Seguindo com a segunda parte do duelo com o radialista,
locutor, cinéfilo e blogueiro Paulo Telles num bate-papo tão apaixonado pela
sétima arte quanto instrutivo. Se na primeira Telles aborda o faroeste
norte-americano, destacando diretores, títulos referenciais e até sobre o papel
da mulher no western, agora, ele fala
um pouco mais sobre o spaghetti, a
versão italiana para o gênero que não só ganhou fãs no mundo todo como, de certa
forma, trouxe-lhe uma nova linguagem. Ainda, aquilo que todo cinéfilo gosta:
listas. O entrevistado já sai elencando seus filmes preferidos nas duas
categorias e defende com muito critério e poder analítico uma a uma de
suas escolhas. Vamos, então, à segunda e última parte da entrevista:
FRANCISCO BINO:- Sei que não é
fácil fazer estas coisas, mas nos faça uma lista com os dez melhores western
Spaghettis de todos os tempos segundo você? E os dez melhores do cinema
americano?
PAULO TELLES: E não é mesmo, prezado Bino (risos). Elaborar
uma lista com apenas dez de cada estilo não é uma tarefa fácil. Entretanto, há
outros títulos que também estão em minha apreciação que não se encontram aqui
listadas, portanto, apresento os meus Top Ten de cada estilo do gênero:
AMERICANOS
1 -"RASTROS DE ÓDIO"/The Saerchers (1956) –
Direção: John Ford Foi através desta
obra prima (assisti pela primeira vez em 1985, com catorze anos) que comecei a
me interessar sobre cinema e tentar entendê-lo como arte. Foi a partir deste
momento, que me deixei penetrar pelo mundo de John Ford e no mundo dos westerns. Não tem como você não se
deixar encantar pela beleza majestosa e áspera do Monument Valley, cenário
natural este preferido de Ford, e pela figura estoica de Ethan Edwards,
interpretado por John Wayne. Em minha opinião, foi a melhor atuação de sua
carreira, digna mesmo de um prêmio, trabalho este que rendeu até elogios do
cineasta e filósofo Jean-Luc Godard, inimigo declarado de Wayne por razões
políticas. “Rastros de ódio”
conserva os elementos dramáticos do faroeste tradicional, por seu estilo
peculiar, épico e lírico, onde o cineasta descreve a odisseia de Ethan e de
seus discípulo Martin Pawley (vivido por Jeffrey Hunter) na perseguição aos
comanches que raptaram a jovem Debbie (vivida por Natalie Wood), e isto tudo
num relato de tensão ininterrupta e de grandeza plástica e cromática, segundo
as nobres palavras do finado crítico Paulo Perdigão, ex-colunista do jornal O
Globo. Recentemente, o filme foi exibido em reprise nas grandes salas do Cinemark, em sua sessão de
clássicos, e assisti junto ao José Eugenio Guimarães, editor do blog Eugenio em Filmes. Mesmo sem o
impacto do formato VistaVision, ainda
assim valeu o ingresso.
"Rastros de Ódio", cena de abertura
2 - MATAR OU MORRER/High Noon (1952) –
Direção: Fred Zinnemann Um dos grandes westerns que estabeleceu o chamado Western
Psicológico, uma alusão ao Macarthismo e a sociedade americana de então,
uma das obras primas de um grande cineasta, Fred Zinnemann. Poucos sabem, mas
os americanos consideram tão importante este filme que uma cópia desta obra
prima foi depositada numa cápsula do tempo, que só será reaberta no ano 2213.
Uma trama elevada à dimensão de tragédia grega tendo como herói o xerife Will
Kane (em minha opinião o mais humanizado de todos os protagonistas no gênero,
digno do título de herói) vivido por um dos atores que mais bem personificaram
o mito do cowboy do oeste, Gary
Cooper, em uma cruzada solitária para defender sua vida. Ele durante muitos
anos cuidou de uma cidade e de seus habitantes, mas agora mesmo não estando sob
a insígnia da lei, estes mesmos habitantes se recusam a ajudá-lo, pois todos
temem o pistoleiro e seus comparsas que descerão no trem do meio dia para matar
Kane. Um estudo acurado da consciência do herói que mesmo podendo fugir ou
deixar a responsabilidade para o próximo xerife, ainda sim mantém sua dignidade
para ter paz consigo mesmo. Não tem como não falar deste Western sem mencionar
Grace Kelly como sua esposa quaker, e a famosa canção “Do Not Forsake Me Oh My Darling”, interpretada
por Tex Ritter. Solidão, consciência, medo, e ingratidão são as temáticas
principais desta obra de Zinnemann.
3 - O MATADOR/The Gunfight (1952) – Direção: Henry
King Outro grande western de base psicológica dirigida por
um dos grandes artesões de Hollywood, e trazendo Gregory Peck numa das melhores
atuações do gênero, Jimmy Ringo, um temível pistoleiro que quer largar as armas
para viver pacificamente para a esposa e seu filho, que ainda não o conhece.
Contudo, sua fama de rápido no gatilho não só atemoriza as pessoas mais
pacatas, mas atrai aventureiros desocupados que o querem por à prova, o que faz
com que Ringo não consiga a paz que almeja. Um estudo acurado do mito do
pistoleiro, que tão logo seja afamado (ou mal afamado), outros estão dispostos
a temê-lo ou a desafiá-lo.
4 - DA TERRA NASCEM OS HOMENS/The Big Country (1958) –
Direção: William Wyler Um dos melhores Westerns
americanos que já assisti e por muitos, e também pudera, não tinha nada para
dar errado tendo na direção um dos maiores cineastas de todos os tempos,
William Wyler, que assinou grandes obras primas da Sétima Arte, como “Jezebel”, “A Princesa e o Plebeu”, “Chagas
de Fogo”, e “Ben-Hur”,
como também não podia dar errado tendo um elenco de primeira categoria como
Gregory Peck, Jean Simmons, e Charlton Heston. Outro destaque é sua produção,
com uma fotografia impecável e formato de tela panorâmica que nenhum televisor
poderia enquadrar, isto é, um dos primeiros faroestes americanos em
superprodução para afastar o público dos televisores, que então esvaziavam as
salas de exibição. Vale lembrar também de sua mensagem pacifista, coisa rara
nos filmes do gênero, já que o personagem de Peck, um almofadinha do
leste, se envolve na briga de duas famílias por causa da divisão de água, mas
ele acredita que poderá agradar a gregos e troianos. Muito interessante!
Destaque para a briga entre Peck e Heston, que viram a noite lutando, e também
para eletrizante trilha sonora de Jerome Moross.
5 - OS BRUTOS TAMBÉM AMAM/Shane (1953)- Direção:
George Stevens Era o filme
preferido do crítico brasileiro Paulo Perdigão, já falecido, entretanto a meu
ver ele é um conto moral sobre a redenção e a ótica de uma criança ao idealizar
o perfil do herói do Oeste. O baixinho Alan Ladd é perfeito como o pistoleiro
Shane, que busca a paz e quer largar as armas, mas ele não consegue quando se
vê obrigado a empunha-las para defender um casal e o filho deles, que o
idolatra como um verdadeiro mito. Shane chega a uma cidade como um típico “anjo
purificador” ao tentar distribuir dignidade e autoconfiança para os fazendeiros
amedrontados. A fábula sobre o bem e o mal e disputa entre dois é bem
caracterizada no duelo final entre Ladd (Shane) e o pistoleiro Wilson, vivido
pelo brilhante Jack Palance. Outro clássico do gênero recomendado para todos os
amantes do Western, ou simplesmente, quem ama cinema.
6 - DUELO AO SOL/Duel in The Sun (1946) – Direção:
King Vidor Verdadeiramente um Super-Western
de tirar o fôlego!!! Uma nova forma bem adulta de atrair o público igualmente
adulto as salas de cinema, e produzido por David O’ Selznick, o megaprodutor
responsável por outra obra prima (E O Vento Levou) e estrelando a
sensual Jennifer Jones e o galante Gregory Peck, que não esta nada galante
nesse filme (risos). Foi o maior êxito comercial de Selznick e que foi o apogeu
do Western romanesco, no
entanto, acabou criando problemas com ligas puritanas americanas pelo teor de
sexualidade bem apimentada e exagerada, ao introduzir o chamado “beijo francês”
no cinema americano. Além disso, a trama é basicamente uma tragédia grega, onde
a mestiça vivida por Jennifer Jones tem o pai condenado à morte por ter matado
sua mãe e o amante dela, e daí passará a viver com uma tia, vivida por uma dama
do cinema, Lilian Gish, que é esposa de um senador, vivido pelo lendário Lionel
Barrymore. Mas os dois filhos do casal se interessam pela mestiça, mas ela
acaba optando pelo mais sedutor e amoral, que é Gregory Peck, que não quer
nenhum compromisso, em vez do decente Joseph Cotten. De resto, é uma tragédia
grega a se seguir em grandes proporções, mas no grande estilo do Western
Clássico Americano.
