No embalo do primeiro Oscar do cinema brasileiro e do sucesso de "O Auto da Compadecida 2", produção nacional que vem levando milhares de pessoas aos cinemas, o Clássico é Clássico (e vice-versa) traz aqui um confronto entre "O Auto da Compadecida ", de 2000, que impulsionou sua sequência de 2024 a ser esse novo fenômeno de bilheteria, e sua primeira versão cinematográfica, pouco conhecida, de 1969, "A Compadecida". Pois é, esta obra de Ariano Suassuna tem uma adaptação cinematográfica anterior à conhecidíssima e consagrada de 2000, e que quase ninguém sabe que existe. Diante da popularidade de "O Auto da Compadecida", de 2000, a maioria das pessoas não teria dúvidas em afirmar, mesmo sem ver o antigo, que não tem nem graça um duelo de um grande sucesso como esse contra um esquecido, empoeirado e desconhecido filme lá dos idos de não sei quando. Tipo um time multicampeão, cheio de grandes jogadores contra um outro pouco badalado de um centro menos valorizado. Barbada? Não é bem assim... "A Compadecida" tem méritos inequívocos e consegue fazer frente ao novo em diversos quesitos. Produzido com grande orçamento para a época, "A Compadecida" traz ecos ainda da estética da segunda fase do Cinema Novo, ainda que, curiosamente, para um projeto tão brasileiro contasse com um diretor húngaro, George Jonas, atrás das câmeras. A onda de treinadores estrangeiros já estava na moda, hein! Além disso, time por time, o de 1969 não ficava devendo muito: tinha nada menos que feras como Antônio Fagundes, Armando Bógus, Regina Duarte e outros bons nomes como Felipe Carone, Jorge Cherques e Ari Toledo . Como se não bastasse, a comissão técnica trazia nomes de peso como o artista plástico Francisco Brennand nos figurinos, a arquiteta Lina Bo Bardi na direção de arte, música a cargo de Sérgio Ricardo, e o próprio autor da peça, Ariano Suassuna, fazendo uma de auxiliar técnico, como responsável pelo roteiro. Isso é só pra mostrar com quem estão lidando! Com um jogo um pouco arrastado na primeira parte, "A Compadecida" cresce de produção e aos poucos vai mostrando a boa estrutura do time. O aproveitamento da estética do sertão como pano de fundo natural, a exploração das tradições culturais, a teatralidade, a alegoria religiosa, tudo colabora para o bom desempenho em campo do time do técnico europeu George Jonas. Do outro lado temos uma adaptação feita originalmente para minissérie de TV e que posteriormente foi editada e distribuída nos cinemas. A boa produção, recursos e aparato da maior rede de televisão do país, garantiam um produto final com qualidade e pronto para ser consumido com júbilo pelo público em geral. Produção padrão Globo! Ainda que a adaptação para o formato longa metragem comprometesse um pouco a montagem e tornasse abruptas algumas transições, a transposição para o cinema foi um sucesso e o então filme, não mais minissérie, tornou-se uma das maiores bilheterias do cinema nacional. Para tal êxito, o diretor Guel Arraes, responsável pelo núcleo mais criativo e interessante da emissora, sempre com boas propostas de programas, séries, especiais, teve à sua disposição nada menos que toda a vitrine disponível da maior produtora de novelas da TV brasileira e por isso mesmo, um vasto e qualificado elenco para sua escolha. É como um grande clube, com os melhores jogadores do mundo em seu elenco, que contrata um técnico e diz pra ele, " Tá aí. Escala quem você quiser". Guel optou pelo entrosamento, mesclou com a experiência e botou dois caras diferenciados para decidir. Chamou boa parte do elenco da antiga TV Pirata, Marco Nanini, Diogo Vilela e Denise Fraga, outros com quem já trabalhara em seu núcleo na emissora, como Bruno Mazzeo e Virgínia Cavendish, deixou os medalhões Rogério Cardoso e Lima Duarte ali no meio só distribuindo o jogo, e deixou sua talentosíssima dupla de ataque, Selton Melo e Matheus Natchergale, à vontade pra enlouquecer a defesa adversária. Na boa, Antônio Fagundes e Armamdo Bógus são talentosíssimos, mas o Chico e o João Grilo da nova versão são muito melhores! Mais carismáticos, mais protagonistas, mais engraçados. O humor da nova versão é mais convidativo, a proposição da obra é fazer rir e ela se sai muito bem no que pretende. O corpo de elenco é mais envolvido nessa tarefa do que no antigo que se propunha a ser um filme sobre sertanejos, com situações engraçadas.
