Uma das melhores combinações que existem atualmente no cinema
norte-americano chama-se Scorsese/DiCaprio. Um, atrás das câmeras, e o outro, à
frente. Martin Scorsese, o mestre que soube impor à indústria mais do que
elementos narrativos, fílmicos e estilísticos da cena underground, mas, sim, o
seu próprio olhar sensível e afiado sobre a sociedade, o qual acolhe o realístico
e o fantástico. Leonardo DiCaprio, por sua vez, é o grande ator hollywoodiano da
atualidade, capaz de, como os bons da arte de atuar, encarnar os papeis desde
galã até os mais agudos sem parecer ele mesmo de uma atuação para a outra.
Pois “O Lobo de Wall Street” (2013), quinto trabalho em conjunto da
dupla, vai além da estreia da parceria no inconsistente “Gangues de Nova York”
(2002), em que é Daniel Day-Lewis quem cumpre o “fator Robert de Niro” e não DiCaprio;
de “O Aviador” (2004), épico mas de difícil deglutição, já com DiCaprio à
frente; e do brilhante e premiado “Os Infiltrados” (2006), em que o panteão de
astros (Nicholson, Damon, Wahlberg, Sheen) faz com que os holofotes se dividam.
Neste novo longa, porém, a química do trabalho entre os dois está amadurecida e
DiCaprio conduz o filme com total controle num papel de difícil equilíbrio
dramático, pois construído sobre o perfil psicológico preferido de Scorsese
muitas vezes assumido pelo talhado e exemplar de Niro: personalidade obsessiva,
ambiciosa, extravagante e depressiva mas com grande poder de atração.
O filme conta a história do “vida loka” Jordan Belfort (DiCaprio), um
jovem sem orientação dos pais que vai trabalhar como corretor em Wall Street,
onde conhece Mark Hanna (Matthew McConaughey, magnífico nos menos de 10 minutos
em que aparece), de quem recebe ensinamentos de como lidar com dinheiro, o que
acaba levando para toda a vida. A Segunda-Feira Negra, no entanto, faz com que
as bolsas caiam repentinamente e Belfort perca o emprego. Vai trabalhar, assim,
numa corretora de fundo de quintal que lida com papéis baratos. Lá tem a ideia
de montar uma empresa focada neste tipo de negócio, cujas vendas são de valores
mais baixos mas, em compensação, o retorno para o corretor é bem mais
vantajoso. Cria, então, ao lado de Donnie Azoff (companheiro de todas as horas
e carreiras de pó) e de meia dúzia de amigos na mesma vibe de enriquecer, a corretora Stratton Oakmont, uma máquina de produzir
dinheiro que faz com que todos passem a levar uma vida sem limites dedicada ao
prazer, ao sexo e às drogas.
Neste sentido, Belfort se parece com Henry Hill (Ray Liotta) de “Os Bons
Companheiros” ou Jimmy
Doyle (DeNiro) de “New York, New York”, fator este que pode ser a única
crítica possível ao filme. Ao rodar uma nova “cinebiografia sem cortes” depois
de uma fantasia infantil, "A Invenção de Hugo Cabret" (2011), e de um terror
psicológico, "Ilha do Medo" (2010) – seus dois trabalhos anteriores –, Scorsese
estaria repetindo o formato de “Os Bons...”, “Aviador” ou “Touro Indomável”.
Sim, de fato. Mas qual o problema? Além de divertir com suas tiradas e cenas de
humor grotesco (a cena em que DiCaprio cheira cocaína para anular o efeito de
outra droga e reassumir o controle do próprio corpo para salvar o amigo,
fazendo um paralelo com o desenho do Popeye comendo espinafre na televisão, é
digna dessa classificação) e da habitual montagem hábil da mestra Thelma Schoonmaker,
“O Lobo...” é exemplar em atuações, não só do protagonista (Jonah Hill, como
Donnie, merece inquestionavelmente um Oscar de Coadjuvante, o qual concorre), mas
em condução narrativa, ainda mais tratando-se de uma produção de 3 horas, que o
espectador não vê passar tamanha a capacidade de prender-lhe a atenção.
A belíssima Margot Robbie
como Naomi, a esposa de Belfort
Igualmente, o filme presenteia o mundo com a beleza e o talento da australiana Margot Robbie, no
seu primeiro papel de relevância em Hollywood, e com a sempre magnífica trilha sonora
(que contém coisas como Bo Diddley, Ahmad Jamal Trio, Alcatraz, Foo Fighters, Devo e Cypress Hill, sabidamente
resultado do gosto pessoal de Scorsese). Mas, como ressaltado anteriormente, é
a força cênica de DiCaprio que sustenta “O Lobo...”, de quem o diretor consegue
extrair a representação certa daquilo que pretende evidenciar: o sistema
esquizofrênico e superficial da sociedade moderna. Ou melhor, da construção dos
porquês desse sistema, uma vez que a biografia do contraventor Belfort
transcorre da metade dos anos 80 até os dias atuais, acompanhando fatos
históricos como a Black Monday, o avanço tecnológico, a entrada de novas drogas
no mercado, etc. O fato de o protagonista se tornar um respeitado e rico
consultor empresarial (o que, de fato, ocorre, uma vez que a história,
roteirizada por Terence Winter, é baseada na autobiografia do próprio Belfort),
em contraposição à enlouquecida investida no submundo, elemento psicológico
reforçado ao espectador durante todos os minutos antecessores, deixa claro tal
crítica. Quem são essas pessoas públicas a quem estamos endeusando? O que está
por trás dessa imagem que a mídia engendra e tenta vender ao maior número de
pessoas possível? A que caminhos levam a supervalorização do dinheiro e do
prazer físico-carnal? Perguntas que ganham novos pontos de interrogação na
abordagem realística e desmistificada impressa por Scorsese, coisa que ele
alcança novamente e “O Lobo...” assim como faz com maestria desde quando, de
fato, acertou a mão, em “Caminhos Perigosos”, de 1973.
