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segunda-feira, 4 de dezembro de 2023

“Assassinos da Lua das Flores”, de Martin Scorsese (2023)


INDICADO A
MELHOR FILME
MELHOR DIREÇÃO
MELHOR ATRIZ
MELHOR ATOR COADJUNVANTE
MELHOR TRILHA SONORA
MELHOR CANÇÃO ORIGINAL
MELHOR DESIGN DE PRODUÇÃO
MELHOR MONTAGEM
MELHOR FOTOGRAFIA
MELHOR FIGURINO
 

Assisto Martin Scorsese no cinema há mais de 30 anos. Desde o célebre “Os Bons Companheiros”, em 1990, até hoje, acompanho a filmografia do cineasta nova-iorquino a cada lançamento, tendo perdido assim, na tela grande, talvez apenas uns dois nesse período. Vi desde produções menos empolgantes, como “Vivendo no Limite” e “O Irlandês” até obras-primas como “Os Bons...”, “Cabo do Medo” e “O Lobo de Wall Street”. Agora, em 2023, posso afirmar que presenciei mais uma de suas grandes realizações: “Assassinos da Lua das Flores”. Estrelado pelos dois atores favoritos do diretor, Robert De Niro e Leonardo DiCaprio, reúne pela primeira vez, por incrível que pareça, ambos em um filme sob suas lentes, celebrando o encontro de duas gerações de atores/parceiros da longa carreira.

O filme se passa no ano de 1920, na região norte-americana de Oklahoma, rica em petróleo, onde misteriosos assassinatos acontecem na tribo indígena de Osage. A série de ocorridos violentos desencadeia uma grande investigação envolvendo o recém-criado FBI, que passa a investigar um esquema maquinado pelo ganancioso pecuarista William Hale (De Niro), que convence seu sobrinho Ernest Burkhart (Di Caprio) a se casar com Mollie Kile (Lily Gladstone) para tirar-lhe as preciosas terras.

Llly no papel da rica indígena Mollie:
atuação que comanda o filme
O entrosamento do diretor de “Taxi Driver” com a dupla de atores é evidente, e isso é uma das forças do filme, tendo trabalhado com De Niro por 9 ocasiões e com DiCaprio, 6, totalizando 15, quase 60% de toda a filmografia do cineasta. “Assassinos...” é conduzido pelo talento da dupla, porém, assim como já ocorreu com Sharon Stone e Margot Robbie, outra atriz tem um papel primordial na trama, formando com eles um tripé narrativo, que dá especial ação à história: Lily Gladstone, no papel de Mollie. Ela divide as atenções da câmera, não raro atraindo-a para si e, mais que isso, ditando o aspecto emocional da história. Além de bonita, Lily é daquelas figuras, que, sob o olhar de Scorsese, tem o poder de dominar a cena quando filmada, principalmente pela força de sua expressividade e olhar, misto de encantamento, força e fragilidade. Quão simbólica é a sua personagem, uma vez que evoca a importância dos povos originários formadores das Américas tão dizimados pela cultura branca europeia.

Para além das boas atuações (que se estende a todo o elenco), “Assassinos...” é tecnicamente perfeito, como é característico do perfeccionista Scorsese. A Direção de Arte, a cargo de Jordan Crockett, em especial, juntamente com a fotografia, a maquiagem e os figurinos, são impecáveis, creio que dignas de indicação ao Oscar para 2024. A trilha sonora, do amigo e ídolo Robbie Robertson, ex-líder da The Band (a qual Scorsese filmara em 1978 no doc “The Great Waltz”) falecido em agosto, é econômica, mas totalmente assertiva, misturando os sons folk do interior norte-americano, desde o blues de raiz e os spirituals de trabalho a temas indígenas típicos. Na edição, mais uma vez a parceira Thelma Schoonmaker, fazendo chover e contribuindo para que um filme de extensas 3 horas e 26 minutos de rolo não perdesse o ritmo.

A multipremiada dupla De Niro/DiCaprio: ao todo,
15 filmes com Scorsese

Aliás, embora a montagem contribua para a coesão da obra, é indiscutível que o resultado final (seja acertado ou não) se deve em última análise ao diretor. E aí entra Scorsese e sua maestria. Com o aval da indústria cinematográfica para fazer produções no formato que quiser, seja longa, curta, documentário, série ou especial, ele não abre mão de estender-se para contar a história a que se propõe. E o faz isso sem provocar sequer uma “barriga” em todo o decorrer da fita! Atuações, música, arte, edição, foto, tudo contribuiu. Mas nada disso funcionaria não fosse a mão habilidosa do cara que já experimentou diversas formas de fazer filme, mas que busca, mesmo passados dos 80 anos de vida, surpreender o espectador. Contumaz crítico da “tecnologização” exacerbada de Hollywood e suas intermináveis e interdependentes franquias Marvel, Scorsese – embora não desconsidere o uso de efeitos especiais, a se ver por “A Invenção de Hugo Cabret”, de 2011 – vale-se da gramática do cinema para extrair nuances narrativas e técnicas que produzam impacto ao espectador. Isso, sim, é inovação. O uso de imagens de arquivo em P&B antigas com imagens de arquivo ”fake”, por exemplo, embora não novos, é um recurso que funciona muito bem em “Assassinos...”, cabendo-lhe perfeitamente à narrativa.

Foto dos verdadeiros Osage usadas
de forma documental no film
e
O roteiro, contudo, é responsável por tamanho sucesso. Escrito pelo próprio Scorsese em conjunto com o premiado Eric Roth (Oscar de Roteiro por “Forrest Gump”, em 1994), a história se baseia no best-seller homônimo do escritor David Grann, o roteiro prevê todos os diversos pontos de flexão e inflexão, estabelecendo o ritmo de uma história complexa e rica em detalhes e delineamentos. A própria escolha do tema, aliás, faz parte de um entendimento maior e, em certo aspecto, “alternativo” de Scorsese como cidadão norte-americano. Assim como outro talentoso cineasta contemporâneo seu, Clint Eastwood, Scorsese ama seu país, mas nem por isso (e até por isso) deixa de evidenciar as barbaridades que constituíram sua sociedade. A mesma abordagem crítica de obras como “Cabo do Medo” e “Taxi Driver” se refletem na sua visão revisionista em filmes históricos, casos de “Gangues de Nova York” e “A Época da Inocência”. É preciso trazer a luz a podridão do passado para que os novos tempos corrijam os rumos.

