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quinta-feira, 24 de agosto de 2023

CLAQUETE ESPECIAL 15 ANOS DO CLYBLOG - Cinema Brasileiro: 110 anos, 110 filmes (parte 4)

 

Os clássicos absolutos chegaram, entre eles,
"O Beijo da Mulher Aranha", primeiro filme
brasileiro a vencer um Oscar
Demorou um pouco além do normal, mas voltamos com mais uma parte da nossa série especial “Cinema Brasileiro: 110 anos, 110 filmes”. E tem justificativa para esta demora. Isso porque reservamos este quarto e penúltimo recorte da lista para o mês de agosto, o de aniversário do Clyblog, uma vez que este Claquete Especial, iniciado em abril, é justamente em celebração dos 15 anos do blog.

Talvez somente esta justificativa não baste, entendemos. Então, já que vínhamos mês a mês postando uma nova listagem com 20 títulos cada, propositalmente falhamos em julho para que agora, no mês do aniversário, fizéssemos uma sequência não apenas de 20 filmes, mas de 40 de uma vez. E não se tratam de quaisquer quatro dezenas! Afinal, a seleção inteira é tão rica, que igualável em qualidade a qualquer cinematografia mundial. Mas, especialmente, porque estes novos compreendem as posições do 50º ao 11º. Ou seja: aqueles “top top” mesmo, quase chegando nos “finalmentes”.

Waltinho, um dos 6 com 2 filmes entre
os 40 melhores
E se o adensamento já vinha acontecendo fortemente, com a presença de grandes realizadores, títulos clássicos e premiados e escolas reconhecidas somadas às novas produções do furtivo século XXI, agora, então, esta confluência se faz ainda mais presente. Dá para se ter ideia pelos nomes de cineastas de primeira linha como Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, Walter Salles Jr., Luis Sergio Person, Hector Babenco e Eduardo Coutinho, que já deram as caras com obras anteriormente e, desta feita, emplacam dois filmes cada entre os selecionados, até então os mais bem colocados. Somam-se a eles os altamente competentes João Moreira Salles, Jorge Furtado e Bruno Barreto, também com dois entre os 40.

Pode-se dizer que, agora, é quando de fato entram os clássicos incontestes, aqueles “divisores de águas” do cinema nacional (e, por que não, mundial), como “Ganga Bruta”, de Humberto Mauro, "O Beijo da Mulher Aranha", de Babenco, “São Paulo S/A”, de Person, e “Tropa de Elite”, de José Padilha. Mas também pedem passagem “novos clássicos”, tal o perturbador documentário “Estamira” e o premiado “Bacurau”, de 2019, quarto mais recente entre os 110 atrás apenas de “Três Verões” (63º), “Marte Um” (79º) e “Marighella” (106º).

Elas, as cineastas mulheres, se ainda em desigualdade na contagem geral, marcam forte presença nesta fatia mais qualificada até aqui. Estão entre elas Kátia Lund, Daniela Thomas e Anna Muylaert, esta última, responsável por um dos filmes mais tocantes e críticos do cinema brasileiro, “Que Horas Ela Volta?”. Então, pegando carona na expressão, para quem estava nos perguntando "que horas eles voltariam?”: voltamos. E voltamos abalando com 40 filmes imperdíveis, que dignificam o cinema brasileiro e latino-americano. Pensa bem: apenas 10 títulos os separam do melhor cinema do Brasil. Isso diz muito.

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50. "Estamira”, Marcos Prado (2004)

Dentre as dezenas de documentários realizados na década 00, um merece especial destaque por sua força expressiva incomum: "Estamira". Certamente o que colabora para esta pungência do filme do até então apenas produtor Marcos Prado, sócio de José Padilha à época, é a abordagem sem filtro e nem concessões da personagem central, uma mulher catadora de lixo com sério desequilíbrio mental, capaz de extravasar o mais colérico impulso e a mais profunda sabedoria filosófica. A própria presença da câmera, aliás, é bastantemente honesta, visto que por vezes perturba Estamira. Obra bela e inquietante. Melhor doc do FestRio, Mostra de SP, Karlovy Vary e Marselha, além de prêmios em Belém, Miami e Nuremberg.




49. “Tropa de Elite”, de José Padilha (2007)
48. “Batismo de Sangue”, de Helvécio Ratón (2007)
47. “Terra Estrangeira”, Walter Salles Jr. e Daniela Thomas (1996) 
46. “O Dia em que Dorival Encarou a Guarda”, Jorge Furtado e José Pedro Goulart (1986)
45. “Amarelo Manga”, de Cláudio Assis (2002)



44. “Nunca Fomos Tão Felizes”, Murilo Salles (1984) 
43. “Edifício Master”, de Eduardo Coutinho (2002)
42. “O Homem da Capa Preta”, Sérgio Rezende (1986)
41. “O Beijo da Mulher Aranha”, Hector Babenco (1985)


40. 
“São Bernardo”, Leon Hirszman (1971) 

Adaptação do livro do Graciliano Ramos, que transporta para a tela não só a história, mas a secura das relações e a incomunicabilidade numa grande fazenda do início do século XX, escorada na desigualdade dos latifúndios. Não há diálogo: a vida é assim e pronto. Daqueles filmes impecáveis em narrativa e concepção. E Leon, comunista como era, não deixa de, num deslocamento temporal, dar seu recado quanto à reforma agrária. A trilha, vanguarda e folk, algo varèsiana e smetakiana, é de Caetano Veloso, que acompanha a secura da narrativa e cria uma "música" totalmente vocal em cima de melismas lamentosos e desconcertados. Recebeu vários prêmios em festivais, entre eles o de melhor ator para Othon Bastos no Festival de Gramado, o Prêmio Air France de melhor filme, diretor, ator e atriz (Isabel Ribeiro), além do Coruja de Ouro de melhor diretor e atriz coadjuvante (Vanda Lacerda). 



39. “Carandiru”, de Hector Babenco (2002)
38. “O Som do Redor”, Kleber Mendonça Filho (2012)
37. “Que Horas Ela Volta?”, Anna Muylaert (2015) 
36. “Notícias de uma Guerra Particular”, Kátia Lund e João Moreira Salles (1999)
35. “Ganga Bruta”, Humberto Mauro (1933)



34. “Lavoura Arcaica”, Luiz Fernando Carvalho (2001)
33. “Bar Esperança, O Último que Fecha”, Hugo Carvana (1982) 
32. “Couro de Gato”, Joaquim Pedro de Andrade (1962)
31. “Os Fuzis”, Ruy Guerra (1964)


30. “O Bandido da Luz Vermelha”, Rogério Sganzerla (1968) 

Se existe cinema marginal, esta classificação se deve a “O Bandido...”. Transgressor, louco, efervescente, non-sense, crítico, revolucionário. Adjetivos são pouco pra definir a obra inaugural de Sganzerla, que trilharia pela "marginalidade" até o final da coerente carreira. Um filme de manifesto, questionamento de ordem política, de uma estética diferente e bela (apesar do baixo orçamento) e a vontade de avacalhar com tudo. "Quando a gente não pode fazer nada, a gente avacalha e se esculhamba". Grande vencedor do Festival de Brasília de 1968. O filme que fez o “terceiro mundo explodir” de criatividade.


29. "Santiago", de João Moreira Salles (2007)
28. “Jogo de Cena”, Eduardo Coutinho (2007)
27. “O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro”, Glauber Rocha (1968)
26. “Noite Vazia”, Walter Hugo Khouri (1964)
25. “São Paulo S/A”, Luis Sérgio Person (1965) 



24. "Terra em Transe", Glauber Rocha (1967) 
23. "Sargento Getúlio”, Hermano Penna (1981) 
22. “O Caso dos Irmãos Naves”, Luis Sergio Person (1967) 
21. “Memórias do Cárcere”, Nelson Pereira dos Santos (1984) 

20. 
 “Ilha das Flores”, Jorge Furtado (1989)

É incontestável a importância de "Ilha das Flores" para a cinematografia gaúcha e nacional. O filme que, em plenos anos 80 ainda de fim do período de Ditadura, expôs ao mundo uma realidade muito pouco enxergada, o fez de forma absolutamente criativa e impactante. Ao acompanhar o percurso de um mero tomate da horta até o lixão a céu aberto onde vive uma fatia da população em total miséria e descaso social, Furtado virou de cabeça para baixo a narrativa do audiovisual brasileiro, influenciado diretamente as produções de TV dos anos 80 e 90 e o cinema pós-retomada nos anos 2000. Urso de Prata para curta-metragem no 40° Festival de Berlim, Prêmio Especial do Júri e Melhor Filme do Júri Popular no 3° Festival de Clermont-Ferrand, França, entre outras premiações na Alemanha, Estados Unidos e Brasil. Um clássico ainda hoje perturbador.