É
satisfatório saber que “O Lobo...” já é a maior bilheteria de Martin Scorsese
em sua carreira, tanto pela torcida pelo filme e a ele, cineasta que sempre
apostou no questionamento da sociedade contemporânea e na ruptura com os
modelos pré-estabelecidos da linguagem cinematográfica (e sem deixar de
reverenciar quem gosta), quanto pelo o que isso representa para o cinema em
dias atuais: a proposição de uma visão mais integrada das coisas, sem excessos
tanto de ideologias yankees imundas
nem de rompimento total com a arte. Nem tanto para blockbuster nem para Dogma 95. Cinema, na sua essência, é saber
contar uma história em audiovisual de uma forma interessante e cativante. Pois
o novo Scorsese/DiCaprio cumpre isso muito bem. Se vai ganhar algum Oscar,
mesmo com o ator principal sendo sério candidato, não se sabe, até porque a
Academia já cometeu muitas barbaridades em nome de ideologias políticas
duvidosas, e uma implicância com alguma ferida que o filme porventura toque não
seria de se estranhar que não leve mesmo alguma estatueta. Mas a torcida é
válida, pois predicados não faltam ao longa.
Fã de Martin Scorsese como sou, fui no último sábado assistir a "Ilha do Medo", no cinema.
Mais um bom filme deste que é um dos maiores diretores de todos os tempos. Não entra na lista das suas grandes obras como "Taxi Driver", "Os Bons Companheiros" ou "Touro Indomnável", mas não faz feio, não.Scorsese constrói em "Ilha do Medo" um verdadeiro labitinto psicológico e nos convida a entrar nele. Montando magistralmente e com calma a teia da trama, aos poucos coloca o espectador de tal forma diante dos fatos, que acaba por nos causar as mesmas confusões que afligem a cabaça do detetive Daniels, vivido por Leonardo DiCaprio. No filme, o Detetive Tedy Daniels é chamado a uma instituição penal para presos com distúrbios mentais, situada em uma ilha, a fim de solucionar o desaparecimento ou fuga de uma paciente. Desde sua chegada tudo parece muito estranho e vai ficando mais ainda: os médicos, a paciente, as circunstâncias da fuga, os métodos da entidade, e o próprio detetive Daniels e sua cabeça perturbada pela morte, anos antes, da esposa. A ilha presídio é mostrada sempre com um aspecto sinistro, quase macabro, com pedras escuras, mar revolto, névoas densas, céu cor de chumbo, deixando invariavelmente as cenas e imagens pesadíssimas.
Mesmo não sendo uma obra-prima deste mestre do cinema, mostra com certeza, que ele não se acomodou com um Oscar na estante e à sombra dele passou a fazer filminhos pra "galera". O que se vê em "Ilha do Medo" é exatamente o contrário: um cineasta que mesmo já tendo conquistado tudo, e que ao longo de sua carreira conseguiu agradar o público mais exigente e o público comum, e além disso é saudado pela crítica (o que é difícil), ainda se mostra inquieto, arrisca e busca novos caminhos. E, diga-se de passagem, se sai muito bem nesta experiência.
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Ponto negativo, pra mim, é essa preferência do diretor por Leonardo DiCaprio em todos os seus últimos filmes.
Cara, não consigo ver nele um grande ator e nem vê-lo com perfil para um papel com este da "Ilha do Medo", por exemplo. Um detetive durão, violento, veterano da 2° guerra. Não sei... Não me cai.
Pode ser um pouco de preconceito meu por tê-lo visto com cara de garoto fazendo papeis de menino bonito, como "rei do mundo" em "Titanic", mas devo dizer que tento não associar a estas coisas e sim enxergar porquê Martin Scorsese gosta tanto de DiCaprio.
Ainda não consegui.
Um dos maiores realizadores vivos do cinema mundial chega aos 75 anos. Não seria necessariamente motivo de comemoração, afinal, não são poucos cineastas que, longevos, atingiram idades semelhantes nos últimos tempos. Porém, está se falando de Martin Scorsese, o mestre do cinema norte-americano, ao mesmo tempo um de seus principais renovadores e um autor de estilo muito próprio e cativante, que une a cultura pop, visíveis influências escolas de grandes diretores do cinema (Kazan, Kurosawa, Kubrick, Ford, Leone) e apuro técnico muitas vezes inigualável. Pra comemorar os 75 anos de Scorsese, completos no último dia 17, nosso blogger Paulo Moreira escolheu seus 10 filmes preferidos do mestre, cada um com com pequenos comentários:
The fucking best!! Perfeição a cada fotograma. TUDO é bom até a mini-participação do Michael Imperoli dos Sopranos como o cara que servia os drinks dos mafiosos e é morto pelo Joe Pesci na mesa de jogo. Trilha-sonora de luxo!
Scorsese com o elenco de 'Goodfellas'
Como ator em 'Taxi Driver'
2 – TAXI DRIVER(1976)
A paranoia americana e novaiorquina em seu apogeu. Jodie Foster nunca foi melhor do que aqui, assim como De Niro.
3 – CAMINHOS PERIGOSOS("Mean Streets", 1973) Onde o cinema do Scorsese começa a se mostrar. Outra trilha maravilhosa.
4 – DEPOIS DE HORAS ("After Hours", 1985) Kafka em NYC. Precisa dizer mais?? E ainda tem uma cena que tira sarro da minha ídola suprema, Joni Mitchell. Griffin Dunne no maior papel de sua diminuta carreira.
5 – TOURO INDOMÁVEL ("Raging Bull, 1980) Fotografia em P&B pra não chocar com tanto sangue - mal sabia ele que os Sexta-Feiras 13 iriam dar um banho de sangue sem pudor no público. De Niro engorda, emagrece, engorda, emagrece e dá um show. Cathy Moriarty fazendo seu próprio papel de loura platinada entediada. Gostossíssima!!
Com De Niro no ringue-cenário
Outra ponta como ator
6 - O REI DA COMÉDIA ("The King Comedy", 1983) Rupert Pupkin é o fã maluco do Jerry Lewis. De Niro sensacional e a Sandra Bernhardt incrível. Porque esta mulher não deu certo?
7 – CASSINO ("Casino", 1995) "Goodfellas" parte DOIS com a atuação estelar da Sharon Stone fazendo a mais louca das mulheres loucas. De Niro & Pesci se amando e se odiando.
9 – OS INFILTRADOS("The Departed", 2006) Duelo de titãs: DiCaprio & Nicholson mais Martin Sheen, Matt Damon e Mark Wahlberg de troco.
10 – CABO DO MEDO ("Cape Fear", 1991) Lembro quando saiu este filme o Pedro Ernesto - ele mesmo, o "Demóis" - dizia que tinha de trocar o nome pra ME CAGO DE MEDO!! HAHAHAHAH O casting é outra obra: o loucaço Nick Nolte fazendo o papel de bundão; a grande Jessica Lange da esposa mala, a chatinha Juliette Lewis da adolescente putinha e o De Niro, aqui sim como o Diabo, muito melhor do que no chatérrimo "Coração Satânico".
