Fechando mais uma edição da Feira do Livro de Porto Alegre, deixo aqui mais algumas indicações de livros a partir de um fragmento.
"É na adolescência em Salvador que aparece a pessoa, propriamente dita, diante das outras pessoas. A cidade exige isso, essa caracterização da individualidade, que você comece a ter noção do que quer ser na vida. Tudo se configura ali em Salvador."
"Gilberto bem perto" - Gilberto Gil e Regina Zappa
"Enquanto observo Rarus e seu público, depois deixo o olhar vagar através das barricadas até o grande campus povoado de sinais exaltados, de exaltadas conversas silenciosas, tenho uma impressão avassaladora não só de um outro modo de comunicação mas de outro modo de sensibilidade, um outro modo de ser."
"Vendo vozes- Uma viagem ao mundo dos surdos" - Oliver Sacks
"Camille, a sequestrada; Camille, a prisioneira. Coxa e dedutora Camille, escultora de gênio, artista maldita e esquecida. Esta é a aterradora história de uma mulher que não "pôde ser". Tinha tudo para triunfar: talento, inteligência, coragem, beleza. Mas as circunstâncias foram desestruturando."
"Histórias de mulheres" - Rosa Montero
“É um livro sobre amor, sobre entrega. Mas também é um livro sobre política. Porque a Laura permitiu que eu me desse conta o quão forte e estruturante, da nossa política, é o machismo. E como, dentre as coisas que eu posso viver – eu jamais serei uma mulher negra, assim como não sou uma mulher lésbica – dentre as coisas que eu posso viver, a maternidade, talvez seja ela que mais desnude, como eu costumo brincar, é a última porrada na cara, pra gente se dar conta do que é o machismo no nosso mundo.”
"Revolução Laura" - Manuela D'Ávila
"Pelas ondas sabem-se os mares lambem-se as margens"
"Poesia Total" - Waly Salomão
"Amanda tem vontade de responder: eu sou puta. Ou: ih, eu não faço nada, não. Mas acaba dizendo: eu escrevo. Ah é? Escreve o quê? Livros? É? Que tipo? Romances? Ah sobre amor, essas coisas? Não exatamente - sobre a puta que te pariu, seu escroto, filho-da-puta, burro, merdalhão, medíocre, babaca. Eu escrevo sobre nós. Sei, sei, explica isso. Desculpe, mas não tenho como explicar. Um livro impresso deveria ser respeitado por aquilo que é: a finalização de imensa dor, exaustão e generosidade."
"As pessoas dos livros" - Fernanda Young
“Alimento é vida, nutre o corpo, a mente e a alma. Para a Ayurveda, nutrir-se é muito mais do que apenas ingerir alimentos. Tudo o que entra em contato com os nossos sentidos é alimento. Ao olhar para o seu prato, para a refeição que vai consumir lembre-se: isto é apenas 1/5 da sua dieta. Aquilo que você vê, ouve, sente e inala também são alimentos. Logo você nutre o corpo com alimentos, pensamentos , sensações. Bons pensamentos geram tecidos saudáveis; maus pensamentos, desequilíbrios.”
"O sabor da harmonia" - Laura Pires
“Num dia de verão abri a janela de par em par. Pareceu-me que o jardim entrara na sala. Eu tinha vinte e dois anos e sentia a natureza em todas as fibras. Aquele dia estava lindo. Um sol mansinho, como se nascesse naquele instante, cobria as flores e a relva. Eram quatro horas da tarde. Ao redor, o silêncio.”
"Todos os contos" - Clarice Lispector
“As tribos germânicas, que no século V invadiram o Império Romano, constituíam uma ramificação dos povos-europeus. A expressão indo-europeu aplica-se a um grupo de línguas: indo-arianas, armenianas, anatolianas, eslavas, célticas e germânicas. O primitivo habitat dos povos pertencentes a essa família linguística provocou muitas hipóteses. É provável que sua origem estivesse na Ásia Central, ou entre a Rússia Meridional e a Europa Setentrional e Central. A dispersão dos povos indo-europeus ocorreu no início do terceiro milênio.”