"A Compadecida" (1969) - filme completo
"O Auto da Compadecida" (2000) - trailer
A vitória da nova versão passa por aí. Tem tantos méritos quanto o anterior mas é mais gostoso, mais cativante. Cada um a seu modo transmite sua estética de sertão e aí é um gol para cada um. Se a Globo proporciona cenários bem acabados, locações bem escolhidas, materiais de qualidade, uma iluminação de primeira (1x0), a craque Lina Bo Bardi, encarregada da concepção artística do original, com sua noção diferenciada de espaço, desequilibra e deixa tudo igual nesse quesito. 1x1. Nem a retaguarda da produção para a TV que pôs à disposição da equipe os melhores profissionais, estilistas e o guarda-roupa da maior emissora do país, impediu o gol de outro gênio, Francisco Brenant que com muita cor, alternâncias de tons, contrastes, elementos folclóricos, criou figurinos criativos e diferenciados desempatando a partida. 2x1 para A Compadecida. O autor, Ariano Suassuna, jogava para o time de 1969, do qual fora roteirista e colaborara com as mais preciosas informações e impressões para o diretor George Jonas, mas, consultado pelo diretor da nova versão, Guel Arraes, sobre a inclusão de trechos de dois outros contos seus no roteiro da nova versão e concordando com a ideia, acabou jogando de bandido e fazendo gol contra. O acréscimo da parte da disputa pela filha do Coronel (de "Torturas de um Coração e a Pena da Lei") e da herança da avó da noiva com o cofrinho cheio de dinheiro (de "O Santo e a Porca), enriquecem a trama do remake e lhe garantem o gol de empate. 2x2. Ô, Seu Suassuna, o que é isso? Jogando contra o próprio patrimônio... A cena do ataque dos cangaceiros no original é pura poesia visual. Uma fascinante coreografia com contornos circenses que põe o time de '69 em vantagem. 3x2. O julgamento dos pecadores pelo diabo tem méritos nos dois. Se no anterior a sequência é crua, externa, no meio do sertão, explorando a paisagem agreste local, e com uma edição espetacular, no recente tem um belíssimo cenário estilizado de uma capela de romeiros com efeitos digitais primários mas que comunicam bem e dialogam com a estética do cordel nordestino. 4x3. O antigo continua em vantagem. No entanto, ainda nesta sequência, a craque Fernanda Montenegro desequilibra. Embora encarando uma boa adversária, a então jovem Regina Duarte, com sua interpretação serena e altiva, ela eterniza uma Nossa Senhora doce e maternal para o cinema brasileiro. Golaço pra empatar de novo a peleia!!! 4x4. Cabe à dupla de ataque, João Grilo e Chicó, decidir o jogo. Num perfeito entrosamento e tabelinhas perfeitas, a dupla da nova versão, Selton e Natchergale, é hilária e tem passagens memoráveis. A da trama da bexiga de sangue, a do plano para o duelo com os valentões, a trapaça ao cangaceiro Severino, o pedido de casamento da filha do Coronel, a da ressurreição de João Grilo, todas cenas de chorar de rir. Tabela perfeita, desde a própria área até o outro lado do campo, sem deixar a bola cair, enganando todos os adversários, o padeiro, o padre, o cabo, o valentão, os cangaceiros, driblando até o diabo, dando um chapéu no coronel, até João Grilo deixar limpinha pra Chicó só completar praticamente em cima da linha, com o bumbum. 4x5. Dizem que o gol foi tão bonito que Chicó levou a bola, a bandeirinha de escanteio, o apito do juiz e até a rede pra casa. Dizem que pendurou a rede na varanda e dorme nela toda noite. "Como é que só dois enganaram toda essa gente? Padre, bispo, padeiro, polícia, cangaceiro, coronel e até o diabo?" Bom... Não sei. Só sei que foi assim.
