Nosso
primeiro colaborador da série Duelo, de entrevistas sobre cinema western e clássicos
da sétima arte, é o capixaba e morador de Niterói, José Eugenio Guimarães.
Zootecnista, Cientista Social e professor universitário de profissão. Cinéfilo
de coração, o cara é dono do ótimo Blog Eugenio em filmes. Além de escrever em
sua page diversos textos sobre várias
fases do cinema, ele é um assíduo colaborador de muitas páginas culturais e
sobre o tema na internet. Eugenio, que veio de uma família de cinéfilos,
assistiu seu primeiro filme bem precocemente, aos dois anos de idade e que
depois não parou mais. Ele mantém aquele costume voraz dos aficionados por
cinema de rever uma grande produção muitas e muitas vezes. Conta que assistiu “No
Tempo das Diligências”, mais de 200! O western é só mais uma de suas grandes
paixões. Nosso entrevistado é também um profundo conhecedor de cinema
independente e um fã declarado do cineasta brasileiro Glauber Rocha. É com ele
que vou ter o imenso prazer de bater um papo cinéfilo nestas linhas cheias de
intensidade e paixão real pelo cinema.
BINO: José Eugenio, não posso deixar de fugir
de uma pergunta meio clichê: qual foi o primeiro grande filme que te impactou, aquele
que vem à tua memória sempre num flash rápido?
John Ford
JOSÉ
EUGENIO: Impacto, mesmo, senti ao ver “No Tempo das Diligências” (“Stagecoach”,
1939), em 1963, aos sete anos. Meu pai, cinéfilo, era assumidamente fordiano. E, certamente, herdei dele
essa paixão pelo cinema de John Ford. Muito antes eu já o ouvia, enquanto fazia
a barba ou tomava banho, rememorar diálogos inteiros de “Como era verde o meu
vale” (“How green was my valley”, 1941), o filme que ele mais preferia do
diretor. Mas a experiência de ver “No tempo das diligências” em tela de cinema,
ainda menino, foi algo que jamais esquecerei. Antes de irmos ao Cine Odeon de
Viçosa/MG, no qual foi exibido, o velho, como bom pai, começou a preparar o meu
espírito para o que eu iria ver. E tudo correspondeu às expectativas. Pareceu
que eu estava sonhando. Durante muito tempo “No tempo das diligências” foi o
meu filme preferido de John Ford. Só fui revê-lo no cinema, pela última vez, em
Belo Horizonte, em 1977, quando entrei na sessão das 14h e só saí ao fim da
sessão das 22h, quase à meia-noite. Então, também o vi nas sessões das 16, 18 e
20h. Cinco sessões ao todo, enfileiradas. Saí do cinema meio tonto, mas
totalmente em paz comigo mesmo. Já vi “No tempo das diligências” mais de 200
vezes. Também já ultrapassei esse número com “Rastros de ódio” (“The searchers”,
1956) e “O homem que matou o facínora” (“The man who shot Liberty Valance”,
1962), ambos também de Ford. São filmes que sempre revejo, nos quais sempre
descubro coisas novas.
B: O primeiro filme que a gente assiste no
cinema é como a primeira transa, algo marcante. Que lembranças tens dessa época?
JE: Comigo
até que não dá para fazer essa relação. Pois o primeiro filme que vi no cinema
foi em 1958. Estava com dois anos. Minha mãe queria ver “Marcelino Pão e Vinho”
(“Marcelino Pan y Vino”, 1955), de Ladislao Vajda, e não tinha com quem me
deixar. Levou-me junto. Segundo ela, fiquei o tempo todo com os olhos
arregalados colados na tela, do começo ao fim. Evidentemente, não guardo
lembranças desse meu batismo no cinema. O que ficou dessa ocasião foram as
canções do filme, usadas por minha mãe para embalar o meu sono enquanto fui
criança de colo. “Marcelino Pão e Vinho” só fui rever em BH, em um
relançamento, quando estava com 21 ou 22 anos. Valeu como experiência afetiva,
afinal estava tendo a oportunidade de ver o filme que inaugurou a minha
cinefilia e que me fez fazer incontáveis birras para voltar ao cinema. Mas o
filme mesmo é decepcionante, muito carola e moralista, uma produção típica da
Espanha franquista afundada num catolicismo tão retrógrado como medieval.
B: Sobre tuas preferências no cinema em geral,
quais escolas tu mais admiras? Fale um pouco delas.
JE: Há
muitas "escolas". Prefiro chamar de movimentos. Mas as que fizeram a
minha cabeça ou ampliaram os meus horizontes na cinefilia são, principalmente,
o Cinema Revolucionário Russo, a Avant Gard Francesa, o Realismo Poético
Francês, o Free Cinema Inglês, o Expressionismo Alemão, o Neorrealismo
Italiano, a Nouvelle Vague Francesa e o Cinema Novo Brasileiro.
Falar um
pouco delas... Vamos lá. Tentarei ser breve.
O Cinema
Revolucionário Russo, por ter sido uma experiência que, ao menos por curtíssimo
tempo, uniu o cinema a um projeto de mudança política e social. Era o cinema no
compasso da revolução, inserido na construção de novos homem e tempo.
Infelizmente, Stálin acabou com tudo isso.
A famosa cena do olho de "Um Cão Andaluz",
de Buñuel e Dalí
A Avant
Gard Francesa, por trazer a abstração, o universo da subjetividade para o
cinema, contaminando-o de poesia, aproximando-o das outras esferas da criação. Poucas
vezes o cinema esteve tão perto do sublime e da ousadia, do rompimento de
convenções, como neste breve período circunscrito aos anos 20.