"Uma viagem através da Idade Média" - Armindo Trevisan
A galera na noite recifense em meio aos sons, cheiros e sabores da cidade
Esta publicação pode-se dizer a primeira sobre Recife, mesmo
que eu ainda não tenha a data de quando saem as próximas. Que serão quando
voltar à cidade como turista. Viajando a trabalho, em menos de 24 horas que
estive na terra de Chico Science, posso dizer que meu encantamento extrapola o
simples agrado de se conhecer uma nova cidade. É, sim, identificação. Uma
identificação que já supunha, haja vista conhecer pernambucanos queridos e por
minha admiração de muito ao que a capital pernambucana e o estado como um todo
sempre trouxeram – de Mangue Beat a Clarice Lispector, de João Cabral de Melo Neto a Frei Caneca, de Miguel Arraes a Naná Vasconcelos.
O que deu pra ver nas parcas horas livre que tive,
basicamente, a noite de um domingo, foi um pouco da noite no Recife Antigo.
Onde tudo começou. Mas quando digo tudo, é tudo MESMO, pois lá está, à beira da
Baía do Pina, o Marco Zero, ou seja: onde essa “bagaça” chamada Brasil foi
descoberta pelos portugueses. Não que não tivessem os índios aqui já, por
direito mais brasileiros que qualquer um, mas é fato que, a partir dali,
daquele ponto, em 1500, que se desencadeou a nossa sinuosa e alegórica história
enquanto nação.
Para um domingo, achei bastante movimentado, tanto no largo
da Praça, com famílias, turistas, casais e gurizada, quanto, principalmente, na
agradabilíssima Rua da Moeda, uma das mais célebres e antigas vias da cidade.
Nela, o público que encontrei era bem novo, adolescente, diria. Imagino que os
mangueboys e manguegirls, jovens e jovens adultos, devam dar as caras mais às
sextas e sábados à noite... Enfim, a Rua da Moeda é um misto de Lapa carioca
com Cidade Baixa porto-alegrense com Pelourinho soteropolitano e Cidade Velha de Belém. Um rock anos 80
rolando num bar e um forró no do lado, ambos a plenas caixas, gente falando,
bebendo, namorando, pedintes, policiamento ostensivo, cachorros vira-latas. Um
barato.
Como disse, a passagem foi rápida e não deu para registrar
muita coisa. Fica aqui, entretanto, um pouco das fachadas, da arquitetura, da
atmosfera que une história e contemporaneidade. Mistura que, ao que deu pra
notar mesmo com poucas horas de convivência, é a cara de Recife.
Podes deixar, que eu volto logo.
Galera concentrada na Rua da Moeda: estátua do malungo, tal qual Chico Science
Um dos bares clássicos do local, o Novo Pina
A Rua da Moeda com seus casarios estilo português
Pelas ruas do Recife Antigo
As ruelas históricas, esta, entre o Shopping da Alfândega e a Igreja da Madre de Deus
Mais do clima noturno do bairro
Prédios históricos conhecidos do cartão-postal da cidade
Quem nunca prestou atenção nesses prédios de estilos diferentes nas transmissões do Carnaval?
Muita gente na noite de domingo no Marco Zero
No Marco Zero em direção à Baía do Pina
Os movimentados bares ao lado da Praça
Como em todo Centro antigo, os cuscos têm que estar presentes
O beijo - um dos
Pela luz e pela cena, dá pra dizer que é um momento Edward Hooper recifense
O encanto e a graça de Bethânia no Teatro do SESI foto: Amanda Costa
Não sou um
expectador de shows tão rodado, bem como sei que já perdi muitos
deles que nunca mais assistirei, pois os artistas já se foram para
outro plano. Mas sei também que já vi muita coisa boa pelos palcos
da vida, e dificilmente algo se comparará ao megaespetáculo de Paul McCartney no Estádio Beira-Rio ou, noutra ponta, ao “concerto
caseiro” que Paulinho da Viola proporcionou aos porto-alegrenses
num belo domingo matinal na Redenção. Mas o que estou falando não
tem nada a ver com isso. Tem a ver com a talvez maior cantora, maior
performer, maior intérprete viva deste esférico e redundante
planeta: Maria Bethânia. E em se tratando de Bethânia não
há comparação.