(Sempre à esquerda o original) No alto, as duplas Chicó e João Grilo; na segunda linha João Grilo engambelando o cangaceiro Severino com a gaita mágica; na terceira, o cenário natural do julgamento dos pecadores do filme de 1969, e à direita o cenário da capela de romeiros do filme de 2000; logo abaixo, o diabo diante de Jesus e Nossa Senhora, nas duas versões; e por último a Compadecida, Regina Duarte no primeiro filme, e Fernanda Montenegro na varsão nova.
É, muita gente achou que era barbada, páreo corrido,
mas futebol (e cinema) não é assim.
Não tem jogo jogado.
Não é porque foi sucesso de público que a vitória tá garantida.
Há cinco anos, publicávamos aqui no Clyblog uma série de três longas matérias com listas dos filmes essenciais para se entender o cinema brasileiro do século XX, fazendo um recorte de suas três principais décadas produtivas: 60, 70 e 80. Por motivos óbvios, os desfalcados anos 90 não entraram nessa primeira série, haja vista a impossibilidade de se equiparar em importância com estas outras décadas uma vez que seu esforço foi muito menos pela manutenção da qualidade obtida anteriormente do que, principalmente, pela sobrevivência do audiovisual brasileiro. A puxada de tapete do governo Collor ao destruir a exitosa Embrafilme não ofereceu nenhuma alternativa substitutiva à altura que garantisse a continuidade do trabalho de milhares de profissionais e da importante arte cinematográfica brasileira.
Porém, os anos se passaram aqui no blog e, com eles, chegamos ao final da década de 2010, em que o cinema brasileiro, devidamente retomado de seus percalços (será?!), torna a ganhar o circuito internacional com filmes não apenas bem realizados, como essenciais para a nova cinematografia mundial, caso de "Cidade de Deus", "Tropa de Elite" e, mais recentemente, “Bacurau”. Mesmo que o correto seja compreender o final da década assim que concluir o ano em que estamos, e só começar a contar uma nova década a partir de 2021, quem imaginaria que viria a Covid-19 para congelar tudo, afetando, principalmente, o setor cultural e, com ele, a produção cinematográfica? Se havia ainda alguma esperança de que novos títulos se somassem aos produzidos nos últimos 9 anos para cá, a pandemia, bastante ajudada pela política inimiga da cultura do atual governo brasileiro, forçou para que se acabasse de vez a década.
Entre a última década do século passado e a que estamos, restam, claro, os primeiros 10 anos do novo século. Vamos reconstruir, então, a essência do que foi produzido no cinema brasileiro nos últimos 30 anos, começando pelos 90. Se a recorrente falta de prioridade para com a cultura e a arte da política brasileira fez de tudo para acabar com o cinema nacional, fique esta sabendo que não conseguiu. Produções escassas, mirradas, prejudicadas, mas mesmo assim, resistentes. Deste modo, selecionamos aqui 20 títulos essenciais para entender esta década que, com todos estes percalços, ainda assim mantém qualidade suficiente para não deverem nada a títulos de outras décadas mais abastadas. Uma exceção fazemos aqui, no entanto: não apenas por contar fatalmente de menos filmes classificáveis, os anos 90 são sinônimo de “retomada” para o cinema no Brasil, fase a qual se encerraria apenas com o marco “Cidade de Deus”, de 2002, um ano depois da instituição da Ancine. Então, coerentemente com a construção histórica do novo cinema brasileiro, incluímos as produções do ano de 2000 nesta primeira listagem. A partir dali, uma nova era viria.