O Realismo
Poético Francês por investir no lirismo, transitando do otimismo à tragédia em
tão pouco tempo. Praticamente foi um movimento que antecipou a tragédia
europeia instalada com o Nazismo, incorporando, principalmente em seu momento
de auge, a desesperança e o fatalismo.
O
Neorrealismo Italiano por mostrar o melhor do humanismo num momento cravado na
destruição provocada pela Segunda Grande Guerra. Câmeras nas ruas e becos, sob
a realidade do sol ou da noite, acompanhando gente praticamente real,
vivenciando problemas comuns, cotidianos, principalmente os que dizem respeito
à sobrevivência. Então, é um cinema aliado ao exercício da objetividade, mas
sem se esquecer de expressar o que passa em cada particularidade dos seres em
cena.
Já o
Expressionismo Alemão apreende a realidade num momento de incerteza e
dissolução. A Alemanha derrotada na Primeira Guerra entrou numa crise profunda,
não apenas econômica como moral, política e social. A mistura de tudo isso
gerou perplexidade. O fantástico, inclusive o terror, dominaram a cena.
Personagens dementes ou próximas disso davam o tom às narrativas e ações. Não
havia explicações plausíveis para os atos. Quase tudo encontrava motivação numa
ordem transcendental, inatingível, etérea, inexplicável. A poesia, a
psicanálise, a escultura, a pintura eram fortes aliadas da composição cênica. É
como se o cinema se tornasse total, ao englobar todos os demais meios de
expressão e sem esquecer os rumos incertos que a sociedade vinha tomando. Mas
tudo prenunciava o pior, como sabemos.
A Nouvelle
Vague, por sua vez, foi o cinema do NÃO. Não a qualquer convenção, a qualquer
dependência do cinema à literatura e aos estúdios. A liberdade criativa, a
juventude, o espírito de rebeldia dominaram o movimento, que falava
principalmente ao ser e às questões da contemporaneidade. Havia uma autonomia
autoral sem precedentes. As produções eram baratas, filmava-se onde era
possível, o glamour pouco importava.
Um espírito de espontaneidade dava a tônica, algo que Jean-Luc Godard ainda
hoje preserva em seus ensaios fílmicos.
cena de "Acossado" de Jean-luc Godard
O Free
Cinema Inglês é praticamente paralelo e parecido à Nouvelle Vague, mas era
menos etéreo, mais centrado nas questões concretas e prementes da existência.
Dava para sentir os personagens pulsando de forma mais vigorosa e intensa.
No Brasil,
o Cinema Novo, tão radical, com tantos nomes importantes e a vontade de revelar
o país além dos grandes centros, também de maneira independente dos esquemas
industriais, sem muitas preocupações às fórmulas, mas criando outras. Glauber,
maior nome do movimento, era praticamente um cineasta que se reinventava de
filme para filme, até chegar na desconstrução plena da narrativa em seu esforço
tão pouco compreendido de emancipar o olhar. É um provocador que faz falta à
mesmice de agora.
B: Em relação ao western, qual foi a grande contribuição desse
gênero para o cinema mundial?
Antônio das Mortes, personagem de Glauber
inspirado em Ford
JE: Ao cinema
mundial, não sei. Mundial é muita coisa. O que se sabe de concreto é: o western, por mais que muitos lhe torçam
o nariz, foi o gênero que apresentou um tipo de homem que podem ser
caracterizado como o indivíduo em sua forma mais bem acabada, sociologicamente
falando. O cowboy ou seus similares
estavam apoiados única e exclusivamente em suas determinações, desejos e
vontades. É algo específico de uma determinada cultura. Historicamente, não há
precedentes ao tipo em nenhum outro local do mundo. Geralmente as pessoas
estavam vinculadas a alguma estrutura, a uma ordem. O cowboy, não. Goza de uma margem de autonomia sem precedentes. Isso
encantou principalmente as plateias fincadas em organizações sociais mais
tradicionais. Nisso, de certa forma, o modelo inspirou cineastas japoneses,
principalmente Kurosawa. No Brasil, Glauber Rocha, principalmente em “Deus e o
Diabo na Terra do Sol” e "O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro", tem no
personagem Antonio das Mortes uma extensão. Aliás, sabe-se claramente que o
desenho do personagem está inspirado em Ethan Edwards (John Wayne), de “Rastros
de ódio”. Esses filmes de Glauber buscam inspiração nos westerns de Ford, mas sob a capa de um Eisenstein. E há a Itália,
país que sempre valorizou o gênero, tanto que inventou uma variante. Outras
formas de narrativa heroicas contaminadas pelo western pode ser encontradas no cinema popular chinês, por exemplo.
No Brasil, também há os filmes de cangaço, há muito tempo em baixa, com suas
estruturas narrativas também herdadas dos westerns,
principalmente pelo uso do cavalo pelos cangaceiros, algo que não resiste à
menor análise junto à realidade, pois cangaceiro se locomovia a pé. Mas o cowboy, mesmo, é uma experiência única,
ímpar, puramente estadunidense. É o indivíduo moldado naquilo que Weber chamou
de ética protestante – do puritanismo: alguém que apenas presta contas às suas
determinações e vontades.
B: "O Portal do Paraíso" é considerado o filme
que matou o western americano, tudo por seu grande desastre comercial. O western spaghetti também passou por seu período turbulento e, após os anos 70,
também não teve mais o brilho da era do ouro dos Sergio's e companhia. Com todo
esse hiato, raras produções western tiveram destaque no cinema. Um exemplo é “Dança
Com Lobos” e "Os Imperdoáveis", que ganharam muitos Oscar e foram muito bem
recebidos pela crítica. Poucos estúdios e diretores apostam nesse tipo de
produção. Porque você acha que este gênero está tão em baixa nos últimos
tempos?
