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quinta-feira, 25 de agosto de 2011

COTIDIANAS ESPECIAL nº100 - O Galho da Goiabeira


Uma vez ouvi de minha mãe esta história sobre uma amiga dela. Uma vez, não, minto: umas três ou quatro. Mas a primeira foi a que valeu mesmo; as outras apenas reafirmaram e adensaram meu assombro por aquele triste causo da pequena Odete, ocorrido há bastante tempo, lá para fora, bandas do interior, zona rural. E essa estreia foi tão marcante aos meus ouvidos que justifica, no agora, este meu depoimento.
Além de Odete, a outra personagem desse conto é sua arborizada e generosa amiga goiabeira. Não lhe dedicaram nenhum nome. Era apenas “a árvore”, porém parecia assim gostar de ser chamada. Mas amiga é modo de dizer: a árvore era simplesmente a MELHOR amiga de Odete nos tempos de criança, ali pelos seus oito, nove anos. Tão querida que recebia de galhos abertos a ela e a turma toda de irmãos e coleguinhas nos ensolarados e gelados finais de tarde da Campanha. Saíam da aula e tinham rumo certo. Empoleiravam-se com aquela agilidade feliz de criança, e mal se acomodavam nos galhos e já iam sacando as frutas. Comiam que dava gosto de ver em meio àquela gritaria aguda e sorridente de gurizada faceira.
  Acontece que a amiga árvore morava no terreno agramadado ao lado da casa de Odete, onde, por sua vez, morava a mãe de Odete. Pessoa sisuda mas boa, no fundo; criava com responsabilidade os filhos, valorizava para os pequenos o estudo que não teve, mantinha-os sadios e bem apresentados. Mas era sofrida. Carregava no rosto gravada a feição fechada pela infância judiada e pela maturidade castigada. Mãe solteira, quatro filhos, vida simples e difícil, mesa escassa, muita lida pesada. De vez em quando, aplicava alguma surra ou castigo aos filhos. E mãe e filha – esta, muito afeita ao falecido pai – sempre foram afastadas. Coisa de gênio, que não se explica. Às vezes, pareciam até duas desconhecidas. Contudo ainda mãe e filha, sanguínea e inevitavelmente ligadas. E essa distância perdurou nos corações de ambas até a morte da mãe, quando Odete, já adulta, cuidou dela até seus últimos dias, deitada numa cama, velhinha, minguada pela doença, frágil como um graveto ressecado e quebradiço.
  A mãe decididamente não gostava daquela algazarra da meninada. O peito amargo não lhe permitia, por mais que tentasse consigo mesma. Dizia que lhe irritavam os gritos estridentes e as gargalhadas altas da trupezinha, mas, na verdade, o que lhe perturbava a manifestação de alegria. Vira e mexe terminava a comilança de goiabas aos berros, prometendo que um dia iria acabar de vez com aquilo. Ralhava, mandando Odete e os irmãos entrarem para casa e correndo os amiguinhos dali. Saíam de orelha baixa igual a cusco, todos com os focinhos melados da fruta doce.
  Mas o bom coração de criança esquece rápido, e no dia seguinte, como se não tivessem recebido xingão nenhum, a trupe voltava a trepar na paciente amiga. Começavam mais silenciosos, para não fazer alarde, mas logo se empolgavam e recomeçava a festa. Cada um tinha o seu galho, e Odete adorava o seu. Dava-lhe a impressão que estava sendo abraçada de tão gostosa que era aquela sensação. Ali era seu paraíso. Aliás, não só a pequena Odete e seus parceiros adoravam aquilo: a própria árvore parecia comemorar junto, dia após dia carregada de frutos. Eles a limpavam os galhos e, no dia seguinte, lá estava ela, orgulhosa, abarrotada de goiabas por todos os ramos.


****


  Aquela tarde estava tão fria e nublada! Mas não chovia. A luz uniforme do céu cobria tudo de cinza. Sem terem recebido reprimenda no dia anterior, a programação era correr para a goiabeira e tomar cada um o seu galho favorito. Aula terminada, lá foi a turminha. Odete, dona da casa, chegou na frente dos outros e lá estava o seu querido galho. No chão. Ele e seus companheiros de copa, todos: no chão. O tronco, igualmente, amassava com sua grossura o gramado graúdo do entorno, só restando um chumaço grudado à terra pela raiz, como se tivesse sido rasgado. Um moço passou por ali e, a pedido da mãe, em troca de farinha e leite fresco, tombou sem muita dificuldade a goiabeira com um facão afiado, galho a galho.       Odete reconheceu o seu, mesmo não estando na altura de sua cabeça onde geralmente se encontrava. Sua forma retorcida, que antes parecia ser animada e sorridente, agora dava a impressão de, mesmo sem movimento, contorcer-se numa agonia grosseira.
  Ninguém falou nada. Todos baixaram os olhinhos molhados, misto de espanto e tristeza, de confusão e medo, de ódio e culpa. Passou pela cabeça de Odete, por um momento, a imagem da amiga sendo golpeada. Pensou na dor que ela sentira a cada baque da fria e enferrujada lâmina, e fechou os olhos com horror.
  Sem se entreolharem, todos engoliram o choro e deram meia-volta, e naquele fim de tarde não teve algazarra, não teve comilança, nem gritos agudos ou boca lambuzada. A janta da noite foi uma sopa, tão quente quanto silenciosa e melancólica.


****


  Odete hoje é avó, mas ainda lhe arrepia pensar naquele episódio. Sentimento esquisito, doído. Desconfortável, no mínimo. Menos por amargura do que por nunca ter compreendido de fato o ato da mãe de lhe arrancar para sempre e com tamanha violência aquela amizade. A dúvida permanece desde aquele remoto passado, mas Odete hoje sabe que tem coisas que a gente se mantém criança para o resto da vida. E de que nem todo tem explicação. Às vezes, as dúvidas não se extinguem e, ironicamente, servem justamente para dar certeza a outras coisas. A Odete, a de que vale a pena ser uma mãe dedicada e uma avó afetuosa, e de que o aconchego que sentia no poleiro daquele galho da infância pode muito bem ser reproduzido de várias outras formas a quem se ama nesta vida.
  Ah! Minha mãe comentou que dona Odete ainda adora goiaba. Encanta-lhe a acidez da casca esverdeada ainda por amadurecer e aquela cremosidade da polpa vermelho-pele. Uma delícia.


Daniel Rodrigues



5 comentários:

  1. Lindo, Dã!
    A mãe já tinha me contado também, mas a tua narração dá contornos comoventes à história.
    Obrigado por mais esta colaboração.

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  2. Ouvi e repassei esta, como uma triste história, aqui, vejo-a contada com encanto e emoção. Parabéns pelo dom de lidar com as palavras.Iara.

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  3. Dani Menegotto Bohrer30 de agosto de 2011 às 13:33

    Linda história. As memórias de infância são impressionantes.

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  4. Belíssima história e belissima narração! Poetico, bucólico, emocionante.
    Eu, particularmente, não recordo dessa história (de outras muitas, sim hehehe), mas essa, não !
    É triste, dá um nó no peito... Mas o fundo de pureza e amizade é belo!
    Muito lindo, Dan! A mãe conta a história e os filhos semeiam! :)
    #amo

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