Curta no Facebook

Mostrando postagens classificadas por data para a consulta Som Imaginário. Ordenar por relevância Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens classificadas por data para a consulta Som Imaginário. Ordenar por relevância Mostrar todas as postagens

sábado, 29 de dezembro de 2018

CLAQUETE ESPECIAL DE 10 ANOS DO CLYBLOG - "Tinta Bruta", de Filipe Matzembacher e Márcio Reolon (2018), por Cleiton Echeveste



"Tinta Bruta"
por Cleiton Echeveste


Mesmo tendo assistido a “Tinta Bruta” há vários dias, os personagens e a história do filme seguem comigo. E a sensação que eu tenho é de que eles vão continuar me acompanhando ainda por um bom tempo. Em meio aos lançamentos de final de ano nos cinemas (entre eles tantos blockbusters, filmes descerebrados com personalidades de mídia e filmes desconectados de quaisquer questões humanas, e ainda alguns poucos que visam algo mais do que a arrecadação da bilheteria ou os prêmios da temporada), provavelmente “Tinta Bruta” tenha passado despercebido pela grande maioria. Ainda assim, o prêmio Teddy no Festival de Berlim e a distribuição (limitada, porém valiosa) da Vitrine Petrobras, a partir do seu sucesso no Festival de Cinema do Rio, sinalizam que há olhares atentos e – ainda, felizmente – caminhos para a distribuição do cinema independente de qualidade feito no país.
Depois de “Beira-mar” (disponível no Netflix), este é o segundo longa de Filipe Matzembacher e Márcio Reolon, que também assinam o roteiro do filme. Pedro (Shico Menegat) é um jovem com escassos vínculos afetivos. Sua mãe já morreu. Do pai, não teve mais notícias. Sua única irmã está de mudança para outro estado e sua avó mora no interior. Abandonou a faculdade por questões relacionadas ao bullying do qual é vitima e que foram a causa do processo criminal ao qual responde. A internet representa pra ele uma espécie de refúgio, onde assume a identidade de GarotoNeon, em performances eróticas nas quais pinta seu corpo com tinta fosforescente. Assim como tantos jovens, Pedro recorre ao imaginário, através do mundo virtual, para tenta dar algum sentido à vida. O mundo real, em contraponto, é uma Porto Alegre fria, sombria e opressiva, representada por silhuetas nas janelas, olhares que espreitam e que são testemunhas/espectadores de uma realidade pela qual não se permitem afetar. Um mundo nem um pouco propício para encontros ou trocas afetivas. Essas imagens são o epítome da sociedade contemporânea do espetáculo, em um viés conservador e decadente.
Na minha relação com a arte, busco ser o menos analítico possível ao vivenciá-la, esteja eu no lugar de criação ou de fruição. A análise é fria e requer distanciamento, e foi exatamente o contrário disso que “Tinta Bruta” me proporcionou: a vivência da minha humanidade, da minha falibilidade, de dores que são também minhas e que são, por isso, plenamente identificáveis. Se “Tinta Bruta” não é um marco no cinema brasileiro que aborda histórias de personagens LGBTIQ+, o filme, no entanto, significa, sem dúvida, um gesto forte e marcante, indispensável em um Brasil que, em boa parte, nega sua diversidade, sua memória e sua própria história, que criminaliza a arte e a cultura, e que diariamente mata (real ou simbolicamente) quem ousa conduzir sua vida de uma forma mais livre, sem a adesão a regras que, de tão podres, já não se sustentam.
Neste texto refaço um caminho particular por aquilo que me marcou no filme e que dialoga tão diretamente com questões muito definidoras da minha própria existência. Esta revisão, entretanto, é duplamente parcial, afinal “Tinta Bruta” é um filme que apresenta tantas camadas que uma resenha apenas não daria conta de abordá-las todas satisfatoriamente. É um filme difícil de ser definido ou enquadrado. É denso, chocante, assustador, mas também delicado e profundamente humano. Um tipo bastante raro de filme que se impõe pela consistência da sua estrutura.  São questões humanas que potencialmente atravessam todo e qualquer espectador. Por isso, dizer que se trata de um filme de gueto seria limitador.
Leo e Pedro  e sua geração que ainda busca
as tintas certas para colorir o seu mundo.
Talvez seja necessário dizer que “Tinta Bruta” não é um filme perfeito. Há falhas no roteiro, mais precisamente nos diálogos, vejo questões na direção de atores, na qualidade técnica, especialmente do som. E isso é bom, muito bom! Porque eu entendo que, ainda que pese a questão da limitação orçamentária, o filme não se pretende perfeito e acabado, até pelo próprio universo em (des)/(re)construção que ele nos apresenta e pelo que representa na trajetória de seus jovens criadores. E, ainda assim, são tantos os acertos e tão importante o impacto que ele gera no espectador, que os seus eventuais “defeitos” podem e devem ser relevados. Há um bem muito maior em questão e este bem é precioso.
A trajetória de Pedro é uma autêntica jornada rumo ao entendimento: o entendimento de si mesmo e do mundo que nos cerca, com suas idiossincrasias, sua crueldade, sua frieza, mas também com sua beleza, sua luz, sua poesia. Nesse sentido, é encantador acompanhar o encontro de Pedro e de Leo. Do atrito inicial, provocado por uma disputa sobre quem tem o direito de usar tinta fosforescente (num sentido literal, a tinta bruta a que o título alude) em suas performances na internet, a relação dos dois evolui para um encontro autêntico entre dois seres de uma geração que não vê muito sentido no mundo como ele se apresenta. São existências em ebulição, em transformação, seres potencialmente revolucionários. Ambos parecem estar em permanente tensão, em busca de um ponto de escape. Essas buscas são compartilhadas com o espectador, através de uma narrativa que tem o ritmo e o tempo certos. Na verdade, personagens e narrativa nos seduzem, nos envolvendo não como quem olha pelo buraco da fechadura, mas como quem compartilha o mesmo espaço, o mesmo ambiente incerto e sufocante. A questão que de início contrapõe Pedro e Leo não é pequena pra nenhum dos dois: pra Pedro suas performances representam sua única fonte de renda e, principalmente, elas são seu único elo com o mundo “real” – ainda que ele se dê exclusivamente pela via virtual; e para Leo, elas são a possibilidade de juntar dinheiro para uma desejada viagem de estudos ao exterior. Bailarino, Leo ganhou uma bolsa para estudar na Argentina, e promete a Pedro que sua concorrência tem prazo de validade. Mas aquele que aparenta ser um concorrente acaba por se tornar um parceiro. A certa altura esse prazo cai, mas isso se dá num momento em que Pedro e Leo já estão de tal maneira envolvidos afetiva e profissionalmente que, na prática, nada significa.
Apesar dos cíclicos reveses (culturais, históricos, econômicos, naturais), “Tinta Bruta” sinaliza que o sentido da vida é a evolução. Como a planta, nós também buscamos a luz. E a água e o alimento, material e espiritual. E pra que isso aconteça agimos como a planta – afinal somos também natureza – que ultrapassa obstáculos, transpõe limites, supera a si mesma, em alguma medida heroicamente, mas sempre demonstrando resiliência. “Tinta Bruta” nos faz lembrar que essa batalha é combatida individualmente, ainda que na eventual companhia do outro. E esse outro – cuja presença é ironicamente fundamental à nossa jornada – também trava suas próprias lutas, cotidianas e, muitas vezes, invisíveis aos olhos alheios. Os reveses na vida de Pedro são inúmeros. A vida nele, no entanto, pulsa.
A cena final do filme, sem palavras e plena de significados, até hoje me assombra e me comove. Me faz lembrar de algumas vezes em que uma única cena concentrou tamanha potência dramática e carga poética. Consigo lembrar de dois filmes que, aliás, também podem ser colocados sob o grande guarda-chuva de “cinema LGBTIQ+”, mas que igualmente transcendem esse rótulo: “O segredo de Brokeback Mountain” (2005) e “Me chame pelo seu nome” (2016). A pungência dos acontecimentos relacionados aos personagens centrais destes filmes e a força das imagens encontradas por seus diretores para expressá-las é algo que não se digere com facilidade. São vivenciais que saltam da tela e nos atingem por sua força e inevitabilidade. Em “Tinta Bruta”, no entanto, esse recurso alcança um efeito mais visceral. Se nos dois exemplos citados a dor que dilacera está relacionada à perda irreparável de um amor, aqui a dor é a dor do crescimento, do lançar-se ao mundo. Como num rito de passagem, a cena final significa uma mudança de eixo tão arrebatadora pra Pedro que um novo filme poderia começar ali. É a vida mesma que se insurge, se esgueirando por uma brecha, em busca da luz e que, determinada, vigorosa, doída e bela, redefine e recompõe uma existência. Para o espectador, é uma rasteira tão grande em quem eventualmente lesse o filme de uma maneira convencional, ou em quem esperasse uma habitual – e hipócrita – redenção pelo viés judaico-cristão de culpa e castigo, que ficamos afundados na poltrona do cinema, olhos vidrados e lágrimas escorrendo, estarrecidos com a força vital com que a tela se enche.
Se a vida pressupõe confrontação e, mais do que nunca, resistência, a arte se torna grande, imensa, quando nos oferece a oportunidade – assim como faz “Tinta Bruta” – de fortalecermos nossa confiança de que, sim, a vida vale a pena. Bravo!

