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quinta-feira, 24 de agosto de 2023

CLAQUETE ESPECIAL 15 ANOS DO CLYBLOG - Cinema Brasileiro: 110 anos, 110 filmes (parte 4)

 

Os clássicos absolutos chegaram, entre eles,
"O Beijo da Mulher Aranha", primeiro filme
brasileiro a vencer um Oscar
Demorou um pouco além do normal, mas voltamos com mais uma parte da nossa série especial “Cinema Brasileiro: 110 anos, 110 filmes”. E tem justificativa para esta demora. Isso porque reservamos este quarto e penúltimo recorte da lista para o mês de agosto, o de aniversário do Clyblog, uma vez que este Claquete Especial, iniciado em abril, é justamente em celebração dos 15 anos do blog.

Talvez somente esta justificativa não baste, entendemos. Então, já que vínhamos mês a mês postando uma nova listagem com 20 títulos cada, propositalmente falhamos em julho para que agora, no mês do aniversário, fizéssemos uma sequência não apenas de 20 filmes, mas de 40 de uma vez. E não se tratam de quaisquer quatro dezenas! Afinal, a seleção inteira é tão rica, que igualável em qualidade a qualquer cinematografia mundial. Mas, especialmente, porque estes novos compreendem as posições do 50º ao 11º. Ou seja: aqueles “top top” mesmo, quase chegando nos “finalmentes”.

Waltinho, um dos 6 com 2 filmes entre
os 40 melhores
E se o adensamento já vinha acontecendo fortemente, com a presença de grandes realizadores, títulos clássicos e premiados e escolas reconhecidas somadas às novas produções do furtivo século XXI, agora, então, esta confluência se faz ainda mais presente. Dá para se ter ideia pelos nomes de cineastas de primeira linha como Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, Walter Salles Jr., Luis Sergio Person, Hector Babenco e Eduardo Coutinho, que já deram as caras com obras anteriormente e, desta feita, emplacam dois filmes cada entre os selecionados, até então os mais bem colocados. Somam-se a eles os altamente competentes João Moreira Salles, Jorge Furtado e Bruno Barreto, também com dois entre os 40.

Pode-se dizer que, agora, é quando de fato entram os clássicos incontestes, aqueles “divisores de águas” do cinema nacional (e, por que não, mundial), como “Ganga Bruta”, de Humberto Mauro, "O Beijo da Mulher Aranha", de Babenco, “São Paulo S/A”, de Person, e “Tropa de Elite”, de José Padilha. Mas também pedem passagem “novos clássicos”, tal o perturbador documentário “Estamira” e o premiado “Bacurau”, de 2019, quarto mais recente entre os 110 atrás apenas de “Três Verões” (63º), “Marte Um” (79º) e “Marighella” (106º).

Elas, as cineastas mulheres, se ainda em desigualdade na contagem geral, marcam forte presença nesta fatia mais qualificada até aqui. Estão entre elas Kátia Lund, Daniela Thomas e Anna Muylaert, esta última, responsável por um dos filmes mais tocantes e críticos do cinema brasileiro, “Que Horas Ela Volta?”. Então, pegando carona na expressão, para quem estava nos perguntando "que horas eles voltariam?”: voltamos. E voltamos abalando com 40 filmes imperdíveis, que dignificam o cinema brasileiro e latino-americano. Pensa bem: apenas 10 títulos os separam do melhor cinema do Brasil. Isso diz muito.

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50. "Estamira”, Marcos Prado (2004)

Dentre as dezenas de documentários realizados na década 00, um merece especial destaque por sua força expressiva incomum: "Estamira". Certamente o que colabora para esta pungência do filme do até então apenas produtor Marcos Prado, sócio de José Padilha à época, é a abordagem sem filtro e nem concessões da personagem central, uma mulher catadora de lixo com sério desequilíbrio mental, capaz de extravasar o mais colérico impulso e a mais profunda sabedoria filosófica. A própria presença da câmera, aliás, é bastantemente honesta, visto que por vezes perturba Estamira. Obra bela e inquietante. Melhor doc do FestRio, Mostra de SP, Karlovy Vary e Marselha, além de prêmios em Belém, Miami e Nuremberg.




49. “Tropa de Elite”, de José Padilha (2007)
48. “Batismo de Sangue”, de Helvécio Ratón (2007)
47. “Terra Estrangeira”, Walter Salles Jr. e Daniela Thomas (1996) 
46. “O Dia em que Dorival Encarou a Guarda”, Jorge Furtado e José Pedro Goulart (1986)
45. “Amarelo Manga”, de Cláudio Assis (2002)



44. “Nunca Fomos Tão Felizes”, Murilo Salles (1984) 
43. “Edifício Master”, de Eduardo Coutinho (2002)
42. “O Homem da Capa Preta”, Sérgio Rezende (1986)
41. “O Beijo da Mulher Aranha”, Hector Babenco (1985)


40. 
“São Bernardo”, Leon Hirszman (1971) 

Adaptação do livro do Graciliano Ramos, que transporta para a tela não só a história, mas a secura das relações e a incomunicabilidade numa grande fazenda do início do século XX, escorada na desigualdade dos latifúndios. Não há diálogo: a vida é assim e pronto. Daqueles filmes impecáveis em narrativa e concepção. E Leon, comunista como era, não deixa de, num deslocamento temporal, dar seu recado quanto à reforma agrária. A trilha, vanguarda e folk, algo varèsiana e smetakiana, é de Caetano Veloso, que acompanha a secura da narrativa e cria uma "música" totalmente vocal em cima de melismas lamentosos e desconcertados. Recebeu vários prêmios em festivais, entre eles o de melhor ator para Othon Bastos no Festival de Gramado, o Prêmio Air France de melhor filme, diretor, ator e atriz (Isabel Ribeiro), além do Coruja de Ouro de melhor diretor e atriz coadjuvante (Vanda Lacerda). 



39. “Carandiru”, de Hector Babenco (2002)
38. “O Som do Redor”, Kleber Mendonça Filho (2012)
37. “Que Horas Ela Volta?”, Anna Muylaert (2015) 
36. “Notícias de uma Guerra Particular”, Kátia Lund e João Moreira Salles (1999)
35. “Ganga Bruta”, Humberto Mauro (1933)



34. “Lavoura Arcaica”, Luiz Fernando Carvalho (2001)
33. “Bar Esperança, O Último que Fecha”, Hugo Carvana (1982) 
32. “Couro de Gato”, Joaquim Pedro de Andrade (1962)
31. “Os Fuzis”, Ruy Guerra (1964)


30. “O Bandido da Luz Vermelha”, Rogério Sganzerla (1968) 

Se existe cinema marginal, esta classificação se deve a “O Bandido...”. Transgressor, louco, efervescente, non-sense, crítico, revolucionário. Adjetivos são pouco pra definir a obra inaugural de Sganzerla, que trilharia pela "marginalidade" até o final da coerente carreira. Um filme de manifesto, questionamento de ordem política, de uma estética diferente e bela (apesar do baixo orçamento) e a vontade de avacalhar com tudo. "Quando a gente não pode fazer nada, a gente avacalha e se esculhamba". Grande vencedor do Festival de Brasília de 1968. O filme que fez o “terceiro mundo explodir” de criatividade.


