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quarta-feira, 30 de agosto de 2017

Música da Cabeça - Programa #22


Aqui a gente leva a música na cabeça e no peito. No peito, sim! Porque no programa de hoje a gente vai divulgar o vencedor da nossa promoção junto a Regentag, que dará uma camiseta com a estampa daquele artista que não sai da cabeça dos nossos ouvintes. Além, é claro, de muita informação, curiosidades e elas: as músicas. Não percam! É hoje, às 21h, na Rádio Elétrica. Produção e apresentação: Daniel Rodrigues.


Ouça: programa Música da Cabeça #22

cotidianas #525 - Dor dos Diabos



Mais uma noite.
Mais um plantão.
As noites do meu plantão costumavam ser tranquilas, silenciosas, até chatas pra ser bem sincera. A maioria dos pacientes, pessoas de idade, dormiam cedo fosse pelo avanço da idade que já lhes diminuía a energia e o vigor para ficaram acordados até tarde, fosse pelo efeito de seus medicamentos. E assim as noites se passavam na clínica: uma medicação a ser administrada aqui, um que pedia um copo d'água ali, um outro que reclamava de frio e as coisas iam como sempre. De vez em quando um gemia, reclamava alguma dor mas na maioria das vezes ou paravam sozinhos depois de algum tempo ou, mais carentes na verdade de alguma atenção do que propriamente com algum sofrimento, sossegavam com um afago ou uma palavra de conforto. Por isso, em princípio, nem estranhei quando a senhorinha do leito 32 começou a grunhir e praguejar alguma coisa. ela sempre o fazia. Seu caso já era conhecido de todos os pacientes,e por mais que às vezes exagerasse um pouco na intensidade, sua artrite no pé esquerdo com certeza a incomodava um bocado.
Fui atendê-la. Pelo menos era um motivo pra sair daquela cadeira, esticar as pernas, afastar o sono que começava a insistir em me dominar.
- Que que foi, Dona Cleide?
- Essa dor, minha filha. Essa dor... - reclamava a idosa apertando um Rosário entre os dedos.
- Descansa, Dona Cleide. Dorme que passa.
- Não adianta, minha filha. Hoje tá pior do que nos outros dias. Não sei se é por causa do tempo que tá pra virar ou o que, mas hoje tá insuportável. Não tem como me dar um daqueles remedinhos pra dor, não?
- Mas a senhora já tomou seus remédios da noite. Se tomar outro agora vai fazer mal pro seu coração. Não pode, tá bom?
- Ai, minha filha, eu faria qualquer coisa pra essa dor passar. Qualquer coisa.
- Descansa, Dona Cleide. Os remédios estão começando a fazer efeito. Já vai passar. - disse tentando confortá-la enquanto aproveitava para cobri-la melhor.
Afastei-me. Voltei para a sala dos enfermeiros. De lá ainda podia ouvi-la se queixar:
- Ai, meu Deus, que dor é essa? Que dor é essa? Ai, eu faria qualquer coisa pra essa dor passar. Eu daria minha alma pra essa dor passar. Ai, ai... já pedi tanto pra Deus... Já que não adianta pedir pra Deus, vou pedir pro Diabo pra ver se adianta.
E começou a levantar a voz:
- Diabo. Diabo. Eu tô aqui. Te dou minha alma se tu me tirar essa dor.
Não posso negar que me assustei um pouco. "Valei-me meu São Miguel Arcanjo", clamei.
Agora sua voz já era realmente alta e seu escândalo já começava a acordar e a assustar os outros pacientes.
- Diabo! Diabo! - invocava ela.
Mesmo já um tanto apavorada, acudi.
