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quinta-feira, 18 de abril de 2024

"Gilberto Braga: O Balzac da Globo - Vida e obra do autor que revolucionou as novelas brasileiras", de Artur Xexéo e Maurício Stycer - Ed. Intrínseca (2024)

 




por Márcio Pinheiro

"Ele [Artur Xexéo] era um profissional que eu admirava e respeitava, dez anos mais velho do que eu. Aceitei a proposta do Gilberto [Braga] de continuar com o trabalho iniciado pelo Xexéo porque, entre outros motivos, entendi que seria também uma homenagem a este jornalista que respeito tanto".
Maurício Stycer


É possível gostar de um livro e ao mesmo ficar decepcionado? Meu amigo João Carlos Rodrigues me ensinou que sim ao comentar a desilusão que teve ao concluir a leitura da biografia de João Gilberto feita por Zuza Homem de Mello. Foi a mesma sensação que tive ao concluir a leitura de "Gilberto Braga: O Balzac da Globo - Vida e obra do autor que revolucionou as novelas brasileiras". 

Obra que teve uma trajetória atribulada, com a morte do personagem (Gilberto Braga) e do autor inicial (o jornalista Artur Xexéo), o livro acaba refletindo esses desencontros. Acabou sendo concluído por outro jornalista, Maurício Stycer, e aí surge o primeiro problema: Xexéo, então, em muitas partes, passa a ser tratado como fonte, não mais como autor. Stycer assume a conclusão das entrevistas e se responsabiliza pela redação final.

Outra desilusão foi com relação aos capítulos. São curtos demais e quase todos centrados na obra de Gilberto, com poucas referências ao making of. São ainda quase sempre apresentados num formato semelhante: Gilberto tem a ideia, desenvolve-a, discute com o diretor, começa a gravação, se desespera (com algum ator/atriz, com o Ibope, com a pressão interna da emissora...), promete que aquele será o último trabalho e... volta a escrever uma próxima novela - que servirá de base para o próximo capítulo do livro. 

Pouco se fala dos bastidores. Ficamos sabendo da óbvia admiração de Gilberto pela sua patota: José Lewgoy, Malu Mader, Dennis Carvalho, Antonio Fagundes... e até as pouco lembradas Henriette Morineau e Jacqueline Laurence, mas o livro pouco desenvolve quem Gilberto NÃO gostava. Fala en passant dos desentendimentos com Luiz Fernando Carvalho e com Vera Fischer. E só. Daniel Filho e Boni, tão fortes no início de Gilberto em 1972, contrastam com a ausência de Walter Clark, ainda mais poderoso na época e tão pouco citado. São escondidas também pequenas (quem era o cantor que Gilberto não tinha nenhum disco e se apressou em adquirir quando o convidou para um jantar na sua casa?) e grandes fofocas (a maior delas: o misterioso Diplomata, hoje com mais de 90 anos, que teria tido um papel afetivo importantissimo na vida do novelista?).

O livro tem méritos. Recupera bem a fase de Gilberto pré-Globo, a vida como professor de Francês e, mais ainda, como crítico teatral. Mostra também com detalhes o entorno familiar - mais complicado do que qualquer novela do autor. Apresenta ainda Gilberto como uma pessoa insegura, com obsessão por dinheiro (isso se fala quase no início, quando ele ainda está preocupado com um teste vocacional e confessa que "não enxergava futuro algum como professor, não gratifica ninguém, nem monetária nem intelectualmente"), preocupado com a ascensão social (tema tão presente em seus textos) e até da inveja que ele nutriu de Mário Prata durante um período, pelo fato de ele, Mário, ter livre acesso à sala de Boni e ele, Gilberto, não.

A vida de Gilberto Braga deu num livro bom. Poderia ter sido uma novela ótima.


quinta-feira, 4 de abril de 2024

Sarau de leitura “Chapa Quente” – Macunaína Gastro Bar – Porto Alegere/RS (08/03/2024)

 

Faz já alguns dias, mas segue valendo a pena o registro do sarau literário com os autores gaúchos da editora Caravana, grupo do qual faço parte agora por conta do meu “Chapa Quente”. Foi no agradável Macunaíma Gastro Bar, na Cidade Baixa, que reuniu cerca de 15 escritores do “cast” gaúcho da editora. Teve poesia, ensaio, crônica e, claro, conto, garantida por outros e de minha parte com um trecho lido do meu “Abrindo-se”, história que abre o livro.

A coincidência do sarau com o Dia Internacional da Mulher fez com que, além de várias menções e homenagens, eu tivesse clareza de que trecho ler da minha obra, uma vez que cada um tinha em torno de 3 min com o microfone. O pedaço do conto que li falava exatamente da personagem Nina, uma sofrida jovem de classe alta que, em desavença com os pais, morava sozinha em um apartamento simples para seus padrões financeiros e sob o jugo dos homens da sua vida: o agressivo namorado e, principalmente, o pai opressor. Contudo, como ressaltei no preâmbulo que fiz em minha fala ao público presente, a história só se move por conta da ação interna transformadora a qual a personagem se dispõe.

Eis o trecho:

"Acontece que Nina, ao contrário do que alguns tentavam imputá-la, tinha muita capacidade e inteligência. A ponto de buscar no fundo de seu íntimo forças para sair daquele poço emocional. Tudo que não queria era transformar-se no que sua mãe se transformou. Porém, por outros caminhos, via que era justamente isso que estava acontecendo. E afinal, não era exatamente isso que seu pai queria, que as mulheres se anulassem diante dele? Reflexões que a música de Felipe lhe dava condições de fazer nas horas a fio de ensaio dele e de ostracismo dela. “Como esta melodia consegue ser tão delicada e intensa ao mesmo tempo?”, questionava. Impressionava-a que, ali, as repetições eram salutares, diferentemente do que costumavam lhe dizer ao demonizarem a repetição. Através daqueles acordes encadeados, quase hipnóticos, ficava-lhe claro ser possível evoluir e conjugar leveza e força, tudo em que sempre fizeram Nina desacreditar. 