Frente a frente, Leo, o GarotoNeon, e Pedro, o Guri, 25.


****




Cleiton Echeveste é ator, dramaturgo e diretor de teatro, graduado em Artes Cênicas (UFRGS), onde também estudou Letras. É um dos criadores da Pandorga Cia. de Teatro, na qual é autor e diretor de O Menino que Brincava de Ser (indicação ao 2º Prêmio CBTIJ de Teatro para Crianças) e Cabeça de Vento (ganhador de prêmios de melhor texto nos festivais de Ponta Grossa/PR e Duque de Caxias/RJ). Com a Pandorga, criou Juvenal, Pita e o Velocípede (ganhador do 10º Prêmio Zilka Sallaberry de Teatro Infantil, categoria texto). Único dramaturgo latino-americano no festival de dramaturgia New Visions/New Voices 2014 (Washington, D.C./EUA). Em 2016, na Casa de la Literatura Peruana, em Lima, participou do VI Congreso de Literatura Infantil y Juvenil e do 1er. Festival del Libro y las Ideas, com mesas-redondas, conferências e oficina de processo colaborativo. Atualmente é o presidente do Conselho de Administração do Centro Brasileiro de Teatro de Teatro para Infância e a Juventude – CBTIJ/ASSITEJ Brasil. Site: https://pandorgaciadeteatro.wordpress.com/   

quarta-feira, 29 de agosto de 2018

Música da Cabeça - Programa #72


Se tem gente preocupada com a entrada dos venezuelanos refugiados na sua cidade, a gente aqui recebe todo mundo. Esse é o Música da Cabeça, humanista e democrático até na trilha sonora, que hoje vai ter, por exemplo, de Emílio Santiago a Patti Smith, de Som Imaginário a Cazuza. Quer mais democracia que isso? Também, nossos quadros e muita informação. É hoje, às 21h, na Rádio Elétrica. Produção e apresentação: Daniel Rodrigues.


segunda-feira, 17 de julho de 2017

Arthur Verocai - “No Voo do Urubu” (2016)


“Compositores e arranjadores são animais distintos na floresta e, não raro, hostis entre si. Disputam as mesmas presas: a beleza, a complexidade, a inspiração – enfim, a música –, e cada qual costuma se atribuir o crédito pelo sucesso do outro. Arthur Verocai é dos poucos a desconhecer esse problema: compositor, ele é seu próprio e completo arranjador, e os dois se embrenham juntos pela mata, partilhando segredos e descobertas”.
Ruy Castro


Podia ter escolhido pelo caminho do já consagrado pelo tempo para falar sobre Arthur Verocai. Podia falar sobre o mítico primeiro trabalho, lançado há 45 anos e hoje considerado cult entre músicos e apreciadores de sua música pelo mundo. Podia, igualmente, falar de “Econre”, CD lançado em 2005 pelo pianista, violonista, maestro, compositor e arranjador na Inglaterra e que traz o fino de um trabalho amadurecido e com a merecida produção “gringa”. Mas a emoção faz com que, deliberadamente, deixe de optar por essas duas vias mais fáceis. A opção se dá exatamente pelo sentimento imediato, pelo coração que bate rápido ao ouvir pela primeira vez “No Voo do Urubu”, o primoroso novo disco de Verocai lançado ano passado e que, embora o pouco tempo de vida, pode já ser considerado fundamental. Isso, desde a primeira audição. Como ocorreu comigo.

Com seu misto inequívoco de jazz, bossa nova, soul, clássico e música experimental, Verocai é uma das joias brasileiras tardiamente redescobertas. Desde os anos 60, foi arranjador de gente do calibre de Elis Regina, Jorge Ben, Ivan Lins, Gal Costa, Erasmo Carlos, Som Imaginário, Nélson Gonçalves, Marcos Valle e muitos outros. A atuação nos bastidores se estendeu nos anos 70, quando atuou como diretor musical e arranjador da TV Globo em programas como "Chico City" e "A Grande Família", compondo trilhas incidentais e temas de abertura de novelas. Tanto foi nessa linha “por trás das câmeras” que, em terras brasileiras, acabou caindo no obscurantismo. Porém, como já é recorrente, precisou ser descoberto por DJ’s do hip hop norte-americano nos anos 2000 para que, enfim, voltasse à cena. E agora para ficar.

“No Voo do Urubu” registra, assim, um músico, aos 72 anos, em sua melhor fase. É isso que o disco transparece. Composto por 11 novas faixas - todas magistralmente arranjadas pelo autor -, traz, além de 6 delas escritas unicamente por Verocai, parcerias entusiasmadas que denotam a devida homenagem ao mestre. Que, por sua vez, tributa seus mentores: Stan Kenton, Bernard Herrmann, Vilma Graça, Wes Montgonmery, Miles Davis, Milton Nascimento e, claro, Tom Jobim. O disco já começa assim: na faixa-título, cuja abertura é brilhantemente orquestrada pelo maestro, o clima retraz os primeiros arranjos de um Tom pré-bossa nova com um misto de soundtracks, que tanto Verocai se acostumara a inventar. O título e a atmosfera classuda, que fazem referência ao “maestro soberano” como das muitas que há no disco, dá lugar agora a um suingue carioca tanto em melodia quanto em letra e, mais ainda, pela ginga do intérprete. Seu Jorge põe o vozeirão a serviço da linda e brasilianista letra, que exalta a Rio de Janeiro com suas belezas e ícones: “Sol, o supremo pintor/ Arquiteto do mundo, Deus nosso senhor/ Poderia criar/ A cidade no monte com vista pro mar/ Uma bela baía, nossa Guanabara/ Olha o cara de cão, lembra o São Sebastião/ Padroeiro do nosso Rio de Janeiro/ Onde Estácio de Sá arremessou o Sá/ Tem muito siri, quero ficar aqui/ Tem patola azul, arraiá, guaiamum/ As antigas baleias, hoje são sereias/ De Ipanema à Bangu, no voo do urubu”.