1 - “Carlota Joaquina: Princesa do Brazil”, de Carla Camurati (95): O filme de estreia de Camurati é o marco de resistência do cinema brasileiro pós-Collor, quase um manifesto, que bradava: “É possível, mesmo com toda a dificuldade, fazer cinema autoral no Brasil!”. Cheio de hiatos e desconexões (propositais ou não), tem, além desta simbologia (que já lhe seria suficiente para integrar esta lista), o mérito de trazer algumas características que se consolidariam no cinema brasileiro nas décadas seguintes: a coprodução com países estrangeiros, a linguagem cômica, a edição ágil e a abordagem crítica.
2 - “O Quatrilho”, de Fábio Barreto (95): Há quem torça o nariz para certa pasteurização do filme rodado no interior do Rio Grande do Sul sobre a obra de José Clemente Pozzenatto, mas é fato que, com ele, os Barreto reabriram as portas do Brasil para o mercado internacional com a inédita indicação ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro na história do cinema brasileiro – feito que ocorreria apenas mais duas vezes. E isso num momento em que jamais se esperaria algum reconhecimento vindo de um ainda agonizante cinema pela quebra da Embrafilme. Um bom romance, com seus méritos.
3 - “O Mandarim”, de Julio Bressane (95): Enquanto os Barreto encabeçavam uma nova investida na internacionalização do cinema brasileiro e Camurati tentava redirecionar os rumos das coisas por aqui, o bom e velho transgressor Julio Bressane aperfeiçoava seu cinema-poesia. Assim como em “Tabu”, “Brás Cubas” e os “Os Sermões”, a música é quase um personagem, neste caso, para contar a proto-biografia de Mário Reis (Fernando Eiras), mas não sem o “auxílio luxuoso” de Caetano Veloso, Chico Buarque (fazendo eles mesmos), Gilberto Gil (encarnando Sinhô) e Edu Lobo (fazendo as vezes de Tom Jobim). Tudo de forma artesanal, barata e genial.
4 - “Terra Estrangeira”, Walter Salles Jr. e Daniela Thomas (96): O filme de Waltinho e Daniela tem o poder de vencer a contramaré vivida pelo cinema nacional àqueles idos a ponte de tornar-se um dos mais importantes filmes da cinematografia nacional. Tanto que está na lista da Abraccine dos 100 melhores filmes brasileiros de todos os tempos. Uma história sobre solidão e resgate das próprias raízes motivado justamente pelo confisco promovido pelo mesmo presidente Collor que extinguiu tanto o dinheiro do brasileiro quanto o da Embrafilme. Fotografia impecável p&b de Walter Carvalho, trilha excelente de Zé Miguel Wisnik e até dedo de Millôr Fernandes nos diálogos. Um luxo em época de vacas magras.
5 - “Baile Perfumado”, de Lírio Ferreira e Paulo Caldas (96): Na esteira da mais revolucionária cena cultural do Brasil dos últimos 30 anos, o mangue beat, o filme marco da retomada do cinema pernambucano, retraz questões formativas da cultura nordestina (o cangaço, o “Ciclo do Recife” dos anos 20, os superoitistas dos anos 70, o sotaque, a antropomorfia) com uma roupagem moderna. Se não é necessariamente um filme bom, é altamente representativo e indispensável para se entender o cinema brasileiro de então, visto que abriu portas para a entrada de talentos de outros pernambucanos como Kleber Mendonça Filho, Cláudio Assis, Hilton Lacerda e Marcelo Lordello.