7 - A LEI DO BRAVO/White Feather (1955) – Direção:
Robert D. Webb É um dos meus
prediletos por tratar-se de um tema antirracista, e um dos faroestes mais
respeitados sobre a temática indígena, cujo argumento foi redigido pelo
cineasta Delmer Daves, mas dirigido por Robert D. Webb (um cineasta de menor
renome, mas nem por isso menos admirado). No roteiro, Daves repetiu os mesmos
ingredientes de Flechas de fogo, realizado cinco anos antes, versando a
trajetória de jovem guerreiro cheyenne
Cão Pequeno (vivido espetacularmente por Jeffrey Hunter) e um engenheiro bem
intencionado Josh Tenner (vivido por Robert Wagner). Este tenta persuadir os
índios a mudar-se para uma reserva, mas o projeto acaba prejudicado pela
ganância de garimpeiros. A obra caminha para uma sequência final que eu mais
admiro - o confronto do solitário de Cão Pequeno, que se recusa a mudar de sua
reserva, contra as tropas da União. Destaque para a bela Debra Paget,
praticamente a repetir seu papel em Flechas de Fogo, como a irmã de Cão
Pequeno e interesse romântico do herói vivido por Wagner. Recomendo.
Poster de "A Face Oculta, de Brando
8 - A FACE
OCULTA/One-Eyed Jacks (1961) – Direção: Marlon Brando Outro Western em
superprodução que está em minha apreciação onde se tem o registro da única
experiência de Marlon Brando como diretor. Muitos apreciam "O Poderoso Chefão" como o melhor
filme de Brando, mas contesto um pouco isso, tendo em vista este excêntrico
trabalho do gênero onde o ator investiu cinco milhões de dólares, em dois anos
de trabalho. Foi uma produção tumultuada (era para Stanley Kubrick dirigir), e
das 35 horas de filme impresso, Brando selecionou material para cinco horas de
filme, que acabou sendo reduzido para 2h e 21 minutos de filme. Era para ter
sido o Western de maior duração da história se Brando não fosse obrigado a
reeditar sua duração. Além disso, tramas ligadas sobre a vingança me fascinam,
assim como a dualidade do caráter do ser humano quando se aplica no personagem
vivido por Karl Malden. Malden é bandido assaltante de bancos como Brando, e
acaba traindo este, seu melhor amigo, que passa cinco anos na prisão e jura
vingança por todos os anos que ficou no presídio, e quando finalmente o
reencontra, ele é um homem mudado, xerife de uma cidade, e respeitado pelo
povo. A questão fica se ele mudou moralmente ou isso não passa de uma fachada.
Brando sempre alegou que seu Western era um “assalto frontal ao tempo dos
clichês”.
9 - OS PROFISSIONAIS/The Professionals (1966) –
Direção: Richard Brooks Revisitado por mim
faz pouco tempo, não há a menor dúvida que esta obra de Brooks foi uma resposta
americana (uma das primeiras) para o Western italiano que já invadia as salas
de exibição, e também não foi pra menos, pois importaram até a beleza italiana
dos deuses Claudia Cardinale para se juntar as feras do cinema americano, como
Burt Lancaster, Lee Marvin, Robert Ryan, e o ator negro Woody Strode, este
excelente, mas infelizmente pouco valorizado. Um ótimo exemplar de tenacidade e
tensão, cuja trama vai adquirindo colorações políticas e éticas inesperadas,
mas com extraordinário espírito de aventura como jamais vista no gênero
americano. Destaque para a fotografia e para sua trilha sonora, de Maurice
Jarre.
10 - MEU ÓDIO SERÁ SUA HERANÇA/The Wild Bunch (1969) –
Direção: Sam Peckinpah O “clímax dos clímax” do gênero, como eu defino. Para os amantes de cinema,
e, sobretudo, do gênero que estamos debatendo, é a obra clímax da estilização
da violência, coreografada de forma ritualística em câmera lenta, evocando um
Oeste sujo e selvagem, sem qualquer idealismo romântico e lenda áurea dos
mitos, com personagens decadentes, anacrônicos, e desglamourizados. Causou
polêmica de fato, o que retardou o reconhecimento de Sam Peckinpah como um dos
grandes cineastas do gênero, pois acabou sendo cortados 56 minutos de sua
metragem original, o que provocou protestos do diretor e até mesmo por parte da
crítica, que não estava ainda acostumada com este excesso da violência nos
filmes. Outrora os ídolos do cinema americano, William Holden, Ernest Borgnine,
e Robert Ryan, três fantásticos atores (principalmente o terceiro, que atuou em
Hollywood sempre com muita competência e profissionalismo, sendo um dos meus
atores preferidos) estão soberbos e maravilhosos em seus papéis, arquétipos do
declínio e de toda decadência, que de uma maneira ou outra, desgraçadamente se
empenham em aventurar num último golpe de suas malditas vidas. Vale também
destacar a bela fotografia de Lucien Ballard.
ITALIANOS/EUROPEUS
1 - TRÊS HOMENS EM CONFLITO/Il buono, il brutto, il
cattivo (1966) – Direção: Sergio Leone
Foi o primeiro faroeste
italiano a me chamar a atenção justamente devido a falta de romancismo,
idealismo, lirismo, e todo tipo de folclore tão comumente acostumado nos
faroestes americanos. Propositalmente, o grande Sergio Leone soube o que fez ao
retratar o Velho Oeste do jeito que fosse condizer com os fatos, e descartando
mitos. A ganância e o individualismo exacerbado, pessoas querendo se dar bem à
custa de outras, são características bem acentuadas nas obras deste grande
cineasta, como vemos neste exemplar, revelando ao mundo um novo tipo de cowboy,
o mais distante possível de John Wayne, Gary Cooper, ou Randolph Scott, e seu
nome é um mito vivo – o americano Clint Eastwood. Junto a Lee Van Cleef e Eli
Wallach (maravilhoso como Tuco, o feio), formam um triunvirato de trapaças e
aventuras desmedidas, onde ao fim, o duelo a três é inevitável.
2 - DJANGO/Django (1966) – Direção: Sergio Corbucci Outra obra prima que
ajudou a consolidar o faroeste italiano na minha preferência. O mundo se rendeu
a um novo ídolo do Western europeu, e desta vez um genuíno italiano chamado
Franco Nero, um dos meus atores favoritos do gênero. Não há como não se
impressionar com uma figura calada e de toda de negro chegando a uma pequena
cidade carregando um caixão. Uma cidade dominada pelo terror da famigerada Ku
Klux Klan que para dominar o poder enfrenta bandidos mexicanos, e o estranho
Django está no meio de tudo isso para salvar a vida de uma estranha mulher, por
quem se apaixona ao seu modo. Corbucci dá a esta obra uma carga explosiva
acentuada, realçada pela antológica trilha sonora de Luis Bacalov.
3 - O DIA DA DESFORRA/La Resa dei Conti (1967) –
Direção: Sergio Sollima
Outro exemplar à italiana
do gênero que é um exercício psicológico de tensão, mas mantendo as
características do legítimo padrão do western italiano, trazendo o americano
Lee Van Cleef como um caçador de bandidos da elite que persegue um mexicano
(vivido pelo italiano Thomas Millan) acusado de violentar e matar uma menina.
Contudo após vários reveses, em que o caçador tem o seu orgulho ferido devido à
esperteza do mexicano, ele descobre que na verdade ele é inocente, vitima de
inescrupulosos da alta roda em que o caçador vivido por Cleef faz parte, e por
isso ele resolve ajudar o mexicano. Um dos melhores e mais expressivos filmes
do Western europeu, dirigido por um Sergio, mas que não é o Leone.
O "O Dólar Furado",
dos favoritos
do faroeste spaghetti
4 - O DÓLAR FURADO/Uno Dollaro Bucato (1965) – Direção:
Giorgio Ferroni
Giuliano Gemma é outro
dos meus heróis do gênero à italiana, e este filme, ainda que embora tenha
alguns clichês do Western americano, ainda assim vale o espetáculo, que como “Django”, de Corbucci, ajudou a
impulsionar a moda do bang bang a italiana. Impressionante como uma
moeda de um dólar no bolso acaba salvando a sua vida após ser abatido pelos
inimigos, e como se fosse Ullysses da “Odisseia” de Homero, volta para se
vingar dos homens que tentaram matá-lo, tiraram a vida de seu irmão, e raptaram
sua mulher. “O Dólar Furado” é
outra obra prima do gênero que ajudou no impulso do faroeste italiano.