O espetáculo
“Abraçar e Agradecer”, apresentado por ela no Teatro
do Sesi, em Porto Alegre, comemorando irrepreensíveis 50 anos de
sua carreira, deixa muito claro todas essas acepções: vê-se uma
artista plena no palco, ciente e aproveitadora de sua trajetória,
carregada pelo alto profissionalismo e por suas próprias
individualidade, apaixonada pelo o que faz. Como muitos gostam de
dizer – mas que a ela se atribui de fato –: uma diva. Foram cerca
de 1 hora e 45 minutos que percorrem vários momentos de sua
trajetória como uma das mais importantes artistas da história da
música brasileira.
Sob luzes intensas
de um cenário magnificamente montado por Bia Lessa apenas por estas,
Bethânia entra no palco. E é ai que tudo se ilumina de fato. A
abertura é tão grandiosa quanto autorreferencial: “Eterno em
Mim”, de autoria do mano Caetano Veloso, compositor preferido dela
(junto com Chico Buarque) e de maior presença no repertório do
show, com seis canções ao total. Tão lindo e completo que minha
sensação era de que, logo que terminou o primeiro número, a
apresentação poderia terminar ali. Exagero meu, pois tinha muito
mais. Mais uma, “Dona do Dom” (de Chico César, de quem também
Bethânia cantara outra marcante do show, o fado milongado
“Xavante”), e vem um belíssimo poema da própria Bethânia,
misto de agradecimento ao público, aos orixás, à natureza, aos
amigos, à vida e a si mesma. Tão bonito que não deixa em nada a
dever aos outros textos que, como de costume, ela entremeia às
canções nos seus shows. Neste espetáculo, obviamente, não poderia
ser diferente: tem Clarice Lispector (com três passagens), Waly Salomão, Carmen Oliveira e Fernando Pessoa.
Mas voltando às
músicas, o repertório celebra sua história na música brasileira,
mas, exceto o hit “Gostoso Demais” (Dominguinhos e Nando Cordel),
evita obviedades como “Fera Ferida”, “Reconvexo”, “Álibi”
ou “Um Índio”. Mas clássicos há, e vários deles. Tanto que
Bethânia arrasa numa versão vibrante e comovente de “Gita”, de Raul Seixas e Paulo Coelho. Todas as músicas se emendam umas nas
outras, o que faz com que intensifique ainda mais a montanha-russa
emocional que ela impõe ao público, pois além da carga gerada
pelas próprias músicas, ainda não dá tempo de respirar entre
estas. No caso, “Gita” se liga com outra de Caê: a
lírico-romântica “A Tua Presença Morena”, joia que o genial
irmão compôs-lhe para o álbum “A Tua Presença”, de 1971,
ainda no exílio em Londres. De arrebatar. Aí vem outra dele para
ela: “Nossos Momentos” (“Quem pode compartilhar dos meus
sentimentos/ Na hora que o refletor bater/ Momentos de luz e de nós/
Momentos de voz e de sonho/ Momentos de amor que nos fazem felizes/ E
às vezes nos fazem chorar”), num diálogo tanto com o que veio
antes quanto com o trecho de Lispector lido na sequência, que diz:
“Antes de julgar a minha vida, calce os meus sapatos, percorra o
caminho que percorri, viva as minhas tristezas, minhas dúvidas, viva
as minhas alegrias. Tropece aonde eu tropecei, e levante-se assim
como eu fiz.”
Gonzaguinha, outro
importante parceiro, amigo e compositor da carreira de Bethânia,
retoma a seção musical metalinguisticamente: “Começaria Tudo
Outra Vez”. No palco de LED em que Bethânia pisa se projetam de
diversas formas: flores, estrelas, letras, desenhos, geométricos. E
as luzes sobre ela ajudam a marcar a incrível performance de
uma artista que dança e interpreta com alegria e jovialidade, apesar
dos cabelos tomados de branco e os quase 70 anos. “Alegria”,
aliás, é o que ela traz em seguida no lindo samba de Arnaldo Antunes, que ganha batuques de axé. Logo após, “Voz de Mágoa”
(Dori Caymmi e Paulo César Pinheiro), uma tocante interpretação do
clássico bossa-novista “Dindi” e uma ainda mais emocionante
execução de “Você Não Sabe”, de Roberto e Erasmo, compositores “incultos” para a dita intelligentsia que
Bethânia fora uma das primeiras a demonstrar a beleza de suas
construções melódicas. Quando se pensa que vai se respirar um
pouco, ela vem com “Tatuagem”, de Chico e Ruy Guerra, e aí os
olhos marejam inevitavelmente.