A elegância da bossa nova invade como uma brisa matinal sobre as pedras do Arpoador em “O Tempo e o Vento”, quando o próprio Verocai canta uma nova homenagem ao mestre Tom – além do próprio título, que remete à trilha sonora feita por Tom à minissérie da TV Globo, em 1986, ainda parafraseia a canção “Luiza” (“As canções que escrevi/ esqueci sobre o piano...”). O amigo de décadas Danilo Caymmi – filho do mestre baiano, que tanto influenciara Tom, e membro da Banda Nova, que acompanhou o autor de “Corcovado” por 15 anos – é quem empresta o timbre grave para “Oh Juliana”, mais uma bossa refinada cujo arranjo de cordas, cheio e intenso, ajuda a desenhar uma melodia romântica e delicada. Ao final, Verocai empunha um de seus instrumentos-base, o violão, para um solo rico, que passeia entre o clássico, aprendido nas aulas com Léo Soares e Darci Villaverde, e o popular, que Roberto Menescal lhe ensinara.

A voz suave de Lu Oliveira entoa o samba-exaltação “Minha Terra Tem Palmeiras”, parceria de Verocai com outro antigo companheiro musical, o igualmente maestro e veterano Paulinho Tapajós. Ao mesmo tempo, um tributo bilaquiano e jobiniano, que une os sabiás e as cores tropicais celebradas tanto pelo poeta quanto pelo músico, estes, por sua vez, duas referências máximas da cultura brasileira. A abordagem solene, entretanto, não se restringe somente a Tom Jobim (“Ninguém perde o Tom/ Ilusão de vista/ Coração artista não tem fim/ Coração sambista tem compasso de passista/ Seja no piano ou tamborim.”), ou a Olavo Bilac, tal qual o título induz, mas também a outros compositores referenciais da formação do ritmo que define o Brasil: o samba: “Minha terra tem palmeiras/ Beija-flores e portelas/ Na aquarela do Brasil/ Amarelo, verde, anil/ De Noel, Ary e Gil”. Em clima de samba de gafieira, são os metais que protagonizam.

A veia soul de Verocai dá as caras na brilhante parceria com Vinícius Cantuária, “A Outra”. Sopros em altíssima afinação e um magnífico domínio de Itamar Assiere ao piano elétrico, que se conjuga com perfeição na instrumentalização meticulosamente preparada para o arranjo, outro dos trunfos do tarimbado Verocai. Outro a reverenciar o mestre, e à altura, é o rapper Mano Brown, com quem Verocai divide a composição e os microfones de “Cigana”. Um verdadeiro funk melódico ao estilo Bobby Womack e Cassiano, com direito a coro feminino e orquestra de cordas com 20 músicos. Brown, exímio letrista, capricha: “Leu a minha mão/ e levou o meu dinheiro/ Decifrou as linhas/ de um destino traiçoeiro/ Um sonho de um menino/ A cigana revelou/ Um exímio jogador/ Infeliz no amor”.

Mais do espírito da black music – que tanto ajudou a mitificar a figura de Verocai às novas gerações –, porém deixando de lado a abordagem romântica e investindo num tema social e filosófico típico deste outro parceiro e fã: Criolo. Os versos iniciais de “O Tambor” dizem: “Chega de ser, de sofrer, de chorar/ Mastigar toda a desgraça com pão/ Saliva com ódio num prato de arroz com feijão/ Pra quem não sabe o que é humilhação”. A canção, por sua vez, seja pelo arranjo de metais ou pela levada de jazz-funk, tem o maior clima de Azimuth, a brilhante banda brasileira que esteve sempre muito presente na discografia de Verocai. O baterista Mamão, aliás, é quem comanda as baquetas.

De modo a equilibrar temas cantados com instrumentais, aos quais Verocai sempre deu muito valor a um e outro sem distinção, três suítes apenas tocados fecham o disco. “Snake Eyes”, a primeira delas, impressiona pelo equilíbrio da instrumentalização, ora investindo nas volumosas cordas, ora nos igualmente fartos sopros em chorus: 2 trompetes, 2 trombones, sax alto, sax tenor, piccolo, trompa e clarinete. “Na Malandragem”, por sua vez, retoma o suingue funkeado, dando vez a um inteligente dueto de flauta e sax. Outro craque da percussão, Robertinho Silva, agiliza a bateria mas também um brasileiríssimo pandeiro, que lhe dá uma mirada samba funk.

O bom gosto das linhas melódicas a la Tom, não coincidentemente remetendo a Villa-Lobos (de quem Tom é o mais célebre aprendiz), finaliza o disco com a emocionante “Desabrochando”. O violão clássico toma a frente, acompanhado da flauta e da orquestra de cordas. Tão sensível que lhe é possível ouvir uma flor em botão rebentando. Como disse Ruy Castro, “em outros tempos, ‘No voo do urubu’, logo seria elevada à categoria de clássico. Mas, como vivemos na vida real, resta-nos o privilégio de sermos os poucos e felizes a poder escutar essas grandes canções”. Comigo, ao menos, foi assim também: bastou uma primeira audição para que esse sentimento de regalia e essa certeza se confirmassem. Fácil assim.
..........................................


FAIXAS
01. No Voo do Urubu (Arthur Verocai) - part. Seu Jorge
02. O Tempo e o Vento (Verocai/Tibério Gaspar)
03. Oh! Juliana (Verocai) - part. Danilo Caymmi
04. Minha Terra Tem Palmeiras (Verocai/Paulinho Tapajós) - part. Lu Oliveira
05. A Outra (Verocai/Vinícius Cantuária) - part. Vinícius Cantuária
06. Cigana (Verocai/Mano Brown) - part. Mano Brown
07. O Tambor (Verocai/Criolo) - part. Criolo
08. Snake Eyes (Verocai)
09. Na Malandragem (Verocai)
10. Desabrochando (Verocai)

..........................................
OUÇA

por Daniel Rodrigues

terça-feira, 7 de março de 2017

COTIDIANAS ESPECIAL nº500 - "Peso Morto"



P E S O   M O R T O
M  A  X     M  O  R  E  N  O


QUANDO A NOTÍCIA DO ACIDENTE CHEGOU ao IML de Santa Mônica, Flávio sorriu. Pensou logo em André, seu parceiro de longa data no recolhimento de corpos de pessoas mortas em acidentes nas rodovias da região. A informação inicial dava conta de que as vítimas, dessa vez, era uma senhora — de uns sessenta e tantos anos — e uma moça com idade entre vinte e vinte e cinco anos.
A caminho do local do acidente, Flávio estampava no rosto uma satisfação mórbida. Tinha os olhos vidrados na estrada, as pupilas dilatadas, um sorriso malicioso congelado no canto da boca e o pé pressionando o pedal do acelerador, enquanto André, absorto, fitava através da janela do rabecão a paisagem rural que se estendia por dezenas de quilômetros.
— Isso é uma tremenda doideira! — disse André, sem chegar a dirigir o olhar ao parceiro de profissão.
— A vida é assim mesmo, cara, relaxa! — Flávio mantinha um tom de voz amistoso, e a mesma expressão de satisfação ainda estava instalada em seu rosto. — Azar de uns, sorte de outros.

Mesmo com todas as especulações dos curiosos e o procedimento padrão junto à Polícia Rodoviária, o resgate dos corpos acabou sendo mais rápido do que o habitual. Quando Flávio e André chegaram ao local, os paramédicos já haviam retirados os corpos das ferragens — do que restou de um Toyota Corolla Xei 2015 —, que agora jaziam sob um plástico negro na lateral de uma das pistas. O corpo da idosa sofrera alguma avaria na altura da bacia; já o cadáver da moça — exceto por uma fratura exposta no braço direito — estava intacto. O veículo em que elas trafegavam foi “tirado” da estrada e capotou várias vezes antes de ser arremessado contra a vegetação rasteira na beira da estrada. Um dos policiais que atenderam a ocorrência, demonstrava a mesma emoção de quem está habituado a ocupar um posto de operário na linha de produção de uma indústria, ao explicar que um caminhoneiro — desses metidos a terroristas — exagerou ao encostar na traseira do carro onde as mulheres estavam.
— Esses caras não ligam para ninguém — disse ele, encerrando a conversa com uma moça com cara de boneca japonesa, que segurava o microfone (com o emblema da TV local) em uma das mãos.