5 - OS QUATRO MALDITOS/Los Cuetro Implacables (1965) –
Direção: Primo Zeglio
Não chega a ser um
clássico do gênero italiano, mas meus motivos para listá-lo são mais puramente
afetivos, pois foi um dos primeiros assistidos por mim ainda na infância, e em
ter como herói aqui Adam West, que no ano seguinte emplacaria como o mais
famoso Batman da TV. O cowboy aqui
vivido por West é quase limpinho, briga adoidado, mas a trama sobre um agente
da lei (vivido por West) que tentar impedir que quatro bandoleiros (daí o
título de “Quatro Malditos”, ou
no original, “Os Quatro Implacáveis”)
recebam a recompensa por terem capturado e matado um fugitivo da justiça que
era inocente não deixa de ser de toda interessante e é uma história bem
ritmada. Como não deixarão barato, os “quatro malditos” emboscam o agente da
lei, e este, terá que lutar por sua vida.
6 - POR UNS DÓLARES A MAIS/Per un pugno di dollar
(1964) – Direção: Sergio Leone
Leone parte com tudo
nesta obra desmistificadora dos mitos laureados do Velho Oeste. A ganância, o
individualismo, o dinheiro, surgindo a figura do 'caçador de recompensas', tão
enormemente explorado em outros filmes, contudo sem tanta convicção e realidade
como expõe Leone. Embora sem muitas afinidades, os personagens de Clint
Eastwood e Lee Van Cleef, por motivos diferentes, acabam esquecendo suas
diferenças e se unindo para enfrentar a quadrilha de Gian Maria Volonté, com a
intenção de dividir a recompensa por eles oferecida pela Lei. Outra obra
merecedora de destaque entre os grandes clássicos do gênero spaghetti de se fazer Western.
7 - ERA UMA VEZ NO OESTE/C'era una volta il West
(1968) – Direção: Sergio Leone
Outro exemplar, talvez o
mais popular, onde se seguiu toda a Trilogia de Leone (“Por um punhado de Dólares”, “Por uns Dólares a Mais” e “Três Homens em
Conflito”). Vale destacar que o roteiro foi escrito por Leone com colaboração
de Bernardo Bertolucci, com leves reminiscências do clássico americano “Johnny Guitar”, de Nicholas
Ray (1954). Foi uma febre ao ser lançado nos nossos cinemas em 1971, mas
infelizmente com cópias de 144 minutos devido à censura (a metragem original
aos propósitos do cineasta foi de 229, sendo reduzidas umas para 137, e outras
com 165 minutos, a versão apresentada no mercado de vídeo hoje). Uma trama com
muito sangue e sem qualquer moral, uma verdadeira crítica à mitologia do Oeste
em vez do antigo glamour dos faroestes americanos, retratando a passagem de
pioneiros para os tempos da civilização com a chegada dos trilhos das
ferrovias. Parece um paradoxo ao vermos Henry Fonda, outrora um representante
da mitologia clássica do Western Americano, o típico mocinho das telas, na pele
de um malfeitor sujo e cínico como Frank. Não foi a toa que Leone escolheu
Fonda, pois era um assíduo admirador deste ator. Charles Bronson na pele de um
pistoleiro, Harmônica (porque sempre toca esta gaita quando esta prestes a
matar), que busca vingança contra Frank, que matou seu irmão, se destaca pelo
caráter lacônico, de quase poucas falas, e de muito suspense de seu personagem,
assumindo uma atitude quase parecida com a de Sterling Hayden em “Johnny Guitar”, quando protege
a viúva Jill Mcbain, vivida por Claudia Cardinale. Mais do que uma
superprodução, é um Super-Western,
acabando por se consagrar como um dos exercícios mais ousados do cineasta
Sérgio Leone.
"Era Uma Vez no Oeste", sequencia inicial
9 - CAÇADA AO PISTOLEIRO/Un minuto per pregare, un
instante per morire (1968) – Direção: Franco Giraldi
Um Western italiano cheio
de tensão, com argumento freudiano à dimensão de tragédia grega, mas não
deixando de ser extremamente violento e desmistificador. Trata-se da história
do pistoleiro Clay McCord (vivido por Alex Cord), temido e odiado por muitos,
que tem sua cabeça a prêmio oferecido por um delegado corrupto de uma cidade
(vivido pelo ótimo Arthur Kennedy). Contudo, o delegado age fora da lei e vem a
intervir Lem Carter (o sempre brilhante Robert Ryan), governador do Novo
México, que oferece uma anistia ao pistoleiro, contudo alguns aventureiros não
querem saber e tentam emboscar McCord, que ainda enfrenta outro problema – ele
tem momentos de ataque epilético, e carrega o trauma pelo pai também ter tido
esse mesmo problema. Embora os atores principais sejam americanos, o filme
ainda conta com as presenças italianas de Nicoletta Machiavelli, e do ator
Mario Brega. Está entre meus colecionáveis.
10 - ADIOS SABATA/Indio Black, sai che ti dico: Sei un
gran figlio di... (1970) – Direção: Gianfranco Parolini
Como não podia deixar de
serem ao estilo italiano, trapaças, aventureiros sujos, e todo mundo querendo
se dar bem. É assim que funciona esta obra de Parolini, tendo como anti-herói o
aventureiro Sabata (na verdade, Indio Black no original), vivido pelo
excelente Yul Brynner, aqui ainda um tanto limpinho e barbeado como foi em Sete
Homens e Um Destino, em 1960. Sabata é um caçador de bandidos que se junta
a um vigarista, Ballantine (vivido por Dean Reed) e ao engraçado e cínico
revolucionário, o gordo Escudo (vivido por Ignazio Spalla) para combater as
forças do Imperador do México Maximiliano, e se apoderar de um carregamento de
ouro. Contudo, esta união de forças tem objetivos diversos. O destaque fica em
algumas situações engraçadas, quando o ladrão Ballantine tenta enganar seus
associados. Vale também a pena assistir “Sabata,
O Homem que Veio Para Matar” (que não tem a ver com o filme estrelado
por Brynner, apesar do mesmo nome do protagonista), estrelado por Lee Van
Cleef, onde se apresentam as mesmas situações humorísticas quando se trata de
bandido enganar o outro, afinal, quem disse que existe honra entre ladrões?
B: Quais você acha
que são os western mais subestimados de todos os tempos?
PT: Acentuo uma obra fordiana intitulada “Audazes e Malditos”, de 1960, que
trata da questão do racismo. Pela primeira vez, o Mestre John Ford desenvolveu
uma mensagem antirracista em um tom bem eloquente que chega a ser comovedor,
tendo como pano de fundo o ano de 1866, quando negros recém-libertados passam a
integrar regimentos de cavalarias comandados por oficiais brancos. Um deles, um
notável sargento vivido pelo brilhante Woody Strode, é acusado de um crime que
ele não cometeu, sendo levado à corte marcial por preconceito racial. Mas ele é
defendido por seu superior, vivido por Jeffrey Hunter. O relato do filme
(sempre reconstituindo os fatos em flashbacks) é tenso, épico, e de
uma solene dramática indescritível, que só um brilhante cineasta como Ford
poderia conceber, mas eu pessoalmente considero um de seus melhores trabalhos
junto às outras obras de requinte maior do diretor. Também “A Árvore dos Enforcados”, dirigido
por outro grande artesão dos westerns,
Delmer Daves em 1959, acredito um tanto subestimada por alguns críticos,
entretanto não poderia ter um protagonista mais humano em todos os aspectos do
que o médico Joe Frail, vivido por Gary Cooper em uma de suas últimas atuações.
Amargo, malquisto, cínico, mas ao mesmo tempo, não isento inteiramente de
altruísmo, procura esquecer um trauma do passado e tenta continuar a vida. Mas
ele percebe que nem tudo esta perdido, pois se renderá ao amor de uma imigrante
suíça que acaba salvando sua vida, vivida pela Maria Schell. Vale destacar a
bela canção interpretada por Marty Robbins. Outro western, desta vez europeu, que acho muito subestimado é “Os bravos não se rendem”, dirigido
por Robert Siodmak e Irving Lerner, que conta a trajetória do General Custer de
maneira realista e desmistificadora (nada a ver com o herói pintado por Raoul
Walsh no clássico “O Intrépido General
Custer”,com Errol Flynn, em 1945). Robert Shaw esta perfeito
como o famigerado militar em sua sede de glória, e a famosa batalha de Little
Big Horn. Contudo é um dos trabalhos menos badalados (mesmo com uma bela trilha
sonora), visto a índole verdadeira e descaracterizante do personagem, o que
pode não agradar a todos.
B: Sam Peckinpah e
Robert Altman foram meio que marginalizados por Hollywood. Mesmo com poucos
filmes sobre o tema western eles impactaram a estética do gênero para sempre.
Wild Bunch e Quando os Homens são Homens, são exemplos claros disso. Que grande
contribuição foi essa? E que outros diretores após essa geração conseguiram
essa façanha?