Depois de novo texto
de Lispector, Chico retorna noutra marcante na carreira de Bethânia:
a apoteótica “Rosa dos Ventos”, título do memorável show da
cantora de 1971 quando ela consolida este formato de apresentação
altamente íntima e com composições de diversas vertentes. Um
pout-pourri com a ótima banda comandada por Jorge Helder
preenche o interlúdio, quando Bethânia sai para trocar de figurino
e voltar para o segundo ato. “Tudo de Novo“, mais uma de Caetano,
faz a montanha-russa, que havia estacionado por alguns minutos,
voltar com toda a velocidade.
As referências aos
orixás, principalmente Iansã e Oxum, e aos elementos “água” e
“vento” aparecem do início ao fim, e bastantemente nesta segunda
parte. “Doce”, de Roque Ferreira (“A lagoa escura que a
Bahia tem/ Que a areia branca rodeou/ São as águas de Oxum que
Caymmi batizou...”), ”Oração de Mãe Menininha”, de Caymmi (“E a Oxum mais bonita, hein? Tá no Gantois...”),
“Eu e Água”, outra de Caetano (“O mar total e eu dentro do
eterno ventre/ E a voz de meu pai/ voz de muitas águas”)
dialogam entre si e mostram claramente isso. A música que dá título
ao show, de Gerônimo e Vevé Calazans (porém na ordem inversa:
“Agradecer e Abraçar”), mantém a mesma linha: “Abracei o
mar na lua cheia...”. Igualmente as três de Roque Ferreira que
vêm em sequência: “Vento de Lá” (“Foi o vento de lá, foi
de lá que chegou/ Foi o vento de Iansã dominador que dormia...”),
“Imbelezô Eu” (“Alecrim beira d'água/ Que me beijou
percebeu/ Alguma coisa em mim aconteceu/ A mão que me tocou imbelezô
eu...”) e a bela “Folia de Reis”.
Um samba antigo,
“Mãe Maria”, de Custódio Mesquita e David Nasser, precede outra
maravilhosa declamação de Bethânia – como talvez no Brasil ela seja a que melhor o saiba fazer –, agora com poesia do conterrâneo
Waly: “Cresci sob um teto sossegado, meu sonho era um pequenino
sonho meu. Na ciência dos cuidados fui treinado/ Agora, entre meu
ser e o ser alheio, a linha de fronteira se rompeu.”. Neste
momento, Bethânia, dona do repertório, faz um singular paralelo
entre a música rural (“Eu, a Viola e Deus”, “Criação”,
“Casa de Caboclo”, “Viver na Fazenda”) com a raiz indígena
brasileira (“Povos do Brasil”, o canto tupi “Maracanandé” e
a já citada “Xavante”) com o autorreconhecimento da voz (“Alguma
voz”, outra de PC Pinheiro e Dori, e “Motriz”, última de
Caetano no show), seleção de músicas cujo simbolismo, entremeada
pelo pungente e feminino texto “Candeeiro”, de Carmen Oliveira,
representa a sua própria existência como pessoa e cantora.
“Eu Te Desejo
Amor”, canção francesa de Charles Trenet e Léo Chauliac, de
1942, vertida para o português por Nelson Motta, arrebatou o
público, que a essas alturas já a aplaudia de pé. Ao final desta,
por sinal, dois minutos de aplausos diante de uma Bethânia
visivelmente emocionada que dizia: “Que plateia é essa?!”.
Mas o deslumbre não terminaria ali, pois, depois de ler um de seus
poetas preferidos, Pessoa, Bethânia inunda de emoção o teatro com
uma interpretação, esta em francês de fato, do clássico de Edith
Piaf “Non, Je ne Regrette Rien”, enquanto uma projeção no chão
de uma faixa de estrada parece cruzar-lhe o peito em alta velocidade.