Cerca de quinze minutos depois, os dois jovens voltavam a sentir o vento no rosto, invadindo as janelas do carro fúnebre. Já estavam na estrada, de volta. Rodaram mais seis ou sete minutos antes de Flávio diminuir a marcha e deslizar o veículo pelo acostamento da pista. Os dois jovens trocaram um olhar em silêncio. À direita do carro, erguia-se uma grande plantação de milho, costurada por uma estradinha de terra, tortuosa. O milharal se estendia até onde a vista podia alcançar. “O lugar perfeito”, pensou Flávio. Entrou com o veículo e estacionou na diagonal, mutilando um pequeno trecho da plantação, de modo que o rabecão ficou encoberto pelo rio de tendões dançantes.
— Hora de suar, irmão! — disse Flávio, abrindo a porta do veículo.
O amigo permaneceu no banco do carona. Ainda mantinha o cinto de segurança travado e o olhar fixo num ponto imaginário, pensativo.
— Qual foi, André?
— Isso não está certo, cara!
Flávio desceu do veículo. Já estava se encaminhando para a parte de trás do rabecão, quando mudou de ideia. Retornou e encarou o amigo.
— O que é que tá pegando, cara? Anda, desce logo daí.
— Essa merda toda, Flávio — ele meneava a cabeça —, isso não está certo!
— Relaxa, cara, os mortos não falam.
— É muita sacanagem, não quero mais continuar com essa parada!
— Deixa de besteira, e me ajuda aqui com a gostosa.
Contrariado, André desceu do veículo e foi ao encontro de Flávio, que já se preparava para puxar a gaveta com o corpo da moça.
Passava das duas da tarde e, no céu, algumas nuvens carregadas se revezavam na tarefa de inibir os raios do sol, o que tornava a temperatura mais amena. Com a habilidade adquirida ao longo dos anos, os dois rapazes não encontraram nenhuma dificuldade em carregar a gaveta com o corpo da moça até uma das fileiras (de milho) um pouco mais distante do carro.
— E aí, vai querer buscar a velha? — perguntou Flávio, picando um olho.
— Que tal ir se foder?
— Calma, cara, eu só estou zoando.
O amigo deu de ombros.
Andando de costas, André se afastou lentamente do corpo da garota, enquanto Flávio começava a despi-la. Fazia isso com uma naturalidade assustadora. O estranho brilho em seus olhos denunciava: ele estava curtindo o ritual macabro.
— Até que ela tem uns peitinhos lindos — disse André, à distância, mas dando adeus ao discurso cheio de pudor que ensaiara inicialmente.
— Tá fazendo o que ainda aqui? Vaza logo, cara. Volta pro carro e vê se fica de olho.
André obedeceu e mergulhou no milharal de volta ao rabecão, enquanto Flávio terminava de despir a falecida. Feito isso, ele arriou as próprias calças e se debruçou sobre ela, ofegante como um animal no cio.
Menos de dez minutos depois, ele voltou para o veículo. Tinha no rosto uma expressão nojenta de satisfação. Fez um sinal com a cabeça, indicando que agora era a vez do amigo.
André conseguiu ser ainda mais rápido, e três minutos depois já havia encharcado os seios da morta com seu esperma pegajoso.

***

De volta ao IML a vida sugeria uma normalidade contraditória, e nenhum dos dois rapazes voltou a tocar no assunto.  A convivência com a morte, às vezes, faz isso com as pessoas, se convenciam. Mas a verdade era que admitir algum tipo distúrbio de comportamento implicava em ter de encarar um problema que resultaria em sérias consequências morais e religiosas. Aquela já era a décima segunda vez que os amigos se entregavam aos prazeres dos mortos. Contudo, embora não tivesse o menor controle sobre o seu lado pervertido, André via a necrofilia como um pecado mortal. Já tinha ido longe demais. Tenho que parar com essa porra toda, relutava. O peso (na consciência) começava a ficar insuportável. Por isso, quando o fim de semana chegou, o rapaz viu na confissão com o padre Germano alguma possibilidade de redenção com o Pai Celestial. André estava longe de ser uma pessoa religiosa, mas acreditava que tal atitude pudesse, de alguma forma, abrir um canal de “negociação” com o Criador. Já é alguma coisa!
No confessionário, André levou quase cinco minutos ensaiando como começaria a conversa com o representante de Deus e, na falta de uma frase mais criativa, decidiu usar o mesmo clichê idiota que todos os desgraçados usam:
— Padre, me abençoe porque eu pequei.
Padre Germano fez seu comentário inicial (de praxe) e ouviu —  sem interrupções — toda a história do jovem pecador. Em seguida entregou-se a um silêncio perturbador.
— Padre?... Ainda está aí?
— Sim, estou aqui, meu filho.
Ouviu-se então um soluço do lado do confessionário onde o eclesiástico estava.
— O que eu devo fazer? Não aguento mais essa culpa.
— Quero que medite por um instante, filho. Busque a resposta dentro do seu coração.
André passou tanto tempo mergulhado em questionamentos teológicos e filosóficos, que quando deu por si, quase dez minutos já haviam se passado.
— Padre, o senhor pode me perdoar?
Um novo silêncio se instalou no ambiente. Mas este fora quebrado antes que completasse cinco segundos.
— Creio que isso não seja uma tarefa muito fácil, garoto.
O som veio de algum ponto atrás das costas de André, e não era a voz do padre Germano.
Ao girar o corpo, o jovem se separou com dois policiais que — sem nenhuma cerimônia — o algemaram imediatamente.
— Padre — questionou ele —, que merda é essa? Essa porcaria de confissão não era para ser sigilosa?
Padre Germano se aproximou de André, e as lágrimas percorreram suas bochechas rosadas.
— Sim, meu filho. A confissão é um ato sigiloso. Mas — ele enxugou os olhos com um lenço todo amarfanhado —, desde que você não tenha perdido a irmã e uma sobrinha num trágico acidente de carro, e tenha passado pelo constrangimento e a dor ter tido os corpos de seus entes queridos profanados por um cretino como você.
— Mas, padre!
— Vá pro inferno, meu filho!
O tom irônico adotado pelo padre chamou a atenção dos policiais, que trocaram um olhar de aprovação no momento em que conduziam o rapaz a 16ª Delegacia de Polícia.

***

Na cadeia, André não viu outra opção a não ser entregar o amigo. Foi num julgamento sob olhares revoltosos que ambos foram apresentados ao termo “vilipêndio a cadáver”. E foi nesse mesmo dia que descobriram que, de acordo com o Artigo 212 do Código Penal Brasileiro, a pena para esse tipo de crime pode chegar a três anos de detenção, além de multa aos infratores. O juiz que julgou o caso foi compreensivo com a dupla e os isentou do pagamento da tal multa, condenando-os “apenas” aos três anos de reclusão.
Saíram de lá antes do aniversário de dois meses de encarceramento. Os dois jovens foram assassinados por seus companheiros de cela e — ironicamente — tiveram seus corpos profanados por meia dúzia de detentos que ocupavam o mesmo pavilhão.