29. "Santiago", de João Moreira Salles (2007)
28. “Jogo de Cena”, Eduardo Coutinho (2007)
27. “O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro”, Glauber Rocha (1968)
26. “Noite Vazia”, Walter Hugo Khouri (1964)
25. “São Paulo S/A”, Luis Sérgio Person (1965) 



24. "Terra em Transe", Glauber Rocha (1967) 
23. "Sargento Getúlio”, Hermano Penna (1981) 
22. “O Caso dos Irmãos Naves”, Luis Sergio Person (1967) 
21. “Memórias do Cárcere”, Nelson Pereira dos Santos (1984) 

20. 
 “Ilha das Flores”, Jorge Furtado (1989)

É incontestável a importância de "Ilha das Flores" para a cinematografia gaúcha e nacional. O filme que, em plenos anos 80 ainda de fim do período de Ditadura, expôs ao mundo uma realidade muito pouco enxergada, o fez de forma absolutamente criativa e impactante. Ao acompanhar o percurso de um mero tomate da horta até o lixão a céu aberto onde vive uma fatia da população em total miséria e descaso social, Furtado virou de cabeça para baixo a narrativa do audiovisual brasileiro, influenciado diretamente as produções de TV dos anos 80 e 90 e o cinema pós-retomada nos anos 2000. Urso de Prata para curta-metragem no 40° Festival de Berlim, Prêmio Especial do Júri e Melhor Filme do Júri Popular no 3° Festival de Clermont-Ferrand, França, entre outras premiações na Alemanha, Estados Unidos e Brasil. Um clássico ainda hoje perturbador.



19. “O Beijo no Asfalto”, Bruno Barreto (1980) 
18. “Central do Brasil”, de Walter Salles Jr. (1998) 
17. “Dnª Flor e seus Dois Maridos”, Bruno Barreto (1976)
16. “Garrincha, A Alegria do Povo”, Joaquim Pedro de Andrade (1962)
15. “Barravento”, Glauber Rocha (1962)


14. “Rio 40 Graus”, Nelson Pereira dos Santos (1955)
13. “Bacurau”, Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles (2019)
12. “Assalto ao Trem Pagador”, Roberto Faria (1962) 
11. “Bye Bye Brasil”, Cacá Diegues (1979) 



Daniel Rodrigues


segunda-feira, 1 de março de 2021

20 filmes para entender o cinema brasileiro dos anos 2000

 

Enfim, a bonança. Depois de gramar por décadas entre crises e bons momentos, com as políticas pró-cultura do Governo FHC bem continuadas pelo de Lula, o cinema brasileiro finalmente vive, nos anos 2000, sua década de maior valorização e intensidade produtiva. E com isso, principalmente, a liberdade criativa limitada ora politicamente, como no período da ditadura, ou pela míngua, quando pagou os pecados na Era Collor, explode em riqueza. Não necessariamente de dinheiro – afinal, está se falando de um país recém-saído da pecha de Terceiro Mundo e recém combatendo um mal chamado “fome”. Mas, com certeza, riqueza de criatividade e diversidade. 

Como todo momento histórico, porém, existe um marco. Símbolo da nova fase do cinema brasileiro, os anos 2000 viram um fenômeno chamado “Cidade de Deus” promover uma guinada na produção nacional a ponto de estabelecer um novo padrão estético e ser capaz de reintegrá-la ao circuito internacional, seja na ficção ou no documentário. O Brasil chegava ao Oscar - e não de Filme Estrangeiro, mas na categoria principal. Junto a isso, novos realizadores, polos e produtoras pediam passagem junto a velhos cineastas, que se adaptavam à nova fase. Enfim, depois de agonizar, o cinema brasileiro, como a fênix, revive e prova que é um dos mais criativos e belos do mundo.

Dada a quantidade amazônica de boas realizações, provenientes desde o Sul até o Norte, certamente esta é a década mais difícil de se selecionar apenas 20 títulos. Ou seja: fica muita coisa boa de fora. Talvez não tão importantes quanto os revolucionários filmes dos anos 60, como “Terra em Transe” e “O Bandido da Luz Vermelha”, ou das produções maduras dos 70 e 80, tais como “Bye Bye, Brasil” ou “Nunca Fomos tão Felizes” – ou até das resistentes e brilhantes noventintasCentral do Brasil” ou “Dois Córregos” –, as duas dúzias de obras geradas na abundante primeira década do século XXI são a representação de um país em que as políticas públicas e o incentivo à cultura deram certo, definindo um novo modus operandi na produção audiovisual brasileira. Pode-se, enfim, passar a dizer expressão com segurança: “cinema da retomada”.




01 - “O Invasor”, de Beto Brant (2001) - Para começar de vez a década, nada melhor que um filme marcante. O terceiro longa de Brant avança na sua estética orgânica e tramas que dialogam com a literatura (roteiro do próprio autor Marçal Aquino) para contar a história de três amigos sócios em uma empresa, que entram em crise entre si. Para resolver uma “questão”, contratam o matador Anísio (Paulo Miklos, impecável), mas acabam por comprar uma maior ainda. Não deu outra: abocanhou vários prêmios, entre estes Melhor Filme Latinoamericano em Sundance, Melhor Filme no Festival de Recife e vários em Brasília, entre eles direção, trilha sonora, prêmio da crítica e ator revelação para Miklos. 



02 - “O Xangô de Baker Street”, de Miguel Faria Jr. (01) - Sabe o caminho para as coproduções reaberto por Carla Camuratti e os Barreto na década anterior? Resultou, entre outras obras, no divertido e brilhante “O Xangô...”, baseado no best-seller de Jô Soares. A invencionice de contextualizar um thriller de Sherlock Holmes em plena Rio de Janeiro do final do século XIX dá muito certo na adaptação de Faria Jr., que equilibra muito bem atores estrangeiros (Joaquim de Almeida, Anthony O'Donnell, Maria de Medeiros) com craques brasileiros (Marco Nanini, Cláudio Marzo, Cláudia Abreu e o próprio Jô, que faz uma ponta). Produção de um nível como raras vezes se viu no cinema brasileiro até então. Vencedor de alguns prêmios no Brasil e no exterior, com destaque para a direção de arte de Marcos Flaksman e figurino da dupla Marilia Carneiro e Karla Monteiro. 