- Dona Cleide. Se acalma, se acalma.
- Leva a minha alma mas faz passar essa dor.
Não podia mais deixar que aquilo continuasse. Fui obrigada a recorrer ao calmante. O médico havia me recomendado que só usasse em último caso e acredito que aquilo se enquadraria numa situação extrema.
Tentando conter sua agitação apliquei a injeção e a idosa foi aos poucos foi arrefecendo. Sua voz alta e desesperada foi diminuindo, diminuindo, se reduzindo a quase um murmúrio até sumir.
- Diabo... Diab...
Pronto. ela adormecera. Acalmei um que outro paciente ainda um pouco impressionado pela cena toda e logo o silêncio voltou a tomar conta da noite na clínica.
Retornei à minha sala mas àquela noite não conseguiria voltar à tranquilidade habitual. A invocação feita por quela senhora definitivamente havia me perturbado. Qualquer barulho, movimento quase me fazia o coração saltar pela boca. Um galho batendo na janela com o vento, um cachorro que latia na rua, uma sombra. Passos no corredor... Devia ser o Jonas, o segurança da noite.
- Jonas, é tu que tá aí.
Não tive resposta. Apenas silêncio.
- Jonas...
Senti então uma mão em meu ombro.
Virei a cabeça sobressaltada.
- Tá tudo bem, Mari? - quis saber Jonas, o segurança, que me olhava com cara de estranheza - Parece que viu o demônio.
Sorri. Ele saiu rindo.
Mesmo naquele estado de tensão, o cansaço em algum momento devia ter me dominado. Devo ter descansado a cabeça sobre a mesa por um instante e adormecido. Aliás, acho que não fora tão pouco tempo assim, pois as primeiras luzes do dia já iam aparecendo. Era melhor que eu fosse ver os pacientes. Alguém podia ter precisado de mim à noite durante meu sono. Ai, se a dona da clínica soubesse...
Fui direto ao leito da Dona Cleide. Para minha surpresa ela já estava acordada e com um ótimo aspecto e bem disposta. Recebeu me sorridente:
- Bom dia, minha filha.
- Bom dia, dona Cleide. E as dores? Passaram?
- Dor? Que dor?
- As dores de ontem à noite. A senhora quase não aguentava. Reclamava muito, não lembra?
- Ah, sim, as dores... Já estou melhor. - respondeu em tom de indiferença como que somente para me satisfazer.
Enquanto tentava assimilar o que se passava com aquela senhora ali à minha frente, no fundo da enfermaria, uma voz chamava meu nome. Era outro paciente que acordara e decerto precisava de algum cuidado.
Ia levantando da cadeira ao lado do leito da Dona Cleide quando meus olhos bateram em algo que estava no chão, quase embaixo da cama.
Abaixei-me pra pegar.
- Dona Cleide, a senhora deixou cair seu Rosário. - disse-lhe estendendo a mão para entregar a corrente de contas.
- Deixa aí em cima, minha filha. - disse tranquilamente recostando-se no travesseiro e fechando os olhos - Deixa aí em cima...
Larguei o objeto sobre a mesinha de cabeceira e a deixei. Fui atender quem me chamava.
Verifiquei todos os pacientes e tomei todas as providências necessárias para a enfermeira do diurno. Meu plantão chegara ao fim. Era hora de ir para casa. Tentar descansar, tirar aquele episódio estranho da madrugada anterior da cabeça, dormir um pouco... Sim, dormir. Renovar forças, energia. Reunir coragem. Porque mais tarde, eu sabia, começaria tudo de novo.
Mais um plantão.
Mais uma noite.