A este aspecto o roteiro também traz méritos no que se refere à construção psicológica das personagens. A obra original favorece, mas dar corpo a personagens tão complexos no audiovisual ganha uma dificuldade diferente, visto que diversas nuances que a escrita absorve, a tela exige que se escancare. A personalidade contraditória de Ernest, por exemplo, ora um marido dedicado, ora um ganancioso induzido pelo tio, é facilmente indutora a erros, por mais talento que Di Caprio tenha. 

Misturando drama histórico com faroeste, policial e filme de tribunal, Scorsese consegue forjar um filme rico em referências e qualidades diversas, que o colocam entre os melhores de sua longa filmografia. Se serão justos com o velho Scorsese ao indicá-lo ao Oscar, bem como DiCaprio como ator, Lily para atriz e DeNiro em coadjuvante, ainda é cedo para prever. É comum a Academia fazer “vistas grossas” a grandes realizadores como ele, Steven Spielberg, Spike Lee ou Brian De Palma como que fazendo de conta que eles sejam “premiáveis” por si só - erro que a leva, não raro, a ter que dar apressadamente um prêmio logo após cometerem uma descarada injustiça. Nestes vários anos que acompanho Scorsese seja na tela grande ou na televisão, ele ganhou apenas uma vez o Oscar de Direção pelo não mais que competente “Os Infiltrados”, em 2006, por terem-no esnobado pela superprodução “Gangues...” quatro anos antes. Porém, até o começo de 2024, quando começam a pipocar as previsões dos favoritos à estatueta, ainda tem bastante coisa para rolar e a indústria do cinema é muito programada para este período. Mas que seria justo, seria.

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trailer de "Assassinos da Lua das Flores"




Daniel Rodrigues

domingo, 24 de setembro de 2023

"Conflitos Internos", de Andrew Lau e Alan Mak (2002) vs. "Os Infiltrados", de Martin Scorsese (2006)

 



"Conflitos Internos" é aquele time que ganha, com uma certa facilidade, a maioria dos jogos na sua liga continental. No quesito filme policial certamente ele se destaca em relação a seus concorrentes asiáticos. Uma ótima trama, surpresas, reviravoltas, tensão, a produção de Hong Kong entrega tudo isso e deixa o espectador na constante expectativa de como seu jogo de gato e rato vai terminar. Só que quando ele sai da seu cercadinho e pega um time de uma liga maior, mais tradicional, mais bem preparado, com maior investimento, um elenco milionário e um baita treinador, não dá nem pra saída. Embora não seja regra que com todas essas vantagens um filme norte-americano supere uma produção de mercados alternativos, "Os Infiltrados", no caso específico, atropela seu adversário. Ele é melhor em tudo! Tudo que ele se propõe a fazer melhor que o original que o inspirou, ele consegue. O enredo tem mais elementos, o roteiro é mais bem trabalhado, a trilha sonora é excelente, a parte técnica é superior (luz, som, maquiagem...), Martin Scorsese, um dos maiores diretores de todos os tempos, conduz o filme de forma precisa e seu time conta com, nada mais nada menos que, Leonardo DiCaprioMatt Damon e Jack Nicholson, sem contar com ótimos coadjuvantes como Vera Farmiga, Martin Sheen e Mark Wahlberg

Com algumas pequenas diferenças, basicamente a trama nos dois casos, nos apresenta um agente de polícia trabalhando infiltrado na máfia, e um "afilhado" de um mafioso, moldado dentro da polícia, formado na academia, a serviço do criminoso dentro da força policial. Ambos os lados, percebendo que informações vazam, tanto para a lei quanto para os criminosos, iniciam suas caças particulares ao respectivo informante, gerando situações de perseguição, suspense e constante expectativa.

A refilmagem norte-americana trabalha melhor o início de tudo, constrói melhor a formação inicial dos dois protagonistas, desde suas épocas de bairro, até o desempenho dentro da academia de cadetes. Os motivos que levam à preterição do jovem Billy Castigan para serviços convencionais dentro da polícia e a opção por colocá-lo disfarçado, bem como, do outro lado, a relação muito estreita do mafioso Costello com seu pupilo Colin Sullivan, e a ascensão do rapaz dentro da polícia, tudo é mais bem desenvolvido do que no original, honconguês, que, por sua vez, é bastante breve nesse ponto, dando apenas uma rasa e apressada noção dos fatos, já passando adiante para o momento em que os dois, Chan e Lau, trabalham para lados opostos.

Outra diferença, é que em "Os Infiltrados" a psicóloga da polícia, além de ser namorada de Colin, o filhote de mafioso infiltrado na polícia (Matt Damon), mantém uma relação íntima com o perturbado Billy (DiCaprio), o policial infiltrado na máfia. Já em "Conflitos Internos", ela sequer conhece Lau, o jovem mafioso que se passa por policial, e, embora próxima a Chan, o verdadeiro agente disfarçado, não tem qualquer relação amorosa com ele. A relação da psicóloga com os dois e como ela se desenvolve, a crise no namoro com um deles, e gradual conquista de carinho e confiança com o outro, é importante para o desfecho que Scorsese propõe e, por outro lado, a ausência de um laço emocional da dra. Lee com qualquer um dos dois, torna a resolução da primeira versão frágil e inconsistente.

A propósito, ainda que não queira dar spoiler, tenho que dizer que o final é diferente nos dois e mas no remake nos dá uma sensação um pouco mais confortante, o que não significa que seja melhor ou pior...