JE: O western é vítima de vários fatores. Há
primeiro a televisão, que o banalizou com um punhado de séries familiares e
telefilmes de consumo imediato. Também há o politicamente correto. Além do fato
de que os estadunidenses em geral têm certa dificuldade de confrontar um
passado de conquista que não se afigura tão glorioso para a História, dados os
custos humanos do empreendimento. Ainda é muito complicado, para eles, discutir
o genocídio dos índios. É um tema praticamente encoberto de tabu. É uma pena,
pois se há um gênero que pode ser chamado de genuinamente nacional em se
tratando de Estados Unidos, é o western.
Quer queira quer não, mostra como o país foi conquistado e unificado. À medida
que os EUA foram se urbanizando e se industrializando, ficado mais
cosmopolitas, o western foi se
tornado um gênero ultrapassado, uma narrativa que não combina mais com a
realidade, principalmente por revelar uma etapa que se quer esquecer.
B: Tarantino e os irmãos Ethan e Joel Coen parecem ter apostado no western,
cada um a seu estilo. Como você vê a estética e os filmes destes diretores?
Francamente,
em termos estéticos não saberia como responder. Sei que são recicladores, cada
qual à sua moda. São cineastas que têm um modo próprio de expressão mas sem
abrir mão das dívidas a pagar com a tradição. Tanto que seus filmes podem ser
sérias releituras ou, dependendo do momento, também podem ser meros pastiches.
O que me irrita, hoje, é o extremo valor que se dá a esses nomes. Não tanto os
Irmãos Coen, que são brilhantes. Mas faço reservas a Tarantino, não tanto a
ele, que é bom cineasta, mas por ser visto, principalmente pelos setores mais
jovens, como um valor totalmente original. Não é, mesmo. Pode ser mais
barulhento, mas estiloso, mais midiático, mas é também um manipulador em causa
própria, um bom marqueteiro de si mesmo. Em todo caso, vamos ver. Não estou
dizendo que o abomino, muito ao contrário. Apenas revelo o que para mim
desponta como limitações.
B: Se tu tivesses que fazer uma lista de 10
grandes e definitivos westerns de todos os tempos, quais seriam?
Esse
negócio de listar "grandes e definitivos" é problemático. Mas, vamos
lá, com todo o meu perdão às injustiças que certamente cometerei:
1 - No
tempo das diligências (Stagecoach), de John Ford (1939)
2 - Paixão
dos fortes (My Darling Clementine), de John Ford (1946)
3 - Rio
Vermelho (Red River), de Howard Hawks (1948)
4 - O
preço de um homem (The Naked Spur), de Anthony Mann (1953)
5 - Os brutos
também amam (Shane), de George Stevens (1953)
6 - Rastros
de ódio (The Searchers), de John Ford (1956)
O Duke, John Wayne,
em cena de "Rastros de Ódio"
7 -
Galante e sanguinário (3:10 to Yuma), de Delmer Daves (1957)
8 - Onde
começa o inferno (Rio Bravo), de Howard Hawks (1959)
9 - O
homem que matou o facínora (The Man Who Shot Liberty Valance), de John Ford
(1962)
10 - Meu
ódio será sua herança (The Wild Bunch), de Sam Peckinpah (1969)
Puxa,
apenas 10 títulos! Acabei de excluir cerca de 16 outros, que considero
essenciais, da lista. Parece que acabo de cometer pecado mortal.
B: Agora mudando o rumo da conversa. Quando
Redford quando criou Sundance queria dar oportunidade ao cinema independente. Muitos
diretores e produtores beberam nessa fonte que Cassavetes catapultou anos
antes. Que tu acha desse tipo de cinema não tão mainstream? Algum filme ou diretor te chamou atenção
nestes últimos anos?
JE: Esse
tipo de cinema, à margem, é essencial. E aí que vamos encontrar os germes de
renovação, as criatividades. Cinema é indústria e indústria é algo formatado,
que pode ser reproduzido em grande escala. O cinema independente está à margem
disso, pode se afastar das convenções, investir em pesquisas estéticas,
formais, autorais; pode correr riscos com mais facilidade. Pode ousar. Pena que
todo sopro de independência, de rebeldia, acaba, com o tempo — e são raras as
exceções —se incorporando ao mainstream,
ainda mais no cinema americano. Gosto de citar um caso extremo: John Waters,
com seu cinema de guerrilha. Já significou mau gosto. Vide “Pink Flamingos”.
Hoje, é encenado na Broadway. Seus exercícios autorais, fétidos, imorais e
amorais já foram incorporados à industria e refilmados segundo os grandes
esquemas. Vivemos tempos cada vez mais perigosos ao autoral e ao independente.
O capitalismo incorpora tudo, até o que lhe é contrário. Basta ser domesticado,
esquematizado e, claro, dar lucro.
Sobre quem
está chamando a minha atenção nos últimos anos: Sophie Deraspe, Martin Laroche,
XAvier Dolan, Stéphane Lafleur, Robert Morin, Denis Villeneuve, Alexandro
Avranas, Rosario Garcia-Montero, Petra Costa, Peter Webber... deve ter mais
alguém.
B: E sobre as produções Brasileiras e
Latino-Americanas o que você tem a dizer?
JE: Bom...
O cinema brasileiro sempre me interessou, desde que me habituei a vê-lo já na
fase final das comédias da Atlântida. Nós temos um cinema muito bom, diferente,
com valorosos cineastas. No tempo do Cinema Novo éramos uma das cinematografias
mais desafiadores. O cinema brasileiro foi recordista mundial de prêmios em
mostras e festivais internacionais nos anos 70. Penas que os contextos
políticos não ajudaram.
