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segunda-feira, 11 de maio de 2020

As 5 melhores do Kraftwerk na escolha dos fãs - Homenagem a Florian Schneider

Florian Schneider, que morreu no último dia 6, foi, tanto quanto Ralf Hütter é, genial. Embora muito se hibridize a atuação de cada um na banda, não só pela coautoria de tudo, pela imagem/estética que se tem deles ou por conta da postura low profile e até arredia diante da mídia (principalmente de Florian), diz que é Florian a verdadeira cabeça da Kraftwerk.

Eberhard Kranemann, um dos integrantes da correligionária de krautrock Neu!, é categórico: “Para mim, Florian foi o fundador do Kraftwerk. Ele era a pessoa mais importante do Kraftwerk. Depois, as coisas mudaram, e eu tenho a impressão de que Ralf Hütter passou a ser o líder da banda, mas no começo a ideia toda foi do Florian”. Se Ralf passou a ter maior protagonismo no desenrolar da história de quase 50 anos da banda, Florian foi quem, por exemplo, construiu o primeiro drum machine (a partir de uma unidade de ritmo de um órgão!), a que se escuta em “Tanzmuzik”, de 1973, quando, a partir de então, a bateria tal como se conhecia passou a virar antiguidade. Mais do que isso: ele, Ralf e seus séquitos nos fizeram identificar/assimilar que som emite um computador. O imaginário da humanidade entende essa gênese sonora por causa deles. Isso não merecia um Grammy de Música, mas um Nobel de Ciência!

Como “Tanzmuzik”, poderia lançar aqui como exemplo inúmeras outras de autoria dele, esse esteta da era moderna. Várias da Kraftwerk, do "Radio-Activity", do "Trans-Europe Express", do "Authoban", do "The ManMachine". A precisa homenagem do Bowie a eles e a ele, "V-2 Schneider", também caberia. Mas não deixo só a mim esta tarefa. Convido fãs de Kraftwerk para escolherem a suas 5 preferidas, o que talvez nos faça conseguir exprimir um pouco da magnitude da genial obra de Florian Schneider-Esleben .

Daniel Rodrigues





"A Kraftwerk foi uma banda que eu conheci bem no momento que eu estava curtindo essas bandas antigas e mais experimentais, como New Order e Depeche Mode. A primeira música que eu ouvi foi 'The Robots' e vi o clipe naquele momento. Achei genial. Daí baixei o álbum deles chamado 'The Mix', que me marcou bastante. Hoje em dia as músicas todas têm elementos eletrônicos e, basicamente, eles foram os precursores nisso. Daí fico imaginando o pessoal do final dos anos 70 ouvindo Kraftwerk e pensando: 'Ouvir isso é dar um pulo para o futuro!' kkk."
- “Radio-Activity” (“Radio-Activity”, 1975)
- “Trans-Europe Express” (“Trans Europe Express“, 1977)
- “The Robots” (“The Man-Machine”, 1978)
- “Computer Love” (“Computer World”, 1981)
- “Pocket Calculator” (“Computer World”, 1981)




"Assisti à apresentação que o grupo Kraftwerk fez no Cais do Porto, aqui no Rio, em 2004. Foi o grande show da minha vida! Assisti Florian e Ralf fabricarem ali, aos meus olhos, o que definiu todo um mover musical posterior dentro do pop. Ali, bem na minha frente! Aquela apresentação me marcou para toda a vida."
- “Computer World” (“Computer World”, 1981)
- “Home Computer” (“Computer World”, 1981)
- “Numbers” (“Computer World”, 1981)
- “Tour de France” (single “Tour de France”, 1983, e “Tour de France Soundtracks”, 2003)
- “The Telephone Call” (Electric Café”, 1986)



"Muito triste o que aconteceu, mas faz parte não é? Difícil ver nossos heróis indo embora. Cinco músicas de uma das minhas bandas preferidas!"

- “Kometenmelodie II“ (“Autobhan”, 1974)
- “Antenna“ (“Radio-Activity”, 1975)
- “The Man-Machine“ (“The Man-Machine”, 1978)
- “Trans Europe Express“ 
- “Musique Non Stop” (Electric Café”, 1986)




"Eu conheci o Kraftwerk graças ao funk carioca! Viu como o funk salva?! Na verdade, conheci Africa Bambaata e Kraftwerk nos programas de funk da rádios Imprensa e Rádio 98. Entonces, eles fazem parte da minha vida desde criança, rárá!!  Isso também aconteceu com os desenhos animados e meu caso de amor com o jazz. Essas são as minhas preferidas."
- “The Man Machine” 
- “Computer World”
- “Sex Object” (Electric Café”, 1986)
- “Boing Boom Tschak” (Electric Café”, 1986)
- “Vitamin” (“Tour de France Soundtracks”, 2003)




