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domingo, 14 de abril de 2024

cotidianas #828 - XTRMSTa

 


- Vamos logo, Mari, o pessoal tá  esperando.

- Já vou, já vou.

Beto esperava impaciente, já  posicionado ao lado da porta.

- Vamos, Mari! - insistiu, diante da persistência da demora.

- Tô indo! Que pressa! - reclamou ela aparecendo no estreito corredor do apartamento, segurando algumas garrafas cheias de um líquido amarelado e com trapos enfiados nos bocais.

- O que que é isso? - interpelou Beto um tanto incrédulo do que estava vendo.

- Temos que estar prontos, Beto. - disse ainda com um pedaço de trapo na boca - O inimigo é implacável. Temos que estar prontos pra tudo.

- Mari, eu falei que é uma manifestação pacífica. PA-CÍ-FI-CA!

- Diz isso pra eles, diz. Vai lá e argumenta quando eles estiverem te descendo a borracha.

- Não vai ter borracha coisa nenhuma. Não vai ter essas tuas coisas também. A gente só vai lá, estica as faixas, os cartazes, marcha até  o local, grita aquelas palavras de ordem que a gente combinou e pronto.

Mari parou olhando fixamente para Beto com os braços caídos ao lado do corpo, em desânimo, com uma garrafa em cada mão.

- Agora larga isso aí e vamos.

Contrariada, deixou as garrafas no canto atrás da porta e saíram para a passeata.


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O povo bradava com os punhos cerrados e erguidos.

No meio da multidão, Beto parou com os gritos de guerra e olhou para o lado.

Mari não estava mais ali.

Vasculhou tudo apressadamente em volta, virando o pescoço para um lado e para o outro, quando finalmente a avistou lá na frente. Estava à frente da primeira fileira de manifestantes e a  apenas alguns passos da tropa de choque. Levava em uma das mãos um pequno bloco de paralelepípedo de granito.

Antes de avançar contra a barreira de escudos policiais, ela ainda olhou para trás e gritou, "Desculpa, Beto, mas a mudança não vai acontecer com palavras bonitas".

Arremessou a pedra...

- Viva la Revolución!


Cly Reis 

quinta-feira, 11 de abril de 2024

"Hamlet", de Zeca Brito (2023)



Ser ou Não Ser Político? Eis a Questão


"A loucura às vezes atinge quando o julgamento e a sanidade não dão frutos."
Da Peça "Hamlet", ato 2

Levar Shakespeare para a tela sempre foi uma tarefa complexa. A tentação de se valer do texto clássico pela sua inequívoca qualidade, no entanto, nem sempre é garantia de um bom resultado. Justamente pela alta qualidade literária, a adaptação pode facilmente resvalar. Se há acertos esplêndidos, como “Othelo” de Orson Welles, há também pasteurizações enfadonhas, tipo “Romeu + Julieta” de Baz Luhrmann. Fato é que o cinema ainda explora formas de elaborar a dramaturgia do autor inglês. Entende-se, contudo, tamanha tentação. O teatro shakespeariano sintetiza tão bem a alma humana, que é capaz de refletir situações aparentemente distantes de si, rompendo épocas e renovando linguagens ao longo do tempo. O provocativo “Hamlet”, do cineasta gaúcho Zeca Brito, prova isto. Quando se poderia imaginar, afinal, que uma peça de 425 anos suportaria com a devida potência a ação do movimento Ocupa Escola do Brasil do século 21?

Ganhador de diversos prêmios em festivais, como Gramado e o FIDBA, em Buenos Aires, “Hamlet” é livremente inspirado na peça trágica. Encarnado por Fredericco Restori, o jovem protagonista se encontra em pleno ano de 2016 vivenciado a ocupação do movimento estudantil no Instituto de Educação General Flores da Cunha, em Porto Alegre. Em meio ao traumático processo de impeachment de Dilma Rousseff, é o registro de um período de convulsão social, quando estudantes secundaristas amotinam-se e interrompem as aulas para protestar contra o desgastado sistema vigente. 