O genial Altman, um dos diretores que mudaram o western
PT: Conheço pouco o trabalho de Altman no gênero,
com exceção do “Oeste Selvagem”, estrelado
por Paul Newman, em 1976. Entretanto, posso adiantar que ambos os cineastas são
oriundos da televisão e dirigiram trabalhos gratificantes no gênero para a
telinha. Peckinpah chegou a dirigir episódios de “O Homem do Rifle” (com Chuck Connors) e “Paladino do Oeste” (com Richard Boone), e Altman episódios da
série “Bonanza”e “Lawman”. Acredito que a
questão da marginalização destes cineastas é que ambos foram sinceros demais em
suas obras, sem rodeios. Peckinpah recorreu à violência em “Meu ódio Será Sua Herança”,de
1969, e a partir daí, não foi só no gênero western
que se viu esta apelação do diretor que é consagrado como o “Poeta da
Violência”. Basta acessarmos seus outros ótimos trabalhos como "Tragam-me a Cabeça de Alfredo Garcia"(1974)
e "Sob o Domínio do Medo"(1972),
que poderemos ver também esta exaltação. Quanto a Altman, como vi “Oeste Selvagem”, senti a desmistificação
de uma lenda, no caso Buffalo Bill, e grande parte dos produtores embora saibam
que as lendas e mitos não correspondem à verdade, ainda assim preferem que as lendas
sejam impressas. Hollywood durante anos promoveu isso em seus westerns, e mesmo com o desenrolar das
mudanças graças aos faroestes italianos, a indústria de cinema não parecia
apoiar esta descaracterização dos mitos tão amados pelo folclore americano.
Contudo, a grande contribuição destes dois mestres foi tentarem fazer um novo
estilo de western, sem exaltação de
mitos ou heróis, sem áura romântica, propondo para as plateias mundiais que o
Velho Oeste também pode ser interessante se analisarmos seus personagens e o
meio social em que viveram. Acredito que Lawrence Kasdam (que realizou em 1985
o ótimo “Silverado”), que
também realizou pouquíssimos trabalhos no gênero (o último, “Wyatt Earp”, de 1994, com Kevin
Costner, que foi um fracasso), e atualmente Tarantino, vem conseguindo esta
proeza de impactar a estética, e por que não dizer, imortalizar o gênero.
B: Sabemos que
ainda existem produções western
tanto nos EUA quanto na Europa. Mesmo com Tarantino e outros diretores fazendo western
a sua maneira e em forma de homenagem, podemos afirmar que esse gênero morreu
ou ainda vai ressuscitar em uma grande e genial produção?
PT: Acredito que, na verdade, o western nunca morreu. Naturalmente as
produções de hoje são em menor escala, e não como era a mais de 50 ou 60 anos
atrás, época rica em criatividade e em franca produção, onde tínhamos cineastas
brilhantes como John Ford, Raoul Walsh, Howard Hawks, Anthony Mann, Delmer
Daves e claro, incluindo Peckinpah, Leone e outros mais. Mas de uma forma ou de
outra, o faroeste está vivo, só esta adormecido enquanto um cineasta fera como Tarantino ou como Clint Eastwood, a lenda viva, não rodarem novos trabalhos no
gênero (será que Clint pensaria em rodar um novo faroeste? Seria genial!). E
enquanto isso, também, novas produções são realizadas pela TV americana ou
mesmo para o cinema sem sabermos. Mas uma coisa é certa: este gênero
estritamente americano também batizado pelos italianos não morreu e nem morrerá
tão cedo se depender de cada fã e espectador como nós para divulgar, apreciar e
assistir. Podem acreditar!
B: Quais filmes western merecem destaque a partir dos anos 80 até
hoje, nos faça uma lista de alguns que são pouco conhecidos?
Willie Nelson em
"Justiça para um bravo"
PT: Não estou muito a par das novidades em
matéria de western nos últimos
tempos, mesmo porque sigo um esquema eclético focalizando em geral o cinema
antigo e todos os seus gêneros, mas naturalmente, o western tem um espaço com todo carinho dedicado. Entretanto, posso acentuar
alguns trabalhos do faroeste já tanto esquecidos na metade dos anos de 1980,
como “De Volta ao Oeste” (“Once
Upon a Texas Train”), de 1986, para a TV, dirigido por um dos grandes
especialistas do gênero, Burt Kennedy, e trazendo Richard Widmark (um notório Man
Of The West de primeira), Angie Dickinson, e o cantor Willie Nelson, além
de contar com presenças conhecidas como Chuck Connors, Stuart Whitman, Jack
Elam, Ken Curtis, Dub Taylor. No ano seguinte, o mesmo Willie Nelson foi o
protagonista de “Justiça para um Bravo”(“Red Headed Stranger”),
também realizado para a TV, onde contou com as presenças da bela Katharine Ross
(de “Butch Cassidy”) e do
excelente Royal Dano (cujo seu melhor papel de destaque foi no western “Irmão contra Irmão”, dirigido por
Robert Parrish, em 1958). Vale destacar também por esse período “O Álamo, 13 dias de Glória”, de
1987, que retrata a batalha do Álamo com mais fidelidade do que a versão
patriótica apresentada por John Wayne, em 1960, onde James Arness (da série de
TV Gunsmoke), interpreta Jim Bowie, Brian Keith como Davy Crockett,
Lorne Greene como Sam Huston (em seu último desempenho), e o inesquecível Raul
Julia como o general Santana. Em 1995, Jeff Bridges interpretou o temível Wild
Bil Hickcok na produção “Uma Lenda do
Oeste”, dirigida por Walter Hill, onde conta a trajetória
fidedigna de uma lenda, o mais distante possível de Gary Cooper na produção “Jornadas Heroicas”, de 1936, dirigida
por DeMille. Dos mais recentes que acredito que são ainda menos conhecidos, vale
destacar “Inferno no Faroeste”, de
2013, sob a direção de Roel Reiné, onde estrelam Mickey Rourke e Danny Trejo.
Parece-me que este western não chegou
as nossas salas de exibição.
B: Há um tempo eu
soube que Clint Eastwood escreveu uma carta a John Wayne pedindo a ele para
fazerem um filme juntos. Isso não aconteceu é claro. Caso acontecesse essa
produção seria ímpar e juntaria definitivamente os dois maiores ícones do western.
Um de cada estilo. E se no final do filme houvesse um duelo entre a dupla, quem
venceria?
Wayne e Clint,
o tão esperado duelo que nunca aconteceu
PT: Vixe, nem ouso te responder com segurança a
esta pergunta sem levar uma bala perdida (risos). Uma parada dura já que ambos
são dois gigantes do mesmo gênero, mas com estilos diferentes e épocas
diferentes. O mais engraçado é que, em 1989, dez anos após a morte de Wayne,
uma pesquisa realizada por uma revista de cinema apontou Clint Eastwood como o
novo sucessor de John Wayne. No entanto, Clint, apesar de admirar o bom e velho
Duke, jamais quis se comparar a ele ou sequer substituir John Wayne.
Clint tinha como modelo para o gênero o ator Gregory Peck, do qual considera
sua melhor atuação em “O Matador (“The
Gunfighter”). As performances vindas de Clint para compor seus durões
nos westerns, segundo ele, se
inspiravam em Gregory nesta obra dirigida por Henry King em 1951. É fato (e não
fita) que Clint enviou uma carta para o veterano Duke, propondo que
fizessem um filme juntos. Já pensou, Bino? Dois gigantes do gênero que talvez
pudesse precisar de duas telas do formato VistaVision para compor
tamanho encontro! (risos). Entretanto, Wayne, que vira “O Estranho Sem Nome”, a obra de Clint dirigida em 1973, não
gostou nem um pouco do estilo revisionista e violento deste western. Para Wayne, já foi difícil
filmar "Bravura Indômita",em
1969, tendo que se reinventar um pouco e quase recusou o papel que deu a ele
seu único Oscar como ator. Mas o gênero estava se desenvolvendo bem rápido, e
os faroestes estrelados por Wayne em épocas anteriores já ficavam obsoletos
para os novos padrões. Entretanto, Duke não só recusou o convite como
também aproveitou para criticar o trabalho de Clint Eastwood, que não lhe deu
ouvidos. A parceria não aconteceu e o maior prejudicado foi o público, ou, quem
sabe, o próprio Wayne. Portanto, por mais que eu adore John Wayne, acho que
Clint sacaria primeiro, ou quem sabe, por alguma "providência", um
empate técnico? (risos)
B: Para finalizar,
uma pergunta que será símbolo de todos os "Duelos" com entrevistados:
descreva você num grande filme?