***



Max Moreno é escritor e redator publicitário. É autor do romance "A Outra Sombra", publicado originalmente em 2013 e traduzido e publicado em inglês em 2016; e autor participante da coletânea de contos "Big Buka - Para Charles Bukowski" (2016) em homenagem ao escritor norte-americano.
Paranaense, nascido em Mariluz, Max reside atualmente na cidade de Campo Mourão, tambem no Paraná, onde, além da atividade literária, é locutor na rádio Musical FM.


terça-feira, 11 de outubro de 2016

“Aquarius”, de Kleber Mendonça Filho (2016)


A força de ressignificação
 por Daniel Rodrigues



Um dos trunfos do cinema moderno é o da subversão. Mais do que somente a criatividade estética trazida pelos cinemas novos ou da reelaboração narrativa proposta pelos “rebeldes” da Hollywood nos anos 70, o elemento que de alguma maneira transforma o status quo, que contraria o esperado pelo inconsciente coletivo, é o que determina com maior eficiência a ponte entre moderno e clássico em cinema. Afinal, por que até hoje é tão impactante o pastor assassino de “O Mensageiro do Diabo” ou a brincadeira com a dualidade de gênero de “Quanto Mais Quente Melhor”, mesmo ambos os filmes contados em narrativa tradicional?  Em “Aquarius” (2016), o diretor Kleber Mendonça Filho, diferente do que fizera em seu filme anterior, o ótimo “O Som ao Redor”, vale-se desta premissa com sucesso ao reelaborar, hibridizando ambas as formas, significados muito peculiares do universo da história que se propôs a contar, construindo uma narrativa impregnada desses elementos não raro surpreendendo o espectador.

O longa conta a história de Clara (Sônia Braga, magnífica), uma jornalista e crítica de música aposentada. Viúva, mãe de três filhos adultos e moradora de um apartamento repleto de livros e discos na beira da praia da Boa Viagem, em Recife, ela se vê ameaçada pela especulação imobiliária quando a empresa detentora do seu edifício – o emblemático Aquarius – tenta a todo custo tirá-la de lá para demolir o prédio e construir um empreendimento gigante e pretensamente moderno. Fiel a suas convicções e sabedora de seus direitos, Clara resiste, não sem consequências e retaliações.

As praias de Recife, elemento presente nos filmes
de Kleber Mendonça Filho.
Antes de qualquer coisa, impossível dissociar a história de Clara do momento do Brasil. O embate entre o poder estabelecido do capitalismo e a resistência do pensamento humanístico, à luz do maniqueísmo ideológico que tomou o País nos últimos anos, fazem de “Aquarius” um símbolo do cinema brasileiro da atualidade, o que, em parte, explica o sucesso de bilheteria (mais de 55 mil pessoas já assistiram). Entretanto, é a forma com que Mendonça Filho escolha para contar que faz de “Aquarius” uma obra marcante e, talvez, tão apreciada. Ele vale-se de elementos da cultura de sua terra natal, Pernambuco, e principalmente da Recife enquanto símbolo de metrópole brasileira, com seus medos, violências, angústias e neuroses, mas também as benesses: a ligação com o mar e o mangue, o desenho da cidade, sua rica cultura e suas memórias. Aliás, memória é o substrato do filme. Contrapondo permanentemente passado e presente, o diretor suscita a crítica ao perpassar questões imbricadas à sociedade, como a desigualdade socioeconômica, a “commoditização” dos relacionamentos, a relação entre gerações e os preconceitos, sejam estes raciais, sociais, de gênero ou condição física.

É com base nesta visão muito pessoal, a qual não esconde o inimigo nem exclui o belo, que “Aquarius” se monta. Muitos dos significados vão ganhando forma à medida que o filme transcorre, às vezes quase uma suspeita inconscientemente desconsiderada assim que o enigma se dissolve. Como a relação de Clara com seu sobrinho, a qual, num primeiro momento, pode parecer ao espectador, que ainda não teve informações suficientes sobre ela (ou melhor: tem informações suficientemente superficiais para desconfiar do mais vulgar e aparente), tratar-se de um caso amoroso liberal e promíscuo. A explicação vem sutil, sem alarde, mas dizendo muito sobre a personagem e a história.

A personagem, aliás, carrega em si outro símbolo: o da mulher emancipada e independente. De pronto percebe-se que Clara é reconhecida como profissional. Porém, à medida que se entende melhor, revela-se que ela, no passado, optou em deixar os filhos ainda pequenos com o pai para não perder a oportunidade de ganhar a vida no centro do País. De certa forma, um pouco da própria Sônia Braga, que, de modo a dar a natural continuidade internacional à sua trajetória já restringida no deficiente Brasil pré-democracia, precisou dar as costas às críticas “vira-latas” e rumar para a indústria norte-americana – sem, ao contrário do que lhe acusavam, perder identidade e raízes.
Sônia Braga, magnífica,  à frente do famigerado ed. Aquarius"

Estes dois exemplos mostram bem o jogo de ressignificações proposto por Mendonça Filho. Largamente empregadas por cineastas maduros do cinema moderno, como os irmãos Coen e Quentin Tarantino, a ressignificação tem o poder de desfazer mitos e quebrar expectativas, muitas vezes a custa de anticlímaces e desconstruções do imaginário sociocultural. “Aquarius” mostra não o relacionamento de uma “tiazona” com um rapazote como propositadamente dá a entender, mas, sim, uma possível, afetuosa e saudável relação entre tia e sobrinho. O filme mostra não um estereótipo de heroína vencedora e invencível – e, por isso, desumanizada e reforçadora da ótica sexista –, mas uma mulher com suas qualidades e defeitos, com inquietudes e paixões tentando fazer o melhor na vida.

Maior evidência dessa ressignificação é a cena do nu parcial da personagem. A mensagem imediata que se transmite, ao vê-la começando a se despir para tomar banho, é o de que se verá a antiga musa e símbolo sexual despida agora com idade avançada. “Como estará o corpo de Sônia Braga aos 66 anos? Será que está uma velha gostosa?” Mendonça Filho quebra a lógica rala não ao confirmar o que se suspeitava no que diz respeito às marcas da idade terem chegado à Dona Flor. Fazendo emergir outro nível de mensagem, mais profundo e agudo, mostrando-a com um dos seios amputados, consequência de um câncer da personagem Clara. Em milésimos de segundo, entremeiam-se o preconceito com o deficiente físico – algo explorado ainda mais e sem rodeios no decorrer –, com a mulher “não-jovem”, com a mulher em si.

Interessante notar que, a título de narrativa, o cineasta dá um passo atrás no que se refere à modernidade na comparação com seu filme anterior. Enquanto “O Som ao Redor” é uma trama coral ao estilo das de Robert Altman e Paul Thomas Anderson, “Aquarius”, por se concentrar numa personagem, torna-se mais linear e anedótico. O que não é nenhum demérito, pelo contrário. Assim como o cineasta mexicano Alejandro González Iñárritu, que depois de uma trilogia de sucesso de tramas corais (“Amores Perros”, “21 Gramas” e “Babel”) e de passar pelo radicalismo de "Birdman" optou acertadamente pelo formato clássico para realizar "O Regresso", seu grande filme. Mendonça Filho parece de certa forma e em noutra realidade repetir o recente feito de Iñárritu: iniciar a carreira explorando uma linha intrincada de narrar para, em seguida, aperfeiçoar seu estilo e simplificar a narrativa voltando as atenções a um herói/heroína. Em “Aquarius”, contado em capítulos tal qual a construção literária de Stanley Kubrick e Tarantino – inclusive, com um prólogo, com Clara ainda jovem, em 1980 –, Mendonça Filho equilibra com assertividade a forma tradicional e a moderna de contar a história.

Outros elementos de ressignificado são compostos de maneira muito segura pelo diretor, que conduz o filme num ritmo cadenciado, por vezes poeticamente contemplativo, como um ir e vir da onda do mar da praia. Igual a “O Som ao Redor”, em “Aquarius” o mar é um olho divino que a tudo enxerga. O som, inclusive, faz-se presente novamente e, agora, é demarcado pela música. De Queen a Gilberto Gil, passando por Roberto Carlos e Taiguara, as canções pontuam o filme do início ao fim, ajudando a construir a narrativa e dando-lhe uma dimensão tanto documental quanto lúdica. Novamente, Mendonça Filho reelaborando o passado para trazer luzes ao presente. Na guerra indigna que Clara tem de deflagrar contra a construtora que quer tomar o prédio sob a égide monetária e desfazendo o real valor sentimental e simbólico, fica clara a mensagem que o autor que transmitir: o mundo precisa de mais poesia. Se Cazuza integrasse a trilha com estes versos de “Burguesia”, não seria nenhum absurdo: “Enquanto houver burguesia não vai haver poesia”.