Conversando com De Niro nos bastidores de 'Cabo do Medo'
E saiu a lista dos indicados para o Oscar 2016!
Surpresa para mim, apesar dos muitos elogios que ouvi e li a respeito, é "Mad Max: Estrada da Fúria" ter recebido 10 indicações, só atrás de 'O Regresso" de Alejandro González Iñárritu que pode fazer um bicampeonato em Hollywood. Outros que aparecem como bons candidatos, pelas qualidades que vem sendo apontadas e pelo número de indicações são 'Spotlight" (6 indicações), "Perdido Em Marte" (7) e "A Grande Aposta" (5). Tarantino, com seu "Os Oito Odiados" dessa vez ficou de fora da corrida principal de filme e direção, e até de sua especialidade, o roteiro original, mas mesmo assim concorre em três categorias. Nas categorias técnicas "Star Wars: O Despertar da Força" deve fazer uma limpa, mas sempre de olho em "Mad Max" que também disputa com qualidade algumas delas.
No mais, Leo DiCaprio que goza de grande torcida feminina, muito mais por suas qualidades físicas do que técnicas, terá uma nova chance por sua atuação no filme de Iñárritu; Stallone recebe reconhecimento importante pela nominação a ator coadjuvante; e a animação brasileira "O Menino e o Mundo" tem a honra de ser indicado mas terá uma parada duríssima pele frente, o favoritíssimo "Divertidamente" da Disney/Pixar.
Conheça, abaixo, todos os indicados. A premiação ocorre no dia 28 de fevereiro em Los Angeles.
Melhor filme
"A grande aposta" "Ponte dos espiões" "Brooklyn" "Mad Max: Estrada da fúria" "Perdido em Marte" "O regresso" "O quarto de Jack" "Spotlight: Segredos revelados"
Melhor ator
Bryan Cranston ("Trumbo") Matt Damon ("Perdido em Marte") Leonardo DiCaprio ("O regresso") Michael Fassbender ("Steve Jobs") Eddie Redmayne ("A garota dinamarquesa")
Melhor atriz
Cate Blanchett ("Carol") Brie Larson ("O quarto de Jack") Jennifer Lawrence (“Joy”) Charlotte Rampling (“45 anos”) Saoirse Ronan ("Brooklyn")
Melhor diretor
Alejandro G. Iñárritu ("O regresso") Tom McCarthy ("Spotlight: Segredos revelados") George Miller ("Mad Max: Estrada da fúria") Adam McKay ("A grande aposta") Lenny Abrahamson ("O quarto de Jack")
Melhor animação
"Anomalisa" "O menino e o mundo" "Divertida mente" "Shaun, o carneiro" "Quando estou com Marnie"
Melhor filme estrangeiro
"Embrace of the Serpent" (Colômbia) "Cinco graças" (França) "O filho de Saul" (Hungria) "Theeb" (Jordânia) "A war" (Dinamarca)
Melhor trilha sonora
"Ponte dos espiões" "Carol" "Os 8 odiados" "Sicario" "Star Wars: O despertar da força"
Melhor roteiro adaptado
"A grande aposta" "Brooklyn" "Carol" "Perdido em Marte" "O quarto de Jack"
"Ponte dos espiões" "A garota dinamarquesa" "Mad Max: Estrada da fúria" "Perdido em Marte" "O regresso"
Melhor fotografia
"Carol" "Os oito odiados" "Mad Max: Estrada da fúria" "O regresso" "Sicario"
Melhor figurino
"Carol" "Cinderela" "A garota dinamarquesa" "Mad Max: Estrada da fúria" "O regresso"
Melhores efeitos visuais
"Ex Machina" "Mad Max: Estrada da fúria" "Perdido em Marte" "O regresso" "Star Wars: O despertar da força"
Melhor montagem
"A grande aposta" "Mad Max: Estrada da fúria" "O regresso" "Spotlight: Segredos revelados" "Star Wars: O despertar da força"
Melhor atriz coadjuvante
Jennifer Jason Leigh ("Os 8 odiados") Rooney Mara ("Carol") Rachel McAdams ("Spotlight: Segredos revelados") Alicia Vikander ("A garota dinamarquesa") Kate Winslet ("Steve Jobs")
Melhor ator coadjuvante
Christian Bale ("A grande aposta") Tom Hardy ("O regresso") Mark Ruffalo ("Spotlight: Segredos revelados") Mark Rylance ("Ponte dos espiões") Sylvester Stallone ("Creed")
Melhor edição de som
"Mad Max: Estrada da fúria" "Perdido em Marte" "O regresso" "Sicario" "Star Wars: O despertar da força"
Melhor mixagem de som
"Ponte dos espiões" "Mad Max: Estrada da fúria" "Perdido em Marte" "O regresso" "Star Wars: O despertar da força"
Melhor curta de animação
"Bear Story" "Prologue" "Sanjay's Super Team" "We can't live without Cosmos" "World of tomorrow"
Melhor curta de live action
"Ave Maria" "Day one" "Everything will be okay (Alles Wird Gut)" "Shok" "Stutterer"
Melhor cabelo e maquiagem
"Mad Max" "The 100-year-old man who climbed out the window and disappeared" "O regresso"
Melhor documentário
"Amy" "Cartel Land" "The look of silence" "What happened, Miss Simone?" "Winter on fire: Ukraine's Fight for Freedom"
Melhor documentário de curta-metragem
"Body team 12" "Chau, beyond the lines" "Claude Lanzmann: Spectres of the Shoah" "A Girl in the River: The Price of forgiveness" "Last day of freedom"
Melhor canção original
"Earned it", The Weekend ("Cinquenta tons de cinza") "Manta Ray", J. Ralph & Antony ("Racing extinction") "Simple song #3", Sumi Jo e Viktoria Mullova ("Youth") "Writing's on the wall", Sam Smith ("007 contra Spectre") "Til it happens to you", Lady Gaga ("The hunting ground")
Assisto Martin Scorsese no cinema há mais de 30 anos. Desde o célebre “Os Bons Companheiros”, em 1990, até hoje, acompanho a filmografia do cineasta nova-iorquino a cada lançamento, tendo perdido assim, na tela grande, talvez apenas uns dois nesse período. Vi desde produções menos empolgantes, como “Vivendo no Limite” e “O Irlandês” até obras-primas como “Os Bons...”, “Cabo do Medo” e “O Lobo de Wall Street”. Agora, em 2023, posso afirmar que presenciei mais uma de suas grandes realizações: “Assassinos da Lua das Flores”. Estrelado pelos dois atores favoritos do diretor, Robert De Niro e Leonardo DiCaprio, reúne pela primeira vez, por incrível que pareça, ambos em um filme sob suas lentes, celebrando o encontro de duas gerações de atores/parceiros da longa carreira.