PT: “Meu Ódio Será Sua Herança”. Não que
eu seja o “arquétipo da decadência” como os protagonistas da obra de Peckinpah,
que queriam realizar o último trabalho de suas vidas antes de se “aposentarem”,
mas eu sempre procuro investir nos negócios ou em qualquer situação da minha
vida como se fosse dar também o meu “último golpe”, ou concretizar meu “último
trabalho”. Isso não quer dizer, literalmente, que seja o último, mas quando
desejamos alcançar certos objetivos na vida com sucesso fica a lição que
devemos fazer o melhor do nosso melhor
em todos os nossos empreendimentos como se fosse o último. Os homens de Pike
Bishop (William Holden) não desistiram, e mesmo com o resultado que obtiveram
no final, eles foram determinados, e nós também não devemos desistir, mesmo que
nos sintamos decaídos em algum momento de nossas vidas. Assim, me descrevo em “The Wild Bunch”! "Meu Ódio Será Sua Herança"
“A The La’s é a [banda] que está mais próxima do sublime.”
Liam
Gallagher
O mais puro e original som saído diretamente de Liverpool e que marcou as gerações futuras de roqueiros. Quatro jovens rapazes, que, por um curto espaço de tempo, promoveram uma revolução na música pop. Não, não estamos falando dos Beatles. Outra banda da mesma cidade do noroeste da Inglaterra, guardadas as devidas proporções de abrangência e profusão, também teve papel fundamental para a linha evolutiva do rock feito na Terra da Rainha: a The La's.
Se Paul, John, George e Ringo transformaram a música mundial em menos de 10 anos, a atuação deste outro quarteto, liderados por Lee Mavers (voz e guitarra), mais Peter "Cammy" Cammell (guitarra), Neil Mavers (bateria) e John Power (baixo, vocais), foi ainda mais meteórica. Tanto que, diferentemente dos primeiros, autores de 13 discos de estúdio nos libertários anos 60, a The La’s registrou apenas um histórico e irreparável álbum no início da instável e inconstante última década do século passado. Tempo suficiente, contudo, para seu rock sintético, melodioso e inspirado influenciar toda a geração do rock britânico dos anos 90, a qual teria na figura da Oasis a sua maior representação. Aliás, tanto a banda dos irmãos Gallagher quanto outras como Blur, Ride, Lemonheads e Supergrass, que, juntamente com a leva do grunge norte-americano, dominaram a cena rock noventista. O self-titled da The La’s, o qual completa 30 anos de lançamento, ao lado do igualmente estreante da Stone Roses, de um ano antes, ajudariam a formatar a estrutura que o britpop passaria a ter a partir de então.
Esta perspectiva sonora passa, como não poderia deixar de ser, pelos originais rapazes de Liverpool. Melodias vocais apuradas, riffs criativos, reelaboração das bases do blues e a energia da Swingin’ London que remetem inevitavelmente a Fab Four. No entanto, o trunfo da The La’s vai além disso, uma vez que captam tudo aquilo que veio antes deles em termos de rock, como o glam, o punk, o pós-punk, o collage, o shoegaze e o indie. Isso faz com que o som do grupo, muito bem produzido pelo craque Steve Lillywhite junto com Mark Wallis, soe certeiro, objetivo, sem rodeios. Psicodélico na medida certa e com tudo no lugar: timbres, vocais, arranjos e instrumentação.
O quarteto liderado por L. Mavers: inconstância que lhes rendeu apenas um álbum
Rock, aliás, quando é bom, não tem muito o que se falar. Basta curtir. É o que faixas como a de abertura, “Son of a Gun” (rock no melhor estilo Buffalo Springfield), “I Can't Sleep” (cujo riff já ouvi de uma dita original banda brasileira...) e ”Timeless Melody” (mais Oasis, impossível) fazem: deixar quem as escuta sem palavras – porém, altamente empolgado. Que riffs grandiosos! A postura propositiva típica de um rock puro com seu saudável grau de afetação, mas despido de egocentrismo desnecessário. É rock bom e pronto! “Liberty Ship”, “Doledrum” e “Feelin'” são aulas de como fazer um country-rock. Igual pedagogia são as bluesers “I.O.U.” e “Failure”, esta última, com uma pegada do psychobilly da The Cramps. Nesta linha também, mas retrazendo a atmosfera picaresca de Syd Barrett, “Freedom Song”, outra excelente. Ainda, a balada “Looking Glass”, que encerra dignamente o álbum sob de uma melodiosa base de violão e os vocais saborosamente insolentes de Lee Mavers.
O conceito da The La's foi seguido, naqueles anos 90 de ascensão do tecno e da acid house, por outros artistas que não deixaram a música pop degringolar e repuseram o rock no seu lugar de destaque. Repetindo a "volta às raízes" que os Bealtes propuseram em “Let It Be”, os tarimbados R.E.M. (“Monster”, 1993) e Titãs (“Tudo ao Mesmo Tempo Agora”, 1991) seguiram a linha da The La’s de reencontrar a “pureza perdida”. Para novas bandas de então, como The Strokes, The Killers e Kings of Leon, pode-se dizer ainda mais fundamental a proposta desses irmãos dos Beatles. Seja de maneira mais conceitual ou por influência direta, o fato e que seu único e exemplar disco relembrou ao gênero rock, o qual recorrentemente se desvirtua demais de si mesmo, que “menos é mais”, que o “certo é o fácil”. Ter entendido este ensinamento talvez tenha sido o grande mérito da Oasis, cujo sucesso mundial provavelmente seria ameaçado caso a própria The La’s não ficasse somente no primeiro tiro, o que, mesmo cultuados, inegavelmente lhes limitou ao meio underground.
Tá certo: é exagero comparar a The La’s aos autores de "Yesterday", afinal, esta disputa talvez seja somente cabível quando se fala em Rolling Stones. Mas que a The La’s é a segunda melhor banda de Liverpool (junto com a Echo & the Bunnymen, claro), isso é bem provável. Rankings como dos 40 grandes álbuns únicos de um artista/banda da Rolling Stone, em que o disco aparece em 13º, e da Pitchfork, no qual é apontado como um dos principais álbuns do britpop de todos os tempos, não deixam mentir. Por motivos pouco explicados, logo após lançá-lo, Mavers encheu-se e quebrou os pratos com os parceiros. A cara dos anos 90: instável e inconstante. Mesmo tendo havido esporádicos retornos posteriormente, o principal resultado daquilo que produziram fez com que virassem lenda, que é este incrível álbum. O primeiro e, como o próprio nome da banda sugere, “último”. E se não fosse o azar de terem nascido na mesma terra dos Beatles, eles seriam certamente os primeiros.
A psichodelic era dos anos 60,
sensacionalmente rica, produziu alguns dos maiores talentos da música mundial. John Lennon, Paul McCartney, Jimmi Hendrix, Sid Barret, Ray Davies, Brian Jones, Arthur Lee, Arnaldo Baptista, Lou Reed, Rocky Erikson, Frank Zappae mais uma
dezena de cabeças geniais. Todos produziram, quando não vários, pelo menos um
trabalho fundamental para a história da música pop. Porém, um destes expoentes,
também surgido à época, criou algo sem precedente dentro da discografia do rock.
Ele é Brian Wilson, líder e principal compositor do The Beach Boys. A obra: “Pet Sounds”, de 1966, uma joia rara da
música do século XX, comparável aos mitológicos "Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band" ou "The Dark Side of the Moon". Requintado e perfeito do início ao
fim, é repleto de detalhismos que somente a mente obsessiva de Brian Wilson
poderia conceber, o que, somado a seu empenho, conhecimento técnico e alta
sensibilidade, resultou num disco inovador em técnicas de gravação, conceito
temático, estrutura composicional, instrumentalização, arranjos, entre outros
aspectos.
“Pet Sounds”,
diz a lenda, surgiu de um sentimento de competitividade alimentado por Brian,
um perturbado jovem com então 24 anos cujo quadro esquizofrênico era
danosamente potencializado pelo vício em LSD. Para piorar: a relação com o pai
era péssima, a ponto de, numa ocasião de briga entre os dois, levar uma pancada
tão forte que o deixou surdo de um dos ouvidos – motivo pelo qual, reza outra
lenda, teria concebido e gravado “Pet Sounds” em mono, uma vez que não conseguia
perceber fisicamente os sons em estéreo. Todo este quadro e o temperamento
vulcânico fizeram com que Brian, maravilhado mas enciumado com o resultado que
os Beatles haviam atingido com seu “Rubber Soul”, lançado cinco meses antes, se
pusesse na missão de superar a obra dos rapazes de Liverpool.
E conseguiu.
“Pet Sounds”
é uma pequena sinfonia barroco-pop jamais superada, nem pelo próprio Beach Boys.