"Difícil selecionar cinco músicas sendo que, pelo menos, dois álbuns da Kraftwerk são inteiramente indispensáveis: 'Trans-Europe Express' e 'Die Mensch-Maschine', que se tratam de instituições movidas por setores prazerosos que merecem muita atenção e preservação. Nossas sinapses agradecem."
- "Tanzmusik" (“Ralf und Florian” 1973)
- "Radio-Activity" 
- "Europe Endless" (“Trans-Europe Express”, 1977)
- "The Hall of Mirrors" (Trans-Europe Express”, 1977)
- “The Model" e "Neon Lights" (“The Man-Machine”, 1978)



"Minha escuta sempre se encantou com a atmosfera que o Kraftwerk possui. Tudo é  música, inclusive os silêncios e as performances. Tudo está  criado com um propósito . A contribuição é inegável e muito contagiou a todos."
- “Computer World”
- "The Hall of Mirrors"
- "Neon Lights"
- “Tour de France”
- “Kometenmelodie II“



"Curto muito Kraftwerk!"

- “The Model”
- “Autobahn” (“Autobahn”, 1974)
- “Radio-Activity”
- “The Robots”
- “The Hall of Mirrors”



"Impressiona-me que, assim como um Kubrick ou um Tarkovski no cinema, a obra da Kraftwerk é pequena em relação ao tempo de atividade, no caso da banda, quase 50 anos. São apenas 7 discos de músicas inéditas (tirando o de mixes e os ao vivo) e, grosso modo, todos essenciais. Um pouco como fiz lá na adolescência, quando apresentei meu primeiro programa de rádio na antiga Ipanema, em 1995, no saudoso Clube do Ouvinte, seleciono um pouco de cada época da banda para dar esse panorama de 5 faixas. Afinal, considero-lhes tudo essencial."
- “Airwaves” (“Radio-Activity”, 1975)
- “Trans-Europe Express”/ “Metal on Metal” (“Trans-Europe Express”, 1977)
- "Neon Lights"
- “Home Computer”
- "Elektro Kardiogramm" (“Tour de France Soundtracks”, 2003)




"Que tarefa difícil escolher só cinco!!! A gente fica pensando: 'Mas e aquela...', 'E aquela outra...' e 'Como é que aquela outra vai ficar de fora?'. É  um dilema. Esforçando-me, brigando comigo mesmo pra deixar alguma de fora, aí vão minhas cinco."
- “Ruckzuck” (“Kraftwerk”, 1971)
- “Kometenmelodie II“
- “Airwaves”
- “The Model”
- “It's More Fun to Computer” (“Computer World”, 1981)




“O Kraftwerk é mesmo uma raça rara: em uma carreira que se estende por 40 anos*, este é um grupo que nunca gravou um disco ruim sequer. De 1973 em diante, o Kraftwerk desenvolveu um estilo eletrônico único e completamente sedutor, alcançando seu auge em três álbuns essenciais: ‘Trans-Europe Express’, ‘The Man-Machine’ e ‘Computer World’, este último sem dúvida sua melhor definição. Não havendo uma compilação final de maiores sucessos de mercado, eis a seguir meu guia para as músicas* essenciais do Kraftwerk”.
- “Kristallo” (“Ralf und Florian”, 1973)
- “Autobahn” (single “Autobahn”, 1975)
- “Spacelab” (“The Man-Machine”, 1978)
- “Radioactivity” (“The Mix”, 1991)
- “La Forme” (“Tour de France Soundtracks”, 2003)

* Trecho do livro “Kraftwerk Publikation: A Biografia”, de 2012, quando a banda havia completado pouco mais de quatro décadas
** Buckley listou os “20 Bits” clássicos da Kraftwerk. Extraímos dessa lista 5 músicas não mencionadas nas outras listas








sábado, 30 de janeiro de 2016

Júpiter Maçã - “A Sétima Efervescência” (1997)





"Em algum lugar entre Roberto Carlos,
Rita Lee e Syd Barret,
 Júpiter sente seu corpo derreter,
visita planetas e conversa com seres imaginários.
'Loki' é elogio.”
Alexandre Matias,
revista Rolling Stone Brasil