“Silêncio”
fecha o show em versos que traduzem a despedida e a delicadeza
daquele momento tão especial, tanto para a artista quanto para o
público: “Silêncio, eu quero ouvir o que me diz a imensidão/
Saber se minha alma tem razão/ Quando acredita que essas coisas vão
durar”. A banda encerra ao som de outro marco da trajetória de
Bethânia: “Carcará”, de João do Vale. Sob um mar de aplausos
ela sai do palco, mas logo retorna para entoar dois sucessos: `Ӄ
o Amor”, de Zezé di Camargo e Luciano, que ela, em 1999, recolocou
num outro patamar interpretativo, e “O que é o que é”, o grande
sucesso de Gonzaguinha. É quando a plateia, já de pé e dançando,
entoou junto com ela os inesquecíveis versos: “Viver/ E não
ter a vergonha de ser feliz/ Cantar e cantar e cantar/ A beleza de
ser/ Um eterno aprendiz...”.
Pra mim, admirador
de sua obra e colecionador de vários de seus discos, a sensação
que saí foi, além do deslumbre, de que Bethânia, ainda por cima, é
ótima de estúdio. Pois a maior certeza que se tem é que ela é
inteiramente do palco. Como disse no início, dificilmente verei
apresentações melhores de algumas que já vi, pois estas estão
guardadas no coração do diletante. Mas como este show de Maria
Bethânia, a quem vi pela primeira vez, acho que nunca mais
presenciarei. Ao fim, as cortinas se cerram e não se vê mais
Bethânia, mas, como dizem os versos de Chico: “Sei que além
das cortinas/ São palcos azuis/ E infinitas cortinas/ Com palcos
atrás.” Bethânia está sempre lá, atrás das cortinas, além
das cortinhas. Ela é luz, ela é azul, ela é o palco.
Enfim, chegamos à
terceira e última listagem de filmes brasileiros essenciais para se
entender o nosso cinema no final do século XX, terminando com a
safra dos 80. Mais do que para com os anos 60 e 70, a década de 80
foi a que mais tive dificuldade de escolher entre tantos títulos que
considero fundamentais. Talvez pelo fato de, dos anos 60,
embrionários e revolucionários, haver mais clareza quanto ao que
hoje é tido como essencial, bem como pela até injusta comparação
com os sofridos e minguados anos 70. O fato é que a produção dos
80 vem justificar, justamente, o decréscimo quali e quantitativo da
sua década anterior. Tanto é verdade que, com os reflexos visíveis
da Abertura Política e já se enxergando a tão sonhada democracia
não apenas como uma miragem, os cineastas brasileiros – mesmo com
a menos rígida mas ainda existente censura – passam a ter uma até
então inédita estrutura através de verba do próprio Governo via
Embrafilme.
Foi aí, então, que
os cineastas daqui mostraram o quanto são, de fato, brasileiros. Se
já haviam conseguido, nos 60 e 70, realizações memoráveis sem uma
Atlântida ou Vera Cruz por trás, quando tiveram um tantinho mais
fizeram “chover pra cima”. Desfalcados a maior parte da década
da tempestuosidade de ideias de Glauber Rocha, falecido em 81, além
de Leon Hirszman e Joaquim Pedro de Andrade, também vitimados cedo,
outros cabeças do cinema nacional avançaram em temática, nível
técnico, concepção e apelo com o público. Ironicamente,
entretanto, se os 80 justificaram a baixa dos 70, também herdaram o
inevitável: justo na década que talvez melhor se tenha produzido
para as massas até então, recaiu-lhes a pecha de cinema malfeito e
sem qualidade, motivado, principalmente, pela herança das
famigeradas pornochanchadas, naturalmente desvalorizadas com o
declínio do discurso do Governo Militar – estigma do qual o cinema
nacional tenta se livrar até hoje.
Para além das
comparações, a diversidade do cinema nacional dos 80 é grande. As
abordagens vão desde cinebiografias (pouco vistas até então),
felizes adaptações do teatro para as telas (finalmente!), avanço
do documentário, início da descentralização da produção eixo
Rio-São Paulo e, principalmente, uma maior liberdade de expressão.
Sem o fantasma constante das torturas e perseguições, as histórias
tocavam agora direto nas feridas da ditadura. “Nos nervos, nos
fios”. Ainda deu tempo, inclusive, de tanto Glauber quanto Leon
produzirem as talvez obras-primas de ambos. Diretores surgiam; uns,
despontavam; outros, afirmavam-se. Nesse contexto, sobraram títulos
que, por restringirmos a 20, não puderam entrar na lista, mas que
merecem menção: “Barrela”, “Cidade Oculta”, “A Dama do
Cine Shangai”, “Quilombo”, “Um Trem Pras Estrelas”,
“Gabriela”, “Índia, a Filha do Sol”, “O Romance da
Empregada”, “Inocência”, sem falar nas produções televisivas
de Walter Avancini. Mas, com esses 20 não tem erro: só filmaços.