19. “O Beijo no Asfalto”, Bruno Barreto (1980) 
18. “Central do Brasil”, de Walter Salles Jr. (1998) 
17. “Dnª Flor e seus Dois Maridos”, Bruno Barreto (1976)
16. “Garrincha, A Alegria do Povo”, Joaquim Pedro de Andrade (1962)
15. “Barravento”, Glauber Rocha (1962)


14. “Rio 40 Graus”, Nelson Pereira dos Santos (1955)
13. “Bacurau”, Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles (2019)
12. “Assalto ao Trem Pagador”, Roberto Faria (1962) 
11. “Bye Bye Brasil”, Cacá Diegues (1979) 



Daniel Rodrigues


segunda-feira, 19 de setembro de 2022

cotidianas #770 - Fui, então, trabalhar... vagabundo


 
Recentemente, a política de cotas nas universidades públicas brasileiras completou 10 anos com êxito na inclusão reparatória de pessoas negras à educação superior. Fico feliz de, com todas as dificuldades que ainda serão superadas, presenciar um importante momento como este. Entretanto, eu mesmo não sou fruto do sistema de cotas, pois minha formação, do início dos anos 2000, é anterior a este marco. Lembro que, na faculdade, privada, era um dos únicos negros que começaram o curso e dos pouquíssimos que o concluíram, realidade que se modificou muito de lá para cá em virtude das cotas, ainda que não suficientemente.

E se eram raros os meus pares na universidade, imagine-se as referências. Em quem se espelhar? Dilema comum aos negros de minha geração a das anteriores. Para mim, contudo, essa questão estava desde sempre apaziguada por causa de minha família. Base de minha formação humana e ética. Aprendi em casa que qualquer trabalho se faz com dedicação, persistência e amor, e isso se basta para muita coisa preconceituosa ou não. Tanto não me sentia menor em nada, que me aventurei, já no primeiro semestre da faculdade de Comunicação, como poucos de meus colegas ousariam ou se sentiriam capazes, a buscar um estágio em uma empresa da área. 

Consegui. No almoxarifado. Era uma das principais agências de Publicidade de Porto Alegre à época e, mesmo não sendo exatamente no Jornalismo, valia-me a pena pela experiência. Mas embora meu inconsciente ato de ocupação e resistência, estava, sim, num ambiente majoritariamente branco e brancocentrado. Eu era, diante dos privilegiados, sensatos ou não, no fim das contas e para além de minha consciência, o guri negro do almoxarifado - e eles, meus colegas, os detentores do espaço social. 
Quantas ocasiões que aquele limiar entre preconceito e mal-entendido não deve ter ocorrido sem eu notar... Um deles, no entanto, me marcou e que hoje consigo não apenas ressignificá-lo como, igualmente, tirar-lhe a essência. Descia eu com uma pilha de jornais nos braços pelo elevador quando um dos jovens publicitários pegou carona. Descontraído, o rapaz loiro me olhou executando aquele leve trabalho braçal e, do alto de suas tarefas altamente desenvolvidas e criativas, inventou de cantar para mim os versos de uma música:

"Vai trabalhar, vagabundo
Vai trabalhar, criatura..."

Era a letra de "Vai Trabalhar, Vagabundo", de Chico Buarque, da trilha sonora do filme homônimo de Hugo Carvana, de 1976. E eu sabia disso. Lembram da minha falta de noção diante de possíveis situações de racismo que me referi anteriormente? Eu poderia ter me enfezado, mas tomei aquela provocação como um mero embate intelectual. E me chamar para uma disputa com Chico Buarque no meio foi um grande erro estratégico que ele cometeu! Logo a mim, amante e colecionador de música e conhecedor de cinema desde a infância! Era pedir para ser derrotado. Foi então que, sem perder o tempo do compasso, complementei a deixa cantando-lhe os versos seguintes:

"Deus permite a todo mundo
Uma loucura
Passa o domingo em família
Segunda-feira, beleza
Embarca com alegria
Na correnteza..."

A expressão de embasbacamento dele foi tão visível que, para arrematar, sem perdão ainda deu tempo de lhe comentar antes de a porta se abrir que "Construção" era o melhor disco de Chico e que (capciosamente) entre suas melhores músicas estavam "Apesar de Você" e "Tire as Mãos de Mim". Foi como uma goleada de 7 x 1 entre Alemanha e Brasil, só que ao contrário. Se na hora achei que vencia uma disputa de egos, hoje vejo que ali, ainda que para com um estagiário tanto quanto eu, demarcava o espaço sociopolítico que me pertence. O espaço do saber, da cultura, da resistência. Naquele momento eu fazia minha (desavisada) ocupação. 

Passados os anos e ocupando hoje um raríssimo cargo para um negro de coordenador no segmento de Comunicação Corporativa no Rio Grande do Sul, é possível dizer que houve evolução. Mas, infelizmente, não tanta. Refletindo sobre aquele episódio do passado, consigo enxergá-lo com o criticismo da maturidade, mas também com uma doçura renovadora. Se por um lado a minha ingenuidade de jovem protegido pela família tapava-me a visão para uma séria questão a qual me depararia diariamente em uma sociedade arraigada em preceitos escravagistas como a brasileira, por outro minha reação diante de um obstáculo sociopolítico foi talvez a melhor resposta que eu poderia ter dado. 

Não avançamos tanto quanto poderíamos? Mas vamos avançar, com certeza. Trabalho, dedicação e resiliência não faltam a nós negros. Os espaços, seja por políticas ou enfrentamentos pessoais, é que precisam ser cavados para termos uma efetiva diversidade. Parafraseando a mesma canção de Chico Buarque novamente, posso dizer:

"Prepara o teu documento
Carimba o teu coração
Não perde nem um momento".

Só não perde a razão.


Daniel Rodrigues
Texto originalmente publicado no site Coletiva.net

terça-feira, 20 de fevereiro de 2018

Jorge Ben - "Solta o Pavão" (1975)



"Pavão Real, Pavão Dourado
Procedente da África e da Índia [...]
Sua cauda, de uma plumagem azul. verde e ouro
Formando um lindo e majestoso leque
Na Idade Média
O pavão, pela sua figura bonita e livre
Era visto como uma ave real e da sorte." 
Jorge "Sanctus" Ben,
do texto da contracapa original do disco 


Na metade dos anos 70, Jorge Ben, que ainda não tinha se tornado o Benjor que assumiria a guitarra elétrica no lugar do violão, já havia alcançado tudo que um artista popular podia. Estouro no disco de estreia, altas e baixas vendagens, idolatria e ostracismo, adesão a movimentos (sambalanço, soul, tropicalismo), participação e vitória em festivais, hits nas paradas, gravações internacionais e até briga judicial por plágio (vencida por ele sobre um Rod Stewart metido a esperto). Mas principalmente, desde que começara a carreira, o “Babulina” foi responsável pela talvez mais extensa e irreparável sequência de discos de um artista na indústria fonográfica no Brasil. Somente nos primeiros cinco anos daquela década, enfileirou os álbuns “Força Bruta”, “Negro é Lindo”, “Ben” e “10 Anos Depois”, isso sem falar dos registros ao vivo com o Trio Mocotó e dos clássicos absolutos “Gil & Jorge/Xangô Ogum” e “A Tábua de Esmeralda”. Com estes dois, principalmente o segundo, o autor de “Chove Chuva” atingia o ápice da criatividade e forjava uma linguagem totalmente peculiar, com melodias de alta inventividade, harmonias despojadas, estilo de cantar próprio e ritmo, muito ritmo. Seu samba-rock, carregado de referências ao esoterismo, à religião, à filosofia e a uma visão humanista do mundo, é igualmente sustentado na cultura popular da ginga, do país tropical, do amor, das moças bonitas e da cordialidade.