Já vi
muitos filmes mexicanos. Eram exibidos facilmente no Brasil até o começo dos
anos 70. Havia aqui uma representação da PelMex – Películas Mexicanas –, que
fazia a distribuição do que veio a ser conhecido como Cinema de Lágrimas. O
cinema cubano também teve melhores dias entre nós, principalmente o Novo Cinema
Cubano (já velho), dos anos imediatamente posteriores à Revolução.
Pouco
conhecemos das produção dos nossos vizinhos, excluída, atualmente, a Argentina,
que vive um contagiante momento de euforia. Quanto a nós, agora, parece que
estamos prisioneiros do formato ditado pela Globo Filmes. Mesmo assim, não
podemos reclamar, pois temos Jorge Furtado, Fernando Coimbra, Karim Aïnouz, Cláudio
Assis e gente mais velha que ainda está na ativa apesar de todas as
dificuldades.
B: O que tu achas do cinema como ferramenta de
inclusão social?
As
contribuições seriam exatamente a de levar o cinema à população. Tentativa que
não é nova e era praticada em tempos mais generosos e mais fartos de filmes com
temáticas populares e de acesso mais facilitado ao público em geral,
principalmente ao carente de cinema. Nos anos 60 e 70 os cineclubes faziam essa
ponte, levando o cinema à população que nunca o teve. Inclusive estimulando-o a
tomar a câmera como exercício de criação própria. Cheguei a participar um pouco
dessa fase, em meus dias de cineclubismo.
B: Para finalizar, se você se definisse como
pessoa em um filme, qual seria ele, e por quê?
JE: Ah! Não
sei. Certamente seria alguém semelhante aos personagens interpretados pelo
Wilson Grey, pelo Hank Worden, pelo Henry Calvin. Nunca me preocupei com isso.
Mas alguém heroico é que não seria. Estou mais perto do perfil dos perdedores.
Se tivesse que ser um cowboy,
encontraria afinidades com o Monte Walsh vivido pelo Lee Marvin em “Um homem
difícil de matar” (Monte Walsh, 1970), de William Fraker.
A curadora e a obra de Augusto Rodrigues, de seu acervo próprio
Tive a felicidade e o privilégio de presenciar – e
fotografar! – a abertura da exposição “A
Aventura de Criar”, na Galeria Espaço Cultural Duque, em Porto Alegre. Isso
porque a curadora é ninguém mais, ninguém menos, que minha amada Leocádia Costa, costumaz colaboradora
do Clyblog. Desta vez, a sensível fotógrafa usou suas habilidades de
arte-educadora e produtora cultural para montar essa mostra
que reúne obras de artistas e educadores que participaram da história do
Instituto de Artes e da Escolinha de Arte da Universidade Federal do Rio Grande
do Sul (UFRGS), esta última, com mais de 50 anos de existência e pela qual
passaram diversos artistas consagrados das artes do Rio Grande do Sul e de
outros estados.
Tela do precursor da arte-educação,
Augusto Rodrigues
A ligação emocional, profissional e artística que Leocádia tem
com a Escolinha vem de bastante tempo. Resultado do seu trabalho de conclusão para a
Especialização em Arte-Educação na Feevale, em 2011, a mostra “A
Aventura de Criar” é uma materialização daquilo que só estava no papel até
então, considerando também o filme que ela dirigira para o cinquentenário da
Escolinha e o período em que esteve lá dentro. Isso, graças ao fato de a
proposta dela no Curso de Curadoria,
ministrado por José Francisco Alves ano passado no Atelier Livre da Prefeitura de Porto Alegre, ter essa temática
e ser uma das três escolhidas para a montagem de uma exposição. Deu nessa mostra, que, na prática,
funcionou realmente muito bem.
O traço delicado de Alice Soares em três quadros
Estão ali obras de:
Ado Malagoli, Alice Soares, Alice Brueggemann, Ângelo Guido, Augusto Rodrigues,
Cristina Balbão, Fayga Ostrower, Fernando Corona, João Fahrion, Plinio
Bernhardt, Romanita Disconzi e Teresa Poester. Todos feras. Espacialmente,
foram divididos, nas duas compridas paredes do segundo piso da galeria, obras
dos artistas homens de um lado e mulheres do outro, as quais se interpõem
apenas quadros do mais feminino deles: o pernambucano Augusto Rodrigues,
principal difusor da Arte-Educação no Brasil. Dele, são quatro obras: um desenho,
uma pintura e duas serigrafias, sendo uma delas a única do acervo pessoal de
Leocádia. Ainda, a mostra traz sete obras convidadas da artista Cecília
Machado Bueno, falecida no ano passado, arte-educadora dedicada cuja arte
(basicamente desenho) é de visível delicadeza. A renda obtida com a venda dos
quadros dela será revertida para a Associação De Peito Aberto, na qual, entre
outras atividades, era voluntária pelo calendário anual da entidade.
De resto, todas as obras, à venda, pertencem ao acervo da
Galeria Duque. E tem maravilhas. Ao mesmo tempo, a exposição homenageia a
Escolinha de Artes, seus principais artistas e educadores e dá um panorama da
diversidade de estilos e referências de cada um. Ainda, evidencia a rica
variedade de técnicas desses artistas, que datam desde os anos 50 à década
atual. É o que se vê nas três selecionadas de Alice Soares: uma pintura, uma
xilogravura e um desenho a grafite. Nas quatro de Alice Brueggemann e de Fayga Ostrower, também: total domínio e
multiplicidade de técnicas.
Obras de Cecília Machado Bueno,
homenageada especial da exposição
Merecem destaque ainda o trio de telas de Plinio Bernhardt, com sua temática
tradicionalmente picante aliado à grande expressividade, dois desenhos lindos
de Cristina Balbão – um deles, “Borracha”, que reproduz em tamanho natural o
rosto de um negro –, dos mais antigos entre os selecionados, um vistoso óleo
sobre tela de Ado Malagoli, autor que também foi contemplado com uma sensível
litogravura chamada “Pomba”.