Tanto que buscou ajuda: adotou um cachorro, parou com as drogas, desfez-se das garrafas de álcool, passou a escancarar todas as manhãs as janelas por muito tempo cerradas e começou a fazer terapia online. Quase sempre as sessões eram embaladas pelo toque daquele mesmo tema tocado repetidamente por Felipe, como uma trilha sonora martelada de um filme cujo roteiro chegava na parte em que a mocinha superava a crise em direção a um desfecho feliz. Nina buscou harmonizar-se com a mãe e, dentro do possível, entender a postura do pai. Ainda não o havia perdoado e nem sabia se um dia conseguiria, mas tentava viver um dia depois do outro. Só não via mais conserto no relacionamento com o namorado, que, desinteressado, pois muito provavelmente já em outra, cada vez menos aparecia, até que sumiu de vez."

Bom conhecer o pessoal da editora, que em parte veio de Belo Horizonte diretamente para o evento, bem como alguns dos colegas escritores. Casa cheia é sempre legal. Esta foi, embora tímida, a primeira aparição pública de “Chapa Quente”, cujo lançamento foi final de dezembro do ano passado. Prenúncio para, aí sim, um lançamento oficial, que pretende-se arranjar em breve. Por ora, no entanto, alguns registros, feitos pela lente atenta de Leocádia Costa, desse momento de letras e encontros. 

*********

A literária Macunaína Gastro Pub


Casa movimentada


Com o editor Leonardo Costaneto (em pé), Leocádia e outros autores


Lendo trecho de "Chapa Quente" no sarau da Caravana


Com os outros autores gaúchos e o pessoal da editora


Momento da leitura, apresentando-se e justificando 
o porquê do trecho escolhido



texto: Daniel Rodrigues
fotos e vídeo: Leocádia Costa, Daniel Rodrigues e Guy Leonard






terça-feira, 26 de março de 2024

cotidianas #825 - Novas Versões para Antigos Clássicos da Literatura - "Alice na Toca do Coelho"




Alice já estava cansada de ficar sentada no banco sem nada para fazer. Foi quando, de repente, um Coelho Branco de olhos cor-de-rosa passou correndo perto dela. Não havia nada de tão incrível nisso fora o fato do Coelho Branco repetir continuamente para si mesmo: — Ai, rapaz! Ai, rapaz! Vou me atrasar. Alice se alvoroçou mesmo foi quando o Coelho Branco sacou um relógio do bolso de seu colete, checou as horas e saiu apressado. Ela se deu conta de que nunca tinha visto um coelho com um relógio no bolso do colete. Ardendo de curiosidade, correu atrás dele a tempo de vê-lo se emburacar toca adentro no pé de uma cerca. 

No instante seguinte, era Alice quem se entocava ali. Decidiu perseguir o Coelho Branco sem refletir sobre como sairia daquele buraco. 

A toca tinha um trecho reto semelhante a um túnel. Depois, inclinava-se bruscamente para baixo, tão bruscamente que Alice não foi sequer capaz de pensar em frear. Simplesmente despencou em um poço de grande profundidade. 

Alice caía, caía, caía... Será que aquela queda não acabaria nunca? — Então, de repente: plunct! Aterrissou em um amontoado de gravetos e folhas secas. A queda havia chegado ao fim. 

Sem nenhum arranhão, ela se levantou em um instante. Olhou para cima, mas sobre sua cabeça tudo estava escuro. Atrás de Alice havia outra passagem longa, onde ainda se podia ver o Coelho Branco descendo bem depressa. Não dava para perder nem um segundo: lá foi a menina, veloz como o vento ainda a tempo de vê-lo fazer a curva. Alice estava perto dele ao fazer, mas o Coelho Branco já não podia mais ser visto. Sumira na escuridão de um salão comprido, baixo e mal iluminado. 

De repente, de um ponto qualquer na escuridão do fundo do salão, viu surgir o Coelho que avançou lentamente para uma faixa um pouco mais iluminada onde ela podia distingui-lo melhor. Ele estancou a encará-la e Alice, por sua vez, o olhou com curiosidade. 

De trás do Coelho Branco, também daquela treva, surgiram à luz algumas figuras no mínimo excêntricas: um tipo alto com uma cartola extravagante, um homenzinho baixo tão gordo que se assemelhava a um ovo, um par de gêmeos rechonchudos vestidos de forma rigorosamente igual, e um gato que a encarava com um sorriso sinistro na cara. 

O Coelho, girando a corrente do relógio de bolso, e agora parecendo ignorar a presença da menina, depois de um angustiante período de silêncio, finalmente abriu a boca e falou: - Eu não disse que ela ia me seguir? Tá aí ela, gente. Podem descer a porrada.



Cly Reis
livremente inspirado em "Alice no País das Maravilhas",
de Lewis Carrol

quarta-feira, 20 de março de 2024

Música da Cabeça - Programa #362

 

Vocês já sabem, mas não custa repetir: o MDC é a melhor vacina. Com a carteirinha em dia, o programa terá doses consideráveis de boa música com Ministry, Carolina Maria de Jesus, Zé Rodrix, The Troggs, Beth Carvalho e mais. Tem até Cabeça dos Outros, e tudo de graça como injeção na testa. Sem fraude no cartão vacinal, vamos ao ar às 21h na imunizada Rádio Elétrica. Produção, apresentação e certificado autêntico: Daniel Rodrigues



www.radioeletreica.com

sexta-feira, 19 de janeiro de 2024

Livro "Chapa Quente" - Pré-lançamento

 


“Chapa Quente” é uma reunião de cinco contos que têm em comum as tensões interpessoais e a complexidade das relações humanas, independente da época, do local ou da cultura em que ocorram.
Com imensa satisfação, anuncio o meu mais novo livro, "Chapa Quente", que está em fase de pré-lançamento. Quase saindo do forno! É o meu primeiro de contos individual, eu que já estive em seleções e antologias coletivas. A publicação sai pela mineira Caravana Editorial, de Minas Gerais.

A capa, de autoria do designer Caíque Cavalcante sobre uma fotografia do editor da Caravana, Leonardo Costaneto, é o detalhe da parede de um restaurante em Madrid. Curioso é que, vendo a imagem pela primeira vez, meu irmão e coeditor do blog, Cly Reis, achou que se tratava de algum desenho feito por mim, pois o traço parece com o meu. Revendo, percebi: "não é que parece mesmo?!". Coincidências da vida - ou não tão coincidências assim.