O que faltava, então, a um artista consagrado por crítica e público? Explodir. Isso que é “Solta o Pavão”: uma explosão de sonoridade, de balanço, de misticismo, de religiosidade, das paixões. Aquilo que Ben trouxera em “A Tábua...” se intensifica neste seu último disco antes da adoção de vez da guitarra, ocorrido um ano depois noutro disco emblemático, “África Brasil”. Está nele toda a bruta brasilidade de Ben, encharcada de matizes africanas e influenciada por elementos da cultura pop, do funk norte-americano ao gospel, da soul ao blues, do rock ao jazz. “Solta...”, assim, com seus riffs inspiradíssimos, sua percussão carregada e arranjos modernos, tem o despojamento e o peso de um disco de rock – sem dever nada em densidade a outros de roqueiros daquele ano, como “Fruto Proibido”, de Rita Lee, ou “Novo Aeon”, de Raul Seixas –, mas ainda com um pé no Jorge Ben do “Samba Esquema Novo”: o da batida percussiva no violão de nylon, malemolente, suingado, malandro, enraizado no morro.

A abertura dignifica todas essas qualidades: um riff de violão como um Neil Young acústico e a batida potente da percussão ao fundo. Prenúncio do arrasador samba que irá começar: “Zagueiro”, uma ode ao “anjo da guarda da defesa” no futebol. Quem sustenta a coesa cozinha, além da Admiral Jorge V Group (João “Van da Luz”, piano; Dadi “Aroul Flavi”, baixo; João “Zim” da Percussão, ritmo; e Gusta “Von” Schroeter, bateria) são os Cream Crackers, grupo formado por ninguém menos que o percussionista e arranjador Zé Roberto, o não à toa intitulado Mestre Marçal e um jovem pernambucano já muito afim com o samba chamado Bezerra da Silva. Todos comandados pela batuta de Jorge “Sanctus” Ben.

O pensamento sobre o ser humano ganhava suma importância na obra de Ben àquela época. Se o filosofia alquimista do Egito de 1.300 a.C. fora responsável pela letra de “Hermes Trismegisto Escreveu” em “A Tábua...”, agora Ben volta sua abundante musicalidade para dar cores aos densos escritos do filósofo oficial da Igreja da Idade Média: São Tomás de Aquino. Capaz de musicar até bula de remédio (e torná-la suingada!), Ben adapta trechos do complexo livro “Suma Teológica”, escrito no século XIII, e o transforma num samba cheio de molejo. Em “Assim Falou Santo Tomás de Aquino” ele consegue imprimir no hermético texto escolástico frases sonoramente cantaroláveis, como: “Senhor, que tens tido feito o nosso refúgio” ou “Estão enganados, puramente enganados/ Estão errados, puramente errados”.

O clima de devoção sambada continua na sequência numa das melhores do disco – e, por que não, da carreira de Ben. “Deus todo poderoso eterno pai da luz, da luz/ De onde provem todos bens e todos dons perfeitos/ Imploro vossa misericórdia infinita, infinita/ Deixai-me conhecer um pouco de vossa sabedoria eterna”. Esses versos dão a ideia da contrição contida na lindíssima "Velhos, Flores, Criancinhas e Cachorros", misto de prece franciscana e canto humanista. De ritmo vibrante e contagiante, passa longe de ser piegas. Pelo contrário, a música tem uma aura especial, tanto por causa da melodia quanto pelo coro alto e intenso, que traz o mesmo “Ôôô” de “Os Alquimistas Estão Chegando”, de “A Tábua...”, porém, usados em outro tom para dar uma atmosfera de canto litúrgico. Ben, como em todo o disco, está solto, tocando o violão com total desembaraço, brincando com vocalizes e melismas e inventando cantos na hora da execução.

Por falar em brincadeira, a divertida "Cuidado com o Bulldog" é, além disso, um show de musicalidade. Começa em um ritmo de rock com o band leader esmerilhando o violão e Dadi mandando ver numa base de baixo no melhor estilo Novos Baianos, ambos acompanhados por uma bateria que abusa dos rolos. Até que, de repente, um breque, e a música dá uma virada para se transformar num samba gingado daqueles de não deixar ninguém parado. A impressão é de farra, mas os músicos estão fazendo um samba-jazz do mais alto nível. Ben aproveita para se divertir com o tema, lançando grunhidos como se estivesse sendo mordido pelo cão (um desses, sampleado pela Nação Zumbi no início de “Cidadão do Mundo”, do disco “Afrociberdelia”, de 1996) e bolando frases engraçadas como: “Bulldog, mandíbulas de ouro” ou “Bulldog não perdoa, Bulldog morde”. Registro ao vivo no estúdio – assim como tudo dos álbuns dele à época –, lembra a naturalidade e a descontração das jam sessions com Gilberto Gil do então recente “Gil & Jorge”. Impagável.

"O rei chegou, viva o rei", com sua linha de metais tropicalista, segue o conceito letrístico de prosa medieva (“Então vierem os cavaleiros com seus uniformes brilhantes/ Garbosos e triunfantes/ Um abre-alas lindo de se ver/ E logo atrás/ Separado por lanceiros/ Vinha a guarda de honra, orgulhosa, polida, agressiva/ Porém bonita/ Anunciando e protegendo o rei”), estilo que serviria, entre outras semelhantes de Ben, de inspiração a Caetano Veloso para escrever “Alexandre”, do disco “Livro”, de 1997. Também prosada e tomada de suingue, "Luz Polarizada" (“Coloque o teu grisol sob a luz polarizada/ Ó meu filho/ Lava as escórias com a água tri-destilada/ Pois aquele que forja a falsa prata/ E o falso ouro/ Não merece a simpatia de ninguém”) lembra a psicodelia de “O Homem da Gravata Florida”, do disco anterior. Ben, totalmente à vontade com os companheiros no estúdio, chama-os para o “La, la, la, la, la, la” do refrão dizendo: “Quero ver o coral agora!”

Mas se tem algo que está no mesmo pé que a religiosidade e o esoterismo em “Solta...” são elas: as musas. Como um menestrel medieval apaixonado, Ben canta para várias delas: "Dumingaz", um samba “maravilha” e “sensual”, como classifica o próprio enquanto canta; “Luciana”, a “canção singela” feita pra lembrar-se do seu trovador quando se ouvir no rádio (clara homenagem a Gil por "Essa é pra Tocar no Rádio", que gravaram juntos em "Gil & Jorge" um ano antes); "Jesualda", samba-rock de riff puxado no assovio que conta a história da mulata saída da favela que ganhou a vida no exterior; e "Dorothy", outra irretocável, com destaque para o arranjo de flautas de Ugo Marotta.

“Solta...” ainda tem a gostosa "Se Segura Malandro", tema do filme homônimo de Hugo Carvana (na linha de “O Namorado da Viúva”, de “A Tábua...”) e um dos mais inspirados temas da história da música brasileira: “Jorge da Capadócia”. Um hino da MPB, regravado por Caetano, Fernanda Abreu e Racionais MC’s, que virou um símbolo do próprio autor, xará do Santo Guerreiro e filho de Ogum, o correspondente ao santo católico no Candomblé pelo sincretismo. Musicando a oração de São Jorge, Ben atinge um clímax como apenas em especiais momentos de sua carreira conseguira – talvez, parecidas, só “5 Minutos” e “Zumbi”, faixas que cumprem o fechamento dos discos “A Tábua...” e “África Brasil”. Isso porque, ao evocar as preces ao Jorge dos Céus, o Jorge da Terra o faça com tamanha potência que a música acaba ganhando uma dimensão mais profunda, etérea e espiritual. O Coral do Kojac entoa o título da canção repetidas vezes num samba marcado e intenso sob um riff de guitarra (sim, de guitarra!). Porém, a exaltação se arrefeça para, aí sim, serem declamados os emocionados versos: “Eu estou vestido com as roupas e as armas de Jorge/ Para que meus inimigos tenham pés e não me alcancem/ Para que meus inimigos tenham mãos e não me toquem/ Para que meus inimigos tenham olhos e não me vejam/ E nem mesmo um pensamento eles possam ter para me fazerem mal”. Ben, com sua voz oscilante, funde canto de escravos à dicção do morro. Um teclado entra para fazer a base, enquanto o violão sola e a percussão, estilo jazz-fusion, desenha um compasso arrastado e assimétrico. Para terminar, retorna a melodia da abertura, porém ainda mais enérgica, mais volumosa, mais expressiva. Um desbunde.