Para além da discussão partidária e da polêmica em torno da afronta direta ao Governo no episódio da classificação etária e da não escolha pelo título à concorrência ao Oscar de Filme Estrangeiro, o objeto do filme é por si saudavelmente revolucionário, o que o torna, por esse viés, sim, bastante político. Como um “Sem Destino” ou “Um Estranho no Ninho”, marcos de uma era logo ao serem lançados, “Aquarius” está igualmente no lugar e na hora certa, tornando-se de imediato importante como registro do Brasil do início do século XXI polarizado ideologicamente. Polarização largamente mais desfavorável do que proveitosa. A ideia do que Clara representa, “minoria empoderada” e não sujeita aos preceitos verticais da sociedade machista e ditada pelo dinheiro, celebra uma verdadeira liberdade de pensamento e conduta cidadã a que tanto se aspira entre os tantos tabus que hão de serem quebrados. Os novos significados, uma maneira de pensar despida de pré-concepções e amarras sociais, é o que intentam aqueles que acreditam em igualdade e fraternidade. Se isso concorda ou discorda do pensamento de esquerda ou de direita, é outra questão. “Aquarius” é, isso sim, um libelo da necessária subversão em tempos de intolerância.


trailer "Aquarius"

quinta-feira, 18 de agosto de 2016

Kraftwerk – “Tour de France Soundtracks” (2003)





Ouvindo o álbum,
 você quase pode ouvir o som do vento
batendo no seu rosto”.
Jim DeRogatis,
crítico musical

“O Tour (de France) é como a vida:
uma forma de transe.
E o transe está baseado na repetição.
As máquinas são perfeitas para criar isso”
Ralf Hütter



Uma das definições do dicionário para "tecnologia" é: "Ciência cujo objeto é a aplicação do conhecimento técnico e científico para fins práticos". Porém, há também o entendimento de que tecnologia também é "o conjunto dos termos técnicos de uma arte ou de uma ciência". Juntando as duas subentende-se: é possível o ser humano criar arte a partir da tecnologia e vice-versa. Os papéis se confundem nessa hora.

Neste sentido, é interessante notar que todos os principais marcos da tecnologia dos últimos 200 anos criadas pela humanidade tenham se tornado música nas mãos do Kraftwerk. O trem do medley "Trans-Europe Express"/"Metal on Metal"; o rádio em suas mais diversas funcionalidades do disco "Radio-Activity"; o automóvel em “Autobahn”; o telefone em “Telephone Call”. Até a amplificação do som de um átomo eles forjaram (“Atom”, de “Kraftwerk 2”). Mas mesmo tendo sido responsáveis por legar à civilização moderna o imaginário dos sons de bits e bites dos computadores (em "Computer World", de 1981), a tecnologia que realmente encanta a dupla Ralf Hütter e Florian Schneider, as cabeças geniais do mítico grupo alemão, é a talvez mais lúdica e esportiva delas: a bicicleta. “Tour de France Soundtracks”, de 2003, último trabalho da econômica banda não apenas trabalha este tema como o explora de forma brilhante.

O passeio sobre duas rodas do Kraftwerk, contudo, começou em 1983, quando lançaram o single “Tour de France” em homenagem à tradicional competição ciclística. Uma ode à beleza do ato de pedalar e à interação do homem com a tecnologia, que traz uma base criada sobre a respiração uma humana, um ritmo funkeado envolvente e um magistral riff de teclado em tom alto, colorido. Traços mais do que sonoros e, sim, sensoriais, que põem o ouvinte a também percorrer as ensolaradas estradas francesas sobre o selim. De relativo sucesso à época, a faixa deveria fazer parte de um novo disco, projeto que foi substituído três anos depois por “Electric Café”. “Substituído” é o termo certo, pois não “descartado”. Duas décadas depois (o que, para os parâmetros krafterkianos não é um absurdo, haja vista que lançaram nesse ínterim apenas dois discos, sendo apenas um de inéditas), quando dos 100 anos da Tour de France, Ralf e Florian desengavetam um projeto comporem uma trilha sonora para um filme explorando todas as etapas da corrida, desde a preparação do atleta até o ápice.

O filme não saiu, mas nem precisava. As músicas substituem qualquer imagem. Ou melhor: as supõem, as suscitam. A narrativa é tão cinematográfica quanto – sendo sinfônica ao mesmo tempo. Ao estilo dos temas longos de abertura de álbuns, uma de suas especialidades (a exemplo de “Boing Boon Tschak”/”Tecno Pop”/”Music Non-Stop” de “Electric Café”, ou a faixa-título de “Autobahn”), inicia com um prólogo, que anuncia em notas espaciais, mas não dispersas, frases que dotarão toda a trilha. Em ritmo de house music e trazendo uma variação do riff original, a primeira etapa do tema central entra com a tradicional voz robótica do VoiceModeler operado por Florian. Isso tudo num charmoso francês, idioma usado em todas as letras e sentenças faladas. “Étape 2” e “3”, seguem na mesma batida, agora explorando as variações de textura do trance, mas tendo como base a mesma ideia sonora: os frisos do pneu da bicicleta girando e promovendo som, num transe. “Chrono”, última desta primeira parte, intercala momentos instrumentais com os elementos-chave da temática-base, terminando com o “robô” anunciando que foi dada a largada: “Les coureurs/ Chronométrés/ Pour l'épreuve/ De vérité/ Radio Tour information/ Transmission/ Télévision/ Tour de France…”.

Primeiro ato concluído, pista preparada para o Kraftwerk passear com sua arte. Desacelerando um pouco a intensidade da pedalada e introduzindo uma percussão metálica variante e multiforme, “Vitamin” é a primeira dos preparativos para a corrida – afinal, todo corredor que se preze tem de atentar ao que manterá a sua máquina em condições de prova. Ralf lê uma sequência de ingredientes de suplementos (“Adrenalin endorphin/ Elektrolyt co-enzym/ Carbo-hydrat protein/ A-b-c-d vitamin”), enquanto teclados cumprem percussão e o grave, pondo acima as texturas e o riff, que também não passa longe do de “Tour de France”.

Das melhores do disco, “"Aéro Dynamik" retomando a batida da parte introdutória, é a própria tradução do conceito homem-máquina representado pelo Kraftwerk desde que surgiram, no final dos anos 60, na industrial Düsseldorf: o corpo sonoro projetado no espaço como metáfora do movimento humano vencendo os átomos no ar. “Percussivo e dinâmico”, como define o próprio Ralf. A letra diz em francês o que é de fácil entendimento a qualquer língua, pois universal: “Perfection Mekanik/ Materiel et Technik/ Condition et Physik/ Position et Taktik/ Aero Dinamik”.  "Titanium", misto de trance e ambient, acrescenta-lhe uma leve variação rítmica e harmônica, enfatizando agora o metal extraforte utilizado para a fabricação das “magrelas”. A percussão torna-se ainda mais metálica, por óbvio, do que em “Vitamin”.

Das melhores do álbum e da carreira da banda, "Elektro Kardiogramm", começa dizendo a que veio. Batidas de coração são ouvidas em um ritmo interessante, rítmico. O ritmo do próprio corpo. E isso não é licença poética, pois são gravadas dos batimentos cardíacos do próprio Ralf Hütter enquanto pedalava! E a genialidade não para por aí: este som, orgânico e científico ao mesmo tempo, é sinterizado eletronicamente ao de uma respiração, também embalada pelo ciclo da pedalada. O riff, igualmente na mesma escala que circunscreve o de todas as faixas, é em tempo 3x4. Tudo isso encapsulado por uma batida que acompanha o fluxo sanguíneo, mas o embala ritmicamente. É de "Elektro Kardiogramm" que saem os versos “Minimum Maximum”, que dariam nome à turnê e ao disco ao vivo de 2005. Afinal, a verdadeira interação entre homem, natureza e tecnologia. Como diz o biógrafo da banda, David Buckley, que considera a faixa um dos pontos altos do disco, é “uma exploração sonora da unidade formada por ciclista e bicicleta, homem e máquina”.