Mas para dar uma ideia do conteúdo em si, “Chapa Quente” é uma reunião de cinco contos de minha autoria, que têm em comum as tensões interpessoais e a complexidade das relações humanas, independente da época, do local ou da cultura em que ocorram. Seja nas favelas dos morros cariocas, na Europa iluminista ou nas pradarias inóspitas da América do Norte. E o fogo está ali, queimando sempre.

Ficaram instigados? Então, aqui um trecho do conto que dá título à obra, originalmente de 2014:

“O som insistia em não parar, o que os deixava ansiosos, porém, também apreensivos caso parasse, pois perderiam a pista. Até que Fabão, quieto e observador que era, levantou-se do sofá, chegou perto do sequestrado e encostou o ouvido na altura de seu ventre. Apenas apontou o dedo na direção da barriga dele. Era o celular pequeno e antigo que o tinham obrigado a engolir na hora do sequestro.” 

E aí, instigou? Para adquirir, está em tempo ainda: basta acessar este link


Daniel Rodrigues

quinta-feira, 30 de novembro de 2023

"Bom Dia, Manhã - Poemas", de Grande Othelo - Ed. Topbooks (1993)




"Grande Othelo foi um imenso brasileiro, um dos maiores de todos os tempos: ator, músico, cantor, apresentador de televisão, grande do teatro e do cinema, gênio nascido no ventre mestiço do Brasil. Tão gênio brasileiro quanto Oscar Niemeyer, Carlos Drummond de Andrade e Pelé."
Jorge Amado

"O autor por excelência do Brasil."
José Olinto

Há determinados artistas brasileiros que deixam um vácuo quando morrem. Aqueles que vão inesperadamente como foi com Elis Regina, Chico Science, Raphael Rabello, Cássia Eller e, mais recentemente, com Gal Costa. Eles provocam essa sensação de um buraco que se abre e que nunca mais será preenchido. Tanto quanto aqueles que, comum mais antigamente, despediam-se com menos idade do que seria normal à atual expectativa de vida, casos de Tom Jobim (67), Emílio Santiago (66), Mussum (53) e Tim Maia (55). 

Sebastião Bernardes de Souza Prata, o Grande Othelo é um desses vazios. Aliás, fazem 30 anos deste vazio, tão grande que parece contradizer com a diminuta estatura deste homem de apenas 1m50cm de altura. Mesmo que menos prematuro como os já citados (morreu aos 78 anos), sua vida marcada pela infância dura e pela vida adulta boêmia, não o poupou de roubar-lhe, quiçá, uma década cheia. Mas o que este brasileiro deixou como legado se reflete (ao contrário dos citados acima, músicos por natureza) em mais de um campo artístico. Grande Othelo foi um gênio na arte de atuar, mas deixou marcas indeléveis na música popular e na poesia.

"Bom Dia, Manhã" cristaliza essa magnitude de Grande Othelo, o homem das palavras, sejam as da dramaturgia, as dos sambas ou as dos poemas. Lançado em 1993 e com organização de Luiz Carlos Prestes Filho, o livro reúne um bom compêndio de mais de 100 textos poéticos do artista que eternizou em seu nome o ícone shakesperiano. Não haveria o livro, por óbvio, ser menos do que isso. Com sua inteligência incomum e fluência natural de escrita, Grande Othelo alterna da mais singela confissão existencial ao romantismo sentimental, a malandragem e a alta literatura, os sambas e o parnasianismo, passando pelas homenagens aos amigos e as observâncias da vida e das mazelas do mundo. Tudo numa linguagem de "puras palavras", como definiu o escritor José Olinto, sem cerebralismos e dotados de cadências existenciais.

Em “Nada”, o poeta escreve: “Na saga das tuas solidões/ Vão surgindo outras/ Em outros corações”. A compreensão do amor “desromantizado” de “Homem e Mulher” é também digna de escrita, assim como “Estrada”, que narra o descompasso de um homem velho e uma mulher mais jovem. Os sambas, no entanto, são uma delícia à parte. Como os que coescreveu com Herivelto Martins  “Fala Claudionor” ou o clássico “Bom dia Avenida”, de 1944, feito quando a Prefeitura do Rio de Janeiro resolveu acabar com o Carnaval na referencial Praça Onze, a Sapucaí do início do século XX: “Vão acabar com a Praça Onze/ Não vai haver mais escola de samba/ Não vai/ Chora tamborim/ Chora o morro inteiro”. Mas há ainda o samba-fantasia “Penha Circular”, o samba-crônica “Rio, Zona Oeste”, o samba inacabado “A boemia cantou”, o samba não-cantado por Elizeth Cardoso “Ao som de um violão”.

Representativo da raça negra em uma época de inúmeras dificuldades para o exercício deste ativismo, Grande Othelo mesmo assim posiciona-se por meio de suas palavras. Semelhante ao que ocorrera com outro ícone preto made in Brazil, Pelé, Othelo (que bem pode ser considerado um Pelé dos palcos, pois possivelmente o maior da sua área) bastava existir para representar resistência. Mas faz mais. “Sou no momento que passa/ A expressão mais forte/ De uma raça”, escreveu em “Neste momento: eu!”. Leu, com o olhar de menino sábio, a lenda gaúcha do Negrinho do Pastoreio, que ele mesmo representou no cinema em 1973, dirigido pelo tradicionalista Nico Fagundes:

“O negrinho descerá e subirá cañadas
Em correrias desenfreadas...
Beberá a água das sangas
E sempre sozinho, pois ninguém o vê.
Mas quando voltar há de trazer
A felicidade procurada por você.”

Não é uma delicadeza de apreciação? Estas e muitas mais delicadezas estão em "Bom Dia, Manhã", cuja leitura se dá com o prazer de quem ouve um samba, de quem lê uma crônica, de quem reflexiona a própria condição humana. É difícil imaginar o que Grande Othelo teria feito se tivesse vivido, quem sabe, mais 10 anos – nada alarmante nos tempos de hoje em que senhores da faixa dos 87-88 anos são Tom Zé ou Roberto Menescal, ativos e joviais. Mas é impossível não sentir falta dele vivo, aqui presente. Pensar que aquele Macunaíma, aquele Espírito de Luz, aquele parceiro de Carmen Miranda, aquele Cachaça, aquele farol do povo brasileiro não está mais é reconhecer o vazio que isso provoca. Um vazio grande, como o que este pequeno Othelo carregava no nome.