Cly Reis
para Mari

segunda-feira, 28 de agosto de 2017

Cannonball Adderley - “Somethin’ Else” (1958)



“Eu praticamente já podia ouvi-lo [a Cannonball Adderley] na minha banda desde a primeira vez que o escutei”. 
Miles Davis


“Ouvindo Miles – que é mais um grande solista do que um grande trompetista –, de repente todos os fundamentos deixam de ter significado para mim, por ele ser tão brilhante de outra forma”. 
Cannonball Adderley

Uma revolução geralmente é precedida de algum marco precursor. Com obras-primas da arte musical isso também acontece. Na história do jazz, uma das principais revoluções ocorridas, a do jazz modal, promovida por Miles Davis em “Kind of Blue”, de 1959, talvez soe tão original que a faça parecer ter partido do zero. Porém, resultado da própria evolução do trabalho de seu autor – ainda mais quando se pensa na tetralogia da Prestige e, principalmente, em dois dos discos que o antecederam, “Ascenseur pour l'Échafaud” e “'Round About Midnight” –, é de se supor que tenha recebido também algum outro exemplo anterior. E, de fato, se há um álbum responsável por abrir caminhos em estética e conceito para o mais célebre disco do jazz da história, este é “Somethin’ Else”, do saxofonista Cannonball Adderley.

Realizado pelo selo Blue Note um ano antes de Adderley compor o sexteto de Miles na gravação de “Kind...”, “Somethin’...” conta, não por coincidência, com o próprio trompetista na formação. Adderley pede que a gravadora Columbia o ceda e concebe, assim, uma formação de banda rara e lendária, que tinha ainda o mestre Art Blakey, na bateria; Sam Jones, no contrabaixo; e Hank Jones, no piano. Todavia, o feito fazia-se sui generis, principalmente, porque Miles não se colocava como coadjuvante desde as clássicas gravações com o mito Charlie Parker, nos anos 40. Experiente e de espírito líder, Miles, então, naturalmente assume um papel mais do que de sideman, e, sim, o de quase um “guia espiritual”. Autor da faixa-título e responsável por ajudar a escolher o repertório, ele coprotagoniza ainda praticamente todos os solos.

Em “Somethin’...” estão algumas das maiores preciosidades dos estilos cool e hard bop, além de antecipar com clareza a elaboração harmônica do jazz modal, aperfeiçoada por Miles em “Kind...”. A estonteante versão de "Autumn Leaves" é o melhor exemplo disso. Perfeita sintonia dos sopros no chorus; bateria de Blakey criativa e variante; insinuante contrabaixo de Sam Jones; e o piano de Hank vivo e sonoro. É ele quem lança os acordes iniciais da canção. Isso, só para começar, pois a música avança mais um pouco e a primeira sessão de improvisos traz um dos mais inspirados solos de Miles de toda sua carreira. Que capricho! Assertivo e poético como um Louis Armstrong. O band leader Adderley, entretanto, não sucumbe, e emenda sua primeira participação com o lirismo que lhe é característico num extenso solo da mais alta sensibilidade. A bola volta para Miles, que retoma o toque pronunciado e cool. Mas não para finalizar, contudo. Hank também solta pérolas sobre as teclas, num solo de profunda elegância, que antecede um final falso. Parece que a faixa se encaminha para a conclusão, quando, sobre a base do chorus, Hank e Miles tornam a improvisar, criando aquele efeito do jazz modal de solos sobre uma base modulada. Um prenúncio do que Miles desenvolveria junto a outro pianista, Bill Evans, um ano dali. Tudo isso faz de "Autumn Leaves" um número histórico.

Outro standart do cancioneiro norte-americano, a clássica "Love for Sale", de Porter, também ganha feições muito próprias nas mãos da banda. A começar pelo piano, que novamente dá a largada, mas, aqui, diferentemente do arrojo da primeira, lírico e romântico. A banda entra e Blakey é quem determina a virada para um jazz bem blues marcado nas vassourinhas na caixa e intercalado por alegres incursões do piano. Miles, mais uma vez o centro, sustenta todos os lances de chorus, fazendo as pontes e “knees” previstos no arranjo. Porém, agora é de Adderley que saem os improvisos. Vigoroso, rico, blues. Hard bop na essência.