Brian deixa para trás a pecha de mera banda de surf music creditada a eles (o que já se vinha notando desde “The
Beach Boys' Christmas Album”, trabalho
anterior da banda) e se lança na composição, produção, arranjo e
condução de todo o trabalho, resultado de longas e exaustivas pesquisas à
teoria musical e às musicas erudita, folclórica, jazz e pop. O desbunde já
começa na faixa de abertura, a clássica “Wouldn't It Be Nice”. O som fino e
lúdico do harpschord executa uma ciranda,
que faz a abertura de “Pet...” lembrar a de outro LP histórico da época, "The Velvet Underground and Nico", de um ano depois, cujo sonzinho inicial vem de
outras cordas, as de uma delicada caixinha de música. Mas a semelhança para por
aí, pois, se “Sunday Morning” do Velvet varia para um sereno pop-jazz francês,
a dos Beach Boys ganha amplitude e cor. O som do cravorepete o tempo três vezes
até que é interrompido bruscamente por um forte estrondo seco em staccato da percussão. Aquele contraste
entre o agudo cristalino das cordas e o timbre grave da batida faz da abertura
do disco uma das mais belas, conceituais e inteligentes da discografia rock.
Além disso, a música que se desenvolve a partir dali é absolutamente linda.
Elevando o tom, joga o ouvinte num jardim da infância de sons vibrantes e
coloridos num ritmo de banda marcial, onde já se nota que Brian vinha com tudo
em seu desafio pessoal: som cheio, polifonia, coros em contracanto, abundância
de instrumentos e ornados, consonância e equilíbrio total entre graves e
agudos.
Um dos
principais recursos utilizados por Brian no disco para obter esse resultado é a
concepção múltipla da obra como um todo, seja na unidade entre as faixas, na
harmonia ou no arranjo das peças. Bem ao estilo da música barroca dos séculos
XVII e XVIII, ele vale-se da variedade instrumental e, numa decorrência mais
impressionista, de timbres, uma vez que extrai sonoridades de toda a escala
diatônica através de cordas, sopros, percussão, vozes, teclados e até
eletrônicos. Há vários instrumentos exóticos, como mandolin, harpa francesa, ukulele, english corn, banjo, tack piano e temple block. A obsessão de Brian de superar o Fab Four, sabendo da prática dos "rivais" de valerem-se
de variados instrumentos em estúdio, pode ser constatada, inclusive, na
quantidade de instrumentos usados em todo o disco: cerca de 40, tocados por
quase 70 músicos diferentes, incluindo a banda em si: os irmãos Carl (vocais,
guitarra) e Dennis Wilson (vocais, bateria) mais Al Jardine (vocais, tamborim),
Bruce Johnston e Mike Love (ambos, vocais), além do próprio Brian (vocais,
órgão, piano). A belíssima balada “You Still Believe in Me”, das minhas
preferidas, vale-se deste conceito polifônico. Além de baixar o tom da faixa
inicial, explora mais ainda a riqueza dos ornamentos barrocos, como na
complexidade melódica dos corais, que funcionam como um instrumento de teclado
que acompanha o toque do cravo. A percussão, detalhada, vai do sutil som de
sininho a tambores de orquestra, os quais dão um final épico à faixa em curtos
rufares.
Outro trunfo
do disco, na tentativa de Brian de superar até a produção de George Martin para
com os Beatles, é a adoção do modelo de gravação multitrack. Usando vários takes
de vozes e instrumentos tocando ao mesmo tempo e uns sobre os outros, consegue
atingir, assim, timbres únicos. Isso foi possível pelo ouvido apurado de Brian
que, grande fã do produtor Phil Spector, “inventor” das teenage symphonies nos anos 50, chupou-lhe a ideia do “wall of sound”, refinando-a. A “muralha
de som” de Spector aproveitava o estúdio como instrumento, explorando novas
combinações de sons que surgem a partir do uso de diversos instrumentos
elétricos e vozes em conjunto, combinando-os com ecos e reverberações. Isso se
nota em todo o disco, como em “That’s Not Me”, outra espetacular. Lindíssima a
voz de Love, que, limpa e sem overdub,
desenha toda a canção, enquanto a base se sustenta num órgão, nos acordes de ukulele (guitarrinha havaiana) e na combinação
grave/agudo da percussão, em que o tambor e o chocalho ditam o ritmo. “Don't
Talk (Put Your Head on My Shoulder)” é outra balada que faz, novamente, cair o
andamento para um ar melancólico. Mas que balada! Tristonha, romântica e, como
num ornamento rococó, toda cheia de enlevos. Nesta, Brian capricha na
orquestração.
Por falar em
orquestração, duas merecem destaque neste aspecto. A primeira, a não menos
lírica “I’m Waiting for the Day”, que oscila entre um ritmo de balada, levada
por um suave órgão, e momentos de empolgação, quando, lindamente, vozes em
contracanto se juntam a flautas e uma percussão densa em que o tímpano se
destaca na marcação. A orquestra, no entanto, entra por apenas rápidos
segundos, suficientes para pintar a música com alguns traços, quando, lá para o
fim da faixa, logo após Brian cantar com doçura os versos: “I’m waiting for the
day when you can love again”, violinos e cellos,
sem dar pausa entre o fim da vibração da voz e o ataque de suas cordas, aparecem
juntos em um fraseado lírico como uma suave nuvem sonora, integrando voz e
instrumentos. Depois desse breve sonho, estes e todos os outros instrumentos voltam
para encerrar a canção em tom maior, com a voz solo cantando: “You didn't think that/ I could sit around
and let him work...”, enquanto um dos coros faz: “Ah aaah ah/ ah, aaah, ah...”, em três tempos, e o outro vocalisa: “doo- doo/ doo-roo/ doo- doo/ doo-roo...”,
em dois. Estupendo.
A segunda
especial em termos de arregimentação é "Let's Go Away for Awhile”. Como a
faixa-título – uma rumba estilizada em que o compositor se vale da diversidade
de instrumentos que vão desde sopros, como sax alto e trombone, e percussão,
reco-reco e (pasmem!) latas de Coca-Cola, até um método de filtragem de entrada
de som do alto-falante, que dá uma sonoridade específica à guitarra –, é
instrumental, prestando mais um tributo à tradição medieval, uma vez que o
conceito de dissociar música da dança ou do teatro iniciou-se, justamente, com
mestres como Scarlatti e Vivaldi nesta época. Perfeita em harmonia, é quase um pequeno concerto para vibrafone, que conta também com um breve solo de bloco de
madeira, finalizando com um arrepiante diálogo entre bateria e tímpano de
orquestra, sustentados por um arranjo de cordas de caráter grandioso.
Depois do tom
médio de “Let’s...”, o ânimo volta às alturas com a graciosa “Sloop John B”. Na
introdução, outra clássica no disco, um toque de sininho e uma nota de flauta que
se estende, ambos marcados pelo tic-tac
de um metrônomo, dando início à alegre canção, com Brian, Love e Carl
alternando a voz solo e na qual não falta beleza no arranjo das vozes em
contraponto. Brian consegue dar colorações lúdicas a uma canção folclórica
tradicional do Caribe, criando uma música em que dá a impressão de que toda a
caixa de brinquedos ganhou vida e saiu a tocar pelo chão do quarto, cada um com
um instrumento: o soldadinho do Forte Apache com a tuba, o marinheiro com o
tamborim, o indiozinho Pele-Vermelha com os sinos, o playmobil com o clarinete e assim por diante.
Para os
apaixonados por “Pet Sounds” como eu, que o conhecem de trás pra diante, o
final da extrovertida “Sloop...” traz uma emoção especial, pois é sinal de que
vem, na sequência, “God Only Knows”. Magistral, numa palavra. A música que fez
o gênio Paul McCartney sentir inveja alinha-se em magnitude a ícones da música
moderna como "Like a Rolling Stone", "Bolero", "A Day in the Life", "Águas de Março" ou "Summertime". Com uma aura ao mesmo tempo celestial, emocionada e
suplicante, “God...” não poupa o coração dos diletantes, pois o órgão e o toque
do oboé já largam entoando em alto e bom som. Na suave percussão, chocalhos e temple block. As cordas e sopros,
igualmente perfeitos. A voz de Carl transmite uma emoção intensa e não menos
lírica. Após uma segunda parte em que sobe uma gradação, adensando a
emotividade, a faixa se encerra sob belíssimas frases dos sopros e uma
orquestração a rigor, quando as vozes de Carl, Brian e Johnston se misturam,
criando um efeito onírico tal como um Cantus
Firmus, tipo de melodia extraída dos cantochões polifônicos medievos em
louvor ao Senhor. Impossível não lembrar, ouvindo-a, da famosa sequência do filme "Boogie Nights" em que a câmera sobrevoa os cenários mostrando os rumos
tomados na vida de cada personagem, como se Deus estivesse vendo o destino de todos
e dissesse: “só Eu sei”.
“I Know
There's an Answer” (que, nas extras, vem na versão “Hang on to Your Ego“, com
mesma melodia e letra diferente) mantém a beleza polifônica e reforça uma outra
base conceitual do disco: a “teoria dos afetos”. Princípio básico da música
barroca, estabelece correspondência entre os sentimentos e os estados de
espírito humanos. A alegria, consonante, por exemplo, é expressa através dos
tons maiores, acontecendo o inverso para o sentimento de tristeza, em matizes
menores e dissonantes em forma. Por isso, as idas e vindas durante todo o disco
de temas calmos e/ou românticos alternados com outros alegres e mais pulsantes.