"Conflitos Internos" (2002) - trailer


"Os Infiltrados" (2006) - trailer


Mas então vamos ao que interessa.

Você quer bola rolando? Tá aí o que você queria:

O argumento original, cheio de revelações, reviravoltas, surpresas, é ótimo, envolvente, excitante, e isso tudo é um grande mérito do filme asiático, por outro lado, o remake aperfeiçoa essa premissa, lhe dota de mais detalhes e complementos e algumas modificações bastante válidas para o roteiro. Ou seja, "Conflitos..." sai na frente mas leva o empate logo em seguida.

Mas é basicamente o que o time honconguês consegue fazer pois a partir daí a equipe norte-americana deita e rola. Martin Scorsese é mestre e, apesar de "Os Infiltrados" nem ser seu melhor trabalho, conduz o time brilhantemente à vitória. Ele dita o ritmo, da agilidade ao filme e tem uma capacidade ímpar de combinar cenas intensas, fortes, violentas, a uma trilha sonora invariavelmente precisa e de muito bom gosto. 2x1 para os Infiltrados de Scorsese.

O ataque formado por Matt Damon e pelo badalado LeoDiCaprio é competente, joga bem, mas a dupla, no fim das contas, não desequilibra. Leozinho, que é queridinho da imprensa, pedido pela torcida na Seleção, cotado para a Bola de Ouro, na hora do vamos ver, não consegue ser, verdadeiramente decisivo, como se espera dele e faz um  jogo apenas comum. Mark Wahlberg faz bem o papel de volantão, de cão-de-guarda da defesa, Vera Farmiga, surpreende vindo de trás, mas quem faz diferença mesmo no jogo são os veteranos: Martin Sheen, só na experiência, distribui o jogo ali na meuíca, e o cracaço de bola, Jack Nicholson, três vezes Melhor do Mundo da FIFA (ou seja, três Oscar na prateleira), chama o jogo para si, dá um show e guarda o seu. 3x1, Infiltrados.

A cena do chefe de polícia caindo do prédio é mais impactante no filme de 2006, bem como toda a construção da situação que leva a ela é mais inteligente e bem elaborada (4x1); em compensação, o desmascaramento do policial corrupto num terraço de Honk Kong, é boa nos dois, porém mais impressionante plasticamente no primeiro (4x2). Será que o time asiático volta pro jogo?

Não dá, não. 

Toda a situação envolvendo o envelope, a grafia errada por fora, a entrega dele cinema para o informante, a perseguição entre os dois incógnitos pelas ruas, e a revelação de quem estava de posse da informação, tudo é muito mais bem feito no filme de Martin Scorsese. 5x2 no placar.

Como se já não bastasse o banho de bola, o fato de ter levado o Oscar de melhor filme, direção, edição e roteiro adaptado garante mais uma bola na rede para o time de Scorsese e define a vitória dos Infiltrados. 6x2, e ficou barato!

No final do jogo, os atletas trocam as camisetas e aí, sim, ninguém sabe mais quem é de quem, e quem estava de qual lado... Mas aí já não importa mais.

O policial de verdade desmascarando o falso policial nas duas versões
(à esquerda, o original de 2002, e à direita, o remake de 2006)


Com um jogo de movimentação e infiltrações na defesa adversária, 
o time do técnico Martin Scorsese,
atropela a equipe dos treinadores Lau e Mak, 
boa mas cheia de problemas de grupo e conflitos internos.





por Cly Reis

 

segunda-feira, 3 de janeiro de 2022

"Não Olhe para Cima", de Adam McKay (2021)


 

Tem filmes que se transformam “da moda” e geram tanta discussão – nem sempre merecidamente – que é quase “chover no molhado” falar-lhes a respeito. É o caso de “Não Olhe para Cima”, que estreou no Netflix e em alguns cinemas pelo mundo – claro, com intenções de Oscar, visto que somente o streaming lhe impede de concorrer ao prêmio. Porém, a comédia sarcástica com lances de suspense de Adam McKay (“A Grande Aposta”, “Vice”) tem, sim, merecimento em ser tão comentado, ainda mais porque a celeuma a qual gerou é mundial e não restrita apenas ao país no qual foi produzido. A enxurrada de comentários nas redes sociais que correlacionam aspectos do filme à realidade brasileira, no entanto, não é à toa, visto que os terríveis tempos de bolsonarismo parecem-lhe estar retratados fielmente. Só por isso, mesmo que esteja sendo repetitivo, já merece se tecerem algumas observações.

Seja norte-americana, brasileira ou de qualquer lugar que o valha, “Não Olhe...” é um retrato tristemente muito bem traçado dos tempos de pós-verdade no qual vivemos. O longa conta a história de dois cientistas (os astrônomos Randall Mindy, vivido por Leonardo DiCaprio, e Kate Dibiasky, Jennifer Lawrence) que descobrem um corpo espacial sólido gigante que está vindo em direção à Terra e tentam alertar autoridades e imprensa para que providências sejam tomadas antes que as consequências sejam fatais. Porém, são envolvidos em um jogo político de interesses em que a ciência não é lavada a sério (alguma semelhança com políticos e pessoas que negam a vacina ou à própria existência do Coronavírus?). Pior: suas figuras e discurso são distorcidos e transformadas em produto ao bel prazer da mídia. A dupla de pesquisadores tenta encampar uma peregrinação na imprensa e acaba na Casa Branca, mas nada parece ser suficiente para que as pessoas “olhem para cima” de forma racional e despida de interesses próprios.