1 - “A Idade da
Terra”, Glauber Rocha (80) – Poesia total. O último e
criticado filme de Glauber, fábula sobre as possíveis vidas e
mortes de Cristo num Brasil moderno, pode ser visto até como uma
metáfora visionária da morte do cineasta, que, entristecido com o
Brasil e com a recepção a seu filme, sucumbiu um ano depois de
lançá-lo. Esqueça os detratores: “A Idade...” é grande,
potente, cáustico, catártico, altamente filosófico. Um dia será
devidamente reconhecido.
2 - “Os 7
Gatinhos”, Neville D’Almeida (80) – Neville é daqueles
cineastas da “elite intelectual carioca” que só fala besteira e
produz coisas intragáveis e ininteligíveis, mas esse é um acerto
inconteste. Baseado em Nelson Rodrigues, tem o dedo do próprio no
roteiro e, além de trilha com músicas de Roberto e Erasmo, é uma
tragicomédia crítica e consistente à hipocrisia e depravação da
sociedade brasileira. Interpretações (Thelma Reston, Melhor
Coadjuvante em Gramado) e cenas inesquecíveis como a dos
“caralhinhos voadores” e “me chama de contínuo” estão neste
longa referencial.
3 -“O
Beijo no Asfalto”, Bruno Barreto (80) – Outra feliz adaptação
de peça, outra feliz adaptação de Nelson Rodrigues. Essa, no
entanto, deixando de lado a linguagem metafórica e fantástica de
“Os 7 Gatinhos”, investe numa história contada com rigor e
direção segura, apoiada pelas ótimas atuações de todos: Ney,
Tarcisão, Daniel, Torloni, Lídia. Daqueles filmes que, se está
passando na TV, não se fixe por 15 segundos, pois senão acabarás
terminando de assisti-lo inevitavelmente.
4
- “Pixote, A Lei do Mais Fraco”,
Hector Babenco (80) – Babenco chega à maturidade de seu cinema e
faz o até hoje melhor trabalho de sua longa e regular filmografia.
Com ar de documentário, toma forma de um drama realista e trágico,
trazendo à tona mais uma mazela da sociedade brasileira: a
desassitência político-social às crianças e a violência urbana.
O pequeno Fernando, que, ao interpretar Pixote, faz bem dizer ele
mesmo, nos emociona e nos entristece. Marília está num dos papeis
mais espetaculares da história. Indicado ao Globo de Ouro e vencedor
do New
York Film Critics Circle Awards (além de Locarno e San Sebastian), é
considerado dos filmes essenciais dos anos 80 no mundo.
5 - “Eles não
Usam Black Tie”, Leon Hirszman (81) – Como um “Batalha de
Argel” e “Alemanha Ano Zero”, é uma ficção que se mistura
com a realidade, e neste caso, por vários fatores. Adaptação para
o cinema da peça dos anos 50 de Gianfrancesco Guarnieri sobre uma
greve e a repressão política decorrente, transpõe para a realidade
da época do filme, de Abertura Política e ânsia pela democracia,
retratando as greves no ABC Paulista. E ainda: tem o próprio
Guarnieri como ator, que, segundo relatos, codirigiu o filme. Filme
lindo, que remete a Eisenstein e Petri. Música original da peça de
58 de autoria de Adoniran Barbosa. Prêmio do Júri em Veneza.
6 - “Sargento
Getúlio”, Hermano Penna (81) – Pouco lembrado, mas talvez o
melhor filme nacional da década. Adaptação do romance de João
Ubaldo, dá ares de tragédia shakesperiana à história em plenos
sertão e Ditadura Militar. Crítico, poético e altamente literário,
sem deixar o aspecto fílmico de lado, haja vista a fotografia,
cenografia e a arte primorosos. E o que dizer de Lima Duarte, Melhor
Ator em Gramado, Havana e APCA? Ponha sua atuação entre as 20
maiores do cinema mundial sem pestanejar. Ainda levou Melhor Filme e
Crítica em Gramado.