Guardadas as devidas proporções, “Solta...” é o “Magical Mystery Tour” de Jorge Ben: ao mesmo tempo em que é a continuidade natural de uma obra-prima revolucionária (“Sgt. Peppers Lonely Hearts Club Band”, no caso dos Beatles, “A Tábua...”, para o músico brasileiro), também a consolida, redimensionando-lhe as ideias e conceitos originais. Assim, tanto este quanto o da banda inglesa passam longe de serem meros “volumes 2” das obras-irmãs, haja vista que são tão únicos quanto estas e até mais ousados. “Solta...” é, sim, um feliz acontecimento da música brasileira de um momento em que Ben, figura única no panteão da MPB, está com toda vitalidade e alegria. Um artista pleno, que concebeu, na linha evolutiva de sua própria obra, o mais livre e completo trabalho. Majestoso e colorido como a cauda de um pavão.

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FAIXAS:
1. "Zagueiro" - 3:05
2. "Assim Falou Santo Tomaz de Aquino" - 3:04
3. "Velhos, Flores, Criancinhas e Cachorros" - 3:16
4. "Dorothy" - 3:58
5. "Cuidado com o Bulldog"  - 2:53
6. "Para Ouvir no Rádio (Luciana)" - 4:20
7. "O rei chegou, viva o rei" - 3:03
8. Jorge de Capadócia"  - 3:53
9. "Se Segura Malandro" - 2:53
10. "Dumingaz" - 3:30
11. "Luz Polarizada"  - 2:20
12. "Jesualda" - 4:06
todas as composições de autoria de Jorge Ben

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OUÇA O DISCO:
Jorge Ben - "Solta o Pavão"


Daniel Rodrigues

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

Chico Buarque - "Meus Caros Amigos" (1976)



“O que será que será/ Que todos os avisos não vão evitar/
Porque todos os risos vão desafiar/ Porque todos os sinos irão repicar/ 
Porque todos os hinos irão consagrar/ E todos os meninos vão desembestar/ 
E todos os destinos irão se encontrar/ E mesmo o Padre Eterno que nunca foi lá/
 Olhando aquele inferno, vai abençoar/ O que não tem governo, nem nunca terá/
O que não tem vergonha, nem nunca terá/ O que não tem juízo”.
trecho de
“O que será? (À Flor da Terra)”



“Hoje o inimigo veio me espreitar/ Armou tocaia lá na curva do rio/ Trouxe um porrete a mó de me quebrar/ Mas eu não quebro porque sou macio, viu”. Estes versos, da canção "Querido Diário", de 2011, bem que poderiam ter sido escritas por seu autor, Chico Buarque, 40 anos antes, nos famigerados anos de Regime Militar no Brasil. Um dos artistas mais perseguidos pela censura, Chico foi preso, se exilou, voltou ao país, travou diálogos constrangedores com os censores, burlou-os por vezes e, mesmo escrevendo duplos sentidos não alcançados pelo baixo QI dos avaliadores, teve diversas músicas vetadas. Em meados dos anos 70, cada vez mais cerceado pelos milicos em relação a seu trabalho, chegou um ponto em que compor um disco inteiro, com início meio e fim, virou-lhe tarefa quase impossível. “Quase” em se tratando do “macio” Chico Buarque, talvez o maior nome da música brasileira de todos os tempos. Se não dava para fazer do jeito ideal, criatividade e coragem não lha faltam para passar o recado da maneira que desse. Uma dessas provas de resistência é “Meus Caros Amigos”, de 1976, a materialização possível diante daquela situação de repressão. O que não lhe impediu de cunhar uma obra-prima da MPB.

Como todos os outros discos que fizera durante os anos de chumbo, “Meus...” é um Frankenstein sonoro. Diante da impossibilidade de escrever 10 ou 12 canções novas, pois sabia que a maioria seria proibida pelo simples fato de serem de sua autoria, a solução era ir pescando obras feitas para outros projetos. Homem não só da música, mas de teatro, cinema e da literatura, Chico construíra desde os seus primeiros anos uma carreira em que sua música dialogava com as outras artes. Naquele meio de anos 70, em seu auge criativo, este importante papel que desempenhava na cultura nacional estava totalmente estabelecido. É aí que aparecem os “caros amigos”. Companheiros de luta como Ruy Guerra, Augusto Boal, família Barreto e Hugo Carvana, igualmente opositores ao Governo Militar, sabiam que podiam contar com seus “versos e trovas”. Assim, “Meus...” constituía-se como um aleijão, sim, mas não qualquer aleijão. Com apenas duas canções novas escritas para o disco, por ação desta confluência de ideologias e atitudes constam nele algumas das mais emblemáticas obras da história do cancioneiro nacional.

Uma dessas joias é a que abre o disco: “O que será? (À Flor da Terra)”, escrita para o filme "Dona Flor e Seus Dois Maridos". Melodia incrível e acachapante, que no cinema teve a voz da cantora Simone, aqui Chico divide os vocais com outro mestre da nossa música, Milton Nascimento. Bituca ajuda a dar uma interpretação toda diferenciada ao número, dramática e incisiva. A brilhante letra, crítica e reflexiva, traz, a partir de uma urgente pergunta (“O que será, que será?), versos inesquecíveis como: “Que andam suspirando pelas alcovas/ Que andam sussurrando em versos e trovas/ Que andam combinando no breu das tocas/ Que anda nas cabeças, anda nas bocas/ Que andam acendendo velas nos becos/ Que estão falando alto pelos botecos/ Que gritam nos mercados, que com certeza; Está na natureza, será que será...”.

Em seguida, mais uma puxada de outro projeto – e mais uma obra-prima –: “Mulheres de Atenas”. Encomendada para a peça “Lisa, a Mulher Libertadora”, de Boal, é um canto feminista que se vale da ironia e da inversão para expor a crítica da condição feminina não necessariamente na Grécia mitológica, mas no Brasil da era moderna: “Mirem-se no exemplo/ Daquelas mulheres de Atenas/ Geram pros seus maridos/ Os novos filhos de Atenas / Elas não têm gosto ou vontade/ Nem defeito, nem qualidade/ Têm medo apenas...”.

Também extraída de outro projeto para o álbum é a clássica balada “Olhos nos Olhos”, feita originalmente para Maria Bethânia, que a gravara pouco antes e estourara nas rádios naquele ano. Talvez a melhor música em primeira voz feminina já escrita por um homem, expressa a profundidade da alma de uma mulher que, após uma desilusão amorosa, vive um momento de autodescoberta. “Quando você me deixou, meu bem/ Me disse pra ser feliz e passar bem/ Quis morrer de ciúme, quase enlouqueci/ Mas depois, como era de costume, obedeci”. Ela quer vingar-se do ex que a deixou mostrando que agora não precisa mais dele. “Quando você me quiser rever/ Já vai me encontrar refeita, pode crer/ Olhos nos olhos, quero ver o que você faz/ Ao sentir que sem você eu passo bem demais”. Talvez não tão bem assim, afinal, se fosse totalmente verdade, não precisaria jogar-lhe na cara. Afora a riqueza da melodia e da poesia, essa é uma das sutilezas da sensível “Olhos...”, uma das maiores criações de Chico em toda sua carreira.

De “Calabar, O Elogio da Traição”, peça coassinada por Ruy Guerra e proibida pela censura em 1973, vem a rumba romântica “Você Vai me Seguir”, que conta com lindo arranjo vocal da MPB-4. Fora do contexto da montagem, não apresentava perigo político, então estava liberada pela censura. Igualmente oriunda de uma fonte externa, a engraçada mas não menos ácida "Vai Trabalhar, Vagabundo" é da trilha do filme homônimo do camarada Carvana. Com arranjo assinado por Francis Hime diferente do feito para o longa, é um embalado samba com impagáveis passagens como: “Passa o domingo sozinho/ Segunda-feira a desgraça/ Sem pai nem mãe, sem vizinho/ Em plena praça/ Vai terminar moribundo/ Com um pouco de paciência/ No fim da fila do fundo/ Da previdência...”

Com arranjo de Perinho Albuquerque, uma das duas únicas escritas para o repertório é o divertido samba “Corrente”, cujos versos, como se destaca no encarte, “podem ser dispostos livremente”, pois “uma mesma corrente tanto pode ser lida para frente quanto para trás”. É bem essa brincadeira musical que Chico propõe. Enquanto os versos, corridos, metalinguisticamente dizem: “Eu hoje fiz um samba bem pra frente/ Dizendo realmente o que é que eu acho/ Eu acho que o meu samba é uma corrente...”, a segunda parte, num tom abaixo, começa do trecho que diz: “Isso me deixa triste e cabisbaixo”. Os versos se misturam em cantos simultâneos, contrastando o “pra frente” com o “pra baixo”, tanto em letra quanto em melodia. Uma construção vanguardista em conceito num samba agradável e popular.