“Não Olhe...” expõe a máxima contradição dos tempos atuais: a de que não é a vida que imita a arte, e, sim, o contrário. O negacionismo, o ódio ao conhecimento, a polarização de ideias, a exaltação da ignorância, o interesse político-econômico e a intransigência ideológica estão todos evidentes. A semelhança – e a bizarrice –é tanta, que os mesmos famigerados memes que o filme mostra se produzirem sem controle se aplicam perfeitamente à realidade fora da ficção, como no paralelo de personagens do filme e figuras públicas brasileiras que corre pelas redes sociais: a presidente Orlean (Meryl Streep) comparada a Jair Bolsonaro; o filho da presidente Jason (Jonah Hill) com o deputado federal Carlos Bolsonaro; Randall com o microbiologista Átila Iamarino; e Kate com a bióloga Natália Pasternak– que, aliás, ela mesma identificou-se com a personagem.

Afora a edição ágil de Hank Corwin e a direção bem conduzida por McKay, que faz o longo filme não ter “barriga”, tamanho é o proveito do roteiro, as atuações são um destaque à parte. Maryl, deusa, está tragicamente magnífica no papel da patética presidente; DiCaprio, o maior de sua geração, mais uma vez dando o tamanho certo para o personagem; Jennifer, igualmente bem; e especialmente Mark Rylance, que vive o egoico magnata Peter Isherwell, cuja figura amorfa e andrógena denotam o quão perigosos são estes novos donos do mundo como Musk e Bezos.

No entanto, o que se destaca antes de tudo em “Não Olhe...” é seu roteiro, digno de Oscar. Escrito pelo próprio McKay (que levou a estatueta de Roteiro Adaptado em 2016 por "A Grande Aposta"), traz um retrato sem perdão da sociedade contemporânea em seus tempos líquidos de conexões digitais e desconexões humanas. A história é um compêndio de percepções muito acertadas de um mundo de radicalismos político, ideológico e, num entendimento mais profundo, religioso. É o império do absurdo, que só pode nos levar a um desastre irreparável. O longa guarda também uma metáfora de alerta para a questão climática no planeta: nesse ritmo de descontrole do ecossistema, o resultado será a destruição da vida como a conhecemos.

Atuações de gala abrilhantam o perspicaz "Não Olhe..."

Neste turbilhão de opiniões que o filme suscita, é interessante, contudo, perceber o mesmo comportamento autodestrutivo que este critica em relação à sociedade atual. Ou seja, a mentalidade está tão incrustrada que aqueles que deveriam ter mais condições de avaliar a obra como uma oportunidade de reflexão (independentemente se a consideram boa ou não, isso é irrelevante), são, justamente, os que tentam “lacrar”, mostrando-se os verdadeiros cegos. Uma crítica especializada, por exemplo, apontou que “Não Olhe...” é fadado a ser esquecido pela história por ser “um filme confuso, sem foco, pouco engraçado e, pior de tudo, que já nasce velho”. Ora, primeiramente, que não é incomum nos depararmos com filmes que, mesmo discutíveis em qualidade, marcam, sim, uma época, haja vista “A Primeira Noite de um Homem”, não necessariamente brilhante mas marcante para a geração baby boomer, ou o celebrado “Forrest Gump”, que justifica a barbárie social norte-americana de uma forma um tanto leviana. Entretanto, a questão vai além disso, pois não cabe a um ou outro dizer se a obra vai ou não perdurar: é um conjunto de fatores históricos, sociais e culturais que determinam, independente dos gostos pessoais. Avaliações como estas só reforçam, mascarada ou ignorantemente, o monstrengo autoritário e superpoderoso da sociedade digital-capitalista.

Dada a pertinência de “Não Olhe...” na leitura de nossos tempos – importante lembrar os detratores, aliás, que o filme foi escrito antes da pandemia, aumentando seu mérito – é muito difícil imaginar que seja esquecido no futuro. O que me deixa, inclusive, minimamente reconfortado considerando que a história não se baseia no exemplo brasileiro. Ou seja: esta onda de ultradireita e neofascismo não pertence somente a nós, brasileiros, o que significa que mais nações podem estar passando por isso e percebendo seus malefícios. Mas espero, sim, que o filme seja lembrado daqui a algum tempo como a antítese de um mundo para o qual caminhávamos em épocas passadas, mas que, a certa altura, percebendo o erro que cometíamos, tenhamos conseguido retomar a rota do bom senso e do humanismo. Quem sabe, assim, findar essa era atual para iniciar uma outra.

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trailer de "Não Olhe para Cima"


Daniel Rodrigues

segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

Oscar 2016 - Os Vencedores




E "Mad Max: Estrada da Fúria" foi o grande vencedor da noite! Bom, isso quantitativamente, porque qualitativamente o vencedor da noite pode ser considerado "O Regresso", com prêmios em algumas das principais categorias. Mas isso se, mesmo ganhando prêmios tão significativos, "Spotlight: Segredos Revelados" não tivesse levado o principal prêmio da noite. Foi isso, uma noite de premiações bastante divididas. Enquanto o road-movie apocalítico "Mad Max" arrebatava praticamente todos os prêmios técnicos, o incensado filme do mexicano Iñárritu conquistava aqueles que dão o grande indicativo de qualidade de um grande filme, exceto o de melhor filme que foi parar nas mãos do investigativo "Spotlight".
Numa cerimônia marcada pela polêmica das indicações para atores negros em Hollywood, tivemos um Chris Rock bastante desenvolto na condução dos trabalhos apesar de uma desconfortável insistência na questão racial, uma bela performance de Lady Gaga apresentando a canção do filme "The Hunting Ground", uma interpretação pífia de Dave Grohl tocando "Blackbird" dos Beatles durante a homenagem aos falecidos; o tricampeonato de Emmanuel Lubezki na fotografia e o bi de Iñárritu como diretor, fato que só acontecera duas vezes anteriormente na história da premiação.
As surpresas ficaram por conta de "Ex Machina" cujo principal mérito na minha opinião é o roteiro  de trama labiríntica e inteligente, ter levado o prêmio de efeitos visuais em detrimento a "Star Wars ep.VII: O Despertar da Força" ou até mesmo a "Mad Max" que vinha faturando todos os técnicos até então; a canção original ter ficado com a chatíssima trilha de "007 contra Spectre", a pior da história de James Bond; e, não exatamente surpresa, mas uma ponta de desapontamento que tenho certeza muitos compartilham  comigo, com o fato do carismático Silvester Stallone não ter levado sua estatueta por sua atuação em "Creed" nesta que provavelmente terá sido sua última chance.
No mais, "Amy", confirmou o favoritismo nos documentários; o mestre Ennio Morricone, com a trilha para "Os Oito Odiados", finalmente ganhou seu Oscar por um filme (havia ganho pelo conjunto da obra); e Leo, de grande crescimento artístico nos últimos anos, é verdade, mas favorecido esse ano por todo um contexto de ausência de medalhões como Nicholson, Redford, De Niro, de concorrentes em papeis de deficientes que sempre sensibilizam a academia, ou que revivessem personalidades históricas, finalmente levou sua tão desejada estatueta dourada pra casa. Nunca vi uma campanha tão grande para que um ator levasse esse prêmio mas, enfim... Que seja. Aleluia!
Ah, e antes que eu esqueça, não foi dessa vez que o Brasil trouxe o seu Oscar.