**********

Trio de Ouro 


Daniel Rodrigues

quinta-feira, 9 de novembro de 2023

"Contos", de Erico Veríssimo - ed. Globo / coleção Aventura de Ler (1997)






"O Tempo é um rio sem nascentes
a correr incessantemente
para a Eternidade (...)"
trecho do conto "Sonata"



Erico Veríssimo era impressionante! Sua versatilidade, habilidade para transitar entre diversos gêneros com a mesma qualidade, intensidade era algo incrível.
Estava aqui em casa mas sempre deixava para depois, o livro "Contos", edição de 1987, que reúne algumas poucas histórias do autor neste modelo mais curto, mas sucinto, mas ainda assim muito significativas no que diga respeito a seu estilo e possibilidades.
O célebre autor gaúcho passeia do drama familiar ao terror, do fantástico ao policial, com uma naturalidade incomum. Emociona com o conto "As Mãos do Meu Filho", no qual um músico talentoso rende suas homenagens à mãe, esforçada, heroica nos sacrifícios, nas renúncias da vida, mas despreza o pai, problemático, ex-alcoólatra, e que no entanto, é orgulhoso do filho e, sabe que, à sua maneira, teve sua parcela para que ele chegasse àquele momento de consagração.
"O Navio das Sombras", ainda que com todos os conflitos emocionais do personagem principal e seu estado psicológico, é acima de tudo um conto de terror, seja pela ambientação, um porto deserto, um navio fantasma, seja pelas imagens criadas por Erico como a névoa, a escuridão, vultos indefinidos e rostos zumbificados.
"Os Devaneios do General", sobre a nostalgia de um ex-militar da época da Revolução Federalista, dos tempos em que mandava e desmandava numa cidadezinha do interior, embora traga a dura realidade das crueldade das guerras, carrega consigo uma ponta cômica e revela a veia ácida do autor.
A tortura interior de um homem ciumento em relação à sua jovem esposa pauta o envolvente "Esquilos de Outono", drama-suspense, ambientado nos Estados Unidos.
"A Ponte", o mais longo dos contos, desenvolvido com a habilidade do romancista, traz um homem rico realizado materialmente, mas cuja vida revela uma série de vazios, entre eles, uma saudade da cidade Natal e uma espécie de dívida pessoal com o lugarejo.
No mais impressionante dos contos, "Sonata", Erico Veríssimo manipula o tempo como bem entende, misturando tempo, personagens de épocas diferentes, espaços físicos, sensações, e costurando tudo isso, a música. Numa maestria que somente um grande autor pode se permitir e conseguir executar, ele conta a breve história de um músico, sem grandes perspectivas, deslocado de sua época, fora de seu tempo que, deparando-se com um anúncio de jornal do ano em que nascera, por curiosidade, resolve investigar como a pessoa que solicitara um profesor de piano, vinte e oito anos antes, encontraria-se naquele momento. Vai então até o endereço do anúncio e aí começa uma incrível jornada que alterna passado e presente e une esses mesmos espaços de tempo de forma mágica. Imaginação, viagem no tempo, delírio, sonho, pós-morte? Nada é certo, nada é definitivo em "Sonata".
Fazia tempo que não lia Erico e reencontrá-lo nesses contos foi, de certa forma, uma retomada completa. Tem o Erico novelístico, o Erico espiritual, o Erico cru, o Erico viajante, o Erico historiador, enfim... O exercício do conto possibilita que o autor coloque um pouco de suas características de romancista em cada uma dessas historietas e, desta forma, o leitor tem o privilégio de saborear praticamente uma compilação dessas formas literárias que o consagraram, em pequenas doses.
Meu tratamento à base de Érico Veríssimo foi retomado com êxito. Agora, a recomendação é aumentar a dosagem.




Cly Reis


quarta-feira, 1 de novembro de 2023

cotidianas #812 - Pílula Surrealista #55

 

- Cara, você nunca sentiu que precisava extrair mais do mundo, da vida? Uma sensação de que, sei lá, não consegue aproveitar o bastante, que faltam sentidos a nós humanos pra absorver as coisas com mais vigor, mais verdade.

- Como assim?

- Olha isso aqui à nossa volta: dá uma vontade de captar mais o que é bom, o que é vivo, de sentir mais o gosto das coisas, porque parece que o que a gente tem nesse mundo real não dá conta.

- Pra isso serve a arte. "A arte existe porque a vida não basta". Não é assim que o poeta diz?

- Não, não é só de arte que eu tô falando. Isso que eu digo é mais do que arte ou qualquer coisa palpável. É um desejo de vida mesmo, entende? Não é só respirar, é... 

- Explica melhor.

- Humm, sei lá... não sei nem se eu sei dizer, mais é o que eu sinto, sabe? É como se necessitasse sentir com mais inteireza esse milagre da vida. O sol que ilumina as árvores, o azul ou o preto do céu, o vento que bate na pele, a beleza feroz dos relâmpagos, o verde da relva, o colorido das flores... Tudo isso não cabe na compreensão, não acha?

- É, acho que sim.

- Pois é, tudo isso não cabe, não tem como pegar, como conter, como comprimir. Escapa. Chega a me dar vontade de comer!

- Comer o quê?

- O mundo.

- Humm...

- Sim, comer o mundo! Uma garfada, uma mordida na polpa. Como um pão, uma comida. Uma carne.

- Olha, gostei dessa: carne do mundo.

- É, isso mesmo: sentir o gosto da vida como quem saboreia a carne do mundo... Impossível, né?

- É... quem sabe um dia.

- Pois é: quem sabe.


Daniel Rodrigues

quarta-feira, 18 de outubro de 2023

Música da Cabeça - PROGRAMA ESPECIAL Nº 340

 

Amigos punks: escutem esse desabafo daquele que é uma lenda do rock gaúcho: Frank Jorge. Ele é o entrevistado do MDC especial n° 340! Além dele no quadro Uma Palavra, ainda tem música, notícia, letra, aquilo tudo. A essa altura da noite, 21h, o que importa mesmo é ouvir o programa na xilarmônica Rádio Elétrica. Produção e apresentação: Daniel Rodrigues - enquanto sigo detonando um hardcore.


www.radioeletrica.com

terça-feira, 10 de outubro de 2023

cotidianas #809 - Pílula Surrealista #54

 

O poeta, anacrônico, perde-se na fisiologia do mundo digital, transformador de tudo. O papel, a pena, a tinta, a traça. Nada mais. Nunca mais. Na nuvem de palavras - soltas, acotovelando-se, daninhas - o poeta se dispersa em si próprio. Dilui-se entre letras. Até sumir.