O filme se passa no ano de 1920, na região norte-americana de Oklahoma, rica em petróleo, onde misteriosos assassinatos acontecem na tribo indígena de Osage. A série de ocorridos violentos desencadeia uma grande investigação envolvendo o recém-criado FBI, que passa a investigar um esquema maquinado pelo ganancioso pecuarista William Hale (De Niro), que convence seu sobrinho Ernest Burkhart (Di Caprio) a se casar com Mollie Kile (Lily Gladstone) para tirar-lhe as preciosas terras.
Llly no papel da rica indígena Mollie: atuação que comanda o filme
O entrosamento do diretor de “Taxi Driver” com a dupla de atores é evidente, e isso é uma das forças do filme, tendo trabalhado com De Niro por 9 ocasiões e com DiCaprio, 6, totalizando 15, quase 60% de toda a filmografia do cineasta. “Assassinos...” é conduzido pelo talento da dupla, porém, assim como já ocorreu com Sharon Stone e Margot Robbie, outra atriz tem um papel primordial na trama, formando com eles um tripé narrativo, que dá especial ação à história: Lily Gladstone, no papel de Mollie. Ela divide as atenções da câmera, não raro atraindo-a para si e, mais que isso, ditando o aspecto emocional da história. Além de bonita, Lily é daquelas figuras, que, sob o olhar de Scorsese, tem o poder de dominar a cena quando filmada, principalmente pela força de sua expressividade e olhar, misto de encantamento, força e fragilidade. Quão simbólica é a sua personagem, uma vez que evoca a importância dos povos originários formadores das Américas tão dizimados pela cultura branca europeia.
Para além das boas atuações (que se estende a todo o elenco), “Assassinos...” é tecnicamente perfeito, como é característico do perfeccionista Scorsese. A Direção de Arte, a cargo de Jordan Crockett, em especial, juntamente com a fotografia, a maquiagem e os figurinos, são impecáveis, creio que dignas de indicação ao Oscar para 2024. A trilha sonora, do amigo e ídolo Robbie Robertson, ex-líder da The Band (a qual Scorsese filmara em 1978 no doc “The Great Waltz”) falecido em agosto, é econômica, mas totalmente assertiva, misturando os sons folk do interior norte-americano, desde o blues de raiz e os spirituals de trabalho a temas indígenas típicos. Na edição, mais uma vez a parceira Thelma Schoonmaker, fazendo chover e contribuindo para que um filme de extensas 3 horas e 26 minutos de rolo não perdesse o ritmo.
A multipremiada dupla De Niro/DiCaprio: ao todo, 15 filmes com Scorsese
Aliás, embora a montagem contribua para a coesão da obra, é indiscutível que o resultado final (seja acertado ou não) se deve em última análise ao diretor. E aí entra Scorsese e sua maestria. Com o aval da indústria cinematográfica para fazer produções no formato que quiser, seja longa, curta, documentário, série ou especial, ele não abre mão de estender-se para contar a história a que se propõe. E o faz isso sem provocar sequer uma “barriga” em todo o decorrer da fita! Atuações, música, arte, edição, foto, tudo contribuiu. Mas nada disso funcionaria não fosse a mão habilidosa do cara que já experimentou diversas formas de fazer filme, mas que busca, mesmo passados dos 80 anos de vida, surpreender o espectador. Contumaz crítico da “tecnologização” exacerbada de Hollywood e suas intermináveis e interdependentes franquias Marvel, Scorsese – embora não desconsidere o uso de efeitos especiais, a se ver por “A Invenção de Hugo Cabret”, de 2011 – vale-se da gramática do cinema para extrair nuances narrativas e técnicas que produzam impacto ao espectador. Isso, sim, é inovação. O uso de imagens de arquivo em P&B antigas com imagens de arquivo ”fake”, por exemplo, embora não novos, é um recurso que funciona muito bem em “Assassinos...”, cabendo-lhe perfeitamente à narrativa.
Foto dos verdadeiros Osage usadas de forma documental no filme
O roteiro, contudo, é responsável por tamanho sucesso. Escrito pelo próprio Scorsese em conjunto com o premiado Eric Roth (Oscar de Roteiro por “Forrest Gump”, em 1994), a história se baseia no best-seller homônimo do escritor David Grann, o roteiro prevê todos os diversos pontos de flexão e inflexão, estabelecendo o ritmo de uma história complexa e rica em detalhes e delineamentos. A própria escolha do tema, aliás, faz parte de um entendimento maior e, em certo aspecto, “alternativo” de Scorsese como cidadão norte-americano. Assim como outro talentoso cineasta contemporâneo seu, Clint Eastwood, Scorsese ama seu país, mas nem por isso (e até por isso) deixa de evidenciar as barbaridades que constituíram sua sociedade. A mesma abordagem crítica de obras como “Cabo do Medo” e “Taxi Driver” se refletem na sua visão revisionista em filmes históricos, casos de “Gangues de Nova York” e “A Época da Inocência”. É preciso trazer a luz a podridão do passado para que os novos tempos corrijam os rumos.
A este aspecto o roteiro também traz méritos no que se refere à construção psicológica das personagens. A obra original favorece, mas dar corpo a personagens tão complexos no audiovisual ganha uma dificuldade diferente, visto que diversas nuances que a escrita absorve, a tela exige que se escancare. A personalidade contraditória de Ernest, por exemplo, ora um marido dedicado, ora um ganancioso induzido pelo tio, é facilmente indutora a erros, por mais talento que Di Caprio tenha.