7 - “O Homem
que Virou Suco”, João Batista de Andrade (81) – A forte
atuação de José Dumond (Melhor ator em Gramado, Brasília e
Huelva), mais uma vez espetacular como em “A Hora da Estrela” e
“Morte e Vida Severina”, leva o filme conta a história do poeta
popular, o nordestino Deraldo, quer tenta viver em São Paulo de sua
arte mas é irresponsavelmente confundido com um assassino. Suas
raízes e verdades, então, viram “suco” na grande cidade. Melhor
Filme em Moscou e Nevers.
8 - “Bar
Esperança, O Último que Fecha”, Hugo Carvana (82) – Poético
e divertido, “Bar...” é o típico filme do novo Brasil que se
construía com a Abertura, o que significava transformações
irrefreáveis, como o avanço da modernidade e a morte da antiga
boemia poética. Junto com a companhia Asdrúbal Trouxe o Trambone,
lançou toda a geração de atores que viriam a desembocar na TV
Pirata e afins e no cinema que se constituiu no Brasil na
pós-retomada. Cenas memoráveis, atuações impecáveis, diálogos
idem. Música-tema de Caetano com Gal Costa. Vários prêmios em
Gramado. Uma joia.
9 - “Pra
Frente, Brasil”, Roberto Faria (82) – Tijolaço na cara da
ditadura, que, embora mais branda, ainda se mantinha no governo
Figueiredo. Corajoso e sem dó, evidencia a desumanidade do regime
militar ao contar a história de um homem confundido com um
“subversivo” e que é dura e aleatoriamente torturado, fazendo um
paralelo com o clima festivo da Copa de 70. Primeiramente proibido
pela censura, depois de liberado arrebatou Gramado (Filme e Edição)
e levou prêmio em Berlim, entre outras premiações e indicações.
10 -“Nunca
Fomos Tão Felizes”, Murilo Salles (84) – O letreiro inicial
diz tudo, quando o título do filme se constrói de forma a se
entender “Tão Felizes Nunca Fomos”. Estocada forte na Ditadura,
rodado no último ano do Governo Militar, conta a história de um
filho de um misterioso militante político que é retirado de um
colégio interno para viver temporariamente num moderno e entediante
apartamento. Alto nível técnico. Arrebatou Brasília e prêmio da
Crítica em Gramado.
11 - “Verdes
Anos”, Carlos Gerbase e Giba Assis Brasil (84) – O cinema
gaúcho, encabeçado pela galera da Casa de Cinema, começava nos 80
a mostrar suas qualidades: roteiros tratados literariamente, ares de
cult movie europeu, técnicos competentes e sotaque diferente do
“carioquês” ou “paulistês” que todos eram acostumados a
ouvir no cinema nacional. Um sopro de criatividade que revolucionaria
o audiovisual brasileiro a partir dos anos 90. Tema musical clássico
de Nei Lisboa.
12 - ”Cabra
Marcado para Morrer”, Eduardo Coutinho (84) – Mestre do
documentário mundial, Coutinho não se entregava mesmo quando
parecia impossível. “Cabra...”, um dos maiores filmes do gênero,
é um documentário do documentário. Interrompido em 1964 pelo
governo militar, narra a vida do líder camponês João Pedro
Teixeira e teve suas filmagens retomadas 17 anos depois, introduzindo
na narrativa os porquês da lacuna. Premiado na Alemanha, França,
Cuba, Portugal e Brasil, onde conquistou Gramado e FestRio.
13 - “Memórias
do Cárcere”, Nelson Pereira dos Santos (84) – Prova de que
Nelson Pereira não tinha “perdido a mão” depois de erros e
acertos nos anos 70, se debruça novamente sobre Graciliano Ramos,
mas desta vez não como fizera com seu grande romance, “Vidas
Secas”, mas sobre o próprio escritor quando de sua prisão pelo
Governo Vargas. Um épico que ganhou prêmio da crítica em Cannes.
14 - “A Hora da
Estrela”, Suzana Amaral (85) – Exemplo de como se fazer um
filme pequeno, com baixo orçamento, mas de muito, muito esmero de
roteiro (baseado no forte texto de Clarice Lispector) e cenografia.