03 - “Lavoura Arcaica”, de Luiz Fernando Carvalho (01) - LF Carvalho, principal responsável por levar o cinema de arte para a TV brasileira ainda nos anos 90, quando produziu séries e especiais para a Globo em que rompia com os preguiçosos padrões do audiovisual tupiniquim, pôs pela primeira vez sua estética arrojada e fortemente sensorial nas telonas com “Lavoura”. E o fez já desafiando-se ao adaptar o barroco e difícil texto de Raduan Nassar, feito que realizou com brilhantismo. Exemplo em aulas de cinema, principalmente pela fotografia (Walter Carvalho) e montagem (do próprio diretor). Interpretações igualmente marcantes, como a do protagonista Selton Mello, de Simone Spoladore e do craque Raúl Cortez. Mais de 50 prêmios internacionais e nacionais e elogios rasgados da Cahiers du Cinéma. Usar-lhe o termo “obra-prima” não é exagero.



04 - “Bufo & Spallanzani”, de Flávio Tambellini (01) - Filme policial com há muito não se via no cinema brasileiro. Aqui, ainda com a ajudinha do próprio autor da história, Rubem Fonseca, com a mão hábil de Patricia Melo. Várias qualidades a destacar, como as atuações de José Mayer, Tony Ramos e Maitê Proença. Mas o toque noir moderno muito bem conduzido por Tambellini – estreante na direção de longa, mas já um importante produtor, responsável por filmes-chave do cinema nacional como “Ele, O Boto” e “Terra Estrangeira” – e captado na fotografia de Bruno Silveira também se sobressai. Ainda, revelou o ex-Legião Urbana Dado Villa-Lobos como um exímio compositor de trilha sonora, dando a medida certa para a atmosfera de submundo urbano da trama. Prêmios em Gramado e no Festival de Cinema Brasileiro de Miami.




05 - “Madame Satã”, de Karim Ainouz (02) - Como década importante que foi, alguns filmes dos anos 00 concentraram mais de um aspecto emblemático para essa caminhada do cinema brasileiro. O primeiro longa de Ainouz é um caso. Além de trazer à cena o talentoso cineasta cearense, revelou um jovem ator baiano que conquistaria o Brasil todo no cinema, TV e teatro: Lázaro Ramos. Mas não só isso: resgata a eterna Macabea Marcélia Cartaxo, revela também Flávio Bauraqui e ainda abre caminho para as cinebiografias de personagens negros importantes, mas por muito tempo esquecidos pelo Brasil racista, como o precursor do transformismo e da exuberância do Carnaval carioca João Francisco dos Santos. Festivais de Chicago, Havana, Buenos Aires e claro, Brasil, renderam-lhe diversos prêmios  entre Filme, Diretor, Ator, Atriz, Arte, Maquiagem e outros.


06 - “Carandiru”, de Hector Babenco (02) - Há o emblemático “Pixote”, o premiado “O Beijo da Mulher-Aranha” e o apaixonante “Ironweed”, mas não é nenhum absurdo afirmar que a obra-prima de Babenco é este longa, magnificamente adaptado do Best-seller do médico Dráuzio Varella. Trama coral, como raramente se vê no cinema brasileiro, amarra diversas histórias com talento e sensibilidade de alguém realmente imbuído de um discurso humanista e antissistema como o do cineasta. Revelou Wagner Moura, Ailton Graça e Caio Blat, reafirmou Lázaro e Rodrigo Santoro, reverenciou Milton Gonçalves. Fotografia de Walter Carvalho mais uma vez esplêndida e trilha de André Abujamra, idem. Mas o que impressiona – e impacta – é o tratamento dado ao texto e a edição cirúrgica de Mauro Alice. Indicado em Cannes e Mar del Plata, venceu Havana, Grande Prêmio Cinema Brasil, Cartagena e outros.




07 - “Cidade de Deus”, de Fernando Meirelles e Kátia Lund (02) - Talvez apenas “Ganga Bruta”, “Rio 40 Graus”, “Terra em Transe” e “Dona Flor e Seus Dois Maridos” se equiparem em importância a “Cidade...” para o cinema nacional. Determinador de um “antes” e um “depois” na produção audiovisual não apenas brasileira, mas daquela produzida fora dos grandes estúdios sem ser relegada à margem. Pode-se afirmar que influenciou de Hollywood a Bollywood, ajudando a provocar uma mudança irreversível nos conceitos da indústria cinematográfica mundial. Ou se acha que "Quem quer Ser um Milionário?" existiria para o resto do mundo sem antes ter existido "Cidade..."? O cineasta, bem como alguns atores e técnicos, ganharam escala internacional a partir de então. Tudo isso, contudo, não foi com bravata, mas por conta de um filme extraordinário. Autoral e pop, “Cidade...” é revolucionário em estética, narrativa, abordagem e técnicas. Entre seus feitos, concorreu ao Oscar não como Filme Estrangeiro, mas nas cabeças: como Filme e Diretor (outra porta que abriu). Ao estilo Zé Pequeno, agora pode-se dizer: "Hollywood um caralho! Meu nome agora é cinema brasileiro, porra!".



08 - “Amarelo Manga”, de Cláudio Assis (02) - Quando Lírio Ferreira e Paulo Caldas rodaram “Baile Perfumado”, em 1996, já era o prenúncio de uma geração pernambucana que elevaria o nível de todo o cinema brasileiro poucos anos depois. O principal nome desta turma é Cláudio Assis. Dono de uma estética altamente própria e apurada, ele expõe como somente um recifense poético e realista poderia as belezas e as feiuras da sua cidade – nem que para isso tenha que extrair beleza da feiura. Texto e atuações impactantes, que dialogam com o teatro moderno e a escola realista. Injusto destacar alguma atuação, mas podem-se falar pelo menos de Jonas Bloch, Matheus Nachtergaele e Leona Cavalli. Presente nos 100 melhores filmes brasileiros de todos os tempos da Abraccine, ainda levou Brasília, CineCeará, Toulouse e o Fórum de Cinema Novo do Festival de Berlim. Mas os pernambucanos estavam apenas começando...



09 - “Edifício Master”, de Eduardo Coutinho (02) - A retomada do cinema brasileiro trouxe consigo velhos militantes, como Babenco e Cacá Diegues, mas fez um bem especial ao maior documentarista do mundo: Eduardo Coutinho. O autor do melhor documentário brasileiro de todos os tempos, “Cabra Marcado para Morrer”, engrena uma série de realizações essenciais para o gênero, que se redescobre pujante e capaz num Brasil plural após uma década de redemocratização. Coutinho inicia sua trajetória no então novo século com esta obra-prima, pautada como sempre por seu olhar investigativo e sensível, que dá espaço para o “filmado” sem impor-lhe uma pré-concepção. Afinal, para que, já que o próprio ato de filmar exprime esse posicionamento? Melhor doc em Gramado, Havana, Margarida de Prata, APCA e Mostra de SP.