Haverá duas visitas
guiadas com a presença da curadora e do colecionador e proprietário da
Duque, Arnaldo Buss, agendadas para
final de maio e para julho, além da apresentação da pesquisa de Leocádia, no
próximo dia 6. Porém, independente dessas datas, vale a pena visitar a mostra.
E olha que não é parcialidade minha: “A Aventura de Criar” está
realmente muito interessante, tanto pela importância do tema que aborda quanto
pela qualidade das obras e do recorte curatorial que foi empregado. E como
desta vez foi com isso e com a recepção aos vários convidados e amigos que prestigiaram
a abertura que Leocádia teve que se preocupar, a maioria das fotos ficaram a
cargo da minha pessoa mesmo.
Movimentação na galeria na abertura da mostra
A fotógrafa Iris Borges foi prestigiar
A também fotógrafa Tânia Meinerz esteve lá
Arte e desejo nos quadros de João Fahrion
Carolina Costa foi conferir as flores de Cecília Machado Bueno
Loecádia Costa com as historiadoras
Luísa Khul Brasil e Luciana de Oliveira
Leocádia e a arte-educadora Maria Lúcia Varnieri,
autora do texto de apresentação da exposição
Alice Brueggermann e a força de sua arte
em quatro quadros
O encanto e a graça de Bethânia no Teatro do SESI foto: Amanda Costa
Não sou um
expectador de shows tão rodado, bem como sei que já perdi muitos
deles que nunca mais assistirei, pois os artistas já se foram para
outro plano. Mas sei também que já vi muita coisa boa pelos palcos
da vida, e dificilmente algo se comparará ao megaespetáculo de Paul McCartney no Estádio Beira-Rio ou, noutra ponta, ao “concerto
caseiro” que Paulinho da Viola proporcionou aos porto-alegrenses
num belo domingo matinal na Redenção. Mas o que estou falando não
tem nada a ver com isso. Tem a ver com a talvez maior cantora, maior
performer, maior intérprete viva deste esférico e redundante
planeta: Maria Bethânia. E em se tratando de Bethânia não
há comparação.
O espetáculo
“Abraçar e Agradecer”, apresentado por ela no Teatro
do Sesi, em Porto Alegre, comemorando irrepreensíveis 50 anos de
sua carreira, deixa muito claro todas essas acepções: vê-se uma
artista plena no palco, ciente e aproveitadora de sua trajetória,
carregada pelo alto profissionalismo e por suas próprias
individualidade, apaixonada pelo o que faz. Como muitos gostam de
dizer – mas que a ela se atribui de fato –: uma diva. Foram cerca
de 1 hora e 45 minutos que percorrem vários momentos de sua
trajetória como uma das mais importantes artistas da história da
música brasileira.
Sob luzes intensas
de um cenário magnificamente montado por Bia Lessa apenas por estas,
Bethânia entra no palco. E é ai que tudo se ilumina de fato. A
abertura é tão grandiosa quanto autorreferencial: “Eterno em
Mim”, de autoria do mano Caetano Veloso, compositor preferido dela
(junto com Chico Buarque) e de maior presença no repertório do
show, com seis canções ao total. Tão lindo e completo que minha
sensação era de que, logo que terminou o primeiro número, a
apresentação poderia terminar ali. Exagero meu, pois tinha muito
mais. Mais uma, “Dona do Dom” (de Chico César, de quem também
Bethânia cantara outra marcante do show, o fado milongado
“Xavante”), e vem um belíssimo poema da própria Bethânia,
misto de agradecimento ao público, aos orixás, à natureza, aos
amigos, à vida e a si mesma. Tão bonito que não deixa em nada a
dever aos outros textos que, como de costume, ela entremeia às
canções nos seus shows. Neste espetáculo, obviamente, não poderia
ser diferente: tem Clarice Lispector (com três passagens), Waly Salomão, Carmen Oliveira e Fernando Pessoa.
Mas voltando às
músicas, o repertório celebra sua história na música brasileira,
mas, exceto o hit “Gostoso Demais” (Dominguinhos e Nando Cordel),
evita obviedades como “Fera Ferida”, “Reconvexo”, “Álibi”
ou “Um Índio”. Mas clássicos há, e vários deles. Tanto que
Bethânia arrasa numa versão vibrante e comovente de “Gita”, de Raul Seixas e Paulo Coelho. Todas as músicas se emendam umas nas
outras, o que faz com que intensifique ainda mais a montanha-russa
emocional que ela impõe ao público, pois além da carga gerada
pelas próprias músicas, ainda não dá tempo de respirar entre
estas. No caso, “Gita” se liga com outra de Caê: a
lírico-romântica “A Tua Presença Morena”, joia que o genial
irmão compôs-lhe para o álbum “A Tua Presença”, de 1971,
ainda no exílio em Londres. De arrebatar. Aí vem outra dele para
ela: “Nossos Momentos” (“Quem pode compartilhar dos meus
sentimentos/ Na hora que o refletor bater/ Momentos de luz e de nós/
Momentos de voz e de sonho/ Momentos de amor que nos fazem felizes/ E
às vezes nos fazem chorar”), num diálogo tanto com o que veio
antes quanto com o trecho de Lispector lido na sequência, que diz:
“Antes de julgar a minha vida, calce os meus sapatos, percorra o
caminho que percorri, viva as minhas tristezas, minhas dúvidas, viva
as minhas alegrias. Tropece aonde eu tropecei, e levante-se assim
como eu fiz.”