Isso que acontece novamente com a “agitada” “Here Today”, que antecede outra
obra-prima de Brian e Cia.: o baladão “I Just Wasn't Made for These Times”.
Com base de cravo, num clima dos oratórios de Bach e Häendel, percussão que
equilibra temple blocks, bateria e
tímpanos, além de impressionantes contracantos, traz ainda uma inovação em
termos de música pop: o electro-theremin,
sintetizador muito usado pela vanguarda erudita da eletroacústica que pouco (ou
nunca) havia sido usado em rock até então. E Brian não só usa como,
inteligentemente, aplica-o de uma forma genial, pois, integrando uma ferramenta
sonora moderna a outras marcantes da Idade Média (como o cravo e o tímpano), a
faz homogeneizar-se ao coro, como se instrumento e voz, natureza e espírito,
Deus e homem fossem a mesma matéria.
Se os Beatles de “Rubber...” louvavam o amor à sua Michelle, Brian, em mais uma estocada, vinha com a lenta e definitiva “Caroline No” com suas combinações de bongô/chocalho e hammond mantendo a base, além do engenhoso solo de cello com trombone, desfechando vitoriosamente o LP original.
.....................................
Se parasse por aí, já estava de bom tamanho, mas até os extras são dignos de nota. Haja visto a curta e brilhante “Unreleased Backgrounds”, toda a capella e na qual Brian evoca os mais ricos motetos barrocos – claro, numa roupagem pop e com a cara dele. Afinadíssimo, ele puxa um “lá”, prolongando seu corpo e baixando gradualmente a escala por cerca de 15 segundos até cair totalmente. O “good Idea”, ouvido ao fundo dito por algum dos integrantes da banda no estúdio mostra que a coisa agradou, motivando todos a se juntarem num coro. Eles exercitam melismas com acidentes, formando um verdadeiro canto gregoriano moderno. Lindíssimo. Depois disso, ainda há a ótima instrumental “Trombone Dixie”, em que, de uma feita, homenageiam o célebre bluesman Willie Dixie e evidenciam a sutil fronteira entre o folk e o erudito.
Brian Wilson vencera o desafio a que ele mesmo se propôs: apenas cinco meses depois, os Beach Boys superavam com “Pet Sounds” os Beatles de “Rubber Soul”. A história da música pop nunca mais seria a mesma, tendo em vista a alta influência deste trabalho para uma infinidade de outros artistas, que vão desde Zombies, Pink Floyd e R.E.M., passando por Van Morisson, Genesis, Blur e, claro, os próprios Beatles. Mas a instabilidade emocional e o vício em drogas de Brian não o deixariam prosseguir combatendo no front da música pop – pelo menos, não à altura de Lennon, McCartney, Harrison e Ringo. Três meses adiante, o Quarteto de Liverpool se reinventa novamente e lança o espetacular “Revolver”; no ano seguinte, o histórico “Sgt. Peppers...”; logo em seguida, emendam o fecundo “Álbum Branco”. Brian perde o passo e não consegue mais conceber uma obra com início, meio e fim, quanto menos uma grandiosa como a que criou. Mas, para sorte da humanidade, havia dado tempo do mundo conhecer “Pet Sounds”, o álbum que é mais do que um “disco de cabeceira”, mas os verdadeiros “sons de estimação”.
Não como John
ex-Beatle e Yoko ex-Plastic Ono Band.
É apenas nós dois,
e nossa posição foi a
de que,
se o disco não vendesse,
isso significava que as pessoas
não querem
saber sobre John e Yoko.”
John Lennon,
na histórica última entrevista
à Rolling Stone em maio de 1980
“Eu acho que John está aqui
conosco hoje.
Ambos, John e eu, sempre nos sentimos muito orgulhosos
e felizes
por fazermos parte da raça humana.
E ele fez uma boa música
para a Terra e para
o universo.”
Yoko Ono,
ao receber o Grammy de Álbum do Ano
por “Double
Fantasy” em fevereiro de 1981
Nesta semana, eu não poderia colocar outro disco entre os meus
favoritos de todos os tempos que não fosse esta maravilha de “Double Fantasy”, o último disco de John Lennon. Por todos os motivos do
mundo. Inclusive por ser a semana do aniversário dele. E por ser um disco que
fala de uma coisa muito em desuso hoje em dia: relacionamentos que dão certo,
apesar de tudo. E não briguem comigo, pois acho que a Yoko tem tudo a ver com
este disco e com sua proposta. Montado como uma crônica da vida de um casal
normal – mais ou menos, né? Afinal, eles eram John e Yoko –, o disco passeia
pelas várias fases legais e outras nem tanto do cotidiano. Coisa que muita
gente não quer nem ver pintada.
Vamos começar com “(Just Like) Starting Over”, o primeiro grande
sucesso do disco. John diz nela que, mesmo que se conheçam há tempos e já
tenham atravessado poucas e boas, “É como
se nós estivéssemos nos apaixonando de novo/ será como começar de novo”.
Claro que no caso deles, um ex-Beatle e uma artista plástica de classe alta
japonesa, as coisas ficam mais fáceis, mas a luta com o dia-a-dia é a mesma. Lá
pelas tantas, John diz pra Yoko: “Por que
não nos mandamos sozinhos/ Viajamos para algum lugar muito, muito longe/
Estaremos juntos por nós mesmos/ como fazíamos nos velhos tempos”. A velha
tática de escapar da rotina. Só que, aqui, o lance é estar juntos.
“Kiss Kiss Kiss” traz Yoko pedindo pra John beijá-la, tocá-la, dar-lhe
carinho num clima new wave (estilo
musical de sucesso na época). Durante a canção, Yoko lhe pede atenção para que
este amor não se perca. Como na vida real, os beijos e os carinhos levam até o
orgasmo, que é explícito. Pelo menos, em japonês.
“Cleanup Time” já traz John contando suas vicissitudes caseiras.
Naquele tempo, Yoko foi cuidar das finanças da família, enquanto John ficou
responsável pelo filho Sean e pela casa. “A
rainha está na casa da moeda/ contando o dinheiro/ o rei está em casa fazendo
pão e mel/ sem amigos e até agora sem inimigos/ completamente livres/ Sem ratos
a bordo do navio mágico de harmonia (perfeita)”. A perfeição da harmonia
está entre parênteses porque nada é realmente perfeito. Enquanto “Starting
Over” fazia a apologia da viagem para fugir da rotina, em “Cleanup Time”, John
garante que “Não interessa quão longe
viajemos/ Onde nós formos/ O centro do nosso círculo/ será sempre nosso lar”.
O casal se entocou no seu apartamento no Edifício Dakota durante os anos em que
John esteve fora do circuito.
Depois dessa lição caseira de felicidade, as coisas começam a pesar.
Yoko vem com “Give me Something”. E as reclamações aparecem com tudo: “A comida está fria/ Seus olhos estão frios/
A janela é fria/ A cama é fria/ Me dê alguma coisa que não esteja fria, me dê”.
É bom lembrar que Yoko fez parte daquelas famílias japonesas que criaram suas
filhas para o casamento, mas que piraram no meio do caminho. Ela se envolveu
com artes plásticas, teve uma filha e começou seu caso com John enquanto ele
estava casado. O feminismo estava em seu DNA. No final, ela afirma: “Te dei minhas batidas do coração/ e um
pouco de lágrimas e carne/ não é muito, mas enquanto estiver aí/ você pode
pegar”. Tudo isso num cenário novamente new
wave. É de se notar que, enquanto John é mais tradicional em suas escolhas
musicais, Yoko sempre circulou pela vanguarda.
Depois desta reclamação, ele se dá conta de que as coisas não estão exatamente
muito bem e diz: “Estou perdendo você”
numa batida blues. A música, “I’m Losing You”, conta um pouco do que foi o
famoso “Lost Weekend” de John em 1974, quando se separou de Yoko e tomou todas
ao lado de bebuns juramentados como Ringo Starr, Harry Nilsson, Elton John, Keith Moon, entre outros menos cotados. Pra começar, ele diz que: “Aqui em um quarto estranho/ no final da
tarde/ O que estou fazendo aqui?/ Não tem dúvidas sobre isso/ Estou perdendo
você/ De alguma maneira, as linhas se cruzaram/ A comunicação se perdeu/ Nem
consigo falar contigo pelo telefone/ apenas tenho de gritar/ que estou perdendo
você”. A dor de John é palpável, assim como as guitarras lancinantes de
Hugh McCraken, Earl Slick e do próprio John. Ele tenta se defender, afirmando
que “você diz que não está ganhando o
suficiente/ Mas eu te lembro de todas as coisas ruins/ Então que diabo tenho de
fazer?/ Botar um bandaid?/ E parar
com o sangramento agora/ parar com o sangramento agora”. No final da
canção, John tenta novamente se defender dizendo: “Sei que te magoei então/ mas isso foi muito tempo atrás/ E bem, você
ainda tem de carregar esta cruz?/ Não quero ouvir sobre isso/ Estou perdendo
você”.