"La Forme", mais introspectiva, impressiona pelo ar quase oriental de seu riff de teclados deslizante. A percussão, só no “chipô” e “bumbo”, igualmente econômica e nipônica, dão ainda mais classe a esta faixa, a qual remete a obras do passado da banda, como “Neon Lights” e “Computer Love”. Depois de preparar a forma, vem a recuperação do corpo. Esta engata com "Régéneration", vinheta preparatória que faz a ponte entre a última meditação antes de lançar-se na prova de fato. É chegada a hora da magnífica "Tour de France", tal qual fora composta em 1983, porém repaginada pela limpeza da sonoridade digital ainda não alcançada àquela época. Das maiores peças pop de todos os tempos, é o símbolo e o ápice da ideia de interação homem e tecnologia. Respirações ofegantes de ciclistas são intensificadas no electrobeat – que retraz a batida pontilhada de “Numbers” –, enquanto o som de um baixo com slaps é recriado eletronicamente e os teclados passeiam pela paisagem, transmitindo cor e liberdade. “Dá quase para sentir o ácido lático se acumulando nas pernas enquanto a música se desenvolve”, brinca Buckley numa passagem do livro “Kraftwerk Publikation: a biografia”.

Suave e deslizante, “Tour de France Soundtracks” resgata em parte a bagagem do grupo criador da eletro music: a sonoridade elegante e limpa, a valorização do ritmo, a perfeição dos detalhes, a exploração das texturas sonoras e o conceito globalizado e integral que pontua toda a obra de menos de 10 álbuns mas de vasta influência na música moderna. Há quem torça o nariz para este disco, alegando que deixa a desejar em relação aos trabalhos antológicos do Kraftwerk como “The Man-Machine” e “Trans-Europe Express”. Talvez um pouco de preconceito pela ausência de Karl Bartos e Wolfgang Flur, “percussionistas” da formação clássica – substituídos aqui pelos engenheiros de som (mas que se mostram músicos altamente competentes) Fritz Hilpert e Henning Schmitz. Quiçá também a vulgarização natural ocorrida pelo avanço da computação no século XXI (o que, em música, o Kraftwerk é corresponsável nos últimos 50 anos, diga-se) tenha deixado a impressão de que a banda ficara ultrapassada. Pensamentos compreensíveis, pois deles sempre se espera o mais do que de qualquer outro. Soma-se a isso ainda o fato de raramente lançarem alguma coisa, o que aumenta ainda mais sua mítica e, automaticamente, a cobrança.

Porém, como disse o jornalista inglês Chris Jones, “se você (assim como eu) ainda encara o Kraftwerk como uma divindade que deu ao mundo algumas das mais encantadoras e influentes músicas eletrônicas de todos os tempos, então vai amar este disco”. Afinal de contas, conclui sabiamente o designer e fã ardoroso dos alemães Peter Saville: “mesmo um álbum medíocre do Kraftwerk é um trabalho de uma genialidade sublime”. Caso de Tour de France Soundtracks”, onde a capacidade humana opera com a tecnologia a serviço da mais bela arte, seja ela vinda de seres vivos ou artificiais.
*************************** 

FAIXAS:
1. "Prologue" (Ralf Hütter/Florian Schneider/Fritz Hilpert) - 0:31
2. "Tour de France Étape 1" (Hütter/Schneider/HilpertMaxime Schmitt) - 4:27
3. "Tour de France Étape 2" (Hütter/Schneider/Hilpert/Schmitt) - 6:41
4. "Tour de France Étape 3" (Hütter/Schneider/Hilpert/Schmitt) - 3:56
5. "Chrono" (Hütter/Schneider/Hilpert/Schmitt) - 3:19
6. "Vitamin" (Hütter/Schneider/Hilpert) - 8:09
7. "Aéro Dynamik" (Hütter/Hilpert/Schmitt) - 5:04
8. "Titanium" (Hütter/Hilpert/Schmitt) - 3:21
9. "Elektro Kardiogramm" (Hütter/Hilpert) - 5:16
10. "La Forme" (Hütter/Hilpert) - 8:41
11. "Régéneration" (Hütter/Hilpert) - 1:16
12. "Tour de France" (Hütter/Schneider/Schmitt/Karl Bartos) - 5:12

******************* 
OUÇA O DISCO:






terça-feira, 17 de maio de 2016

João Bosco - "Acústico" (1992)


“Na direção de programação da MTV,
participei da implantação de novos programas,
entre [estes] o Acústico.
Fiz a direção geral com Rogério Gallo
e a direção do programa ficou a cargo do Adriano Goldman.
Na véspera sentamos como João Bosco no hotel
para decidir o repertório.
Ele pegou o violão e disse ‘vai ser assim’.
E nós ‘então tá bom’.”
Marcelo Machado,
cineasta e um dos responsáveis
por lançar a MTV Brasil em 1990.


Quem assiste hoje a MTV Brasil talvez não acredite que aquele canal acéfalo foi um dia a coisa mais interessante da época da televisão brasileira pré-canais por assinatura. No início dos anos 90, aquela nova e arejada emissora de sinal UHF, mesmo que a precária aparelhagem dos televisores de então gerasse uma sintonia com imagem chuviscada para desafortunados como eu, trazia um sopro de modernidade e até de vanguarda diante das poucas alternativas de TV aberta que se tinha, fosse pela estética dos videoclipes, pelas novidades musicais e plásticas, pela concepção descomplicada de apresentação e do Jornalismo ou mesmo pela programação.

Uma das atrações advindas foi o Acústico MTV, reprodução do projeto também recente na MTV norte-americana, o MTV Unplugged, cuja ideia era trazer releituras do repertório de artistas que rodavam na emissora através de clipes em especiais de meia hora. Isso tinha tudo para dar certo também no Brasil, país em que o canal vivia uma fase de crescimento de audiência e cujo estilo musical tradicionalmente valoriza a composição sem eletrificação. Depois de estrear com dois nomes do rock brazuca, Barão Vermelho e, em seguida, Legião Urbana, o terceiro escolhido foi um verdadeiro representante da MPB: João Bosco. O que naquela época podia soar estranho a um canal jovem, visto que música popular era ainda muito vista como “música para velhos”, se justificou plenamente, o que se confere no excelente álbum “Acústico”.  Virtuose do violão e dono de estilos de tocar e cantar muito próprios e apurados, João Bosco presenteou o público com um apanhado cirurgicamente bem pinçado de seu extenso cancioneiro, criando aquele que é talvez o melhor unplugged realizado nesses pagos tropicais.

O êxito começa na concepção: ao contrário de todos os outros acústicos, por mais incrível isso pareça em se tratando de um formato de apresentação no qual se propõe justamente uma sonoridade intimista, João Bosco o fez sozinho no palco, apenas voz e violão. Como seus mestres Baden Powell e João Gilberto. É que com um violão em punho, João Bosco faz chover! Se para outros fariam falta percussão e acompanhamentos, ao autor de “O Bêbado e a Equilibrista” não há nenhuma necessidade. Recuperando canções de várias fases, desde os clássicos dos anos 70 imortalizados por Elis Regina até sucessos recentes à época do lançamento, o cantor e compositor, repetindo o conceito de arranjo que já acertara em “100ª Apresentação”, de 1983, juntou isso a temas escritos com parceiros de peso. Um destes é “Odilê Odilá”, feita com Martinho da Vila. Após uma introdução solo ao violão impressionante em que já diz a que veio – onde dobra o som do instrumento, dando a nítida impressão de terem dois violonistas tocando –, Bosco abre o show com este samba no qual recupera, bem a seu estilo e ao de Martinho, referências da africanidade e dos ritmos brasileiros de raiz, engendrando um maxixe de cores modernas. Esta se emenda com “Zona de Fronteira”, parceria com os poetas Antônio Cícero e Waly Salomão do então recém-lançado álbum homônimo que, por outra via, também toca na temática africana: ”Rei/ Eu sei que sou/ Sempre fui/ Sempre serei/ Obá/ De um continente por se descobrir/ Já alguns sinais/ Estão aí/ Sempre a brotar/ Do ar/ De um território que está por explodir”.