Gonzaguinha, outro
importante parceiro, amigo e compositor da carreira de Bethânia,
retoma a seção musical metalinguisticamente: “Começaria Tudo
Outra Vez”. No palco de LED em que Bethânia pisa se projetam de
diversas formas: flores, estrelas, letras, desenhos, geométricos. E
as luzes sobre ela ajudam a marcar a incrível performance de
uma artista que dança e interpreta com alegria e jovialidade, apesar
dos cabelos tomados de branco e os quase 70 anos. “Alegria”,
aliás, é o que ela traz em seguida no lindo samba de Arnaldo Antunes, que ganha batuques de axé. Logo após, “Voz de Mágoa”
(Dori Caymmi e Paulo César Pinheiro), uma tocante interpretação do
clássico bossa-novista “Dindi” e uma ainda mais emocionante
execução de “Você Não Sabe”, de Roberto e Erasmo, compositores “incultos” para a dita intelligentsia que
Bethânia fora uma das primeiras a demonstrar a beleza de suas
construções melódicas. Quando se pensa que vai se respirar um
pouco, ela vem com “Tatuagem”, de Chico e Ruy Guerra, e aí os
olhos marejam inevitavelmente.
Depois de novo texto
de Lispector, Chico retorna noutra marcante na carreira de Bethânia:
a apoteótica “Rosa dos Ventos”, título do memorável show da
cantora de 1971 quando ela consolida este formato de apresentação
altamente íntima e com composições de diversas vertentes. Um
pout-pourri com a ótima banda comandada por Jorge Helder
preenche o interlúdio, quando Bethânia sai para trocar de figurino
e voltar para o segundo ato. “Tudo de Novo“, mais uma de Caetano,
faz a montanha-russa, que havia estacionado por alguns minutos,
voltar com toda a velocidade.
As referências aos
orixás, principalmente Iansã e Oxum, e aos elementos “água” e
“vento” aparecem do início ao fim, e bastantemente nesta segunda
parte. “Doce”, de Roque Ferreira (“A lagoa escura que a
Bahia tem/ Que a areia branca rodeou/ São as águas de Oxum que
Caymmi batizou...”), ”Oração de Mãe Menininha”, de Caymmi (“E a Oxum mais bonita, hein? Tá no Gantois...”),
“Eu e Água”, outra de Caetano (“O mar total e eu dentro do
eterno ventre/ E a voz de meu pai/ voz de muitas águas”)
dialogam entre si e mostram claramente isso. A música que dá título
ao show, de Gerônimo e Vevé Calazans (porém na ordem inversa:
“Agradecer e Abraçar”), mantém a mesma linha: “Abracei o
mar na lua cheia...”. Igualmente as três de Roque Ferreira que
vêm em sequência: “Vento de Lá” (“Foi o vento de lá, foi
de lá que chegou/ Foi o vento de Iansã dominador que dormia...”),
“Imbelezô Eu” (“Alecrim beira d'água/ Que me beijou
percebeu/ Alguma coisa em mim aconteceu/ A mão que me tocou imbelezô
eu...”) e a bela “Folia de Reis”.
Um samba antigo,
“Mãe Maria”, de Custódio Mesquita e David Nasser, precede outra
maravilhosa declamação de Bethânia – como talvez no Brasil ela seja a que melhor o saiba fazer –, agora com poesia do conterrâneo
Waly: “Cresci sob um teto sossegado, meu sonho era um pequenino
sonho meu. Na ciência dos cuidados fui treinado/ Agora, entre meu
ser e o ser alheio, a linha de fronteira se rompeu.”. Neste
momento, Bethânia, dona do repertório, faz um singular paralelo
entre a música rural (“Eu, a Viola e Deus”, “Criação”,
“Casa de Caboclo”, “Viver na Fazenda”) com a raiz indígena
brasileira (“Povos do Brasil”, o canto tupi “Maracanandé” e
a já citada “Xavante”) com o autorreconhecimento da voz (“Alguma
voz”, outra de PC Pinheiro e Dori, e “Motriz”, última de
Caetano no show), seleção de músicas cujo simbolismo, entremeada
pelo pungente e feminino texto “Candeeiro”, de Carmen Oliveira,
representa a sua própria existência como pessoa e cantora.
“Eu Te Desejo
Amor”, canção francesa de Charles Trenet e Léo Chauliac, de
1942, vertida para o português por Nelson Motta, arrebatou o
público, que a essas alturas já a aplaudia de pé. Ao final desta,
por sinal, dois minutos de aplausos diante de uma Bethânia
visivelmente emocionada que dizia: “Que plateia é essa?!”.
Mas o deslumbre não terminaria ali, pois, depois de ler um de seus
poetas preferidos, Pessoa, Bethânia inunda de emoção o teatro com
uma interpretação, esta em francês de fato, do clássico de Edith
Piaf “Non, Je ne Regrette Rien”, enquanto uma projeção no chão
de uma faixa de estrada parece cruzar-lhe o peito em alta velocidade.
“Silêncio”
fecha o show em versos que traduzem a despedida e a delicadeza
daquele momento tão especial, tanto para a artista quanto para o
público: “Silêncio, eu quero ouvir o que me diz a imensidão/
Saber se minha alma tem razão/ Quando acredita que essas coisas vão
durar”. A banda encerra ao som de outro marco da trajetória de
Bethânia: “Carcará”, de João do Vale. Sob um mar de aplausos
ela sai do palco, mas logo retorna para entoar dois sucessos: `Ӄ
o Amor”, de Zezé di Camargo e Luciano, que ela, em 1999, recolocou
num outro patamar interpretativo, e “O que é o que é”, o grande
sucesso de Gonzaguinha. É quando a plateia, já de pé e dançando,
entoou junto com ela os inesquecíveis versos: “Viver/ E não
ter a vergonha de ser feliz/ Cantar e cantar e cantar/ A beleza de
ser/ Um eterno aprendiz...”.