Confira abaixo a lista completa dos ganhadores:

Di Caprio e Iñárritu, os dois grandes
vencedores da noite.

Melhor filme
"Spotlight: Segredos revelados"


Melhor ator
Leonardo DiCaprio ("O regresso")

Melhor atriz
Brie Larson ("O quarto de Jack")

Melhor diretor
Alejandro G. Iñárritu ("O regresso")

Melhor canção original
"Writing's on the wall", Sam Smith ("007 contra Spectre")

Melhor trilha sonora
"Os 8 odiados", de Ennio Morricone

Melhor filme estrangeiro
"O filho de Saul" (Hungria)

Melhor curta de live action
"Stutterer"

Melhor documentário
"Amy"

Melhor documentário de curta-metragem
"A Girl in the River: The Price of forgiveness"

Melhor ator coadjuvante
Mark Rylance ("Ponte dos espiões")

Melhor animação
"Divertida mente"

Melhor curta de animação
"Bear Story"

Melhores efeitos visuais
"Ex Machina"

Melhor mixagem de som
"Mad Max: Estrada da fúria"

Melhor edição de som
"Mad Max: Estrada da fúria"

Melhor montagem
"Mad Max: Estrada da fúria"

Melhor fotografia
"O regresso"

Melhor cabelo e maquiagem
"Mad Max: Estrada da fúria"

Melhor design de produção
"Mad Max: Estrada da fúria"

Melhor figurino
"Mad Max: Estrada da fúria"

Melhor atriz coadjuvante
Alicia Vikander ("A garota dinamarquesa")

Melhor roteiro adaptado
"A grande aposta"

Melhor roteiro original
"Spotlight - Segredos revelados"





Cly Reis

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

"O Regresso", de Alejandro González Iñárritu (2016)



Deve ter sido delicioso aos que, pelo menos por algum período, puderam acompanhar just-in-time a filmografia de algum grande diretor do passado. No caso de Alfred Hitchcock, por exemplo: o mestre do suspense superava-se a cada produção que lançava, reelaborando às vezes a mesma ideia ao longo do tempo, desde a fase inglesa (anos 20 e 30), passando pelos primeiros anos nos Estados Unidos (década de 40) até chegar às obras-primas definitivas (50 e 60). É perceptível que a confusão no teatro lotado de “Os 39 Degraus” (1935) se repetira em “Cortina Rasgada” (1962), ou o mesmo tenha ocorrido com a cena da escada de “Suspeita” (1941) e, depois, na clássica de “Psicose” (1960), a que Norman Bates mata o detetive. Dois exemplos de um realizador que soube como poucos reciclar suas próprias ideias e progredir constantemente.

Dadas as devidas dimensões, os espectadores e cinéfilos de hoje podem gozar dessa sensação quanto ao cinema de Alejandro González Iñárritu. Ele, que começara em alto nível com a trilogia “Amores Perros” (2000), “21 Gramas” (2003) e “Babel” (2006), resvalou um pouco no hiperbólico “Biutiful” (2010) mas logo retomou-se com o labiríntico "Birdman" (2014), Oscar de melhor filme do ano passado. Agora, o cineasta mexicano, aproveitando com parcimônia elementos de todas as suas realizações anteriores, avança em estilo e estética e lança o filme que certamente é sua obra-prima até então: “O Regresso”. Dos favoritos para levar o mesmo prêmio que “Birdman”, é a produção de mais indicações este ano, 11 no total, tendo ainda grandes chances à estatueta em Melhor Ator, com Leonardo DiCaprio, e em Direção, com o próprio Iñárritu.

O filme, baseado numa história verídica (sobre o romance de Michael Punke) situa-se na primeira metade do século XIX e conta a história de Hugh Glass (DiCaprio), um forasteiro que parte com seu filho para o oeste americano disposto a ganhar dinheiro caçando. Atacado por um urso na floresta, fica seriamente ferido e é abandonado à própria sorte por um dos parceiros, John Fitzgerald (Tom Hardy, digno de Oscar também), o qual ainda mata seu filho. Entretanto, mesmo com toda adversidade, Glass consegue sobreviver e inicia uma árdua jornada em busca de vingança. Dado a personagens fortes, o talentoso DiCaprio, provavelmente o melhor ator de sua geração, se esbalda no papel. É impressionante vê-lo na pele de Glass nas cenas de solidão desafiando a natureza opressiva e ainda doente, com dor, fome e dilacerado por dentro pela brutal perda do filho.

