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sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

cotidianas #486 - Pílulas Surrealistas #8



Ninguém sentia falta, até porque já havia muito tempo que, não se dizia bem o motivo nem quando, um governo decidiu proibir e ponto. Proibido. Estados organizados e prósperos devem ser ordeiros. Assim, não sentiam falta, pois, como em toda sociedade que se diz moderna, não havia grandes esforços de memória nem de resgate do passado, de modo que até o nome dado outrora a tal coisa essa não lembravam mais. Mas esse mundo, esférico, é muito traiçoeiro. Num dia qualquer, numa avenida qualquer, hora do rush qualquer, o engarrafamento estendia-se 1 minuto a mais do que o normal de 3 horas de duração estabelecidas em lei. Motivo inquestionável para que todos passassem a socar as buzinas. Impaciência, cólera, histeria. Relações se desfizeram por conta do atraso; negócios deixaram de ser fechados; coitos tiveram que ser interrompidos; animais, sacrificados; cultos, profanados. Pois, por um milagre, um menino, então distraído no banco de trás de um dos carros parados no quilométrico engarrafamento, percebeu a atmosfera abarrotada de som. Ruidoso, inflamado, colérico, mas sonoro. Sim: aquilo devia ser o que se proibiu no passado. Não sabia ao certo, mas só podia ter a ver com a tal lenda. Enquanto os homens seguiam buzinando entupidos de razão, o menino largara o tablet no banco para prestar atenção naquilo que, não sabia ele em sua ingenuidade, um dia os humanos chamaram de “música”.



Daniel Rodrigues

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