Misturando drama histórico com faroeste, policial e filme de tribunal, Scorsese consegue forjar um filme rico em referências e qualidades diversas, que o colocam entre os melhores de sua longa filmografia. Se serão justos com o velho Scorsese ao indicá-lo ao Oscar, bem como DiCaprio como ator, Lily para atriz e DeNiro em coadjuvante, ainda é cedo para prever. É comum a Academia fazer “vistas grossas” a grandes realizadores como ele, Steven Spielberg, Spike Lee ou Brian De Palma como que fazendo de conta que eles sejam “premiáveis” por si só - erro que a leva, não raro, a ter que dar apressadamente um prêmio logo após cometerem uma descarada injustiça. Nestes vários anos que acompanho Scorsese seja na tela grande ou na televisão, ele ganhou apenas uma vez o Oscar de Direção pelo não mais que competente “Os Infiltrados”, em 2006, por terem-no esnobado pela superprodução “Gangues...” quatro anos antes. Porém, até o começo de 2024, quando começam a pipocar as previsões dos favoritos à estatueta, ainda tem bastante coisa para rolar e a indústria do cinema é muito programada para este período. Mas que seria justo, seria.
Deve ter sido delicioso aos que, pelo menos por algum período, puderam acompanhar
just-in-time a filmografia de algum
grande diretor do passado. No caso de Alfred Hitchcock, por exemplo: o mestre
do suspense superava-se a cada produção que lançava, reelaborando às vezes a
mesma ideia ao longo do tempo, desde a fase inglesa (anos 20 e 30), passando
pelos primeiros anos nos Estados Unidos (década de 40) até chegar às
obras-primas definitivas (50 e 60). É perceptível que a confusão no teatro
lotado de “Os 39 Degraus” (1935) se repetira em “Cortina Rasgada” (1962), ou o
mesmo tenha ocorrido com a cena da escada de “Suspeita” (1941) e, depois, na
clássica de “Psicose” (1960), a que Norman Bates mata o detetive. Dois exemplos
de um realizador que soube como poucos reciclar suas próprias ideias e
progredir constantemente.
Dadas as devidas dimensões, os espectadores e cinéfilos de hoje podem gozar
dessa sensação quanto ao cinema de Alejandro González Iñárritu. Ele, que começara em alto nível com a trilogia “Amores
Perros” (2000), “21 Gramas” (2003) e “Babel” (2006), resvalou um pouco no
hiperbólico “Biutiful” (2010) mas logo retomou-se com o labiríntico "Birdman" (2014), Oscar de melhor filme do ano passado. Agora, o cineasta mexicano,
aproveitando com parcimônia elementos de todas as suas realizações anteriores,
avança em estilo e estética e lança o filme que certamente é sua obra-prima até
então: “O Regresso”. Dos favoritos
para levar o mesmo prêmio que “Birdman”, é a produção de mais indicações este
ano, 11 no total, tendo ainda grandes chances à estatueta em Melhor Ator, com Leonardo DiCaprio, e em Direção, com o próprio Iñárritu.
O filme, baseado numa história verídica (sobre o romance de Michael
Punke) situa-se na primeira metade do século XIX e conta a história de Hugh
Glass (DiCaprio), um forasteiro que parte com seu filho para o oeste americano
disposto a ganhar dinheiro caçando. Atacado por um urso na floresta, fica
seriamente ferido e é abandonado à própria sorte por um dos parceiros, John
Fitzgerald (Tom Hardy, digno de Oscar também), o qual ainda mata seu filho.
Entretanto, mesmo com toda adversidade, Glass consegue sobreviver e inicia uma
árdua jornada em busca de vingança. Dado a personagens fortes, o talentoso
DiCaprio, provavelmente o melhor ator de sua geração, se esbalda no papel. É
impressionante vê-lo na pele de Glass nas cenas de solidão desafiando a
natureza opressiva e ainda doente, com dor, fome e dilacerado por dentro pela
brutal perda do filho.
Com a ajuda de um elenco afinado e de uma fotografia acachapante (de Emmanuel
Lubezki, impecável tanto nos grandes planos quanto nos fechados), Iñárritu
compõe um filme extremamente intenso, porém rigoroso. Nada está fora do lugar,
nem mesmo a intensidade. Do roteiro (Iñarritu e Mark L. Smith) ao figurino, da
cenografia à edição de som, da trilha sonora – do mestre Ruiychi Sakamoto – à montagem (Stephen Mirrione). Tudo é muito exato, porém, sem recair no artificial, comum
ao tecnicista cinema norte-americano. Afinal, está se falando de um esteta do
cinema da atualidade. Estão preservados vários elementos estilísticos que já se
tornaram marcas de Iñárritu: sua câmara andante, contemplativa e participativa,
o estreitamento entre civilização e barbárie, o limite entre vida e morte, o
contato com o etéreo e, mais do que tudo, o animalesco instinto de
sobrevivência do bicho homem.
Com esse suco, o diretor cria um western
estilizado em que a carga emocional é permanente, mas muito bem conduzida.
Diferentemente de outros filmes seus, em “O Regresso” Iñárritu, tão louvado
pela linguagem inovadora, vale-se sem embaraço de uma narrativa clássica. E não
poderia ter sido a melhor escolha, pois o enredo se presta a isso. Neste caso,
a estrutura tradicional do cinema preenche o enredo, prescindindo da
dificultação intrínseca à linguagem moderna. Com uma trama em que os
personagens são apresentados de início e partindo de um problema, gera-se uma
“crise” na história que faz com que os caminhos se diluam e se dificultem. Esse
problema de resolução complicada é vencido pouco a pouco pelo personagem
principal, gerando tensão à história, até que este chegue a seu objetivo. Não
muito diferente de milhares de filmes nesta linha, o clímax é uma vingança. A
construção dos personagens também respeita isso: há o herói com mais qualidades
que defeitos e que, embora bruto, é movido por sentimentos genuínos. Em
contrapartida, o vilão é tomado de inveja e maldade, enquanto há aqueles que,
por não penderem nem a um nem a outro, cumprem a função de dar o contrapeso. Como
na vida. Entretanto, até nisso é dado um teor diferenciado. Seguindo a
abordagem realista que permeia toda a história, os índios não são nem os perversos
dos bang-bangs enlatados nem idiotas
indefesos. São, sim, mostrados como a História os deve ver: um bravo povo
dizimado pela gananciosa civilização do homem branco.