A safra comprometida fez com que Chico buscasse mais duas já usadas no cinema para completar o repertório. A bela “A Noiva da Cidade”, a primeira delas, é o tema do filme de Alex Vianni. Misto de samba-canção com cantiga de ninar (“Ai, quanto descuido o dessa moça/ Que papai tá lá na roça/ E mamãe foi passear/ E todo marmanjo da cidade/ Quer entrar/ Nos versos da cantiga de ninar/ Pra ser um Tutu-Marambá”), faz situar-se entre o amor pueril e a sensualidade, trazendo como um dos elementos narrativos a atmosfera do folclore brasileiro e das lendas da infância de antigamente.

A segunda é outro clássico do cancioneiro de Chico: “Passaredo”. Com toques do pop rural ao estilo Sá & Guarabyra, esta canção semi-infantil também do longa de Vianni – aproveitada ainda na trilha sonora do programa “Sítio do Pica-Pau Amarelo” em versão da MPB-4 –, tornou-se um marco da música brasileira à época. Primeiro, por sua leitura mais imediata, pois levanta a bandeira da preservação ambiental tão pouco falada então. “Some, coleiro/ Anda, trigueiro/ Te esconde colibri/ Voa, macuco/ Voa, viúva/ Utiariti/ Bico calado/ Toma cuidado/ Que o homem vem aí...”. Pois esse “homem” ameaçador, que mata sem dó em meio à “floresta”, sustenta justamente a outra leitura que a letra tem: a da denúncia às perseguições, torturas e assassinatos da Ditadura. Aparentemente inofensiva e voltada para crianças (vai ver até achavam que Chico havia inventado aqueles nomes esquisitos de aves...), passou pela censura sem terem percebido. Bem feito.

Das mais belas músicas de Chico mas não tão reconhecida, a romântica “Basta um Dia”, toda sobre piano e o delicado arranjo de cordas de Francis, como não poderia ser diferente também provém de uma obra externa: a peça “Gota D’água”, de Chico e Paulo Pontes e originalmente escrita para a voz de Bibi Ferreira. A rica melodia, de sinuosidades muito bem elaboradas, acompanha o tratamento literário de Chico na letra: “Pra mim/ Basta um dia/ Não mais que um dia/ Um meio dia/ Me dá/ Só um dia/ E eu faço desatar/ A minha fantasia...”.

Por fim, a segunda e última composta para o disco. E que música! A lenda diz que Chico precisava compor somente mais uma faixa para completar o tempo mínimo do LP. Ele então se senta no próprio estúdio e escreve a punho a letra para a melodia de Francis deste choro pessoal e cronístico, uma das obras que mais bem dão a noção do que o Brasil vivia naqueles ferozes tempos. Com o luxuoso piano de Francis e a flauta mágica do craque Altamiro Carrilho, encerra a mensagem-chave do álbum numa carta a um amigo exilado. Tal como propusera em “Sabiá”, de 1968, em que fala de saudades da terra natal sem estar fora dela, “Meu Caro Amigo” é um canto de exílio às avessas. “Meu caro amigo, me perdoe, por favor/ Se eu não lhe faço uma visita/ Mas como agora apareceu um portador/ Mando notícias nessa fita.” E explica, com bom humor e realismo, como estava a situação no Brasil: “Aqui na terra tão jogando futebol/ Tem muito samba, muito choro e rock'n'roll/ Uns dias chove, noutros dias bate o sol/ Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta/ Muita mutreta pra levar a situação/ Que a gente vai levando de teimoso e de pirraça/ E a gente vai tomando que também sem a cachaça/ Ninguém segura esse rojão“.

Precisou-se segurar o rojão ainda por muitos anos até a democracia vir. Chico, assim como vários de seus parceiros, venceu a luta contra o inimigo. “Apesar de você”, o amanhã virou “outro dia”. De fato foi necessário que Chico adicionasse à sua autoatribuída maciez muita teimosia, pirraça e cachaça. “Meus...” é a prova disso: tinha tudo para resultar numa colcha de retalhos sem sentido, mas, com o apoio imprescindível dos amigos, unidos por uma causa maior, saiu um dos mais autênticos libelos que um artista popular poderia compor. Nem mesmo todos os empecilhos que foram impostos fizeram com que o disco perdesse a coesão. Ao contrário: aumentaram-lhe a mensagem de subversão e lhe deram personalidade e sobrevida. Afinal, mais de 40 anos depois, o disco continua uma referência tanto na obra de seu autor quanto da música brasileira e da história recente do Brasil enquanto sociedade.

Pode parecer contraditório, mas que nunca mais seja preciso criar discos como este. Oxalá a musicalidade, a poesia e a beleza atingidas por Chico em “Meus...” ande apenas restrita ao passado: nas cabeças e nas bocas. E na memória.

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FAIXAS
1. O que será (À flor da terra) – Participação especial: Milton Nascimento
2. Mulheres de Atenas (Augusto Boal/ Chico Buarque)
3. Olhos nos olhos         
4. Você vai me seguir (Ruy Guerra/ Chico) – Participação especial: MPB-4
5. Vai trabalhar vagabundo        
6. Corrente       
7. A noiva da cidade (Francis Hime/ Chico)
8. Passaredo (Francis/ Chico)
9. Basta um dia
10. Meu caro amigo (Francis/ Chico)

todas as composições de Chico Buarque, exceto indicadas.

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OUÇA O DISCO





por Daniel Rodrigues



segunda-feira, 18 de julho de 2016

Cinema Marginal #4 - "O Anjo Nasceu", de Júlio Bressane (1969)



Desta vez trago para vocês um filme mais "simples": "O Anjo Nasceu", de Júlio Bressane, de 1969. A historia é bem descomplicada e sua narrativa é bastante linear, mas é claro que seus personagens são cheios de alegorias e o espectador deve estar preparado para mais uma obra amoral (ou nem tanto).
Dois bandidos saem pela cidade cometendo atos de violência. Santamaria (Hugo Carvana), místico que acredita que com seus atos está se aproximando de um anjo que lhe limpará a alma; e Urtiga (Milton Gonçalves), um marginal ingênuo que segue os passos do amigo acreditando também, por sua ingenuidade, no anjo da salvação.
Qual a chance de salvação 
destes dois marginais?
Não é a primeira vez nem a ultima vez que falo isso sobre os filmes marginais mas não é um filme que vá agradar todo mundo. Há cenas de violência bem fortes, violência contra mulher, violência contra homossexuais, existe toda uma crítica religiosa e dependendo de como você receber o filme tudo isso pode não soar muito legal. A qualidade da imagem e som também são fatores que se deve superar ao assistir o filme mas essa era exatamente a proposta estética do cinema marginal.
As cenas do sequestro são bastante fortes bem como  as atuações
dos atores principais. Esse momento, especificamente, é fabuloso.
Apesar de ser uma quase antiestética, ela é muito bem utilizada por Bressane e seus planos longos (ou exageradamente longos) funcionam bem criando grande dramaticidade uma tensão nas cenas. É uma obra bem silenciosa mas em muitos momentos deste silêncio que muita coisa é dita.  A brincadeira visual que o filme faz com as placas que aparecem "incidentalmente" é genial em muitos momentos, como por exemplo, próximo ao final, quando os bandidos estão em um circo e ao fundo pode ver-se uma placa com dizeres "O encontro com a morte", e também no momento onde vão até um cinematógrafo e a câmera permanece durante algum tempo, uns vários segundos em close na placa "Cinematographo". Genial essa brincadeira toda. A crítica mais evidente do filme é a pessoas que cometem atos brutais buscando uma suposta salvação de suas almas, que buscam na religião a desculpa para seus atos e independente da crença, seita, doutrina ou seja lá o que for, isso fica claro no longa.
A minha cena favorita no filme é quando os dois bandidos, Urtiga e Santamaria,  estão comendo na mesa juntamente com a dona da casa ondes estão se escondendo, quando Santamaria expõe para a dona da casa sua maneira de pensar que é na verdade um perfeito resumo da proposta do filme e de certa forma, por extensão, do cinema marginal, "O que está certo é o errado... E o que está errado, pra mim é o certo".
Uma obra fantástica pela maneira como foi feita e pela ideia que transmite, tudo com muita criatividade utilizando bem as técnicas cinematográficas para, mesmo com pouco recurso, fazer muita coisa. Sua ambição claramente não era grandiosa mas vê-se as ferramentas cinematográficas sendo usadas de uma maneira tão inteligente que o exagero teatral dos personagens acabam fazendo sentido e tornando-se necessários, tamanho a grandiosidade artística da obra, que é forte, crua e real.
A placa ao fundo "Encontro com a morte".



segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

“Chico: Artista Brasileiro”, de Miguel Faria Jr. (2015)



Estão sempre tentando pegar Chico Buarque. Acusações por apoio ao PT, pela não-defesa das biografias não-autorizadas, por trair a ex-mulher, por ser um tiozão que “pega” meninas, pela linhagem nobre dos Buarque de Holanda, por ser “esquerda caviar”, por usar a fama como músico para vender-se como escritor. Até culpá-lo por ter olhos azuis já ouvi algo do tipo. Parece-me salutar e pertinente que, justamente no momento em que se lança o já sucesso de bilheteria “Chico: Artista Brasileiro”, de Miguel Faria Jr., aconteça mais um episódio do tipo: a tão noticiada discussão do artista com um passante cujo motivo junta às imbecilidades mencionadas acima mais uma delas: a de Chico ter um apartamento em Paris (!...).

Essa manifestação raivosa e incontida dessa direita burguesa, invejosa e preconceituosa – que, como diz Eric Nepomuceno, saiu do armário, e isso desde os protestos de 2013 –, é mais um dos casos em que se tenta enquadrar Chico e ele sai, se não ileso, íntegro. O filme passa isso: a integridade de um artista cujas bases e conceitos estão profundamente ligadas ao Brasil mais expressivo, seja em suas belezas ou moléstias. Com uma narrativa que intercala depoimentos de amigos e admiradores com as do próprio Chico de dentro de seu maravilhoso AP no Alto Leblon (mais longas que as falas dos outros), traz ricas imagens de arquivo entre fotos e vídeos, algumas surpreendentes pois muito raras, como um trecho da histórica apresentação de “Cotidiano” dele com Caetano Veloso no Teatro Castro Alves (presente no disco ao vivo da dupla de 1972). Igualmente surpresa é o depoimento de Vinícius de Moraes – ao qual eu pelo menos não conhecia – dizendo que o amigo era alguém acima da média.

Chico em um dos depoimentos do filme.
O recorte do documentário é muito bem pensado, pois delimita tanto a quantidade de entrevistados quanto a função narrativa dos mesmos. E olha que teria muita gente interessante para falar sobre Chico! A única parente a depor, por exemplo, é a irmã Miúcha. E chega por aí. Nada de filhos, sobrinhos, genros, outros irmãos. No máximo, os netos, que aparecem tocando com ele sem entrevistas. Afinal, o contexto familiar e a importância da hereditariedade já estão devidamente representados e inseridos. De Marieta Severo – provavelmente convidada e que teve a sensibilidade de não expor a ela e nem ao ex-marido, mas que autorizou que lhe referissem – os próprios registros documentais a trazem naturalmente, seja no encontro com Chico, nos anos 60 (contado pelo saudoso Hugo Carvana), seja nos vídeos e fotos antigos. Ela também é indiretamente mencionada quando Chico fala com franqueza e descomplicarão sobre a solidão dos tempos atuais, embora revele que jamais pensara viver sozinho (“Saí de um casamento de anos achando que virando a esquina ia me casar de novo”, confessa).

Os assuntos, entremeados entre si mas recorrentemente redirecionados à questão da família, são profundos, mas conduzidos pela serenidade de Chico. Ele passa a impressão de literalmente não dever nada a ninguém. Ou melhor, deve, mas a si mesmo, uma vez que o próprio diz que sempre cai na encruzilhada de não se repetir, por mais consagrado que seja aquilo que realizou até então. O negócio dele é se experimentar, aprender, inovar-se – um dos motivos pelos quais caiu tão de cabeça na literatura dos anos 90 para cá. Entra-se, igualmente, em assuntos como política, censura, fracasso, sucesso, memória, Brasil, morte, futebol e paixões. Tudo dito por ele e seus parceiros (Edu LoboTom JobimMaria BethâniaRuy Guerra, entre outros) com leveza e sinceridade, sem superdimensionar nada, porém sabendo-se da grandeza da vida e obra do autor de incontáveis clássicos do cancioneiro brasileiro como “Olhos nos Olhos”, “Cálice” e “Roda Viva”.

Outro elemento interessante do filme, característico dos documentários de Faria Jr., são as apresentações em estúdio com músicas do autor. Além de muito bem cenografadas e iluminadas, trazem duas com o próprio Chico cantando (“Sinhá”, no começo, e “Paratodos”, no fim) e outras com artistas convidados, como Milton Nascimento, Carminho, Adriana Calcanhoto e Mart’nália. Esses momentos musicais, que provocam obrigatoriamente pausas no fluxo narrativo, não o quebram, entretanto. O que para muitos foi danoso no documentário que o diretor fizera sobre o poetinha (“Vinicius”, 2005), pois incorria justamente nessa instabilidade (quando o expectador estava engrenando na história, vinha uma declamação duvidosa da Camila Morgado pra chatear), em “Chico...” funciona bem, pois os números se integram de algum modo à narrativa. É o que acontece quando Chico está falando sobre a complexidade inconsciente de alguns temas que compôs e, na sequência, vem, na voz de Mônica Salmaso, “Mar e Lua”, canção que explora temas espinhosos como homossexualismo e suicídio. Afora isso, todas as apresentações são muito boas: Milton e a portuguesa Carminho juntos (um arraso em “Sobre todas as coisas”); Calcanhoto e Mart’nália, em um dueto ótimo (“Biscate”); Ney Matogrosso (“As vitrines”), impecável como de costume; Moyseis Marques (“Mambembe”), lindo, uma revelação para mim; e até o “pagodeiro” Péricles (“Estação Derradeira”) mandando bem sobre o especial arranjo do diretor musical do filme e do próprio Chico, Luiz Cláudio Ramos.

Até Péricles se saiu bem interpretando Chico.
Porém, o que realmente conduz todo o filme – sem que o expectador perceba isso de início – é a busca pela essência a que Chico se impõe. Tendo como mote seu último romance, "O Irmão Alemão", no qual ele como protagonista vai à procura das pistas de um filho que seu pai tivera na Alemanha nos anos 30 antes de voltar ao Brasil e se casar com sua mãe, Chico se mostra, chegado à terceira idade, com a consciência daquilo que lhe pertence como indivíduo. Nisso, claro, ao longo do filme, vão se acessando questões da sua hereditariedade e, principalmente, as que se referem a seu pai, como a convivência, a distância emocional e a influência (positiva e negativa) que este exercera sobre ele como pessoa e artista.

A caça a essa “nova velha” história do irmão da Europa, uma reconstrução tão hipotética quanto passivelmente improvável (haja vista que, jogado na aventura da descoberta, poderia não achar nada significativo que lhe fornecesse nexo suficiente), dá um toque muito especial ao longa. Tal como é comum mais na ficção, Faria Jr. (um bom ficcionista) joga com os três níveis básicos do cinema: interno, externo e espectatorial, uma vez que esse elemento, a figura/ideia do irmão (o qual podemos classificar como “interno”) é desconhecido tanto do “protagonista” (Chico, no caso), quanto do espectador, configurando-se num “gancho” gerador de curiosidade e suspense a todos, dentro e fora da tela. Como o grande documentarista Eduardo Coutinho tão bem fizera no clássico “Cabra Marcado para Morrer” (1984), em que a busca aos atores de seu filme interrompido nos anos de Ditadura Militar serve de motivo para uma ressignificação metalinguística cuja aleatoriedade imputa-lhe o teor crítico almejado.

Saborosamente biográfico, “Chico...” já seria bom por vários outros fatores – as canções, as histórias engraçadas, a reverência dos colegas e amigos, as identificações que se têm com alguém tão admirável como ele –, mas o “elemento-irmão” é a cereja do bolo. Mal comparando, traz uma sensação semelhante a que tive com o desfecho que Martin Scorsese forjou em “No Direction Home”, sobre Bob Dylan (2005), naquela cena em que se esquece a câmera ligada apontando para o teto no fatídico show no Manchester Free Trade Hall, em 1966. Qualquer ser minimamente normal excluiria aquilo como sendo um erro de gravação. Scorsese, não: com atenção e sensibilidade, resgatou-a e compôs com aquilo o significado mais expressivo e simbólico do filme.