Com a ajuda de um elenco afinado e de uma fotografia acachapante (de Emmanuel Lubezki, impecável tanto nos grandes planos quanto nos fechados), Iñárritu compõe um filme extremamente intenso, porém rigoroso. Nada está fora do lugar, nem mesmo a intensidade. Do roteiro (Iñarritu e Mark L. Smith) ao figurino, da cenografia à edição de som, da trilha sonora – do mestre Ruiychi Sakamoto – à montagem (Stephen Mirrione). Tudo é muito exato, porém, sem recair no artificial, comum ao tecnicista cinema norte-americano. Afinal, está se falando de um esteta do cinema da atualidade. Estão preservados vários elementos estilísticos que já se tornaram marcas de Iñárritu: sua câmara andante, contemplativa e participativa, o estreitamento entre civilização e barbárie, o limite entre vida e morte, o contato com o etéreo e, mais do que tudo, o animalesco instinto de sobrevivência do bicho homem.

Com esse suco, o diretor cria um western estilizado em que a carga emocional é permanente, mas muito bem conduzida. Diferentemente de outros filmes seus, em “O Regresso” Iñárritu, tão louvado pela linguagem inovadora, vale-se sem embaraço de uma narrativa clássica. E não poderia ter sido a melhor escolha, pois o enredo se presta a isso. Neste caso, a estrutura tradicional do cinema preenche o enredo, prescindindo da dificultação intrínseca à linguagem moderna. Com uma trama em que os personagens são apresentados de início e partindo de um problema, gera-se uma “crise” na história que faz com que os caminhos se diluam e se dificultem. Esse problema de resolução complicada é vencido pouco a pouco pelo personagem principal, gerando tensão à história, até que este chegue a seu objetivo. Não muito diferente de milhares de filmes nesta linha, o clímax é uma vingança. A construção dos personagens também respeita isso: há o herói com mais qualidades que defeitos e que, embora bruto, é movido por sentimentos genuínos. Em contrapartida, o vilão é tomado de inveja e maldade, enquanto há aqueles que, por não penderem nem a um nem a outro, cumprem a função de dar o contrapeso. Como na vida. Entretanto, até nisso é dado um teor diferenciado. Seguindo a abordagem realista que permeia toda a história, os índios não são nem os perversos dos bang-bangs enlatados nem idiotas indefesos. São, sim, mostrados como a História os deve ver: um bravo povo dizimado pela gananciosa civilização do homem branco.

É interessante notar a maturidade adquirida por Iñárritu no transcorrer de sua filmografia. Este começou com três filmes de tramas corais, quase novelas, bastante alicerçadas no roteiro do conterrâneo Guillermo Arriaga. Em “Biutiful”, quando tenta emancipar-se do parceiro de escrita, escorrega principalmente neste quesito, exagerando na dose de dramaticidade. Não repete o erro e, ainda por cima, realiza o inesperado e ousado “Birdman”, em que apresenta uma narrativa totalmente contemporânea e igualmente distinta da utilizada em seus primeiros filmes. Assim, em “O Regresso” Iñárritu pinça com inteligência feições de todas as suas obras anteriores, porém, sem deixar com que este perca personalidade. De “Biutiful”, está o aspecto espiritual do protagonista, que mantém contato constante com a esposa morta e, depois, com o filho. Até o enquadramento e o conceito fotográfico da tomada da copa de pinheiros altos com fumaça e cinzar no ar sob a neve é parecida. De “Birdman”, mesmo sendo o que mais se difere de “O Regresso” entre suas obras, é visível que a câmera na mão, ligeira mas firme e de ritmo humano, é novamente um personagem a mais na trama.  Da trilogia inicial, também: no segundo quadrante do filme criam-se quatro histórias paralelas: Glass tentando voltar; os companheiros já chegados ao forte; Fitzgerald e um comparsa a caminho; e o grupo de franceses trapaceando os índios. De “Amores Perros”, em especial, a equiparação bicho x homem é ainda mais clara. Um pouco de cada um dos cinco anteriores, mas principalmente do próprio “O Regresso”.

A impactante e real cena do ataque do urso.
Outro fator-base da história, também largamente usado no cinema clássico – mas de fácil ocorrência de erros –, são os elementos da natureza simbolizando os narrativos. A atmosfera selvagem não é apenas mostrada permanentemente através da fotografia, inóspita e desafiadora, mas num conceito amplo em que o homem é apenas mais um componente dentro daquele universo, assim como os animais e as intensas intempéries. Os sentidos estão todos despertos. Do tato, a umidade, o frio, o calor, a dor. Da audição, o zumbido do vento, o ofego do respirar, o estrondo das quedas d’água, os ruídos da mata. Tudo se mistura e se integra com muita propriedade à edição de som e à trilha sonora, igualmente inserida com lucidez e sem excessos. Tudo é vivo, o que faz com que tudo seja também morte. Dessa forma, Iñárritu se utiliza do ambiente natural e dos sentidos não como adereço, mas numa constante construção dos personagens e da narrativa. Glass, por exemplo, durante o seu regresso e ainda tentando se recuperar da surra do urso, põe sobre os ombros uma pele justamente deste grande mamífero, como se assumisse o papel do bicho. Antes mesmo, quando, muito debilitado, assiste a Fitzgerald matar seu filho sem poder fazer nada e espuma saliva pela boca, a mesma que o próprio urso deixa escorrer sobre seu rosto quando o ataca, pois o fazia pelo mesmo motivo que movia Glass: proteger sua cria. Homem e animal: nenhuma diferença.

DiCaprio, atuação para Oscar novamente.
Essa cena, aliás, é altamente impactante e merece destaque. Feita com um urso de verdade, o mais impressionante é que o ator também é de verdade. Sim, não é um dublê: é o próprio DiCaprio, inteiro dentro do personagem. Mesmo contracenando com um animal adestrado, ele saiu bem machucado pelo que se tem notícia. Valeu o esforço. Certamente é das cenas mais célebres dos últimos 20 anos, junto com a chuva de sapos de “Magnólia” ou o acidente no ringue com a lutadora de “Menina de Ouro”. Daquelas que entra para a seleta lista de cenas inesquecíveis do cinema mundial. Mas não apenas essa: o filme é uma sucessão de grandes momentos e sequências, várias daqueles de tirar o espectador da poltrona, como o ataque indígena do início, a fuga de Glass sobre o cavalo e, obviamente, o duelo final, cujo requinte da montagem remete ao tempo fílmico de Sergio Leone e John Ford. Chega a ter parecença com o tradicional ritmo de Quentin Tarantino, que o próprio muito se valeu no seu último longa, "Os Oito Odiados", também um western e que guarda-lhe também semelhanças estéticas. Diferentemente do filme de Tarantino, cujo proveito do máximo das sequências e dos diálogos o tornam de fato por vezes arrastado, em “O Regresso”, por conta da conjunção do tom realístico e da estrutura clássica da narrativa, os tempos de tensão e distensão estão perfeitos. Simbolizam, em última instância, a luta eterna entre o calor e o frio, entre o fogo e a água, entre o som e o silêncio, entre o bem e o mal. Entre o espaço e o tempo.