Pra mim, admirador
de sua obra e colecionador de vários de seus discos, a sensação
que saí foi, além do deslumbre, de que Bethânia, ainda por cima, é
ótima de estúdio. Pois a maior certeza que se tem é que ela é
inteiramente do palco. Como disse no início, dificilmente verei
apresentações melhores de algumas que já vi, pois estas estão
guardadas no coração do diletante. Mas como este show de Maria
Bethânia, a quem vi pela primeira vez, acho que nunca mais
presenciarei. Ao fim, as cortinas se cerram e não se vê mais
Bethânia, mas, como dizem os versos de Chico: “Sei que além
das cortinas/ São palcos azuis/ E infinitas cortinas/ Com palcos
atrás.” Bethânia está sempre lá, atrás das cortinas, além
das cortinhas. Ela é luz, ela é azul, ela é o palco.
Seguimos
com a listagem de filmes essenciais para entender o cinema brasileiro
das décadas de 60, 70 e 80. Começamos com os gloriosos e
revolucionários anos 60, do qual extraímos, de um universo numeroso
e profícuo, 20 joias. Agora, no entanto, como diz a gíria popular,
“o buraco é mais embaixo”. Nos anos de chumbo, com o
afunilamento dos direitos sociais e políticos advindos com o AI-5,
de 1968, o cerco fechou para qualquer cidadão que quisesse se
expressar ou simplesmente dar-se ao direto de pensar diferente do
sistema vigente. Torturas, desaparecimentos e perseguições
aumentaram. E claro que a classe artística, incluindo quem fazia
cinema, foi uma das maiores prejudicadas nos anos 70. Toda a geração
de cineastas e autores advindos com a explosão criativa dos 50/60,
acuados ou exilados, mal conseguiam levantar recursos para produzir
aquilo que pensavam – claro, se aquilo que pensavam não concordava
com o que os militares queriam.
Resultado?
Perda de espaço para o cinema norte-americano e europeu e, no
próprio mercado interno, para as famigeradas “pornochanchadas”,
as malditas produções baratas e mal-acabadas financiadas pelo
governo não eram nem pornôs nem chanchadas e que serviam
basicamente para entreter o povo com o que ele mais gosta e odeia em
si: a malandragem e a sacanagem.
O
minguamento do cinema de autor foi perceptível: nos anos 70, a
grande cabaça do moderno cinema brasileiro, Glauber Rocha, produziu
na Espanha, Itália, Cuba, Portugal e Congo, menos no Brasil. Nelson
Pereira dos Santos, Cacá Diegues, Paulo César Saraceni e vários
outros não conseguiam estabilizar um nível de produção digno,
oscilando entre filmes ótimos a fracos. E pior: às vezes, faziam
filmes até bons, mas cuja qualidade técnica comprometia tanto que
restaram inviáveis de se assistir.
No
entanto, era muito talento e coragem para que nada desse certo. De
tudo que se produziu na década, 15 longas podem ser considerados,
cada um por um motivo, obras essenciais para o, àquela época, ainda
mais combalido e combativo cinema brasileiro no século XX. Tanto é
verdade de que foram cineastas vitoriosos que todos os títulos
elencados são obras de nomes da geração anterior. Nota-se um
aperfeiçoamento da linguagem metafórica do Cinema Novo e um
amadurecimento do cinema popular, bem escrito e com olhos para todos
os públicos. Em contrapartida, há um adensamento da linguagem
transgressora do cinema marginal e que o coloca ainda mais à margem
do mercado. Então, entre mortos e feridos (literalmente), os 15
filmes essenciais para entender o que é cinema brasileiro nos anos
70:
1 -
“Sem Essa Aranha”, Rogério Sganzerla (70) – O cinema
underground do Sganzerla avança brutalmente neste filme
altamente transgressor e simbólico, onde ele mistura metáforas do
terceiro mundo, chanchada, rádio Nacional e cinema de poesia.
Anárquico, louco e ainda assim engraçado por conta do maravilhoso
Jorge Loredo como Zé Bonitinho, que “ancora” toda a
(não)história. Memorável sequência com Luis Gonzaga tocando
enquanto Helena Ignez e Loredo encenam.
2 -
“Copacabana Moun Amour”, Rogério Sganzerla (70) – O cara
tava tão inspirado que fez dois filmes essenciais em apenas 365
dias. Devaneio intelectual na Rio de Janeiro em época de ditadura,
numa referência metafórica ao fim da civilização, à nouvelle
vague (principalmente Resnais de “Hiroshima Moun Amour”) e,
claro, ao cenário político brasileiro. E a trilha é algo de
genial, composta especialmente por Gilberto Gil, que a mandou do
exílio em Londres, e que virou um disco clássico da carreira do
baiano.
3 -
“São Bernardo”, Leon Hirszman (71) – Adaptação do livro
do Graciliano Ramos, que transporta para a tela não só a história,
mas a secura das relações e a incomunicabilidade numa grande
fazenda do início do século XX, escorada na desigualdade dos
latifúndios. Não há diálogo: a vida é assim e pronto. Daqueles
filmes impecáveis em narrativa e concepção. E o Leon, comunista
como era, não deixa de, num deslocamento temporal, dar seu recado
quanto à reforma agrária.
4 -
“O Doce Esporte do Sexo”, Zelito Viana (71) – Filme de
episódios com ninguém menos que Chico Anysio, na época, no auge de
sua criatividade como ator e escritor. Dirigido por seu irmão,
Zelito, é um bom exemplo de que já se faziam comédias mesmo numa
época de produções pobres como foi os anos 70, considerando que
hoje se faz esse gênero às pencas no Brasil com ótimas produções
mas nem de perto com a qualidade de texto de “O Doce Esporte...”.