6 - “Guerra de Canudos”, de Sérgio Rezende (96): Afeito aos temas da História do Brasil, Rezende, após realizar seu grande filme, “O Homem da Capa Preta”, em 86, viu-se, assim como seus pares, totalmente descapitalizado para realizar seu trabalho. O que não foi motivo para abandonar o projeto sobre a real história do líder Antônio Conselheiro e a sangrenta guerra contra as forças do Império extraída do épico “Os Sertões”, de Euclides da Cunha. Wilker, que já havia protagonizado “O Homem...”, está brilhante no papel principal. Produção cara que, mesmo os justificáveis defeitos de produção, não apagam o brilho.
7 - “Tieta do Agreste”, de Cacá Diegues (96): O tarimbado Cacá foi dos que sofreu bastante com a quase inviabilização do cinema no Brasil da era Collor. Após o paupérrimo longa de episódios “Veja Esta Canção”, de 94, parecia que nunca mais viriam grandes produções de outrora como “Quilombo” ou “Xica da Silva”. Mas o sempre obstinado cineasta surpreende com um filme recheado de qualidades: texto baseado e revisado pelo próprio Jorge Amado, Sônia Braga brilhante como Tieta, Chico Anysio tornando a fazer cinema como o velho Zé Esteves, trilha de Caetano, fora outras. Uma delícia de filme.
8 - “A Ostra e o Vento”, de Walter Lima Jr. (97): Assim como Cacá e Bressane, Walter é outro experiente realizador nascido no Cinema Novo. Porém, tem como característica o empreendimento de projetos muito peculiares, como esta bela adaptação do romance de Moacir C. Lopes, que conta com roteiro dele e de Flávio Tambellini (que se tornaria um dos cineastas de vulto no cinema nacional), fotografia de Pedro Farkas, música de Wagner Tiso e a linda canção original de Chico. Lima Duarte, Castrinho e Fernando Torres excelentes, além da jovem Leandra Leal, estreando na tela grande com uma inesquecível atuação sobre um tema raramente explorado com tanta assertividade: o florescer da sexualidade feminina.
9 - “Os Matadores”, de Beto Brant (97): Fala-se muito de “O Invasor”, de 2002, mas em “Os Matadores”, primeiro longa do talentoso paulista Beto Brant, ele já introduzia sua contribuição ao cinema brasileiro com um estilo autoral, de forte apelo literário, com histórias inspiradas na realidade em diálogo com o tempo presente e onde o ator tem espaço para contribuir na narrativa. Além disso, em resposta à falta de perspectivas vivida pela classe cinematográfica brasileira no início dos anos 90, trazia um conceito “enxuto”: projetos racionalizados sob o ponto de vista da produção, com equipes de trabalho formadas por amigos, que se transformam em parceiros constantes. Na sua estreia, Brant já saiu abocanhando o prêmio de melhor direção no Festival de Cinema de Gramado.
10 - “O Que é Isso, Companheiro?”, de Bruno Barreto (97): Criado em 91 como mecanismo do incentivo à cultura, a Lei Rouanet começou a, de fato, render frutos anos depois. Após emplacar a inédita disputa ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro com “O Quatrilho”, um ano depois o Brasil colocava outro candidato à estatueta: o bom “O Que...”, baseado no Best-seller biográfico de Fernando Gabeira. Novamente, são os Barreto os responsáveis pelo feito. Além das excelentes atuações de Pedro Cardoso, Fernanda Torres e Luiz Fernando Guimarães, o filme avança no espaço aberto por “Carlota Joaquina” no sentido da coprodução estrangeira, o que resulta nas participações do craque Alan Arkin no elenco e da excelente trilha do ex-Police Stewart Copeland.
