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terça-feira, 11 de julho de 2023

cotidianas #802 - Aberração

 



arte: Cly Reis
A primeira coisa que viu ao despertar foi a cara da Dona Margareth.
- Oh, você acordou. - disse ela com certa animação na voz.
Por trás do grande rosto envelhecido, esbranquiçado e enrugado da minha vizinha, árvores apontavam para o céu numa espécie de ponto de fuga infinito.
Estava deitada numa floresta, num bosque...
Me dei conta de que estava amarrada.
- O que está acontecendo? - me apressei em perguntar à minha recente vizinha.
- Vai ficar tudo bem. - foi tudo o que obtive de resposta da idosa.
Tentei me desvencilhar das cordas nos pulsos e tornozelos e, em minha agitação, pude ver meu marido desacordado, ao meu lado, a alguns metros, no chão da mata.
Insisti:
- O que está acontecendo?
- É melhor assim, acredite. - argumentou a velhota.
Seu Nelson, marido dela, um velho esquálido, desbotado, de aspecto doente, aproximou-se por trás dela e cochichou algo em seu ouvido.
A velha me olhou com um olhar de piedade e resignação.
- É necessário. - disse ela.
- O que é tudo isso? Por que eu estou aqui? Nos desamarrem logo! Anda!
- Não entende? Precisamos satisfazê-lo. Senão ele vem atrás de nós. O povoado... Nossa gente, sabe?
- Do que a senhora está falando?
- A criatura. De tempos em tempos temos que entregar algo para a aberração. Para acalmá-lo. Vocês são novos aqui... (Entenda). Nós cuidamos uns dos outros nesse povoado.
- Como assim?
O velho voltou a aproximar-se e falar-lhe ao ouvido.
A velha:
-Temos que ir. Está escurecendo. Não demora muito para a aberração chegar. Perdoe-nos por isso. Estava mesmo gostando de vocês como vizinhos.
O casal de idosos foi se afastando. Ela tinha um certo pesar sincero nos olhos.
Minhas súplicas desesperadas não adiantaram de nada.
Meus gritos se perderam no vazio da floresta.
Escurecia.



Cly Reis

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