Cartaxo interpreta a inocente Macabéa, noutra atuação espetacular
dos anos 80 no cinema mundial, que a fez ganhar Urso de Prata em
Berlim, onde a diretora também ganhou prêmio da crítica. O filme
ainda levou tudo no Festival de Brasília.
15 -“O
Beijo da Mulher Aranha”, Hector Babenco (85) – Uma história
improvável em uma produção brasileiro-americana ainda mais
improvável de dar certo. Mas Babenco, talentoso e sensível, amarra
tudo com maestria. De roteiro primoroso, é mais uma pungente crítica
ao Governo Militar e que tem nas atuações dos estrangeiros John
Hurt e Raul Julia e na dos brasileiros, Lewgoy, Sônia Braga e Milton
Gonçalves sua base. Cannes e Oscar de Ator para Hurt, mas concorreu
também a Filme, Direção e Roteiro na Academia e a Palma de Ouro.
16 - “O Homem
da Capa Preta”, Sérgio Rezende (86) – Na sua longa
filmografia, Rezende se especializou em rodar temas ligados à
história do Brasil. Porém o seu maior acerto é justamente o
primeiro com esta temática. Sobre o controverso político de Duque
de Caxias, Tenório Cavalcanti (Wilker, incrível), é um exemplo a
se seguir de cinebiografias, as quais hoje tanto se fazem mas que
resvalam na superficialidade. Grande vencedor de Gramado.
17 - “O Grande
Mentecapto”, Oswaldo Caldeira (86) – Das melhores comédias
do cinema nacional, filme mineiro que, na linha de “Verdes Anos”,
direcionou a produção a outros Estados que não Rio e SP, e que
sedimentou a geração TV Pirata (Diogo Vilella, LF Guimarães,
Regina Casé) numa história de Fernando Sabino ao mesmo tempo
deliciosa, cômica, poética e aventuresca. Um dos finais de filme
mais bonitos do cinema brasileiro. Trilha do Wagner Tiso marcante.
Melhor Filme pelo júri em Gramado e concorreu em Cuba, Canadá e
EUA.
18 - “Ópera do
Malandro”, Ruy Guerra (86) – Ruy é o cara que sempre
produziu com alto padrão de qualidade desde que surgiu, nos anos 60.
Em “Ópera...”, coprodução da Embrafilme com a França, ele
eleva ainda mais o nível. Numa adaptação da peça de Chico Buarque
(por sua vez, baseada em Brecht e Gay), ele se vale do apoio do amigo
e parceiro não só para os maravilhosos temas musicais como até
para os diálogos. Tiro certeiro. Musical que não te cansa, pois
integra tanto a cenografia às canções que todos os atores se saem
bem cantando.
19 - “Ele, O
Boto”, Walter Lima Jr, (87) – Lenda popular e realidade se
misturam nessa fábula contada com muita poesia sobre a beleza do
imaginário e da sexualidade feminino, tema que Lima Jr. recuperaria
10 anos depois em “A Ostra e o Vento”. Dos primeiros filmes
brasileiros que me arrebataram. Nunca me esqueci da lindeza da
fotografia das cenas noturnas, com a claridade (muito bem
fotografada) da lua na praia. Outra ótima trilha de Tiso.
20 - “Faca de
Dois Gumes”, Murilo Salles (89) – Terminando a década,
Murilo acerta a mão em cheio de novo, desta vez adaptando
Best-seller de Sabino. O resultado é um drama policial potente e não
menos crítico no que se refere ao sistema. Atuações memoráveis de
José Lewgoy, Pedro Vasconcelos e Paulo José, principalmente.
Direção, Fotografia e prêmios técnicos em Gramado, além de Filme
em Natal e Rio.
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Embora goste menos
desses títulos ou até não goste de alguns, acho justo, por uma
questão jornalística e histórica, ao menos citá-los, pois cada um
tem seu grau de importância dentro do período dos anos 60, 70 e 80
que abordamos:
60: “Macunaíma”
(Joaquim Pedro, 69); “Cara a Cara” (Bressane, 67); “A Falecida”
(Leon, 65); “Porto das Caixas” (Saraceni, 62); “Bahia de Todos
os Santos” (Triguerinho, 60); “A Grande Feira” (Pires, 61); “A
Grande Cidade” (Cacá, 66)