Outra da parceria com Cícero e Waly, a intensa “Holofotes” dá no formato voz-violão a liberdade ideal para Bosco mostrar toda sua técnica e sensibilidade, numa interpretação que supera a versão original. Sob uma base sincopada, a letra junta versos de dois dos maiores poetas brasileiros: “Desde o fim da nossa história/ Eu já segui navios/ Aviões e holofotes/ Pela noite afora/ Me fissurarm tantos signos/ E selvas, portos, places/ Línguas, sexos, olhos/ De amazonas que inventei...”. Hit nacional alguns anos antes, a bela “Papel Machê” se encaixa bem no repertório por ser conhecida da plateia, contrastando com outros números bastante ligados ao contexto dos anos 70 e talvez distantes da realidade daquele público então presente.

Este papel de resgate cabe ao medley com “Quilombo” (1973), “Tiro de misericórdia” (1977) e “Escadas da Penha” (1975), composições dos primeiros discos do artista e nas quais a parceria dele com Aldir é determinante. Nas três, a forte temática do candomblé e da herança da África negra. A mais impressionante e provavelmente melhor do espetáculo – muito por causa do violão de Bosco, que mantém uma batida de samba intensa, repetitiva e rápida, forjando um clima espiral hipnótico – é “Tiro...”, a qual conta a história de um menino do morro aparentemente comum, mas que, por conta da proteção dos orixás, era invejado e malquisto pelos inimigos. A letra de Aldir é de uma riqueza literária espantosa, aproximando-se da prosa de Jorge Amado uma vez que engendra um espaço narrativo em que coabitam real e imaginário, concreto e transcendência, ou seja, o mundo dos homens (“Aiyê”) e o universo das forças não-terrenas (“Òrun”). Os versos dizem: “Exus na capa da noite soltara a gargalhada/ e avisaram a cilada pros Orixás/ Exus, Orixás, menino, lutaram como puderam/ mas era muita matraca e pouco berro”. Para arrematar, Bosco engata no mesmo ritmo “Escadas...”, que versa sobre a mesma potência das entidades místicas sobre a realidade ao colocar várias situações em que, ao serem influenciadas pelo poder das preces feitas na igreja da Penha (“A doideira da chama/ Chamou [...] O remorso num canto/ Cantou...”, por exemplo), alteram seu estado (“A doideira da chama/ Velou [...] O remorso num canto/ Guardou...”). Nada menos que admirável.

Outro medley traz as “líticas” “Granito” e “Jade”. A primeira, parceria com Cícero, questiona as semelhanças essenciais entre homem e pedra, numa abordagem em certo aspecto parecida com a do candomblé. Já “Jade”, do próprio Bosco, trata-se de uma balada de romantismo tocante, tanto por melodia quanto por letra (“Pedra que lasca seu brilho/ E queima no lábio/ Um quilate de mel/ E que deixa na boca melante/ Um gosto de língua no céu...”). “Romantismo” e “essência” são as palavras-chave de “Memória da Pele”, outra dele com Waly. Que versos lindos e profundos esses: “Eu já esqueci você, tento crer/ nesses lábios que meus lábios sugam de prazer/ sugo sempre, busco sempre a sonhar em vão/ cor vermelha/ carne da sua boca/ coração”.

“Corsário” é mais um momento especial. De relativo sucesso no final dos anos 80, essa canção traz um dos melhores poemas/letras de Aldir (e olha que são várias a disputar!). “Meu coração tropical/ está coberto de neve, mas/ ferve em seu cofre gelado/ e a voz vibra e a mão escreve: mar”. O lirismo é tal que Bosco, com assertividade, abre o tema com o poema “E então, que quereis...?”, do poeta russo Maiakowsky (“Fiz ranger as folhas de jornal abrindo-lhes as pálpebras piscantes. E logo de cada fronteira distante subiu um cheiro de pólvora perseguindo-me até em casa...”), o qual casa temática e estilisticamente com a música. Novamente, o dedilhado ágil do violão sobre acordes difíceis de executar dá à interpretação uma consistência melódico-harmônica sui generis, algo que somente um instrumentista de alto nível consegue extrair.

Para terminar, Bosco surpreende com uma fusão temporal em que aproxima rock britânico e samba de batuque ao inserir Beatles (“Eleanor Rigby”, anos 60) em Noel Rosa (“Fita Amarela”, anos 30). E como funciona! Completando este pot-pourri, “Trem Bala”, dele, Waly e Cícero, que traz uma mensagem de consciência e esperança às novas gerações, representadas ali pela jovem plateia: “A blitz ali na frente diz que aqui a onda/ tá mais pro Haiti do que pro Havaí/ Se as coisas nos reduzem simplesmente a nada/ de nada simplesmente temos que partir”. A base é de um toque ligeiro, que exige muita destreza, ao mesmo tempo em que intercala cantos com partes quase faladas, além das brincadeiras com a voz a la Clementina de Jesus típicos dele. Bosco, com sua característica simpatia, técnica e prazer pelo o que faz, cativa o público e consegue dar, com a maior naturalidade, um ar jovial ao especial mesmo sendo um artista “das antigas”, provando o quanto MPB, rock, pop e qualquer outra classificação são pura definição de gênero. Tudo é simplesmente música: atemporal e rica a qualquer um que se interesse.

O projeto Acústico da Music Television nacional foi ganhando cada vez mais visibilidade, e não demorou muito para que se tornasse um produto de pura venda para as grandes gravadoras e para a própria MTV. Ironicamente, foi o ótimo acústico de Gilberto Gil, de 1994, o começo do fim, uma vez que o mesmo estourara na mídia, vendendo milhões de discos e alertando de vez as gravadoras para (mais) uma fonte de renda ao sanguessuga e pouco criativo mercado fonográfico. Começaram a vir então shows chatos, incoerentes, duvidosos e megalomaníacos, contrariando totalmente a proposta intimista inicial, e a série, desvirtuada, nunca mais foi a mesma. Se hoje virou moda fazer shows desplugados, às vezes até pautando toda uma turnê em torno disso, o sempre corajoso e arrojado João Bosco é um dos principais responsáveis pela formação do mesmo no Brasil. Mas para o cara que enfrentou a censura do Governo Militar com hinos de resistência e denúncia uma contribuição como esta é apenas mais uma entre as tantas que deu à música brasileira.
********************

FAIXAS:
1. Odilê Odilá (Martinho da Vila, João Bosco)/ Zona de fronteira (João Bosco, Antônio Cícero, Waly Salomão)
2. Holofotes (João Bosco, Waly Salomão, Antônio Cícero)
3. Papel machê (Capinan, João Bosco)
4.  Granito (João Bosco, Antônio Cícero)/ Jade (João Bosco)
5. Quilombo/ Tiro de misericórdia/ Escadas da Penha (João Bosco, Aldir Blanc)
6. Memória da pele (João Bosco, Waly Salomão)
7. E então que quereis...? (Maiakovsky – Versão: Emílio Guerra)/ Corsário (João Bosco, Aldir Blanc)
8. Eleanor Rigby (John Lennon, Paul McCartney)/ Fita amarela (Noel Rosa)/ Trem bala (João Bosco, Antônio Cícero, Waly Salomão)

****************
OUÇA O DISCO