O curioso é que, na mesma batida firme e no tempo de Andy Newmark, Yoko
dá sua versão da história. Em “I’m Moving On”, ela mantém sua postura de
confronto. “Guarde sua conversinha suave
pra quando estiver paquerando/ Guarde seus beijos de segunda-feira para sua
dama de vidro/ Quero a verdade e nada mais/ Estou indo embora, estou indo embora,
você está ficando chato”. Ao contrário de todo o disco – e mantendo sua
postura de sempre –, Yoko foge da vanguarda e da modernidade da new wave daquele momento e segue sua
diatribe na batida do blues, mostrando que o sofrimento é dos dois.
Para aliviar a pressão, John faz sua homenagem ao filho Sean, então com
cinco anos de idade. “Beautiful Boy” inicia com o pai dizendo ao filho para “Fechar os olhos/ não ter medo/ O monstro se
foi/ está indo embora e seu pai está aqui”. Os steel drums de Robert Greenidge dão a medida da suavidade da
canção. Mesmo assim, algo dizia a John que as coisas não estavam bem. Em
diversos momentos do disco, tanto ele quanto Yoko, soltam pistas de que havia
uma ameaça no ar. “No oceano, navegando
pra longe/ mal posso esperar/ ver você crescer/ mas acho que ambos deveremos
ser pacientes”. E a premonição se consuma quando afirma: “Antes de atravessar a rua/ pegue minha mão/a
vida é o que acontece a você/ enquanto você está ocupado/ fazendo outros
planos”. É bom lembrar que, na noite em que foi assassinado, John e Yoko
voltavam do estúdio onde mixavam seu próximo disco, “Milk and Honey”, lançado
postumamente.
“Watching the Wheels” é, provavelmente, a melhor música de todo o
disco. Usando a metáfora de uma roda gigante como o movimento da vida, John faz
um inventário da atitude das pessoas, fãs e jornalistas em relação ao seu
sumiço. “As pessoas dizem que estou louco
fazendo o que faço/ Bem, eles me dão todos os tipos de avisos pra me salvar a
da ruína/ Quando digo que estou ok, eles me olham de um jeito estranho/
certamente você não está feliz, não está mais jogando”. No refrão, ele
reforça sua postura: “Estou apenas
sentado olhando a roda gigante girando e girando/ Eu realmente adoro vê-la
rolar/ Não mais andando no carrossel/ eu apenas tive de deixar ir embora”.
O oberheim de Ed Walsh percorre toda a música, enquanto John faz o tema ao
piano. Outro destaque é para o baixo sempre presente de Tony Levin.
“Yes, I’m your Angel” traz Yoko brincando de jazz da década de 30, meio Billie Holiday, meio Bessie Smith (sem, é claro, o poder vocal destas duas
cantoras). Até parece uma daquelas paródias jazzísticas que o grupo Queen fazia
em seus discos dos anos 70, “A Night at the Opera” e “A Day at the Races”. A
letra fala de um amor de conto de fadas que Yoko usa para dar um relax neste disco, onde o relacionamento
entre homem e mulher, às vezes, chega a momentos muito difíceis.
“Woman” é simplesmente a maior declaração de amor que um cantor e
compositor já fez para sua amada perpetrada em disco. Não somente porque tem um
clima romântico, mas porque John admite suas falhas na condução do sucesso e da
fama e porque dá o crédito a Yoko por tê-lo colocado no caminho certo. “Mulher, sei que você entende/ a criança
dentro do homem/ por favor, lembre que minha vida está em suas mãos”.
Depois de dizer isso, sobra muito pouco para John entregar. E ele consegue: “Mulher, deixe-me explicar/ Nunca pretendi
te causar sofrimento ou dor/ então deixe-me dizer de novo, de novo, de novo/ Te
amo agora e pra sempre”. Ao ouvir com fones, vocês vão notar os Benny
Cummings Singers, um coral de igreja que participa sutilmente.
O disco até poderia terminar aqui tamanha a carga emocional que esta
canção carrega. Mas Yoko ainda fala de seus “meninos” John e Sean em “Beautiful
Boys”. Do filho, ela diz que “você é um
menino bonito/ com todos os teus pequenos brinquedos/ teus olhos tem visto o
mundo/ apesar de ter apenas quatro anos de idade... Por favor, nunca tenha medo
de chorar”. Já a respeito de John, Yoko afirma que “sua mente mudou o mundo/ e agora você tem quarenta anos de idade/ você
tem tudo o que conseguir carregar/ e ainda assim se sentir vazio/ Nunca tenha
medo de voar”. O violão clássico de McCracken se mistura ao baixo fretless de Levin e aos teclados de Walsh
dando um clima soturno à canção.
Na última participação de John no disco, a pop music beatelesca volta com “Dear Yoko”, outra declaração de
amor, embalada numa faixa dançante e onde John retoma a harmônica dos velhos
tempos, mesclada com as guitarras de Slick e McCracken, dois mestres dos
estúdios. A canção chega a ser bobinha em alguns momentos como “mesmo quando eu vejo TV/ Tem um buraco onde
você deveria estar/ Não tem ninguém deitado perto de mim, Yoko”. “Double
Fantasy” também é um disco interessante porque alterna estes momentos mais
“pesados”, de dificuldade no relacionamento de um casal, com climas mais
animados, pra cima.
A influência da cultura japonesa na vida Yoko se faz presente em “Every
Man Has a Woman Who Loves Him”, uma afirmação que eu realmente gostaria que
existisse. Os teclados e as guitarras tecem uma teia de informação musical
nipônica, enquanto as batidas de Newmark e o baixo de Levin marcam o ritmo. “Todo homem tem uma mulher que lhe ama/ na
chuva ou no sol, na vida ou na morte/ se ele a encontrar em sua vida/ ele
saberá ao colocar o ouvido em seu seio”. Depois, ela troca a perspectiva,
falando da mulher: “Toda mulher tem um
homem que a ama/ ao levantar ou cair na sua vida ou na morte/ e se ela o
encontrar em sua vida/ Ela vai saber ao olhar em seus olhos”. No refrão,
ela é quem faz o mea culpa: “Por que fico circulando quando sei que tu
és a pessoa/ Por que eu corro quando tenho vontade de te abraçar?”.
O impressionante é que, ao chegar o final de “Double Fantasy”, Yoko
tenha feito um exercício de premonição absoluto, sem imaginar o que iria
acontecer. “Hard Times Are Over” ou “Os Tempos Difíceis Terminaram”. Num tom
celebratório, Yoko começa dizendo que “tem
sido muito difícil/ mas está ficando mais fácil agora/ Os tempos difíceis
terminaram, terminaram por um tempo”. Mal sabia ela que, dois meses depois
do disco ter sido lançado, Mark David Chapman faria todo aquele estrago na vida
da gente em dezembro daquele mesmo ano. Com solo de sax de David Tofani, a
canção usa os backing vocals para dar
aquele astral de fim de disco. No relançamento do CD, ainda constam uma música
que John estava terminando, “Help Me to Help Myself”, e a criticada “Walking on
Thin Ice”, cuja mixagem encerrou no dia da morte de John e que Yoko lançou em fevereiro
de 1981.
Além deste tom “cinema verité”
de todo o disco, quando nem John nem Yoko escondem seus problemas e suas
dificuldades, “Double Fantasy” tem a seu favor uma divisão bem clara de
sonoridades: John mais clássico, tanto rock quanto pop, e Yoko trafegando com
desenvoltura pela vanguarda e pelo new wave,
muito em moda na época e cujos praticantes – especialmente The B-52’s – citavam
nominalmente Yoko como grande influência.
**************************
FAIXAS:
1. (Just Like)
Starting Over - 3:56
2. Kiss Kiss Kiss - 2:41
3. Cleanup Time - 2:58
4. Give Me Something -
1:34
5. I'm Losing You - 3:57
6. I'm Moving On - 2:21
7. Beautiful Boy
(Darling Boy) - 4:05
8. Watching the Wheels
- 3:59
9. Yes, I'm Your Angel
- 3:09
10. Woman - 3:32
11. Beautiful Boys - 2:55
12. Dear Yoko - 2:34
13. Every Man Has a
Woman Who Loves Him - 4:03
14. Hard Times Are
Over - 3:19
Faixas inclusas na versão em CD,
de 2000:
15. Help Me to Help
Myself - 2:37
16. Walking on Thin
Ice - 6:00
todas as faixas compostas por
John Lennon e Yoko Ono