Em respeito aos que ainda não assistiram a “Chico...”, claro, não vou contar exatamente a que me refiro para não estragar a surpresa. Independente disso, contudo, só o fato de contar a história de alguém vivo e em atividade, tanto quanto o de expô-la com sensibilidade e critério, já vale a sessão. O que se confirma é a coerência da obra de Chico, sempre afinada com seu íntimo e consciência, seja na música, no teatro, no cinema ou na literatura. Uma dignidade admirável jamais abalável por um mero ataque verbal nas calçadas da vida. Chico Buarque, o grande artista brasileiro e mundial, é muito maior que essas más-resoluções do brasileiro ignorante e “vira-lata”, o que, sem precisar forçar, o filme deixa muito claro.


trailer oficial "Chico: Um Artista Brasileiro"



segunda-feira, 2 de março de 2015

20 filmes para entender o cinema brasileiro dos anos 80




Enfim, chegamos à terceira e última listagem de filmes brasileiros essenciais para se entender o nosso cinema no final do século XX, terminando com a safra dos 80. Mais do que para com os anos 60 e 70, a década de 80 foi a que mais tive dificuldade de escolher entre tantos títulos que considero fundamentais. Talvez pelo fato de, dos anos 60, embrionários e revolucionários, haver mais clareza quanto ao que hoje é tido como essencial, bem como pela até injusta comparação com os sofridos e minguados anos 70. O fato é que a produção dos 80 vem justificar, justamente, o decréscimo quali e quantitativo da sua década anterior. Tanto é verdade que, com os reflexos visíveis da Abertura Política e já se enxergando a tão sonhada democracia não apenas como uma miragem, os cineastas brasileiros – mesmo com a menos rígida mas ainda existente censura – passam a ter uma até então inédita estrutura através de verba do próprio Governo via Embrafilme.
Foi aí, então, que os cineastas daqui mostraram o quanto são, de fato, brasileiros. Se já haviam conseguido, nos 60 e 70, realizações memoráveis sem uma Atlântida ou Vera Cruz por trás, quando tiveram um tantinho mais fizeram “chover pra cima”. Desfalcados a maior parte da década da tempestuosidade de ideias de Glauber Rocha, falecido em 81, além de Leon Hirszman e Joaquim Pedro de Andrade, também vitimados cedo, outros cabeças do cinema nacional avançaram em temática, nível técnico, concepção e apelo com o público. Ironicamente, entretanto, se os 80 justificaram a baixa dos 70, também herdaram o inevitável: justo na década que talvez melhor se tenha produzido para as massas até então, recaiu-lhes a pecha de cinema malfeito e sem qualidade, motivado, principalmente, pela herança das famigeradas pornochanchadas, naturalmente desvalorizadas com o declínio do discurso do Governo Militar – estigma do qual o cinema nacional tenta se livrar até hoje.
Para além das comparações, a diversidade do cinema nacional dos 80 é grande. As abordagens vão desde cinebiografias (pouco vistas até então), felizes adaptações do teatro para as telas (finalmente!), avanço do documentário, início da descentralização da produção eixo Rio-São Paulo e, principalmente, uma maior liberdade de expressão. Sem o fantasma constante das torturas e perseguições, as histórias tocavam agora direto nas feridas da ditadura. “Nos nervos, nos fios”. Ainda deu tempo, inclusive, de tanto Glauber quanto Leon produzirem as talvez obras-primas de ambos. Diretores surgiam; uns, despontavam; outros, afirmavam-se. Nesse contexto, sobraram títulos que, por restringirmos a 20, não puderam entrar na lista, mas que merecem menção: “Barrela”, “Cidade Oculta”, “A Dama do Cine Shangai”, “Quilombo”, “Um Trem Pras Estrelas”, “Gabriela”, “Índia, a Filha do Sol”, “O Romance da Empregada”, “Inocência”, sem falar nas produções televisivas de Walter Avancini. Mas, com esses 20 não tem erro: só filmaços.



1 - “A Idade da Terra”, Glauber Rocha (80) – Poesia total. O último e criticado filme de Glauber, fábula sobre as possíveis vidas e mortes de Cristo num Brasil moderno, pode ser visto até como uma metáfora visionária da morte do cineasta, que, entristecido com o Brasil e com a recepção a seu filme, sucumbiu um ano depois de lançá-lo. Esqueça os detratores: “A Idade...” é grande, potente, cáustico, catártico, altamente filosófico. Um dia será devidamente reconhecido.





2 - “Os 7 Gatinhos”, Neville D’Almeida (80) – Neville é daqueles cineastas da “elite intelectual carioca” que só fala besteira e produz coisas intragáveis e ininteligíveis, mas esse é um acerto inconteste. Baseado em Nelson Rodrigues, tem o dedo do próprio no roteiro e, além de trilha com músicas de Roberto e Erasmo, é uma tragicomédia crítica e consistente à hipocrisia e depravação da sociedade brasileira. Interpretações (Thelma Reston, Melhor Coadjuvante em Gramado) e cenas inesquecíveis como a dos “caralhinhos voadores” e “me chama de contínuo” estão neste longa referencial.




3 - “O Beijo no Asfalto”, Bruno Barreto (80) – Outra feliz adaptação de peça, outra feliz adaptação de Nelson Rodrigues. Essa, no entanto, deixando de lado a linguagem metafórica e fantástica de “Os 7 Gatinhos”, investe numa história contada com rigor e direção segura, apoiada pelas ótimas atuações de todos: Ney, Tarcisão, Daniel, Torloni, Lídia. Daqueles filmes que, se está passando na TV, não se fixe por 15 segundos, pois senão acabarás terminando de assisti-lo inevitavelmente.



4 - “Pixote, A Lei do Mais Fraco”, Hector Babenco (80) – Babenco chega à maturidade de seu cinema e faz o até hoje melhor trabalho de sua longa e regular filmografia. Com ar de documentário, toma forma de um drama realista e trágico, trazendo à tona mais uma mazela da sociedade brasileira: a desassitência político-social às crianças e a violência urbana. O pequeno Fernando, que, ao interpretar Pixote, faz bem dizer ele mesmo, nos emociona e nos entristece. Marília está num dos papeis mais espetaculares da história. Indicado ao Globo de Ouro e vencedor do New York Film Critics Circle Awards (além de Locarno e San Sebastian), é considerado dos filmes essenciais dos anos 80 no mundo.





5 - “Eles não Usam Black Tie”, Leon Hirszman (81) – Como um “Batalha de Argel” e “Alemanha Ano Zero”, é uma ficção que se mistura com a realidade, e neste caso, por vários fatores. Adaptação para o cinema da peça dos anos 50 de Gianfrancesco Guarnieri sobre uma greve e a repressão política decorrente, transpõe para a realidade da época do filme, de Abertura Política e ânsia pela democracia, retratando as greves no ABC Paulista. E ainda: tem o próprio Guarnieri como ator, que, segundo relatos, codirigiu o filme. Filme lindo, que remete a Eisenstein e Petri. Música original da peça de 58 de autoria de Adoniran Barbosa. Prêmio do Júri em Veneza.



6 -Sargento Getúlio”, Hermano Penna (81) – Pouco lembrado, mas talvez o melhor filme nacional da década. Adaptação do romance de João Ubaldo, dá ares de tragédia shakesperiana à história em plenos sertão e Ditadura Militar. Crítico, poético e altamente literário, sem deixar o aspecto fílmico de lado, haja vista a fotografia, cenografia e a arte primorosos. E o que dizer de Lima Duarte, Melhor Ator em Gramado, Havana e APCA? Ponha sua atuação entre as 20 maiores do cinema mundial sem pestanejar. Ainda levou Melhor Filme e Crítica em Gramado.






7 - “O Homem que Virou Suco”, João Batista de Andrade (81) – A forte atuação de José Dumond (Melhor ator em Gramado, Brasília e Huelva), mais uma vez espetacular como em “A Hora da Estrela” e “Morte e Vida Severina”, leva o filme conta a história do poeta popular, o nordestino Deraldo, quer tenta viver em São Paulo de sua arte mas é irresponsavelmente confundido com um assassino. Suas raízes e verdades, então, viram “suco” na grande cidade. Melhor Filme em Moscou e Nevers.