É interessante notar a maturidade adquirida por Iñárritu no transcorrer
de sua filmografia. Este começou com três filmes de tramas corais, quase novelas,
bastante alicerçadas no roteiro do conterrâneo Guillermo Arriaga. Em
“Biutiful”, quando tenta emancipar-se do parceiro de escrita, escorrega
principalmente neste quesito, exagerando na dose de dramaticidade. Não repete o
erro e, ainda por cima, realiza o inesperado e ousado “Birdman”, em que
apresenta uma narrativa totalmente contemporânea e igualmente distinta da
utilizada em seus primeiros filmes. Assim, em “O Regresso” Iñárritu pinça com
inteligência feições de todas as suas obras anteriores, porém, sem deixar com
que este perca personalidade. De “Biutiful”, está o aspecto espiritual do
protagonista, que mantém contato constante com a esposa morta e, depois, com o
filho. Até o enquadramento e o conceito fotográfico da tomada da copa de
pinheiros altos com fumaça e cinzar no ar sob a neve é parecida. De “Birdman”,
mesmo sendo o que mais se difere de “O Regresso” entre suas obras, é visível
que a câmera na mão, ligeira mas firme e de ritmo humano, é novamente um
personagem a mais na trama. Da trilogia
inicial, também: no segundo quadrante do filme criam-se quatro histórias
paralelas: Glass tentando voltar; os companheiros já chegados ao forte;
Fitzgerald e um comparsa a caminho; e o grupo de franceses trapaceando os
índios. De “Amores Perros”, em especial, a equiparação bicho x homem é ainda mais clara. Um pouco de cada um dos cinco
anteriores, mas principalmente do próprio “O Regresso”.
A impactante e real cena do ataque do urso.
Outro fator-base da história, também largamente usado no cinema
clássico – mas de fácil ocorrência de erros –, são os elementos da natureza simbolizando
os narrativos. A atmosfera selvagem não é apenas mostrada permanentemente
através da fotografia, inóspita e desafiadora, mas num conceito amplo em que o
homem é apenas mais um componente dentro daquele universo, assim como os animais
e as intensas intempéries. Os sentidos estão todos despertos. Do tato, a
umidade, o frio, o calor, a dor. Da audição, o zumbido do vento, o ofego do
respirar, o estrondo das quedas d’água, os ruídos da mata. Tudo se mistura e se
integra com muita propriedade à edição de som e à trilha sonora, igualmente
inserida com lucidez e sem excessos. Tudo é vivo, o que faz com que tudo seja também
morte. Dessa forma, Iñárritu se utiliza do ambiente natural e dos sentidos não
como adereço, mas numa constante construção dos personagens e da narrativa. Glass,
por exemplo, durante o seu regresso e ainda tentando se recuperar da surra do
urso, põe sobre os ombros uma pele justamente deste grande mamífero, como se
assumisse o papel do bicho. Antes mesmo, quando, muito debilitado, assiste a Fitzgerald
matar seu filho sem poder fazer nada e espuma saliva pela boca, a mesma que o
próprio urso deixa escorrer sobre seu rosto quando o ataca, pois o fazia pelo
mesmo motivo que movia Glass: proteger sua cria. Homem e animal: nenhuma
diferença.
DiCaprio, atuação para Oscar novamente.
Essa cena, aliás, é altamente impactante e merece destaque. Feita com
um urso de verdade, o mais impressionante é que o ator também é de verdade.
Sim, não é um dublê: é o próprio DiCaprio, inteiro dentro do personagem. Mesmo
contracenando com um animal adestrado, ele saiu bem machucado pelo que se tem
notícia. Valeu o esforço. Certamente é das cenas mais célebres dos últimos 20
anos, junto com a chuva de sapos de “Magnólia” ou o acidente no ringue com a
lutadora de “Menina de Ouro”. Daquelas que entra para a seleta lista de cenas
inesquecíveis do cinema mundial. Mas não apenas essa: o filme é uma sucessão de
grandes momentos e sequências, várias daqueles de tirar o espectador da
poltrona, como o ataque indígena do início, a fuga de Glass sobre o cavalo e,
obviamente, o duelo final, cujo requinte da montagem remete ao tempo fílmico de Sergio Leone e John Ford. Chega a ter parecença com o tradicional ritmo de Quentin Tarantino, que o próprio muito se valeu no seu último longa, "Os Oito Odiados", também um western eque guarda-lhe também semelhanças
estéticas. Diferentemente do filme de Tarantino, cujo proveito do máximo das
sequências e dos diálogos o tornam de fato por vezes arrastado, em “O Regresso”,
por conta da conjunção do tom realístico e da estrutura clássica da narrativa,
os tempos de tensão e distensão estão perfeitos. Simbolizam, em última
instância, a luta eterna entre o calor e o frio, entre o fogo e a água, entre o
som e o silêncio, entre o bem e o mal. Entre o espaço e o tempo.
É o próprio tempo que, já fora da tela, poderá aligeirar-se no que
tange a premiar Iñárritu dando-lhe a primazia jamais alcançada por ícones como
William Wyler, Elia Kazan e Billy Wilder: o de levar o Oscar de Diretor em dois
anos seguidos – feito obtido por apenas dois craques desde 1929: John Ford e Joseph
L. Mankiewicz. Ou, contrariamente, o mesmo tempo venha a reconhecer com atraso
DiCaprio, merecedor da estatueta há bastante tempo, seja em filmes que
concorreu (“O Aviador”, “Diamante de Sangue”, "O Lobo de Wall Street") ou não
(“Django Livre”, “J. Edgar”). Além destes, “O Regresso” desponta como favorito
para levar ainda Filme, Ator Coadjuvante, Fotografia e Edição de Som. O
reconhecimento no prêmio Bafta anteviu isso. Afinal, não se trata apenas da
melhor produção de 2016: é, sim, um dos grandes dos últimos 10 ou 15 anos. Pode-se
colocá-lo tranquilamente ao lado de títulos como “A Vida dos Outros”, "Guerra aoTerror" e “Ida”. Daqueles que vem para entrar para a lista dos essenciais do
cinema, porque o tempo (novamente ele) é quem o dignificará para a eternidade.
Ganhe o Oscar ou não.
Tem filmes que se transformam “da moda” e geram tanta
discussão – nem sempre merecidamente – que é quase “chover no molhado” falar-lhes
a respeito. É o caso de “Não Olhe para Cima”, que estreou no Netflix e em
alguns cinemas pelo mundo – claro, com intenções de Oscar, visto que somente o
streaming lhe impede de concorrer ao prêmio. Porém, a comédia sarcástica com lances
de suspense de Adam McKay (“A Grande Aposta”, “Vice”) tem, sim, merecimento em
ser tão comentado, ainda mais porque a celeuma a qual gerou é mundial e não
restrita apenas ao país no qual foi produzido. A enxurrada de comentários nas
redes sociais que correlacionam aspectos do filme à realidade brasileira, no entanto,
não é à toa, visto que os terríveis tempos de bolsonarismo parecem-lhe estar
retratados fielmente. Só por isso, mesmo que esteja sendo repetitivo, já merece se tecerem algumas observações.