Daniel Rodrigues

sexta-feira, 23 de junho de 2023

"A Menina que Morava no Sino", de Celso Gutfreind e ilustrações de Flávio Fargas, ed. Physalis Editora (2020)

 

"A nossa história já foi comprovada para além da imaginação. A menina morava aqui na Terra mesmo. Ela vivia sozinha no Sino. A bem da verdade, havia três sinos lá no alto. Eles tocavam juntos para a gente ouvir melhor. A menina achava que eles não precisavam de ninguém. Ou eles tocavam sozinhos para acompanhar o balanço dela."


Tive a oportunidade de ler o original do livro "A Menina que Morava no Sino" e me lembro do grande impacto que senti. Já nas primeiras páginas queria ser amiga dela e subir no sino que cresci escutando, e que existe mesmo, ali na Igreja (super gótica) conhecida como Santa Therezinha, em frente ao Brique da Redenção. 

Ao ler essa estória você irá se deparar com temas como adoção, diferenças, deficiência auditiva, o cotidiano das cidades e seus personagens, poesia, música e literatura. São 136 páginas para leitores de todas as idades, mas também indicado a leitores do 4º ao 9º ano do Ensino Fundamental, cuja edição cuidadosa é da Physalis (Passo Fundo/RS) e foi lançada em 2020. O meu exemplar foi adquirido na AMA Livros. 

Essa é a primeira novela infanto-juvenil do conhecido escritor e médico gaúcho Celso Gutfreind. Na trajetória de escritor, a poesia ocupa boa parte das publicações de Celso e a surdez é um tema recorrente em sua prática como psicanalista, e por isso faz parte dessa estória, “que não se sabe muito bem de onde vêm”, como a menina mesmo diz.

De forma poética, divertida e cheia de referências as estórias dentro da estória da menina, vão trazendo emoções, dúvidas, e a oportunidade de discutir muitos aspectos ali contidos. Maria Antonieta Cunha, que apresenta o livro, diz que "A menina que morava no sino é um hino à humanidade e a algumas das melhores coisas que ela produz: por exemplo, a arte, em suas tantas manifestações (em especial, o ato de contar histórias) e o amor, nas suas mais diversas formas. Saímos dela com otimismo, com esperança, com vontade de experimentar um olhar mais atento e carinhoso para nosso mundo." 

Premiadíssimo em 2021, "A Menina que Morava no Sino" ganhou os troféus: Açorianos de Literatura Infantojuvenil; Livro do Ano Juvenil AGES - Associação Gaúcha de Escritores e Carlos Urbim - Literatura Infantil, pela Academia Riograndense de Letras, e Prêmio Cidade de Passo Fundo RS. A edição traz as ilustrações do mineiro Flávio Fargas, formado em Belas Artes pela UFMG com bacharelado em Pintura e Desenho, que revela: “Já tive a oportunidade de ilustrar textos magníficos ao longo desta vida de ilustrador. Mas poucos mexeram comigo tanto quanto este. A menina que morava no sino é lindo, leve, divertido, emocionante. Tudo ao mesmo tempo...” 

#ficaadica


Leocádia Costa


quinta-feira, 8 de junho de 2023

"Grande Sertão: Veredas", de João Guimarães Rosa, adaptado para quadrinhos por Guazelli e Rodrigo Rosa - editora Quadrinhos na Cia. (2014)

 




"O diabo
no meio da rua
no meio do redemunho"


Belíssima adaptação para quadrinhos de um dos maiores clássicos da literatura brasileira. O roteirista Guazelli e o artista Rodrigo Rosa tiveram a desafiadora tarefa de transpôr para esta outra linguagem, ainda que também literária, porém muito mais visual, uma obra de estrutura difícil, de texto complexo e longa extensão, e no fim das contas, pesando acertos e erros, prós e contras, pode-se dizer que se saíram muito bem.
O romance gráfico consegue transmitir a atmosfera árida, o clima sufocante do sertão, a intensidade dos confrontos e a verdade do sertanejo, seja ela de ignorância ou de sabedoria.
"Grande Sertão: Veredas", obra original de Guimarães Rosa, um dos maiores gênios da literatura brasileira, narra, na voz de um sertanejo relatando a um visitante curioso, as sagas, aventuras e desventuras de um grupo de jagunços no interior de Minas Gerais, seus conflitos, traições, disputas de poder e batalhas, tudo sob um olhar de sabedoria do homem que aprendeu a conhecer os homens e a conhecer o mundo, e a partir disso formou juízos repletos de filosofia sobre tudo à sua volta.

A sensação do calor e a intensidade dos tiroteios
nas ilustrações impressionantes de Rodrigo Rosa

As ilustrações de Rodrigo Rosa são impressionantes! O leitor quase sente o calor, o sol castigando, a tensão entre os homens, a coragem, o medo, o clima dos tiroteios. O roteiro que peca um pouco nas transições, de situações, de lugar, de tempo, mas não  desvaloriza o grande trabalho de adaptação dessa obra, por um lado fácil de ser colocada em imagens, dada a riqueza narrativa de Guimarães Rosa, mas, por outro, difícil pelo formato, pelo texto corrido, pela linguagem sertaneja, etc.
Enfim, mais méritos que críticas ao trabalho dos autores da HQ. Parabéns a eles. Mais uma obra fundamental da nossa literatura que ganha traço e cores artísticas com muita qualidade. 

A beleza e a força da cena de Riobaldo invocando o demônio.





Cly Reis


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"Grande Sertão: Veredas"
romance gráfico adaptado a partir da obra "Grande Sertão: Veredas", de João Guimarães Rosa
roteiro: Guazelli
arte: Rodrigo Rosa
editora: Quadrinhos da Cia.



quinta-feira, 9 de fevereiro de 2023

cotidianas #789 - Pílula Surrealista #53

 

Confraternizavam os amigos alegremente na mesa do bar regados a cerveja, a qual era substituída regularmente pelo atencioso garçom. Quase maquinalmente, ele trocava a garrafa vazia e servia os copos...