10 - “O Homem que Copiava”, de Jorge Furtado (03) - Já era de se esperar que o exímio roteirista e diretor gaúcho, que ajudou a dar novos padrões ao cinema de curtas e à televisão brasileira nos anos 90, chegasse inteiro quando rodasse seu primeiro longa. Não deu outra. Sucesso de bilheteria e crítica, com uma trama cativante, “O Homem...” resumo muito do que Furtado já evidenciava no cinema do Rio Grande do Sul (roteiro ágil e fora do óbvio, referências à cinema e literatura, universo pop, trato na direção de atores, cuidado na trilha) e adiciona a isso uma “brasilidade” que espantou – claro! – os próprios gaúchos, com o baiano e negro Lázaro Ramos protagonizando uma história na embranquecida Porto Alegre. Grande Prêmio Cinema Brasil, Havana, Montevidéu, APCA e outros. 



11 - “Estamira”, de Marcos Prado (04) - Dentre as dezenas de documentários realizados na década 00, um merece especial destaque por sua força expressiva incomum: "Estamira". Certamente o que colabora para esta pungência do filme do até então apenas produtor Marcos Prado, sócio de José Padilha à época, é a abordagem sem filtro e nem concessões da personagem central, uma mulher catadora de lixo com sério desequilíbrio mental, capaz de extravasar o mais colérico impulso e a mais profunda sabedoria filosófica. A própria presença da câmera, aliás, é bastantemente honesta, visto que por vezes perturba Estamira. Obra bela e inquietante. Melhor doc do FestRio, Mostra de SP, Karlovy Vary e Marselha, além de prêmios em Belém, Miami e Nuremberg.


12 - “Tropa de Elite”, de José Padilha (07) - Já considerado um clássico, “Tropa” divide opiniões: é idolatrado e também taxado de fascista. O fato é que este é daqueles filmes que, se estiver passando na tela da TV, é melhor resistir aos 10 segundos de atenção, por que se não inevitavelmente se irá assisti-lo até o fim esteja no ponto em que estiver. O filme de Padilha une o cinema com assinatura e um apelo pop, o que rendeu ao longa mais de 14 milhões de espectadores e um dos personagens mais emblemáticos do nosso cinema, capitão Nascimento - encarnado por um brilhante Wagner -, comparável a Zé Pequeno de “Cidade”, Zé do Burro de “O Pagador de Promessas” e Getúlio de “Sargento Getúlio”. Consolidando o melhor momento do cinema nacional, a exemplo de “Central do Brasil” 10 anos antes, “Tropa” fatura Berlim.



13 - "Santiago",
de João Moreira Salles (07) - O atuante empresário e banqueiro João Moreira Salles, desde muito envolvido com cinema como o irmão Waltinho, já havia realizado aquele que poderia ser considerada a sua obra essencial, "Notícias de uma Guerra Particular", de 1999. Porém, foi quando ele voltou sua câmera para si próprio que acertou em cheio. Diz-se um olhar interior, porém, quebrando-se a "quarta parede" de forma incomum e subjetiva, uma vez que o personagem principal não é ele mesmo, mas o homem que dá título ao filme: o culto e enigmático mordomo espanhol da abastada família Salles, que cuidara dele e de seus irmãs na idílica infância. Misto de memória, confissão, resgate sentimental, registro antropológico e, claro, cinema em essência. A locução sóbria mas presente do irmão Fernando, a estética p&b, as referências ao cinema íntimo de Mizoguchi e as lembranças de um passado irrecuperável dão noção da força metalinguística que o filme carrega. 
Vários prêmios e presença nos 100 melhores filmes brasileiros de todos os tempos da Abracine.



14 - “Estômago”, de Marcos Jorge (07) - Aquela expressão "conquistar pelo estômago" talvez não se adapte muito bem a este peculiar filme que junta suspense, drama, comédia e certa dose de escatologia. A abordagem dada por Marcos Jorge ao criativo roteiro justifica o título ao pautar as relações e as atitudes pelo instintivo, pelo animalesco. Assim, comida, sexo, sangue e poder se confundem, reelaborando a ideia de quem conquista quem. Por falar em conquista, aliás, o cineasta estreou emplacando o filme brasileiro mais premiado no Brasil e no exterior em 2008-2009, vencedor de 39 prêmios, sendo 16 internacionais.


15 - “Batismo de Sangue”, de Helvécio Ratón (07) - Um dos diversos ganhos do cinema brasileiro dos 00 foi a possibilidade de lançar um olhar renovado e compromissado sobre a história recente do País. Enquanto na esfera política se avançava com a criação da Comissão da Verdade, o cinema acompanhava este movimento politizador e brindava o público com obras dotadas de urgência, dentre estes muitos documentários, mas algumas ficções. O melhor resultado desta confluência é “Batismo”, fundamental filme sobre os frades dominicanos que se engajaram na guerrilha contra a ditadura militar nos anos 60 no Brasil, entre eles, Frei Betto, autor do livro que inspira o longa. Dialogando com os corajosos mas necessariamente limitados "Brasil: Um Relato da Tortura" e "Pra Frente, Brasil", exibe tal e qual as sessões de tortura promovidas nos anos de chumbo. Mas isso seria limitar a obra: com excelentes atuações, é tenso, tocante e dramático sem perder o ritmo nunca. Melhor Diretor e Foto pro craque Lauro Escorel em Brasília.



16 - “A Casa de Alice”, de Chico Teixeira (07) - Assistir um filme como “A Casa” num país cuja produção cinematográfica por muitos anos se valeu de um olhar machista sobre a condição da mulher como foram as pornochanchadas é perceber que, enfim, evoluiu-se. A abordagem sensível aos detalhes e as atuações realistas (mais uma vez, Fátima Toledo e seu método) dão ao filme de Chico ares de cult, mais um dos exemplos estudados nas cadeiras de faculdades de cinema. Filhos, marido, lar, trabalho, mãe... tudo se reconfigura quando os “móveis” da casa começam a se desacomodar: o desejo sexual, a maturidade, a autorrealização. Por que não? A historicamente inferiorizada mulher de classe média, no Brasil anos 00 emancipa-se. Carla Ribas excepcional no papel principal, premiada no FestRio, Mostra de SP, Miami e Guadalajara.