11 - “Pequeno Dicionário Amoroso”, de Sandra Werneck (97): A Globo Filmes, a partir da década seguinte, vulgarizaria o estilo comédia feita com atores da emissora, lançando aos montes subproduções sem nenhuma qualidade, quanto menos pretensão cinematográfica. Mas isso ainda cabia naquele sétimo ano da década de 90, quando Sandra realizou esta comédia romântica deliciosa. Aquele final com “Futuros Amantes” do Chico é de arrebentar o coração até do mais insensível espectador. Atuações ótimas de Andrea Beltrão, Daniel Dantas, Glória Pires e Tony Ramos – estes dois últimos, que fariam dupla noutra comédia (um pouco menos) romântica “Se Eu Fosse Você” anos mais tarde.
12 - “Central do Brasil”, de Walter Salles Jr. (98): É só deixar solto, que o sobrevivente cinema brasileiro se supera e, logo em seguida, se agiganta. Sete anos após a instituição da Lei Rouanet e minimamente restabelecido o mercado do audiovisual brasileiro, Waltinho vem com aquele que é um dos melhores filmes brasileiros de todos os tempos, certamente o melhor da década de 90. Tocante, envolvente, denunciador, poético, revelador. Um filme perfeito em tudo: fotografia, trilha, montagem, arte e, principalmente, a direção de atores. “Central...” traz algumas das mais célebres atuações do cinema brasileiro numa mesma obra: Marília Pêra, Othon Bastos, Matheus Nasctergaele, o pequeno Vinícius de Oliveira e, claro, a deusa Fernanda Montenegro, que, assim como o filme, o último concorrente ao Oscar de Filme Estrangeiro do cinema nacional, também disputou a estatueta – perdendo, junto com Meryl Streep e Cate Blanchett, para Gwyneth Paltrow. No entanto, levou Berlim de Melhor Atriz e Melhor Filme.
13 - “São Jerônimo”, de Julio Bressane (98): O hermético e experiente Bressane é original não apenas na narrativa e no seu inconfundível estilo pessoal, mas também nos temas que escolhe para filmar. Ao abordar a história do santo e obscuro intelectual do século IV autor da edição e da tradução completa da Bíblia, a chamada Vulgata, Bressane dava sua definitiva contribuição para a retomada provando que em cinema (principalmente, no Brasil) é possível conjugar estética exigente e verba exígua, poesia arrojada em prazo concentrado. Como São Jerônimo, Bressane operava milagres.
14 - “Estorvo”, de Ruy Guerra (98): Em 1991, emputecido com a vitória da velha política de Collor na primeira eleição democrática para presidente do Brasil (e a derrota da “nova” por parte do correligionário Lula), Chico Buarque lançava seu pequeno, mas potente primeiro romance, “Estorvo”, um sucesso que ganharia Jabuti. Mas para levar à tela um enredo tão subjetivo, somente alguém muito conhecedor da obra do autor de “Vai Passar”. Ninguém melhor, então, que o moçambicano-brasileiro Ruy Guerra, companheiro de velhos tempos de Chico, seja no teatro, na música ou no próprio cinema. O clima perturbador da obra se potencializa nas tomadas distorcidas, na câmera nervosa, na montagem ousada e até no off com a voz do próprio Ruy, cujo sotaque arrevesado impõe a estranheza que a narrativa merece. Filme difícil, mas essencial.
15 - “A Causa Secreta”, de Sérgio Bianchi (96): O cinema deste paranaense radicado em Sampa nunca fez
concessões. Desde o curta “Mato Eles?”, de 1982, quando denunciava o descaso
com os índios, seu discurso é apontado para a crítica e toda a narrativa se
mobiliza neste sentido. Em “A Causa Secreta”, o cineasta se vale de todas as
suas armas para evidenciar a podridão moral da sociedade brasileira. E o faz
com alto poder mimético, numa construção narrativa incomum, atuações e
situações que incomodam de tão reais e agudas. Como outros filmes da década,
peca por certo – e compreensível – déficit técnico, mas supera as dificuldades
com a coesão da obra, essencial para entender o país em recente caminhada
democrática e todos os problemas que ainda iria demorar a se livrar.