Seja norte-americana, brasileira ou de qualquer lugar que o
valha, “Não Olhe...” é um retrato tristemente muito bem traçado dos tempos de
pós-verdade no qual vivemos. O longa conta a história de dois cientistas (os
astrônomos Randall Mindy, vivido por Leonardo DiCaprio, e Kate Dibiasky, Jennifer
Lawrence) que descobrem um corpo espacial sólido gigante que está vindo em
direção à Terra e tentam alertar autoridades e imprensa para que providências
sejam tomadas antes que as consequências sejam fatais. Porém, são envolvidos em
um jogo político de interesses em que a ciência não é lavada a sério (alguma
semelhança com políticos e pessoas que negam a vacina ou à própria existência do
Coronavírus?). Pior: suas figuras e discurso são distorcidos e transformadas em
produto ao bel prazer da mídia. A dupla de pesquisadores tenta encampar uma
peregrinação na imprensa e acaba na Casa Branca, mas nada parece ser suficiente
para que as pessoas “olhem para cima” de forma racional e despida de interesses
próprios.
“Não Olhe...” expõe a máxima contradição dos tempos atuais:
a de que não é a vida que imita a arte, e, sim, o contrário. O negacionismo, o ódio ao conhecimento, a polarização de ideias, a exaltação da ignorância, o interesse político-econômico
e a intransigência ideológica estão todos evidentes. A semelhança – e a bizarrice
–é tanta, que os mesmos famigerados memes que o filme mostra se produzirem sem
controle se aplicam perfeitamente à realidade fora da ficção, como no
paralelo de personagens do filme e figuras públicas brasileiras que corre pelas
redes sociais: a presidente Orlean (Meryl Streep) comparada a Jair Bolsonaro; o
filho da presidente Jason (Jonah Hill) com o deputado federal Carlos Bolsonaro;
Randall com o microbiologista Átila Iamarino; e Kate com a bióloga Natália
Pasternak– que, aliás, ela mesma identificou-se com a personagem.
Afora a edição ágil de Hank Corwin e a direção bem conduzida
por McKay, que faz o longo filme não ter “barriga”, tamanho é o proveito do
roteiro, as atuações são um destaque à parte. Maryl, deusa, está tragicamente
magnífica no papel da patética presidente; DiCaprio, o maior de sua geração, mais
uma vez dando o tamanho certo para o personagem; Jennifer, igualmente bem; e
especialmente Mark Rylance, que vive o egoico magnata Peter Isherwell, cuja figura
amorfa e andrógena denotam o quão perigosos são estes novos donos do mundo como
Musk e Bezos.
No entanto, o que se destaca antes de tudo em “Não Olhe...”
é seu roteiro, digno de Oscar. Escrito pelo próprio McKay (que levou a estatueta de Roteiro Adaptado em 2016 por "A Grande Aposta"), traz um retrato sem perdão
da sociedade contemporânea em seus tempos líquidos de conexões digitais e
desconexões humanas. A história é um
compêndio de percepções muito acertadas de um mundo de radicalismos político,
ideológico e, num entendimento mais profundo, religioso. É o império do absurdo, que só pode nos levar a um
desastre irreparável. O longa guarda também uma metáfora de alerta para a
questão climática no planeta: nesse ritmo de descontrole do ecossistema, o resultado
será a destruição da vida como a conhecemos.
Atuações de gala abrilhantam o perspicaz "Não Olhe..."
Neste turbilhão de opiniões que o filme suscita, é interessante,
contudo, perceber o mesmo comportamento autodestrutivo que este critica em
relação à sociedade atual. Ou seja, a mentalidade está tão incrustrada que aqueles
que deveriam ter mais condições de avaliar a obra como uma oportunidade de
reflexão (independentemente se a consideram boa ou não, isso é irrelevante),
são, justamente, os que tentam “lacrar”, mostrando-se os verdadeiros cegos. Uma
crítica especializada, por exemplo, apontou que “Não Olhe...” é fadado a ser
esquecido pela história por ser “um filme confuso, sem foco, pouco engraçado e,
pior de tudo, que já nasce velho”. Ora, primeiramente, que não é incomum nos
depararmos com filmes que, mesmo discutíveis em qualidade, marcam, sim, uma
época, haja vista “A Primeira Noite de um Homem”, não necessariamente brilhante
mas marcante para a geração baby boomer, ou o celebrado “Forrest Gump”, que justifica a barbárie social norte-americana de uma forma um tanto leviana. Entretanto,
a questão vai além disso, pois não cabe a um ou outro dizer se a obra vai ou
não perdurar: é um conjunto de fatores históricos, sociais e culturais que determinam,
independente dos gostos pessoais. Avaliações como estas só reforçam, mascarada
ou ignorantemente, o monstrengo autoritário e superpoderoso da sociedade digital-capitalista.
Dada a pertinência de “Não Olhe...” na leitura de nossos
tempos – importante lembrar os detratores, aliás, que o filme foi escrito antes da
pandemia, aumentando seu mérito – é muito difícil imaginar que seja esquecido
no futuro. O que me deixa, inclusive, minimamente reconfortado considerando que a história não se baseia no exemplo brasileiro. Ou seja: esta onda de ultradireita e neofascismo não pertence somente a nós, brasileiros, o que significa que mais nações podem estar passando por isso e percebendo seus malefícios. Mas espero, sim, que o filme seja lembrado daqui a algum tempo como a antítese de um mundo para o
qual caminhávamos em épocas passadas, mas que, a certa altura, percebendo o
erro que cometíamos, tenhamos conseguido retomar a rota do bom senso e do
humanismo. Quem sabe, assim, findar essa era atual para iniciar uma outra.