17 - “Ainda Orangotangos”, de Gustavo Spolidoro (2007) - O cinema gaúcho da primeira década do novo século não se resumiu à entrada da turma da Casa de Cinema ao círculo de longas nacional. Surgiam novos talentos imbuídos de ideias ainda menos tradicionais e renovadoras, como Gustavo Spolidoro. Em seu primeiro e marcante longa ele capta a intensidade e a veracidade de uma Porto Alegre ainda "longe demais das capitais", mas que, como toda metrópole, não para - literalmente. O filme, um exercício ousado de plano-sequência, tem até em seus “erros” técnicos qualidades que o alçam a cult, influenciando outros realizadores como Beto Brant e cenas independentes de cinema noutros estados brasileiros. Melhor Filme em Milão e em Lima, que deu Melhor Ator (Roberto Oliveira), e Prêmio Destaque do Júri em Tiradentes. Sabe os oscarizados "Birdman" e "1917". feitos em plano-sequência? Pois é: devem a "Ainda Orangotangos" mesmo que não saibam.




18 - “Meu Nome não É Johnny”, de Mauro Lima (08) - Outra joia do cinema nacional, filme que melhor aproveita o versátil Selton, total condutor da narrativa ao interpretar o junkie “curtidor”, mas profundamente depressivo João Estrella. A história real de sexo, drogas e rock n roll (e tráfico também) remonta um período de curtição lisérgica da juventude classe média carioca dos anos 80, ora aventura, ora comédia, como a própria história mostra, envereda para o drama. Tudo na medida certa. Filme de sequências impagáveis, como a briga na cadeia com os africanos e a entrega de cocaína na repartição pública. Além de Miami, ABC, ACIE e outros, levou pra casa uma mala cheia no Grande Prêmio do Cinema Brasileiro.



19 - “O Mistério do Samba”, de Carolina Jabor e Lula Buarque (08) - O gênero documentário algumas vezes veste-se de pompas antropológicas. Como a âncora Marisa Monte diz no disco que produziu da Velha Guarda da Portela 9 anos antes deste filme, registrar a obra desses nobres artistas do subúrbio é perpetuar uma parte da cultura popular quase em extinção. Parecia premeditar que, nos anos seguintes ao filme, morreriam sete integrantes do grupo, todos de adiantada idade e vida dura, semelhantemente com o que ocorrera com os membros da banda de outro doc parecido em natureza e grandeza: "Buena Vista Social Club" (Win Wenders, 99). Na hora certa, a dupla de diretores conseguiu por suas câmeras a serviço de uma história cheia de poesia e que conta-se por si. Memoráveis cenas dos pagodes na quadra da escola, algumas das mais emocionantes do cinema brasileiro. Seleção oficial de Cannes e Grande Prêmio Vivo em 2009.



20 - “Linha de Passe”,
de Walter Salles Jr. (08) - 
Waltinho é, definitivamente, dos principais nomes do cinema brasileiro moderno. Responsável por manter o então raro alto nível da produção cinematográfica do Brasil nos anos 90, emplacando o cult “Terra Estrangeira” e o primeiro Urso de Ouro em Berlim do País com “Central do Brasil”, nos anos 2000 ele já havia chegado ao máximo que um cineasta pode alcançar: sucesso em Hollywood. Porém, a vontade de contar histórias de nobres pessoas comuns o faz voltar à terra natal para realizar essa linda trama coral, tocante e reveladora, abordando algo por incrível que pareça não tão recorrente nos enredos justo do cinema brasileiro: o futebol. Não levou Palma de Ouro, mas foi aplaudido por nove minutos durante o Festival de Cannes, além de ganhar o de melhor atriz pela atuação de Sandra Corveloni. Parte dos méritos vai pra Fátima Toledo, que aplica seu método ao elenco com alta assertividade.




**********************

Como são muitos os marcantes filmes dos anos 2000, vão aí então, outros 20 títulos que merecem igual importância: 

"Babilônia 2000”, de Eduardo Coutinho (01); “Durval Discos”, de Anna Muylaert (02); “Querido Estranho”, de Ricardo Pinto e Silva (02); "Lisbela e o Prisioneiro”, de Guel Arraes (03); “De Passagem”, de Ricardo Elias (03); “O Homem do Ano”, de José Henrique Fonseca (03); “Narradores de Javé”, de Eliane Caffé (04); “Meu Tio Matou um Cara”, de Jorge Furtado (05); “2 Filhos de Francisco”, de Breno Teixeira (05); “Cinema, Aspirinas e Urubus”, de Marcelo Gomes (05);  “Cidade Baixa”, de Sérgio Machado (05); “O Fim e o Princípio”, de Coutinho  (05); “Árido Movie”, de Lírio Ferreira (06); “Depois Daquele Baile”, de Roberto Bontempo (06); “Baixio das Bestas”, de Cláudio Assis (06); “Zuzu Angel”, de Sérgio Rezende (06); “Jogo de Cena”, de Coutinho (07); “Ó Paí, Ó”, de Monique Gardenberg (07);  “Proibido Proibir”, de Jorge Durán (07);  “Antes que o Mundo Acabe”, de Ana Luiza Azevedo (09).

Daniel Rodrigues

segunda-feira, 30 de agosto de 2021

Jesus e o Diabo na Terra do Pop

 

Certos marcos temporais não se completam à toa. Em cinema, fenômeno com pouco mais de um século de existência e menos ainda de indústria, décadas contam muito em ternos de significado, ainda mais numa nação jovem como a brasileira. Por isso, diz muito o fato de, há 40 anos, o cinema brasileiro ter perdido Glauber Rocha, principal artífice do Cinema Novo e autor de obras essenciais para a formação do cinema nacional, entre os quais “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, de 1964. Primeiro grande marco do Cinema Novo, esta obra divisional é o produto mais pungente de uma rica leva da produção cinematográfica brasileira motivada por um contexto histórico-social e político implosivo nutrido por abissais contradições. Entre a modernidade nacionalista dos tempos pós-Vargas e a embrionária globalização, havia, em mesma proporção, o alarme pelo alto índice de desigualdade social e a forte tensão de forças políticas que resultaria no Golpe Civil-Militar daquele mesmo fatídico ano de lançamento de “Deus e o Diabo...”.

Incandescentes como o sol que assola a terra destas duas forças, a materialização destas motivações em aspectos fílmicos e narrativos dão à obra de Glauber, seguidamente considerada difícil e cerebral, uma representação estética possível de ser revisitada à luz de produções atuais do cinema nacional. A perspectiva pop que traz “Jesus Kid”, de Aly Muritiba, recentemente exibido – e premiado – no Festival de Cinema de Gramado, entreabre, quase 60 anos depois, portas escancaradas com fúria e poesia por Glauber e sua geração. O filme de Muritiba busca explorar artifícios pop já experimentados com êxito anteriormente, numa tentativa digna de estabelecer diálogo com um público aberto a esta abordagem e, principalmente, com condições de transmissão/replicação das propostas discursivas de “vanguarda” na sociedade, a fatia jovem-adulta dos chamados “formadores de opinião”.