8 - “Bar Esperança, O Último que Fecha”, Hugo Carvana (82) – Poético e divertido, “Bar...” é o típico filme do novo Brasil que se construía com a Abertura, o que significava transformações irrefreáveis, como o avanço da modernidade e a morte da antiga boemia poética. Junto com a companhia Asdrúbal Trouxe o Trambone, lançou toda a geração de atores que viriam a desembocar na TV Pirata e afins e no cinema que se constituiu no Brasil na pós-retomada. Cenas memoráveis, atuações impecáveis, diálogos idem. Música-tema de Caetano com Gal Costa. Vários prêmios em Gramado. Uma joia.





9 - “Pra Frente, Brasil”, Roberto Faria (82) – Tijolaço na cara da ditadura, que, embora mais branda, ainda se mantinha no governo Figueiredo. Corajoso e sem dó, evidencia a desumanidade do regime militar ao contar a história de um homem confundido com um “subversivo” e que é dura e aleatoriamente torturado, fazendo um paralelo com o clima festivo da Copa de 70. Primeiramente proibido pela censura, depois de liberado arrebatou Gramado (Filme e Edição) e levou prêmio em Berlim, entre outras premiações e indicações.





10 - “Nunca Fomos Tão Felizes”, Murilo Salles (84) – O letreiro inicial diz tudo, quando o título do filme se constrói de forma a se entender “Tão Felizes Nunca Fomos”. Estocada forte na Ditadura, rodado no último ano do Governo Militar, conta a história de um filho de um misterioso militante político que é retirado de um colégio interno para viver temporariamente num moderno e entediante apartamento. Alto nível técnico. Arrebatou Brasília e prêmio da Crítica em Gramado.






11 - “Verdes Anos”, Carlos Gerbase e Giba Assis Brasil (84) – O cinema gaúcho, encabeçado pela galera da Casa de Cinema, começava nos 80 a mostrar suas qualidades: roteiros tratados literariamente, ares de cult movie europeu, técnicos competentes e sotaque diferente do “carioquês” ou “paulistês” que todos eram acostumados a ouvir no cinema nacional. Um sopro de criatividade que revolucionaria o audiovisual brasileiro a partir dos anos 90. Tema musical clássico de Nei Lisboa.






12 - ”Cabra Marcado para Morrer”, Eduardo Coutinho (84) – Mestre do documentário mundial, Coutinho não se entregava mesmo quando parecia impossível. “Cabra...”, um dos maiores filmes do gênero, é um documentário do documentário. Interrompido em 1964 pelo governo militar, narra a vida do líder camponês João Pedro Teixeira e teve suas filmagens retomadas 17 anos depois, introduzindo na narrativa os porquês da lacuna. Premiado na Alemanha, França, Cuba, Portugal e Brasil, onde conquistou Gramado e FestRio.




13 - “Memórias do Cárcere”, Nelson Pereira dos Santos (84) – Prova de que Nelson Pereira não tinha “perdido a mão” depois de erros e acertos nos anos 70, se debruça novamente sobre Graciliano Ramos, mas desta vez não como fizera com seu grande romance, “Vidas Secas”, mas sobre o próprio escritor quando de sua prisão pelo Governo Vargas. Um épico que ganhou prêmio da crítica em Cannes.





14 - “A Hora da Estrela”, Suzana Amaral (85) – Exemplo de como se fazer um filme pequeno, com baixo orçamento, mas de muito, muito esmero de roteiro (baseado no forte texto de Clarice Lispector) e cenografia. Cartaxo interpreta a inocente Macabéa, noutra atuação espetacular dos anos 80 no cinema mundial, que a fez ganhar Urso de Prata em Berlim, onde a diretora também ganhou prêmio da crítica. O filme ainda levou tudo no Festival de Brasília.






15 - “O Beijo da Mulher Aranha”, Hector Babenco (85) – Uma história improvável em uma produção brasileiro-americana ainda mais improvável de dar certo. Mas Babenco, talentoso e sensível, amarra tudo com maestria. De roteiro primoroso, é mais uma pungente crítica ao Governo Militar e que tem nas atuações dos estrangeiros John Hurt e Raul Julia e na dos brasileiros, Lewgoy, Sônia Braga e Milton Gonçalves sua base. Cannes e Oscar de Ator para Hurt, mas concorreu também a Filme, Direção e Roteiro na Academia e a Palma de Ouro.





16 - “O Homem da Capa Preta”, Sérgio Rezende (86) – Na sua longa filmografia, Rezende se especializou em rodar temas ligados à história do Brasil. Porém o seu maior acerto é justamente o primeiro com esta temática. Sobre o controverso político de Duque de Caxias, Tenório Cavalcanti (Wilker, incrível), é um exemplo a se seguir de cinebiografias, as quais hoje tanto se fazem mas que resvalam na superficialidade. Grande vencedor de Gramado.






17 - “O Grande Mentecapto”, Oswaldo Caldeira (86) – Das melhores comédias do cinema nacional, filme mineiro que, na linha de “Verdes Anos”, direcionou a produção a outros Estados que não Rio e SP, e que sedimentou a geração TV Pirata (Diogo Vilella, LF Guimarães, Regina Casé) numa história de Fernando Sabino ao mesmo tempo deliciosa, cômica, poética e aventuresca. Um dos finais de filme mais bonitos do cinema brasileiro. Trilha do Wagner Tiso marcante. Melhor Filme pelo júri em Gramado e concorreu em Cuba, Canadá e EUA.




18 - “Ópera do Malandro”, Ruy Guerra (86) – Ruy é o cara que sempre produziu com alto padrão de qualidade desde que surgiu, nos anos 60. Em “Ópera...”, coprodução da Embrafilme com a França, ele eleva ainda mais o nível. Numa adaptação da peça de Chico Buarque (por sua vez, baseada em Brecht e Gay), ele se vale do apoio do amigo e parceiro não só para os maravilhosos temas musicais como até para os diálogos. Tiro certeiro. Musical que não te cansa, pois integra tanto a cenografia às canções que todos os atores se saem bem cantando.






19 - “Ele, O Boto”, Walter Lima Jr, (87) – Lenda popular e realidade se misturam nessa fábula contada com muita poesia sobre a beleza do imaginário e da sexualidade feminino, tema que Lima Jr. recuperaria 10 anos depois em “A Ostra e o Vento”. Dos primeiros filmes brasileiros que me arrebataram. Nunca me esqueci da lindeza da fotografia das cenas noturnas, com a claridade (muito bem fotografada) da lua na praia. Outra ótima trilha de Tiso.






20 - “Faca de Dois Gumes”, Murilo Salles (89) – Terminando a década, Murilo acerta a mão em cheio de novo, desta vez adaptando Best-seller de Sabino. O resultado é um drama policial potente e não menos crítico no que se refere ao sistema. Atuações memoráveis de José Lewgoy, Pedro Vasconcelos e Paulo José, principalmente. Direção, Fotografia e prêmios técnicos em Gramado, além de Filme em Natal e Rio.




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Embora goste menos desses títulos ou até não goste de alguns, acho justo, por uma questão jornalística e histórica, ao menos citá-los, pois cada um tem seu grau de importância dentro do período dos anos 60, 70 e 80 que abordamos:
60: “Macunaíma” (Joaquim Pedro, 69); “Cara a Cara” (Bressane, 67); “A Falecida” (Leon, 65); “Porto das Caixas” (Saraceni, 62); “Bahia de Todos os Santos” (Triguerinho, 60); “A Grande Feira” (Pires, 61); “A Grande Cidade” (Cacá, 66)
70: “A Lira do Delírio” (Walter Lima. 78); “O Amuleto de Ogum” (Nelson Pereira, 74); “A Dama da Lotação” (Neville, 78); “Toda Nudez Será Castigada” (Jabor, 73); “Doramundo” (Tizuka, 78); “A Rainha Diaba” (Fontoura, 74)


80: “Eu te Amo” (Jabor, 80); “Eu Sei que Vou te Amar” (Jabor, 86); “Festa” (Giorgetti, 89); “A Marvada Carne” (Klotzel, 85); “Amor Estranho Amor” (Khouri, 82); “Das Tripas Coração” (Ana Carolina, 82); “Superoutro” (Navarro, 89); “Bonitinha, mas Ordinária” (Chediak, 81)