É o próprio tempo que, já fora da tela, poderá aligeirar-se no que tange a premiar Iñárritu dando-lhe a primazia jamais alcançada por ícones como William Wyler, Elia Kazan e Billy Wilder: o de levar o Oscar de Diretor em dois anos seguidos – feito obtido por apenas dois craques desde 1929: John Ford e Joseph L. Mankiewicz. Ou, contrariamente, o mesmo tempo venha a reconhecer com atraso DiCaprio, merecedor da estatueta há bastante tempo, seja em filmes que concorreu (“O Aviador”, “Diamante de Sangue”, "O Lobo de Wall Street") ou não (“Django Livre”, “J. Edgar”). Além destes, “O Regresso” desponta como favorito para levar ainda Filme, Ator Coadjuvante, Fotografia e Edição de Som. O reconhecimento no prêmio Bafta anteviu isso. Afinal, não se trata apenas da melhor produção de 2016: é, sim, um dos grandes dos últimos 10 ou 15 anos. Pode-se colocá-lo tranquilamente ao lado de títulos como “A Vida dos Outros”, "Guerra aoTerror" e “Ida”. Daqueles que vem para entrar para a lista dos essenciais do cinema, porque o tempo (novamente ele) é quem o dignificará para a eternidade. Ganhe o Oscar ou não.


trailer "O Regresso"






sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

"O Lobo de Wall Street", de Martin Scorsese (2013)






Uma das melhores combinações que existem atualmente no cinema norte-americano chama-se Scorsese/DiCaprio. Um, atrás das câmeras, e o outro, à frente. Martin Scorsese, o mestre que soube impor à indústria mais do que elementos narrativos, fílmicos e estilísticos da cena underground, mas, sim, o seu próprio olhar sensível e afiado sobre a sociedade, o qual acolhe o realístico e o fantástico. Leonardo DiCaprio, por sua vez, é o grande ator hollywoodiano da atualidade, capaz de, como os bons da arte de atuar, encarnar os papeis desde galã até os mais agudos sem parecer ele mesmo de uma atuação para a outra.

Pois “O Lobo de Wall Street” (2013), quinto trabalho em conjunto da dupla, vai além da estreia da parceria no inconsistente “Gangues de Nova York” (2002), em que é Daniel Day-Lewis quem cumpre o “fator Robert de Niro” e não DiCaprio; de “O Aviador” (2004), épico mas de difícil deglutição, já com DiCaprio à frente; e do brilhante e premiado “Os Infiltrados” (2006), em que o panteão de astros (Nicholson, Damon, Wahlberg, Sheen) faz com que os holofotes se dividam. Neste novo longa, porém, a química do trabalho entre os dois está amadurecida e DiCaprio conduz o filme com total controle num papel de difícil equilíbrio dramático, pois construído sobre o perfil psicológico preferido de Scorsese muitas vezes assumido pelo talhado e exemplar de Niro: personalidade obsessiva, ambiciosa, extravagante e depressiva mas com grande poder de atração.

O filme conta a história do “vida loka” Jordan Belfort (DiCaprio), um jovem sem orientação dos pais que vai trabalhar como corretor em Wall Street, onde conhece Mark Hanna (Matthew McConaughey, magnífico nos menos de 10 minutos em que aparece), de quem recebe ensinamentos de como lidar com dinheiro, o que acaba levando para toda a vida. A Segunda-Feira Negra, no entanto, faz com que as bolsas caiam repentinamente e Belfort perca o emprego. Vai trabalhar, assim, numa corretora de fundo de quintal que lida com papéis baratos. Lá tem a ideia de montar uma empresa focada neste tipo de negócio, cujas vendas são de valores mais baixos mas, em compensação, o retorno para o corretor é bem mais vantajoso. Cria, então, ao lado de Donnie Azoff (companheiro de todas as horas e carreiras de pó) e de meia dúzia de amigos na mesma vibe de enriquecer, a corretora Stratton Oakmont, uma máquina de produzir dinheiro que faz com que todos passem a levar uma vida sem limites dedicada ao prazer, ao sexo e às drogas.

Neste sentido, Belfort se parece com Henry Hill (Ray Liotta) de “Os Bons Companheiros” ou Jimmy Doyle (DeNiro) de “New York, New York”, fator este que pode ser a única crítica possível ao filme. Ao rodar uma nova “cinebiografia sem cortes” depois de uma fantasia infantil, "A Invenção de Hugo Cabret" (2011), e de um terror psicológico, "Ilha do Medo" (2010) – seus dois trabalhos anteriores –, Scorsese estaria repetindo o formato de “Os Bons...”, “Aviador” ou “Touro Indomável”. Sim, de fato. Mas qual o problema? Além de divertir com suas tiradas e cenas de humor grotesco (a cena em que DiCaprio cheira cocaína para anular o efeito de outra droga e reassumir o controle do próprio corpo para salvar o amigo, fazendo um paralelo com o desenho do Popeye comendo espinafre na televisão, é digna dessa classificação) e da habitual montagem hábil da mestra Thelma Schoonmaker, “O Lobo...” é exemplar em atuações, não só do protagonista (Jonah Hill, como Donnie, merece inquestionavelmente um Oscar de Coadjuvante, o qual concorre), mas em condução narrativa, ainda mais tratando-se de uma produção de 3 horas, que o espectador não vê passar tamanha a capacidade de prender-lhe a atenção.