Confraternizavam os amigos alegremente na mesa do bar regados a cerveja, a qual era substituída regularmente pelo atencioso garçom. Quase maquinalmente, ele trocava a garrafa vazia e servia os copos...

Confraternizavam os amigos alegremente na mesa do bar regados a cerveja, a qual era substituída regularmente pelo atencioso garçom. Quase maquinalmente, ele trocava a garrafa vazia e servia os copos...

Confraternizavam os amigos alegremente na mesa do bar regados a cerveja, a qual era substituída regularmente pelo atencioso garçom. Quase maquinalmente, ele trocava a garrafa vazia e servia os copos...

... Até que um deles se deu conta de que a mesa onde estavam sentados ficava entre dois espelhos, um em cada parede, uma de frente para a outra, gerando, naturalmente, reflexos repetidos infinitamente de ambos os lados. Percebeu, então, que seria inevitável que se embriagassem até não aguentarem mais, e que suas sinas estavam fatalmente condicionadas a nunca mais levantarem-se dali e arriscarem outro movimento que não o de beberem e resistirem em cair. A luz um dia se apagaria para salvá-los do reflexo?

Confraternizavam os amigos alegremente...


Daniel Rodrigues


quinta-feira, 22 de dezembro de 2022

cotidianas #784 - Pílula Surrealista #52

 

Caroline era muito querida pelos colegas de firma. Tanto que foi um choque para o grupo quando souberam que ela havia sido demitida. A notícia, dada pela gerente de RH, caiu como uma bomba silenciosa no meio do escritório. Incrédulos, os colegas se entreolhavam, uns com lágrimas nos olhos, outros tentando conter a indignação ou cabisbaixos ou abismados ou recorrendo à reza de um terço. Como ficariam sem Caroline? E as visitas dela aos setores... e o "bom dia" que não mais receberiam... e o sorriso largo, a risada encantadora... os gestos educados...? Passou pela cabeça de um deles deflagrar uma greve. Não seria estranho que quisesse também, em represália, implantar uma bomba bem debaixo da mesa da gerente. Mas não poderiam, sabiam. 

O jeito foi sequestrar Caroline antes que ela pusesse o pé na rua e escondê-la amarrada no porão. Ali, davam-lhe água e a alimentavam com os restos da refeição de todos os colegas arrecadada dos pratos no restaurante da esquina onde iam religiosamente todos os dias da semana. 

Acontece que custava muito alimentar alguém, assim, em tempos de crise. Afinal, o vale-refeição de Caroline havia sido desativado fazia mais de um ano, desde que a direção fizera aquela barbaridade de despedi-la. 

Soltaram-na, então. A primeira coisa que Caroline fez foi voltar à sua casa para rever marido e filhos. Ingênua, não previu que encontraria o companheiro casado novamente. Até a barba, a qual nunca havia aberto mão, estava feita, rosto limpo.

- A senhora quer alguma coisa? Não tenho trocados, me perdoe. Verônica, você tem uns 2 pilas aí contigo?

A maltrapilha e fedorenta Caroline nem deixou que a nova esposa respondesse e escapuliu, como um rato ágil e conhecedor dos atalhos subterrâneos.

A tranca de acesso ao porão estava destravada, tal como havia deixado. Então, pode retornar à nova casa, que agora lhe parecia tão acolhedora e familiar. Mesmo com a crise econômica, alguém haveria de seguir alimentando-a com o que desperdiçava da refeição diária. Sentia-se cidadã e cumpridora de seu papel social ao reaproveitar comida. Esta dignidade não iriam negar-lhe.


Daniel Rodrigues

segunda-feira, 19 de dezembro de 2022

Th’ Faith Healers - "Lido" (1992)

 

"Eu estava dirigindo para o meu trabalho estúpido e me vi preso em um engarrafamento gigantesco na estrada. De repente, algo novo flutuou sobre as ondas do rádio... um vocal feminino rosnado e sensual serpenteando em uma batida thumpa-thumpa... furtivo, legal... De repente a coisa toda se tornou selvagem. A cantora sibilou entre os dentes, as guitarras (soavam como 50 delas) gaguejavam e cuspiam, e a maldita coisa toda entrou em hiperdrive. A tempestade se estabeleceu em um ritmo pesado, hipnótico e caótico ao mesmo tempo, a música se agitou e se agitou e só terminou quando caiu no chão com um estrondo. Meu trabalho (e o resto do dia), desnecessário dizer, empalideceu em comparação com esse ataque auditivo. Totalmente perfeito... Eu estava apaixonado."
Dave Ehrlich, músico e produtor


A música é das poucas coisas nesse mundo capazes de me provocar paixões arrebatadoras. E que podem acontecer a qualquer momento. Se ainda é assim comigo hoje com todos os recursos e facilidades que a internet traz, imagine-se antigamente, antes da era digital, quando muita coisa era de difícil acesso, se não, impossível. Tudo era mais complicado e mágico. Podia estar a qualquer lance no rádio, na tevê, nas revistas, nos sebos, na discoteca de amigos e familiares. Pois houve um tempo, nos anos 90, em que um desses locais de pesquisa e reconhecimento eram as locadoras de CD’s. A pouca grana que dispunha de mesada ou estágios mal remunerados era boa parte reservada a gravar em K7 as coisas que vasculhava nas prateleiras das locadoras reforçando antigas paixões e descobrindo novas. Numa dessas ocasiões, lá pelos idos de 1994, uma se revelou para mim. 

Logo que entrei na loja, num início de tarde de um sábado, notei que estava rodando, como sempre faziam, algo interessante, mas que não conhecia. Aliás, não conhecia, mas reconhecia ali elementos que me agradavam muito. Rock alternativo forjado nas guitarras distorcidas, base de baixo bem pronunciada, vozes masculina e feminina se intercalando, bateria forte marcando um ritmo pulsante. Algo entre o indie, o shoegaze, o dream pop, o college, o experimental e o noise rock. Era atmosférico, ruidoso, visceral, melodioso... Lembrava muito Sonic Youth, mas não era, isso eu tinha certeza. Havia algo de Lush, de My Bloody Valentine, de Pixies, mas também dava para ver que não era nenhum deles. De boas, o rapaz da loja me sanou a dúvida: “é este CD aqui”. A capa em si me chamou atenção: uma foto vintage de um camping e as letras em fonte de máquina de escrever, tipo Courier New, escrito apenas o nome do disco e da banda cujo artigo “Os” (“The”), vinha sem a letra “e”: apenas “Th". Era um detalhe, mas muito esquisito e interessante. Tudo aquilo, som, estilo, atmosfera, me cativaram imediatamente. Pronto: paixão. Deu tempo de escolher algum outro disco para levar, mas, claro, não poderia deixar de adicionar à minha sacola também “Lido”, aquele álbum do grupo de rock alternativo londrino ao qual acabava de conhecer Th’ Faith Healers, formado por Roxanne Stephen e Tom Cullinan, nos vocais e guitarras; Ben Hopkin, baixo, e Joe Dilworth, bateria.