A faixa-título, um blues suingado, denota a preferência de seu autor, Miles, que, não por acaso, comanda-a do início ao fim. Primeiro, no solo, inteligente em sua economia, mas altamente significativo naquilo que expressa. Somente por volta de quase 3 minutos que Adderley aparece. E para fazer bonito com seu sax exuberante, clara tradição que liga Parker, Louis Jordan e Benny Carter. Interessante notar a sintonia do grupo: ali por 4 minutos, percebendo a intensidade do approach do saxofonista, Blakey acelera o ritmo, para logo desfazê-lo e voltar ao compasso de antes, tudo desenhado pelo baixo escalonado de Sam. A segunda metade de “Somethin’...” traz um bate-bola entre Miles e Adderley, no mínimo, memorável.

Noutra abertamente bluesy, "One for Daddy-O”, esta, mais sensual, evidencia-se de largada o viçoso jazz de Adderley. Impressionantes modulações be bop são extraídas do saxofone. Miles responde, fazendo aquilo que sabe com maestria: solar. Adderley, admirado com a expressividade do colega e mestre, disse certa vez sobre Miles: “Um solo reflete a maneira como ele pensa a composição, e o solo passa a ser a coisa principal”. Hank também dá sua contribuição antes de Adderley e Miles improvisarem novamente. Ao final, ouve-se Miles perguntando ao produtor Alfred Lion: "Era isso que você queria, Alfred?". Só podia ser.

A balada "Dancing in the Dark" traz um clima ainda mais sensual: escovinhas arrastando na caixa, solo comovido do sax, piano marcando delicadamente o compasso e o baixo quase desmaiando. A única em que apenas Adderley protagoniza é justamente a que, acertadamente, fecha o disco. Assim, independente de “Somethin’...” ter a cara de um disco dele ou de Miles, o fato é que se trata de um dos mais brilhantes da história do jazz, reconhecido pela uDiscoverMusic como o melhor álbum de todos os tempos da Blue Note, um dos 30 essenciais do jazz dos anos 50 pela JazzWise Magazine e um dos 15 recomendados pelo site AllAboutJazz em toda discografia jazz. Não é para menos, uma vez que a aura e a sofisticação que arrebatariam o mundo da música em “Kind...” já estavam lançadas aqui por Cannonball, que, com um tiro de canhão, fez o arremesso no ponto certo. Depois, foi só rolar a bola pra dentro.

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O relançamento em CD inclui a faixa bônus "Bangoon" ou "Allison's Uncle", este último, o título original dado pelo fato de a sessão de gravação ter sido feita logo após a esposa do irmão de Adderley (Nat) ter dado à luz à sua filha, Allison.

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FAIXAS
1. "Autumn Leaves" (Joseph Kosma/Johnny Mercer/Jacques Prévert) – 11:01
2. "Love for Sale" (Cole Porter) – 7:06
3. "Somethin' Else" (Miles Davis) – 8:15
4. "One for Daddy-O" (Nat Adderley/Samuel Jones) – 8:26
5. "Dancing in the Dark" (Howard Dietz/Arthur Schwartz) – 4:07
6. "Bangoon" ("Alison's Uncle") (Hank Jones) – 5:05*
*Presente na edição em CD

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OUÇA O DISCO

Daniel Rodrigues

Pix


sábado, 26 de agosto de 2017

ClyBlog 9 anos

E chegamos aos nove aninhos!
É, amigos, o clyblog completa hoje seu nono ano de existência e durante esse período não faltaram coisas legais rolando por aqui. Procurando sempre ser dinâmico, o ClyBlog ousa, de certa forma, ao propôr um espaço virtual tão diversificado, quando na maioria das vezes, blogs optam por um tema ou segmento. A ideia do blog, desde o início, era exatamente ter um espaço para falarmos e apresentarmos aquilo que gostamos. O que vemos, lemos, ouvimos, onde vamos, o que nos faz rir, o que achamos interessante, a quem admiramos... E por isso é que é um barato para nós que o fazemos até hoje nesses nova naos: porque curtimos tudo o que rola no blog. E é isso que nos move a continuar. A querer fazer um blog legal, interessante para quem visitar. Esse é o nosso segredo:na verdade tudo é apenas uma grande curtição. Espero que vocês curtam também e continuem curtindo porque nós seguiremos por aqui.