5 -
“Como Era Gostoso o Meu Francês”, Nelson Pereira dos Santos
(71) – Nelson Pereira teve dificuldades nos 70 de produzir com a
qualidade técnica que ele sabe, mas esse aqui saiu perfeito. Comédia
bizarra sobre antropofagia cultural e canibal. Uma fantasia que põe
Hans Staden em cores modernistas e que evidencia uma série de
lacunas de nossas cultura e civilização. Ganhou Brasília e foi
indicado ao Urso de Ouro em Berlim. Engraçado e profundo.
6 -
“Vai Trabalhar, Vagabundo”, Hugo Carvana (73) – Outra ótima
comédia, primeiro filme do Carvana atrás das câmeras – que se
pôs na frente também, pois ele mesmo faz o hilário Secundino
Meireles, personagem principal que retrata o brasileiro consciente
com a situação do País mas de saco cheio com a miséria moral e
política. Trama inteligente, crônica da sociedade da época. Venceu
Gramado. Trilha original linda do Chico Buarque. Um barato.
7 -
“O Marginal”, Carlos Manga (74). O Manga produziu pouca coisa
pra cinema depois dos 60. Esse é o único de ficção dele dos anos
70, mas toda sua experiência de cenas de aventuras nas várias
chanchadas que dirigiu desde os anos 40 estão aqui, adicionado a um
teor psicológico superconvincente e bem conduzido. Música original
de autoria de Roberto e Erasmo, um luxo. E o Tarcisão tá ótimo.
8 -
“Dnª Flor e seus Dois Maridos”, Bruno Barreto (76) –
Provavelmente a melhor adaptação de Jorge Amado para a tela grande
e o melhor brasileiro da década. Por 34 anos foi recordista de
público no cinema brasileiro, levando mais 10 milhões de
espectadores às salas de exibição. Fotografia, roteiro, trilha e
atuações memoráveis. Cheio de cenas inesquecíveis, como a da
morte do Vadinho e os diálogos entre Wilker e Sônia Braga. Um
clássico vencedor de Gramado e indicado ao Globo de Ouro de Filme
Estrangeiro.
9 -
“Xica da Silva”, Cacá Diegues (76) – Também sucesso de
bilheteria. Cacá emendou uma sequência de ótimas produções nos
anos 70, talvez o cineasta que melhor tenha produzido de todos os
remanescentes do Cinema Novo. Este é um “épico à brasileira”.
Zezé Mota encarnou super bem Xica, o grande papel dela no cinema.
Mais uma vez, a trilha do filme do Cacá se destaca: a música
original é do Jorge Ben.
10
- “A Queda”, Ruy Guerra e Nelson Xavier (76) – Ruy Guerra,
outro comunista irrefreável como o Leon, co-dirige com o também
ator Xavier um pequeno episódio de um operário que morre na queda
de um andaime, história que usa pra gerar toda uma crítica
político-social. Trilha do cineasta (que também era compositor) em
parceria com ninguém menos que Milton Nascimento. Urso de Prata em
Berlim e Margarida de Prata pela CNBB.
11
- “Iracema, Uma Transa Amazônica”, Jorge Bodanzky e Orlando
Senna (76) – Quer filme mais “marginal” do que um com cara de
documentário anárquico, rodado com câmera na mão, usando vários
atores amadores nativos, Pereio cheirado e fumado até as guampa,
proibido pela censura e que só foi exibido pós-Abertura, 6 anos
depois de finalizado? Filme que inspirou muito Fernando Meirelles.
Palavras dele.
12
- “Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia”, Hector Babenco
(76) – Lembro que assisti esse filme pequeno e me deixou com medo,
de tão tenso que é. Policial bem realista, com Reginaldo Faria
estupendo no papel do assaltante de bancos em crise de identidade,
mas que não tem como sair daquele círculo vicioso. Forte pra
caralho. Melhor Filme na Mostra Internacional de Cinema São Paulo,
além de levar vários Kikitos em Gramado (Ator, Ator Coadjuvante,
Fotografia e Edição).
13
- “Chuvas de Verão”, Cacá Diegues (78) – Filme pequeno
com cara de conto. Delicado e atípico em tema, pois aborda o amor na
terceira idade. Interessantes as ligações com a vida social
brasileira e do choque de culturas do velho e do novo. Uma joia que
levou prêmios em Brasília, Rio e São Paulo.
14
- “Tudo Bem”, Arnaldo Jabor (78) – Embora não goste do
Jabor, pretensioso e “intelectualóide” reacionário, esse aqui é
muito legal. Durante a obra de uma antiga casa no subúrbio carioca,
a sociedade brasileira (a qual se transformaria na classe média
atual) aparece como uma “fauna”: caricata, preconceituosa,
mal-resolvida. Fernanda Montenegro e Paulo Gracindo geniais.
15
- “Bye Bye Brasil”, Cacá Diegues (79) – Demarca o fim da
segunda fase de Cacá, com referências do Cinema Novo mas mais
amadurecido. Ao mesmo tempo que reflete com crueza a vida de pessoas
pobres e sem perspectivas, também ressalta a beleza e a magia
intuitiva de artistas mambembes. Daqueles filmes feitos na hora certa
e pela pessoa certa. Um registro sociocultural e político de um
Brasil florescendo e que veio a dar naquilo que somos hoje. Destaque
de novo pra trilha, não só as músicas originais do Chico Buarque
mas também os “bregas”, que tocam aqui e ali e funcionam tri
ambientais.