarque, V. de Moraes) – 2:00
  9. "Minha História (Gesù Bambino)" (Lucio Dalla; versão de C. Buarque) – 3:01
  10. "Acalanto" – 1:38
*todas as músicas, Chico Buarque, exceto as indicadas
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Ouça:
Chico Buarque Construção

Cly Reis