Restori no papel de "Hamlet" entre os alunos em protesto

Com a equipe de filmagem inserida no colégio, Brito capta ao mesmo tempo a realidade daqueles jovens e a participação ativa do ator, que divide-se entre a ficção e a vida real. O cineasta retoma o teor político de realizações anteriores, como “A Vida Extra-ordinária de Tarso de Castro” (2016) e “Legalidade” (2019), porém usando a tragédia renascentista como impulso a uma obra pulsante e singular.

A força do filme está no proveito de um dos recursos elementares do texto original: a duplicidade. A dureza da fotografia em p&b expõe constantemente a dicotomia “realidade versus ficção”. O “ser ou não ser” hamletiano se transfigura em embates simbólicos entre bem e mal, loucura e lucidez, democracia e totalitarismo, violência e doçura, espírito e matéria. Ao unir documentário e drama, “Hamlet” joga seu personagem principal num palco vivo, que o faz questionar a vida como um teatro de incertezas e angústias. A exposição na tela daquele Brasil rachado redimensiona, assim, o significado da palavra “cenário”. Não é mais apenas uma explicação para “conjuntura política”, mas para a cena, o plano de ação, aquilo que a câmera enquadra. 

É emblemática a cena em que Hamlet é abordado por uma equipe de televisão, que transmitia ao vivo o ato no colégio. A repórter (de abordagem parcial e sem saber que se tratava de um ator), questiona Hamlet sobre a ocupação. Porém, incomodada com uma pessoa que a filma just in time (o próprio Zeca Brito), grosseiramente a condena. A multiplicidade de camadas e espelhamentos que a sequência consegue revelar – o olhar do cineasta, do tevente, do espectador do filme, da repórter, do apresentador, do cinegrafista – atingem um nível de metalinguagem e de complexidade discursiva admiráveis.

Diálogo entre pai e filho: espelho
A atuação de Restori, igualmente, é alimentada por esta riqueza de intenções. A tênue fronteira entre sanidade e insanidade que conduz Hamlet durante toda a peça expõe-se no personagem do filme através do conflito existencial entre outros dois extremos: o rompimento com a infância e a assunção da vida adulta. Mais do que isso: a tomada de consciência do seu “ser político”. Os diálogos dele com o pai, o também ator Marcelo Restori, como que pondo-se diante de um fantasma no espelho, retrazem o elemento da figura paterna do livro, mas não pelo trauma da morte física como no caso do príncipe dinamarquês, mas a morte da inocência em detrimento da razão. 

Ao reelaborar elementos distintivos do clássico, o filme renova o olhar sobre o ser humano em suas relações sociopolíticas na atualidade. O jovem Hamlet, amálgama de incertezas e desafios, veste, agora, seu manto preto pelas ruas de Porto Alegre como um estudante em busca de respostas àquilo que lhe faça sentido. O filme, assim, faz suscitar profundos questionamentos a respeito da sociedade brasileira dos últimos anos, uma sociedade contraditória e marcada pela pior das dicotomias a qual pode condenar-se: a polarização política. No espelho, não é mais o fantasma do pai que Hamlet vê: é o seu país.

texto originalmente publicado no caderno Doc do jornal Zero Hora em 8 de março de 2024

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trailer de "Hamlet", de Zeca Brito



Daniel Rodrigues


quarta-feira, 10 de abril de 2024

Música da Cabeça - Programa #365

Na semana em que Krenak virou imortal e Ziraldo se imortalizou, a gente faz uma homenagem ao genial cartunista reprisando nosso episódio 360, que fala especialmente de quadrinhos (y otras cositas más) na entrevista com o historiador e colecionador Christian Ordoque. Mais vivo do que nunca, o MDC vai ao ar na maluquinha Rádio Elétrica. Produção, apresentação e fardão: Daniel Rodrigues


www.radioeletrica.com

Janelas de Pelotas

 








Daniel Rodrigues
Janelas de Pelotas
mar/24