Como grandes bandas do underground dos anos 90, a Th’ Faith Healers, tal a Whale, a The La’s e a brasileira 3 Hombres, tem uma carreira curtíssima, mas totalmente assertiva. Tanto que talvez goste até mais do segundo e último disco de estúdio deles, “Imaginary Friend”, de 1994, o qual me motivou, inclusive, a concepção de um conto literário, “Heart Fog”, baseada na música homônima, presente na antologia “Conte uma Canção – Vol. 2”, publicada em 2016 pela Multifoco. Mas “Lido”, além de estar completando 30 anos de seu obscuro lançamento, lá nos idos de 1992, guarda consigo a primazia de ser o trabalho inaugural da banda e o que me fez descobri-la. Além de, claro, merecer estar nesta lista de fundamentais, inclusive já tendo sido responsável pelo primeiro nome do Clyblog, que se chamou por um breve espaço de tempo, em 2008, pelo nome da sua última faixa, a apoteótica “Spin ½”, uma minissinfonia de guitarras altamente distorcidas de quase 10 minutos com samples que sobrevoam, batida cadenciada e loopada a e voz de Roxanne cantarolando um único verso: “Into the sea you must be in the water”. Hipnótica, sensual, inebriante, caótica, tempestuosa, onírica, algo hinduísta. Uma oração ruidosa e barulhenta de um dos melhores finais de discos do rock de todos os tempos, sem exagero.

Mas voltemos ao começo com a música que me fez vidrar na Faith Healers logo que os escutei: “This Time”. Exemplar no que se refere ao estilo da banda, tem letra curta, geralmente repetida várias vezes (“Let's do it, whereby/ this time, you die/ if not, quite soon/ maybe by this afternoon”), como um mantra nas vozes em uníssono de Roxanne e Cullinan, sobre uma massa de ruídos eletrificados. O minimalismo abre espaço para o experimentalismo e, principalmente, as melodias muito bem criadas pela banda. Pode ser um riff simples, repetido, dissonante, mas invariavelmente muito inspirado, de quem sabe o que está fazendo e explora suas bagagens musicais.

Bem produzidos por eles próprios, os Faith Healers exploram ao máximo na faixa "A Word of Advice" os detalhes do som metalizado das guitarras, enquanto as vozes, despretensiosas, cantam sem muito alarde. Isso, até a música explodir no refrão em barulho. A mixagem orgânica da gravação, sensível a qualquer ruído, dá a sensação de uma banda tocando ao vivo, inclusive na captação dos "defeitos", como o do som de um nariz aspirando o ar, o que lembra o conceito de produção de Flood para PJ Harvey em “To Bring you my Love”, de três anos mais tarde. Parecido com este trabalho de PJ também é “Hippie Hole”. Pós-punk com umas quebradas funkeadas, traz essa fórmula sintética infalível da Faith encapsulada por uma timbrística cirurgicamente suja. Nela, aliás, Roxanne canta com fúria, com o microfone rascante, longe da sutileza desafetada do começo.

Com subidas e descidas (ao paraíso da melodia e ao inferno do barulho), “Don’t Jones Me” retraz a letra sucinta que mais serve de cama para o rock livre da Faith, espécie de Can dos anos 80. Aliás, o clima é bastante parecido com esta e outras bandas da kratrock alemã, como a Neu! e a Harmonia. Não à toa eles versam a clássica alternativa “Mother Sky” da Can, a qual ouvi com os ingleses primeiro. Embora a original seja incomparável, até pela ousadia visionária dos alemães, a leitura da Faith Healers é daquelas que não deixam a desejar. Coisa de banda realmente identificada com seus ídolos, como a Living Colour fez para com “Memories Can’t Wait”, da Talking Heads, ou a Nirvana com “The Man Who Sold the World”, de David Bowie.

“Repetile Smile” e “Moona-Ina-Joona”, na sequência uma da outra, têm riffs tão consistentes quanto improváveis. Ninguém, não fosse uma banda forjada na sonoridade atípica do shoegaze e com referências muito próprias, ousaria criar. Que sonzeira! Se em “Moona...” valem-se do uníssono infalível de “This Time” e "A Word...”, em “Repetile...” é a voz sensual e cativante de Roxanne que prevalece. Ela sabe que não é uma grande cantora. Mas quem disse que é esta a intenção? Aliás, é justamente esta postura insolente roqueira que faz com que ela passeie naturalmente por diferentes formas de cantar com um lirismo espontâneo e encantador. É isso que se vê na balada "It's Easy Being You", a mais “calma” do disco (embora também não se contenham em adicionar guitarras pesadas bem ao final): um timbre jovem e solar. Porém, já na rascante “Love Song”, que de balada romântica só tem o nome, ela vai do doce à sujidade. Principalmente no refrão, quando sua garganta faz soltar gritos carregados de tesão e lamento.

Quando conheci a Th’ Faith Healers, Sonic Youth, Pixies, My Bloody Valentine, Lush, The Breeders e muitas outras bandas já eram realidade para os meus ouvidos. Tanto que ouvi-los não foi uma novidade e, sim, um reconhecimento. Neles eu ouvia todas essas bandas e conseguia entender com mais acuidade aquilo que a Velvet Underground propunha 30 anos antes – inclusive, nas dobradinhas das vozes de Cale e Reed com a de Moe Tucker. Com a Th’ Faith Healers eu descortinaria a Can, tão fundamental para o rock moderno. E descobri depois, que não fui apenas eu que me surpreendi com a Th’ Faith Healers na primeira vez que os escutei, bem como que havia uma legião de fãs escondida nos subterrâneos da internet com relatos muito parecidos com o meu. Mas o mais importante foi a descoberta de que, para mim, a Th’ Faith Healers era a banda que eu sempre gostei, mas não sabia ainda. Era como se eles já estivessem na minha vida desde sempre: bastava apenas que eu me deparasse com aquele CD rodando na locadora para que este laço nunca mais se desfizesse.