Antes mesmo de rodar “Deus e o Diabo...”, Glauber, um iniciante cineasta e ativo crítico de cinema, exaltava em seu “Revisão Crítica do Cinema Brasileiro”, editado em 1963, o potencial “popular” do Cinema Novo. A ideia dos jovens realizadores do movimento era engendrar um cinema de autor que refletisse a alma de um povo, fosse econômica ou esteticamente. Para isso, vestiam suas obras de características ora muito próprias, mas também de natureza “pop” comuns na acepção mais abrangente do termo. A exemplo do que observava com entusiasmo no cinema de colegas como Paulo César Saraceni, Joaquim Pedro de Andrade e Nelson Pereira dos Santos, Glauber trazia para seu olhar elementos “pop” dentro de seu contexto cultural, histórico e social, como o cinemão norte-americano, a fragmentação sequencial dos quadrinhos a e correlação entre erudito e folclórico – visto, por exemplo, na trilha sonora de “Deus e o Diabo...” dotada de Villa-Lobos e dos cantos de violeiro de Sérgio Ricardo. Igualmente, estão-lhe presentes o cinema de Sergei Eisenstein, Humberto Mauro, John Ford, Luis Buñuel e Roberto Rosselini, todos, à exceção do primeiro, vivos e ativos à época. Elementos que faziam sentido num contexto de “popficação” nos anos 60. Glauber e seus correligionários entendiam que cabia aos autores do cinema uma visão formativa desta inserção de propostas cultas no tecido social. Transformar a alta cultura em hits deglutíveis.

filme "Deus e o Diabo na Terra do Sol", de Glauber Rocha


O uso de elementos “pop” no cinema brasileiro maturou-se ao longo das décadas juntamente com a produção audiovisual nacional. Porém, embora tenha ganho em experiência e até em condições econômicas, alguns ensinamentos parecem ter se dispersado. Em “Jesus Kid”, justamente por seus méritos técnicos, essa inconsistência fica bem evidente. De caprichadas fotografia e direção de arte, o filme de Muritiba se esvazia, por outro lado, naquilo que, certamente, mais almejou realizar, que é uma narrativa de apelo pop. Fugindo do padrão comum, mas também sem recair na proposta alternativa, este formato tenta criar um espaço simbólico que comporta ideias modernas capazes de gerar identificação com o público, sendo um destes recursos a alusão a produtos “do mercado”. Estética e formalmente, “Jesus Kid” apropria-se de referências diretas dos filmes “Barton Fink - Delírios de Hollywood”, de Joen e Ethan Coen (1991), “Cidade dos Sonhos”, de David Lynch (2002) e bastante de Quentin Tarantino, desde os westerns “Os Oito Odiados” (2015) e “Django Livre” (2013) ao episódio de “Grande Hotel” (1995).

Acontece que “Jesus Kid”, mesmo que tenha atingido sua assimilação junto a quem intenta dirigir-se, apresenta duas grandes travas que o impedem de alçar: uma estrutural e outra formal. A começar, o roteiro. Baseado num romance do celebrado escritor Lourenço Mutarelli, o que se verteu das páginas para a construção audiovisual parece ter se descompassado, haja vista, principalmente, o ritmo apressado dos acontecimentos e encadeamentos do filme. Saliente-se: ritmo frenético numa narrativa não pressupõe falta de respiros, visto que a psique do espectador comum – inclusive, o de simpatia ao dito “pop” – carece da tradicional alternância de estados psicológicos da dramaturgia clássica. Subverter isso é optar pelo caminho alternativo, o que está longe de ser-lhe a intenção. 

Enquadramento e tonalidades semelhantes de "Jesus Kid" com
"Barton Fink": referências diretas

Tanto Tarantino quanto os Coen, os cineastas cujas obras são as mais referidas em “Jesus Kid”, sabem bem disso, pois são conhecidos pelo apreço ao exercício de extensão-distensão da narrativa. O primeiro, com seus longos diálogos preparativos para clímaces; já os irmãos Coen, pelo consciente uso dos espaços vazios visual e narrativamente. Por que, então, pegar-lhes emprestado justo o mais superficial, a estética? Impossível não entender isso como um subterfúgio (pouco assertivo) de atração quase publicitária para a obra. A tarantinesca resolução do filme brasileiro, igualmente, não peca pelo tom satírico ou pela bizarrice – aceitáveis dentro da trama – mas pela falta de preparo a um momento tão importante para a história, visto que o espectador é colocado até ali constantemente num indistinto frenesi de imagens e ações.

Miklos: atuação que
enfraquece o filme
Este mesmo raciocínio pode ser aplicado ao outro aspecto analisável de “Jesus Kid”, que é ligado à sua forma: a escolha de Paulo Miklos como protagonista para o papel do escritor Eugênio. Não é difícil perceber que, já no primeiro diálogo, fica evidente o despreparo técnico deste para com os recursos cênicos, visto que recai sobre ele a responsabilidade de sustentar um papel cômico, trágico e cheio de nuanças, difícil até para um ator profissional. Resposta a qual Miklos, ator não-profissional, fatalmente não dá. Mesmo espirituoso e carismático, falta-lhe olhar, falta-lhe tempo de articulação, falta-lhe consciência de movimentos. Se a estratégia era se valer, como na publicidade e seus “garotos-propaganda”, da figura pop de um conhecido astro da música, havia de se avaliar que, como ator, este desempenhou bem no cinema apenas 20 anos atrás em “O Invasor”, de Beto Brant (1997), justo quando teve, conceitualmente, liberdade de uma atuação naturalista dentro da “marginalmente” que o papel exigia, o que supunha desvencilhar-se de balizamentos técnicos. Para “Jesus Kid”, no entanto, a opção por Miklos prejudica sobremaneira todo o andamento, visto que a história se centra no escritor ao qual ele interpreta. Não é difícil imaginar algum ator profissional assistindo o filme e lamentando pelo desperdício de um roteiro promissor.

Há de se entender, contudo, que a caminhada para um cinema de apelo “pop-cult” no Brasil, a exemplo do que outros polos mundiais produzem, principalmente os Estados Unidos, está em pleno curso. Desde que “Deus e o Diabo....” iluminou este caminho, títulos importantes para essa viragem como “O Bandido da Luz Vermelha” (Rogério Sganzerla, 1969), “A Rainha Diaba” (Antonio Carlos da Fontoura, 1974) e “Faca de Dois Gumes” (Murilo Salles, 1989) evoluíram em linguagem e aproximaram os conceitos “brutos” da vanguarda para a massa. Mais proximamente, o cinema pós-retomada dos últimos 30 anos captou bem este espírito a exemplo de “Cidade de Deus” (Fernando Meirelles e Katia Lund, 2002), a franquia “Tropa de Elite” (José Padilha, 2007 e 2010), “Fim de Festa” (Hilton Lacerda, 2019) e o talvez mais bem-sucedido de todos nesta linha: “Bacurau”, de Kleber Mendonça Filho (2019). Todos entenderam o que Glauber avaliava como essencial a uma obra de cinema que se pretende popular: cada um à sua medida, dosa discurso e poesia. Equilíbrio difícil, porém, o que talvez explique a inconstância de obras desta potência e natureza no Brasil. Linguagem em cinema também é continuidade da prática.