"Conflitos Internos" é aquele time que ganha, com uma certa facilidade, a maioria dos jogos na sua liga continental. No quesito filme policial certamente ele se destaca em relação a seus concorrentes asiáticos. Uma ótima trama, surpresas, reviravoltas, tensão, a produção de Hong Kong entrega tudo isso e deixa o espectador na constante expectativa de como seu jogo de gato e rato vai terminar. Só que quando ele sai da seu cercadinho e pega um time de uma liga maior, mais tradicional, mais bem preparado, com maior investimento, um elenco milionário e um baita treinador, não dá nem pra saída. Embora não seja regra que com todas essas vantagens um filme norte-americano supere uma produção de mercados alternativos, "Os Infiltrados", no caso específico, atropela seu adversário. Ele é melhor em tudo! Tudo que ele se propõe a fazer melhor que o original que o inspirou, ele consegue. O enredo tem mais elementos, o roteiro é mais bem trabalhado, a trilha sonora é excelente, a parte técnica é superior (luz, som, maquiagem...), Martin Scorsese, um dos maiores diretores de todos os tempos, conduz o filme de forma precisa e seu time conta com, nada mais nada menos que, Leonardo DiCaprio, Matt Damon e Jack Nicholson, sem contar com ótimos coadjuvantes como Vera Farmiga, Martin Sheen e Mark Wahlberg.
Com algumas pequenas diferenças, basicamente a trama nos dois casos, nos apresenta um agente de polícia trabalhando infiltrado na máfia, e um "afilhado" de um mafioso, moldado dentro da polícia, formado na academia, a serviço do criminoso dentro da força policial. Ambos os lados, percebendo que informações vazam, tanto para a lei quanto para os criminosos, iniciam suas caças particulares ao respectivo informante, gerando situações de perseguição, suspense e constante expectativa.
A refilmagem norte-americana trabalha melhor o início de tudo, constrói melhor a formação inicial dos dois protagonistas, desde suas épocas de bairro, até o desempenho dentro da academia de cadetes. Os motivos que levam à preterição do jovem Billy Castigan para serviços convencionais dentro da polícia e a opção por colocá-lo disfarçado, bem como, do outro lado, a relação muito estreita do mafioso Costello com seu pupilo Colin Sullivan, e a ascensão do rapaz dentro da polícia, tudo é mais bem desenvolvido do que no original, honconguês, que, por sua vez, é bastante breve nesse ponto, dando apenas uma rasa e apressada noção dos fatos, já passando adiante para o momento em que os dois, Chan e Lau, trabalham para lados opostos.
Outra diferença, é que em "Os Infiltrados" a psicóloga da polícia, além de ser namorada de Colin, o filhote de mafioso infiltrado na polícia (Matt Damon), mantém uma relação íntima com o perturbado Billy (DiCaprio), o policial infiltrado na máfia. Já em "Conflitos Internos", ela sequer conhece Lau, o jovem mafioso que se passa por policial, e, embora próxima a Chan, o verdadeiro agente disfarçado, não tem qualquer relação amorosa com ele. A relação da psicóloga com os dois e como ela se desenvolve, a crise no namoro com um deles, e gradual conquista de carinho e confiança com o outro, é importante para o desfecho que Scorsese propõe e, por outro lado, a ausência de um laço emocional da dra. Lee com qualquer um dos dois, torna a resolução da primeira versão frágil e inconsistente.
A propósito, ainda que não queira dar spoiler, tenho que dizer que o final é diferente nos dois e mas no remake nos dá uma sensação um pouco mais confortante, o que não significa que seja melhor ou pior...
"Conflitos Internos" (2002) - trailer
"Os Infiltrados" (2006) - trailer
Mas então vamos ao que interessa.
Você quer bola rolando? Tá aí o que você queria:
O argumento original, cheio de revelações, reviravoltas, surpresas, é ótimo, envolvente, excitante, e isso tudo é um grande mérito do filme asiático, por outro lado, o remake aperfeiçoa essa premissa, lhe dota de mais detalhes e complementos e algumas modificações bastante válidas para o roteiro. Ou seja, "Conflitos..." sai na frente mas leva o empate logo em seguida.
Mas é basicamente o que o time honconguês consegue fazer pois a partir daí a equipe norte-americana deita e rola. Martin Scorsese é mestre e, apesar de "Os Infiltrados" nem ser seu melhor trabalho, conduz o time brilhantemente à vitória. Ele dita o ritmo, da agilidade ao filme e tem uma capacidade ímpar de combinar cenas intensas, fortes, violentas, a uma trilha sonora invariavelmente precisa e de muito bom gosto. 2x1 para os Infiltrados de Scorsese.
O ataque formado por Matt Damon e pelo badalado LeoDiCaprio é competente, joga bem, mas a dupla, no fim das contas, não desequilibra. Leozinho, que é queridinho da imprensa, pedido pela torcida na Seleção, cotado para a Bola de Ouro, na hora do vamos ver, não consegue ser, verdadeiramente decisivo, como se espera dele e faz um jogo apenas comum. Mark Wahlberg faz bem o papel de volantão, de cão-de-guarda da defesa, Vera Farmiga, surpreende vindo de trás, mas quem faz diferença mesmo no jogo são os veteranos: Martin Sheen, só na experiência, distribui o jogo ali na meuíca, e o cracaço de bola, Jack Nicholson, três vezes Melhor do Mundo da FIFA (ou seja, três Oscar na prateleira), chama o jogo para si, dá um show e guarda o seu. 3x1, Infiltrados.
A cena do chefe de polícia caindo do prédio é mais impactante no filme de 2006, bem como toda a construção da situação que leva a ela é mais inteligente e bem elaborada (4x1); em compensação, o desmascaramento do policial corrupto num terraço de Honk Kong, é boa nos dois, porém mais impressionante plasticamente no primeiro (4x2). Será que o time asiático volta pro jogo?
Não dá, não.
Toda a situação envolvendo o envelope, a grafia errada por fora, a entrega dele cinema para o informante, a perseguição entre os dois incógnitos pelas ruas, e a revelação de quem estava de posse da informação, tudo é muito mais bem feito no filme de Martin Scorsese. 5x2 no placar.
Como se já não bastasse o banho de bola, o fato de ter levado o Oscar de melhor filme, direção, edição e roteiro adaptado garante mais uma bola na rede para o time de Scorsese e define a vitória dos Infiltrados. 6x2, e ficou barato!
No final do jogo, os atletas trocam as camisetas e aí, sim, ninguém sabe mais quem é de quem, e quem estava de qual lado... Mas aí já não importa mais.
O policial de verdade desmascarando o falso policial nas duas versões (à esquerda, o original de 2002, e à direita, o remake de 2006)
Com um jogo de movimentação e infiltrações na defesa adversária,
o time do técnico Martin Scorsese,
atropela a equipe dos treinadores Lau e Mak,
boa mas cheia de problemas de grupo e conflitos internos.