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FAIXAS:
1. "This Time" (Tom Cullinan/ Th' Faith Healers) - 05:09
2. "A Word of Advice" - 06:22
3. "Hippy Hole" - 03:20
4. "Don't Jones Me" - 06:18
5. "Reptile Smile" (Th' Faith Healers) - 04:57
6. "Moona-Ina-Joona" (Cullinan/ Th' Faith Healers) - 03:14
7. "Love Song" (Cullinan/ Th' Faith Healers) - 05:38
8. "Mother Sky" (Holger Czukay/ Michael Karoli/ Jaki Liebezeit/ Irmin Schmidt/ Damo Suzuki) - 04:17
9. "It's Easy Being You" - 02:12
10. "Spin 1/2" - 09:34
Todas as composições de autoria de Tom Cullinan, exceto indicadas


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Daniel Rodrigues

terça-feira, 11 de outubro de 2022

cotidianas #773 - Pílula Surrealista #51

 

Ele chegou cansado do trabalho. Desgastado para usar o termo correto. Entrou pela porta e viu a esposa sentada na sala assistindo tevê. Tentou puxar uma conversa amistosa:

- Oi, amor, tudo bem? O dia foi puxado hoje na firma, sabe? Chefe cobrando resultado, cliente reclamando, colega puxando o tapete... até uma multa levei do guarda de volta pra casa.

- Arrã... - consentia ela, vidrada na tela, sem dizer mais nada além desta preguiçoso interjeição.

- Então... vou tomar um banho, sabe? Preciso. Estou exausto, acabado. Mas o banho vai me dar uma nova vida, você vai ver. - disse a ela, como se a esposa, absorvida em seu próprio mundo, tivesse algum interesse. - Vou sair um homem novo do banheiro.

A promessa foi cumprida:

- Tcharaaaaaammm! Viu só, eu não disse que sairia outro?

Ela tirou o olhar da tevê por um instante - mas somente o olhar, sem levar a cabeça junto, apenas conferindo - e constatou que, realmente, o marido mudara. Era outro homem. 

Homem, não: primata. Um mamífero antropoide de hábitos diurnos, vegetariano, muito corpulento, com ombros largos, braços compridos, dentes caninos salientes, focinho curto e orelhas pequenas. Um gorila.

Desconfiada, mas nada surpresa, a esposa moveu pela primeira vez a cabeça da direção da tela e voltou-a para o marido repaginado. Franziu a testa pensando em algo que somente a mente de mulher pensaria, e terminou formando um sorriso discreto mas genuíno no rosto. Voltou a assistir a tevê, mas agora nada entediada e não mais desfez o auspicioso sorriso.


Daniel Rodrigues

quinta-feira, 25 de agosto de 2022

cotidianas #766 - Pílula Surrealista #50

 

Vesti meu terno cinza nada novo, porém suficiente para apresentar-me. Fui até aquele lugar, acho que para procurar emprego, para uma reunião de trabalho, algo assim, pois jamais trajaria aquela roupa desconfortável não fosse por um motivo semelhante. Aliás, fui não é bem o termo mais preciso. Então, refaço a frase: cheguei àquele lugar de alguma maneira a qual não sei como. Voei, transpus-me, materialize-me, sabe-se lá (gostaria de saber). Só sei que, quando dei por mim, estava. Simplesmente. O importante é que lá cheguei, isso é certo. Certo também é que estava quente, muito quente. Era pouco mais do meio dia, acredito, pois o sol postava-se sobre as cabeças fazendo projetar no chão uma sombra de começo de tarde. A impressão era que, a partir dali, o sol estacionaria, como se a Terra, enfeitiçada, tivesse parado de girar por um tempo indeterminado (essa é a única possível explicação). Não seria errado dizer que aquele dia foi inteiro assim: com um sol implacável dia e noite. A lua da noite daquele dia não apareceria: o sol tomar-lhe-ia o lugar. E nem sei se era a sensação de calor que fazia embaralhar o senso de tempo. Havia, antes de mais nada, uma atmosfera suspensa, etérea, enigmática, alterada. (E não pensem que era por causa dos meus óculos escuros! Não sou desses que perdem a noção sensorial por tapar os olhos). Era como se ali eu estivesse, sim, sei que estava, mas meus pés, por dentro dos sapatos de couro, mal sentiam o chão. Nem sentiam, aliás. Os prédios industriais ao redor, perfilados dos dois lados da rua castigada pelo sol escaldante e insistente, calavam-se solenemente. Não se ouviam murmúrios de gentes, não se ouviam tintilares de ferramentas e nem rugidos de motores ou latarias, engrenagens ou buzinas. Silêncio. Só. Tudo era tão estranho quanto familiar. Silenciosamente também, presumo, ou por uma ação mágica ou imaterial, surgiu à minha frente um homem. Vestia, como eu, um terno cuja cor era até mais escura do que a do meu, o que certamente fazia concentrar-lhe ainda mais o calor, o qual subiam como labaredas invisíveis do concreto cinzento abaixo de nós. Mais do que uma simples suposição, percebi que ele devia estar mesmo sentindo mais calor do que eu - embora isso parecesse ser impossível. De forma prática, contudo, não era, pois o homem à minha frente ardia em chamas, as quais se desprendiam de sua roupa como serpentinas infernais na direção contrária a mim, mas suficientemente fortes para eu também sentir à distância seu sopro quente comendo as últimas moléculas de oxigênio do ar que rodeavam minha face. E tudo sob aquele mesmo estranho silêncio, que permanecia. Era um fogo quieto, que nem o crepitar se ouvia. Mas calor fazia, cada vez mais. O fogo ia consumir aquele homem estranho, era sabido, não demoraria muito. Porém, nem isso fez com que ele deixasse de ser educado comigo, visto que me estendeu a mão direita em cumprimento. Ao apertarmos as mãos, o homem, tal um mensageiro, disse-me, e este foi o único som que ali houve: "Lembra-se de quando você era jovem e brilhava como o sol?" Toda aquela epifania fez sentido imediatamente, então.



Daniel Rodrigues