Se custou a Glauber e ao Cinema Novo o preço muitas vezes da incompreensão, é curioso perceber como o movimento serviu para emancipar o cinema nacional justamente no aspecto que teve menos êxito, que foi o de representar e dialogar com o público – ou o mais amplo possível deste. Como acontece em processo semelhante na música erudita para com a música pop, as bases lançadas pela primeira passam por tamanho burilo que, quando chegam aos ouvidos da massa, pouco se identifica de seus arrojados acordes geradores. A Glauber, especialmente, homem de poucas concessões e cujo cinema intensificou-se em complexidades alegóricas cada vez mais ao longo dos anos, ficou a pecha de alguém genial, mas de ínfima aceitação e entendimento popular. Independentemente disso, faz quatro décadas que Glauber Rocha deixou, dentre outros legados, as bases de um “cinema pop” para o Brasil sob uma perspectiva doméstica. É justo e genuíno, então, buscá-lo e aperfeiçoá-lo. Talvez, contudo, seja preciso ainda que bata muito sol sobre esta terra para que o diabo da inovação e o deus do gosto popular se harmonizem.

teaser de "Jesus Kid"



Daniel Rodrigues

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

"Sniper Americano", de Clint Eastwood (2015)


O novo herói de Clint Eastwood
por Paulo Moreira




  Clint Eastwood tem baseado sua carreira como realizador na busca e identificação do herói americano. Ou do anti-herói. Desde o começo de sua carreira, no seriado “Rawhide” ou nos gloriosos spaghetti-westerns de Sérgio Leone, Clint se interessa pela figura mítica que, em tempos idos, salvava o mundo de suas mazelas.
 Assim aconteceu com “Dirty Harry”, o vigilante que fazia a justiça pelas próprias mãos. Só que poucos notaram que Harry Callahan era um policial. Portanto, autorizado pela sociedade para fazê-lo. Seus cowboys – o pistoleiro sem nome de “High Plains Drifter” ou “Josey Wales, o fora -da-lei” - reforçavam este mito, destruído depois pelo próprio Clint em “O Cavaleiro Solitário” onde interpretava um pregador e, especialmente em “Os Imperdoáveis”, onde o personagem Will Munny era um pistoleiro aposentado. Mesmo nos filmes em que não protagoniza, como “Um Mundo Perfeito”, “Sobre Meninos e Lobos” e “Invictus”, a figura do herói aparece, mesmo que combalida. Por outro lado, em filmes como “Bird”, “A Conquista da Honra” e “J.Edgar”, o herói é falho, humano, cheio de defeitos, como o Walt Kowalski de “Gran Torino”, um ex-combatente de guerra que odeia seus vizinhos descendentes de coreanos, mas que passa a vê-los com outros olhos, diante de uma ameaça maior. Se antigamente Eastwood acreditava no poder do herói, a partir de um determinado momento, começa a analisar as causas desta mitologia ufanista reforçada em inúmeros filmes vindos de Hollywood.
Bradley Cooper como um herói de guerra
cheio de conflitos internos
   Seu filme mais recente, “Sniper Americano” segue esta trilha. Chris Kyle, interpretado com sensibilidade por Bradley Cooper, é um jovem americano fixado no mito do cowboy e do culto às armas, além de uma postura masculina, incentivada por seu pai. Aos 30 anos, depois de ver o ataque às Torres Gêmeas, Kyle se alista e se transforma num sniper, atirador de elite, que consegue o status de “ter matado mais de 160 pessoas” no Iraque. Através de flashbacks, o diretor procura explicar as motivações de um jovem americano em servir à pátria, mesmo que isso seja prejudicial à sua vida civil e, especialmente, seu casamento. Os dramas de consciência de Chris Kyle são muito bem colocados na primeira missão que vemos. Uma criança carrega uma granada em direção às tropas americanas e o sniper tem de decidir se mata ou não o jovem. Este conflito irá se repetir durante todo o filme, mesmo que Kyle sempre tenha consigo a certeza de servir a pátria. O interessante é que este é o mesmo Clint Eastwood que fez “O Destemido Senhor da Guerra”, onde usava a ficção para defender a invasão americana em Granada no ano de 1983. Apesar de seu passado republicano, o diretor parece ter enxergado além da visão maniqueísta de mocinhos e bandidos. Ele conduz com habilidade as cenas de combate, alternando-as com a vida cotidiana de Kyle com sua esposa (Sienna Miller) e seus filhos.
   Depois de um grande tempo para se readaptar à vida em sociedade, espantando seus fantasmas, Kyle chega ao final do filme aparentemente pronto para enfrentar o dia-a-dia. Uma análise mais simplista poderia dizer que “Sniper Americano” é um filme ufanista. Clint Eastwood usa todo seu arsenal narrativo – aprendido certamente com o seu mestre Don Siegel – e impede o discurso final. Aos 85 anos a serem completados em maio, podemos exagerar e dizer que Clint Eastwood chegou em sua maturidade criativa. Grande e poderoso filme.