A belíssima Margot Robbie
como Naomi, a esposa de Belfort
Igualmente, o filme presenteia o mundo com a beleza e o talento da australiana Margot Robbie, no seu primeiro papel de relevância em Hollywood, e com a sempre magnífica trilha sonora (que contém coisas como Bo DiddleyAhmad Jamal Trio, Alcatraz, Foo Fighters, Devo e Cypress Hill, sabidamente resultado do gosto pessoal de Scorsese). Mas, como ressaltado anteriormente, é a força cênica de DiCaprio que sustenta “O Lobo...”, de quem o diretor consegue extrair a representação certa daquilo que pretende evidenciar: o sistema esquizofrênico e superficial da sociedade moderna. Ou melhor, da construção dos porquês desse sistema, uma vez que a biografia do contraventor Belfort transcorre da metade dos anos 80 até os dias atuais, acompanhando fatos históricos como a Black Monday, o avanço tecnológico, a entrada de novas drogas no mercado, etc. O fato de o protagonista se tornar um respeitado e rico consultor empresarial (o que, de fato, ocorre, uma vez que a história, roteirizada por Terence Winter, é baseada na autobiografia do próprio Belfort), em contraposição à enlouquecida investida no submundo, elemento psicológico reforçado ao espectador durante todos os minutos antecessores, deixa claro tal crítica. Quem são essas pessoas públicas a quem estamos endeusando? O que está por trás dessa imagem que a mídia engendra e tenta vender ao maior número de pessoas possível? A que caminhos levam a supervalorização do dinheiro e do prazer físico-carnal? Perguntas que ganham novos pontos de interrogação na abordagem realística e desmistificada impressa por Scorsese, coisa que ele alcança novamente e “O Lobo...” assim como faz com maestria desde quando, de fato, acertou a mão, em “Caminhos Perigosos”, de 1973.

É satisfatório saber que “O Lobo...” já é a maior bilheteria de Martin Scorsese em sua carreira, tanto pela torcida pelo filme e a ele, cineasta que sempre apostou no questionamento da sociedade contemporânea e na ruptura com os modelos pré-estabelecidos da linguagem cinematográfica (e sem deixar de reverenciar quem gosta), quanto pelo o que isso representa para o cinema em dias atuais: a proposição de uma visão mais integrada das coisas, sem excessos tanto de ideologias yankees imundas nem de rompimento total com a arte. Nem tanto para blockbuster nem para Dogma 95. Cinema, na sua essência, é saber contar uma história em audiovisual de uma forma interessante e cativante. Pois o novo Scorsese/DiCaprio cumpre isso muito bem. Se vai ganhar algum Oscar, mesmo com o ator principal sendo sério candidato, não se sabe, até porque a Academia já cometeu muitas barbaridades em nome de ideologias políticas duvidosas, e uma implicância com alguma ferida que o filme porventura toque não seria de se estranhar que não leve mesmo alguma estatueta. Mas a torcida é válida, pois predicados não faltam ao longa.

trailler "O Lobo de Wall Street"




quarta-feira, 31 de março de 2010

"Ilha do Medo", de Martin Scorsese (2010)



Fã de Martin Scorsese como sou, fui no último sábado assistir a "Ilha do Medo", no cinema.
Mais um bom filme deste que é um dos maiores diretores de todos os tempos. Não entra na lista das suas grandes obras como "Taxi Driver", "Os Bons Companheiros" ou "Touro Indomnável", mas  não faz feio, não.Scorsese constrói em "Ilha do Medo" um verdadeiro labitinto psicológico e nos convida a entrar nele. Montando magistralmente e com calma a teia da trama, aos poucos coloca o espectador de tal forma diante dos fatos, que acaba por nos causar as mesmas confusões que afligem a cabaça do detetive Daniels, vivido por Leonardo DiCaprio. No filme, o Detetive Tedy Daniels é chamado a uma instituição penal para presos com distúrbios mentais, situada em uma ilha, a fim de solucionar o desaparecimento ou fuga de uma paciente. Desde sua chegada tudo parece muito estranho e vai ficando mais ainda: os médicos, a paciente, as circunstâncias da fuga, os métodos da entidade, e o próprio detetive Daniels e sua cabeça perturbada pela morte, anos antes, da esposa. A ilha presídio é mostrada sempre com um aspecto sinistro, quase macabro, com pedras escuras, mar revolto, névoas densas, céu cor de chumbo, deixando invariavelmente as cenas e imagens pesadíssimas.
Mesmo não sendo uma obra-prima deste mestre do cinema, mostra com certeza, que ele não se acomodou com um Oscar na estante e à sombra dele passou a fazer filminhos pra "galera". O que se vê em "Ilha do Medo" é exatamente o contrário: um cineasta que mesmo já tendo conquistado tudo, e que ao longo de sua carreira conseguiu agradar o público mais exigente e o público comum, e além disso é saudado pela crítica (o que é difícil), ainda se mostra inquieto, arrisca e busca novos caminhos. E, diga-se de passagem, se sai muito bem nesta experiência. 

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Ponto negativo, pra mim, é essa preferência do diretor por Leonardo DiCaprio em todos os seus últimos filmes.
Cara, não consigo ver nele um grande ator e nem vê-lo com perfil para um papel com este da "Ilha do Medo", por exemplo. Um detetive durão, violento, veterano da 2° guerra. Não sei... Não me cai.
Pode ser um pouco de preconceito meu por tê-lo visto com cara de garoto fazendo papeis de menino bonito, como "rei do mundo" em "Titanic", mas devo dizer que tento não associar a estas coisas e sim enxergar porquê Martin Scorsese gosta tanto de DiCaprio.
Ainda não consegui.




Cly Reis