16 - “Dois Córregos - Verdades Submersas no Tempo”, de Carlos Reichembach (99): Filho da Boca do Lixo carioca, o gaúcho Carlão, mesmo à época das
famigeradas pornochanchadas dos anos 70/80, produzia com qualidade, fosse na
fotografia, a qual era um ótimo técnico, fosse na própria direção. Nos anos 90,
já havia realizado o emocionante “Alma Corsária”, mas nada se compara tanto em emoção
quanto em acerto com “Dois Córregos”. Um romance que envolve política, história
e reminiscências do próprio cineasta, que filmou cenas na praia de
Cidreira, no litoral do seu estado de origem. E tem trilha magnífica de Ivan Lins pra arrematar.
17 - “Bicho de Sete Cabeças”, de Laís Bodanzky (2000): Entramos na leva de filmes de 2000, que sinalizam o começo do fim da retomada. E não se poderia iniciar com um título mais emblemático que esta estreia da talentosa Laís Bodanzky. Símbolo da retomada, é um dos filmes que denotaram que o cinema brasileiro saíra da pior fase e entrava numa outra nova e inédita. Além de lançar a cineasta e o hoje astro internacional Rodrigo Santoro, conta com uma estética e edição arrojadas, com sua câmera nervosa e atuações marcantes, tanto a do jovem protagonista quanto dos tarimbados Othon Bastos e Cássia Kiss. Vários prêmios: Qualidade Brasil, Grande Prêmio Cinema Brasil, Troféu APCA de "Melhor Filme", além de ser o filme mais premiado dos festivais de Brasília e do Recife. Além disso, também está nos 100 da Abracine. Trilha de André Abujamra e com músicas de Arnaldo Antunes.
18 - “Tolerância”, de Carlos Gerbase (00): O Rio Grande do Sul também é um dos protagonistas dessa virada do cinema brasileiro para a modernidade, e o responsável por isso é o primeiro e melhor longa do "replicante" Gerbase. Uma “história de sexo e violência” num thriller ao estilo do cineasta: trama envolvente, roteiro impecável e atuações conduzidas pela mão de quem carrega a experiência superoitista e da cena curta-metragem, que salvou na raça o cinema brasileiro quando nenhum longa era possível de ser feito. Maitê Proença, linda, está brilhante.
19 - “Eu, Tu, Eles”, de Andrucha Waddington (00): Outro marcante filme "
00", este tocante, mas ao mesmo tempo divertido e denunciador romance, marca a entrada de vez de Andrucha no mundo da tela grande, ele consagrado como diretor de videoclipes célebres de artistas da música brasileira e realizador do acanhado “Gêmeas”, de um ano antes. A trilha de Gil cumpre um papel fundamental, amarrando a narrativa tanto em suas novas e antigas composições, quanto nas versões de Gonzagão. Grande Prêmio Cinema Brasil de Filme, Fotografia, Montagem e Atriz para Regina Casé, maravilhosa, assim como seus “maridos”: Lima Duarte, Stênio Garcia e Luiz Carlos Vasconcelos.
20 - “O Auto da Compadecida”, de Guel Arraes (00): O cinema brasileiro fechava seu ciclo de maiores dificuldades
estruturais com um sucesso de crítica e público (2 mi de expectadores). Guel, que
havia construído uma carreira alternativa na dramaturgia através da televisão
desde a TV Pirata e aperfeiçoando-a ao longo dos anos, chegou pronto ao seu
primeiro longa, baseado na peça de Ariano Suassuna. Difícil ver uma trupe tão
grande de ótimos atores/atuações juntos: Selton, Nachtergaele, Nanini, Denise,
Diogo, Lima, Virgínia, Goulart... todos, todos impagáveis. João Grilo e Xicó formam uma das melhores duplas de personagens do cinema nacional. Comédia divertida – mas também
dramática – com o pique de edição e cenografia de Guel. Um clássico imediato.