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Consigo Mesmo Sob a Mira

por Daniel Rodrigues




Bradley muito bem no papel do sniper Chris Kyle
   Há anos acompanho direto nas salas de cinema cada estreia de Clint Eastwood, um mestre por trás das câmeras que, como ator, foi dirigido por grandes cineastas (Leone, Siegel, De Sica, Cimino) e aprendeu muito bem com eles. Meu acompanhamento tão de perto de sua obra não é à toa, pois, mesmo já dirigindo desde os anos 70, foi desde os 80 que Eastwood se estabeleceu como um dos maiores de sua arte no cinema atual. Não só pela capacidade de contar bem uma história, com classe e sensibilidade, mas por sua abordagem invariavelmente consciente e pessoal dos temas, muitas vezes revelando mazelas de sua própria sociedade, a dos Estados Unidos.
   Pois mais uma vez o velho Eastwood, no auge de seus 84 anos, toca em feridas mal curadas de seu povo. E que ferida. O ótimo “Sniper Americano”, produção concorrente ao Oscar de Melhor Filme e mais 5 estatuetas (ator, roteiro adaptado, edição, edição de som e mixagem de som), não apenas traz um assunto espinhoso como, para além disso, atinge o talvez mais maléfico problema dos norte-americanos para com o mundo e consigo mesmos: a cultura bélica e armamentícia. Adaptação do livro “American Sniper: The Autobiography of the Most Lethal Sniper in U.S. Militar History”, conta a história real de Chris Kyle (Bradley Cooper, muito bem no papel), um atirador de elite das forças especiais da marinha americana que, durante cerca de dez anos de operação militar no Iraque, matou mais de 150 pessoas, tendo recebido diversas condecorações por sua atuação. Um sucesso tão funesto como este não poderia, entretanto, ter saído impune na forma de ver de Eastwood. As marcas são perceptíveis quando o soldado retoma a “vida normal” ao retornar da guerra. Ele não sai do front, nem quando não está fisicamente nele. A objetividade cega, pueril e insensível de Chris o mutila psicologicamente tanto quanto seus ex-colegas que perderem partes do corpo físico. Ele é incapaz de amar a esposa, de sensibilizar-se e nem de se considerar a “Lenda” como o chamam: sua sina é apenas “defender seu território” a qualquer preço.
    Até aí, outros filmes também mostraram os traumas de guerra e as dificuldades sociais de ex-combatentes das várias que os EUA já se enfiaram, de “Sob o Domínio do Mal”, de 1962 (Coréia) e “Taxi Driver”, de 1976 (Vietnã), a “A Volta dos Bravos”, de 2006, (Iraque) para ficar em apenas três guerras e três títulos. Ocorre que, desta vez, é Eastwood quem volta suas lentes para o problema, e isso é de uma dimensão muito maior no atual cinema de Hollywood. Com um olhar sem hipocrisia – embora ele não esconda seu patriotismo –, Eastwood vai mais fundo no entendimento psicológico da questão. Não é só a guerra e seus problemas posteriores: o nascedouro é essencial de ser compreendido. Ao contar a biografia de Chris até chegar ao exército, o cineasta deixa claro o quanto está incutida nas raízes do norte-americano o mito às armas e ao combate. Caubói fracassado que atirava em animais desde criança para brincar de mira, o personagem se transforma (após assistir pela TV sobre um atentado terrorista à Embaixada dos EUA no Iraque e, principalmente, os ataques do 11 de Setembro), em um militar combativo e sedento por justiça. Suas fragilidades e frustrações são, assim, camufladas pelo uniforme e até ganham status de qualidade, uma vez que se transfiguram em capacidade de combater com competência e assertividade.
    Com este substrato, Eastwood nos dá uma aula de condução narrativa. Além das construções psicológicas precisas das personagens, os flashbacks da infância de Chris, quando ele aprende em casa com o pai a lei de Talião, e o presente, antes de ir para a guerra ou entre uma operação e outra, se indistinguem. Igualmente, as cenas que intercalam rapidamente entre a brutal preparação na SEAL e início de sua relação com a esposa até o casamento dão bem a ideia de que este pensamento bélico faz para do dia a dia. Mais que isso: de que nada é superior a tal. Se Chris é elevado a herói por seus feitos, como cidadão ele é totalmente deslocado, sem capacidade de interagir e viver com felicidade. A visão de Eastwood transparece até na fotografia, que muda apenas quando a história se passa no Oriente Médio. Nos Estados Unidos, seja passado ou presente, a luz, a coloração e a textura são as mesmas, pois tudo faz parte de um único nefasto e contínuo ideário selvagem ao mesmo tempo assassino e suicida.
    Por falar em fotografia, a do craque Tom Stern (de clássicos como “Beleza Americana” e “Cão Branco” e das parcerias com Eastwood em vários filmes como “Dirty Harry na Lista Negra”, “Bird” e “Os Imperdoáveis”),  é brilhante. Principalmente nas excelentes cenas de batalha, as quais não se restringem somente ao PV do ângulo privilegiado do atirador, mas também de campo, com travellings, câmera na mão e panorâmicas muito bem executadas. O conceito fotográfico lembra bastante o de outras referenciais realizações sobre o tema das guerras promovidas pelos EUA contra países islâmicos: “Guerra ao Terror” (Bigelow, 2008), também Iraque, e “O Grande Herói” (Berg, 2014), no Afeganistão. Ponto alto e de total diferenciação em “Sniper”, no entanto, é a sequência da tempestade de areia, justo no momento em que se travava um tiroteio entre a tropa americana e os soldados de Bin Laden. Nesta, Stern consegue um resultado interessantíssimo, pois totalmente inteligível para o espectador mesmo numa fotografia em que se desenham apenas vultos escurecidos sobre uma textura granulada marrom esverdeada.
    Tudo isso é mérito de Clint Eastwood, certo? Os norte-americanos não acham bem assim. Como se sabe, a Academia do Oscar acompanha em muito o sistema, haja vista as preferências, vícios e injustiças históricas que já se promoveram na premiação. Neste caso, “Sniper Americano” concorre e é dos favoritos, mas não aquele que o fez chegar a esse patamar. Estranho, né? Nem tanto, pois talvez Eastwood, com sua clareza e olhar sem concessões (como já fizera muito bem em “Gran Torino”, “Sobre Meninos e Lobos”, principalmente), talvez tenha ido um pouco longe na densa análise do ser do norte-americano. A característica do belicismo e do mito ao caubói está no cerne da sociedade, e expô-la de maneira tão real – ou seja, não escondendo que há consequências para este tipo de atitude – é vexatório na mentalidade auto-heroica e competitiva daquele país. Afinal, isso justifica uma série de atos e políticas que sustentam o poderia dos EUA.
    Além do mais, o “gelo” que a Academia dá a Eastwood, como já fizera com os igualmente opiniáticos e figurões Spielberg, Copolla e Scorsese, também é uma maneira de dizer: “Velho, nós te exaltamos e nos orgulhamos do teu talento, mas tu já ganhaste duas estatuetas (“Os Imperdoáveis” e “Menina de Ouro”, 1992 e 2004, respectivamente), então: baixa a bola”.
    Espero sinceramente que pelo menos o Melhor Filme venha para “Sniper Americano”, o mais hollywoodiano dos postulantes junto com “Selma” e “A Teoria de Tudo”. Embora não tenha visto todos, parece-me que "Birdman""Whiplash""O Grande Hotel Budapeste" e "Boyhood" (que tem o agravante de já ter levado o também yankee Globo de Ouro), os outros concorrentes nesta categoria distanciam-se mais do “cinemão”, o que dá vantagem ao filme de Eastwood.  Ainda mais considerando que, depois de uma fase de necessária renovação em que, no início dos anos 2000, a Academia premiou como Melhor Filme produções de linha alternativa, como “Crash” e "Quem Quer Ser Um Milionário?", a mesma voltou a um julgamento mais tradicional nos últimos anos. Tenho certeza de que, se ganhar, Eastwood subirá ao palco do Dolby Theatre, em Los Angeles, com aquele sorriso simpático e sábio no rosto de quem se sentirá indiretamente vencedor também como diretor.