Flávio Basso é visto por muitos, por setores da crítica especializada, principalmente, como um músico de extremo talento, arrojado e inventivo, um multi-instrumentista de mão cheia. Um de seus álbuns, “Plastic Soda” (Trama, 1999), totalmente escrito, produzido, arranjado e executado por ele, chegou a ser premiado, em 2000, como o melhor disco do ano pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA), recebendo também o Prêmio Açorianos, concedido pela Secretaria de Estado da Cultura/RS. Em votação feita por cerca de 50 músicos, críticos, jornalistas e produtores musicais, para a revista Aplauso, publicada em 2007, “A Sétima Efervescência”, seu primeiro álbum solo, foi eleito o melhor álbum da história do rock gaúcho. O mesmo disco foi eleito também pela revista Rolling Stone Brasil (n. 13, outubro de 2007, p. 127) como um dos 100 melhores álbuns brasileiros de todos os tempos, figurando na 96º posição. Na ocasião, assim se pronunciou a revista:
“Um raio lisérgico atingiu a cabeça do ex-Cascavelletes Flávio Basso nos anos 1990 e ele reuniu diferentes pontas soltas pelo rock – Jovem Guarda, mod, garagem e psicodelia – em um disco forte, coeso e chapado. Começa com “Um Lugar do Caralho”, um  Cavalo-de-Tróia que não prepara o ouvinte para a chuva Technicolor de referências que flutuam ao redor do compositor como alucinações sorridentes. Em algum lugar entre Roberto CarlosRita Lee e Syd Barret, Júpiter sente seu corpo derreter, visita planetas e conversa com seres imaginários. “Loki” é elogio”.
Aqui, duas abordagens sobre Flávio Basso, o Júpiter Maçã, que trazem à luz sua representatividade e complexidade dentro da cena musical rock gaúcha e brasileira.


Estrangeirismos, fantasias e complexidade de Júpiter Maçã

O texto do jornalista Alex Antunes, publicado no portal Yahoo! Notícias, em 23/12/2015, abordando a morte de Flávio Basso, músico gaúcho conhecido como Júpiter Maçã, se caracteriza, sobretudo, por sua pronunciada pessoalidade. Dizendo-se fã do álbum “Hisscivilization”, lançado em 2002, declarando admiração por certas composições do artista recém-falecido, Antunes também menciona o amigo pessoal Cisco Vasques – produtor audiovisual com quem Júpiter havia trabalhado –, refere-se à própria timeline como plataforma de acesso ao mundo e, de quebra, utiliza Rogério Skylab como recurso para fazer um autoelogio sutil, o trampolim de um pequeno panfleto classista.
O escrito, no entanto, para além do tom auto-centrado, possui outras características interessantes: é cheio de sinuosidades, insinuações e implicâncias. Por trás delas – ou junto delas – encontram-se distintos julgamentos de valor, nunca explicitados ou assumidos com franqueza. A começar pelo próprio título: “O crepúsculo do Zé Louquinho”, infantil, brincalhão e jocoso, numa primeira leitura, depreciativo e desrespeitoso, numa segunda passada de olhos.
Antunes reclama cautela quanto ao uso abusivo da expressão “gênio” para definir Basso, vida e obra. É um alerta, sem dúvida, apropriado. Muito embora se esqueça de considerar aí, nesse flagrante exagero retórico, o impacto da notícia da morte e o próprio carinho que, assim, mal elaborado, se manifesta publicamente, no calor do momento. De todo modo, reconhece, trata-se de um músico “talentoso” e inspiradíssimo. Ou seja: Antunes considerou mais eloquente a imprecisão do que a espontaneidade dos admiradores de Júpiter Maçã. Para ele, o músico falecido seria, em realidade, mais “chapado e folclórico” do que propriamente “genial”.
Aponta então uma razão adicional pela qual “estranhou” as narrativas e os depoimentos que atravessavam, em profusão, naquele momento, sua timeline: o “fator Gainsbourg”, isto é, a capacidade de certos artistas provocarem maior comoção, serem melhor acolhidos, por sua base de fãs, depois que morrem.
São considerações tão problemáticas quanto provocativas. Por um lado, servem ao necessário debate público sobre a figura e o legado musical de Júpiter Maçã. Por outro, contudo, são afirmações frágeis, que escondem vieses e limitações pessoais, limitações de perspectiva.
Obviamente, não se pode estipular com clareza a linha divisória entre a “genialidade” e a “chapação”, o caráter “folclórico” atribuído ao gaúcho Basso. Não é uma distinção fácil de ser feita, afinal de contas. Ao entendê-lo e ao enunciá-lo como “genial”, os fãs poderiam ter em mente, justamente – talvez tivessem em mente, de fato – os momentos em que, para eles, um criador “chapado” ganhou corpo, alçando-se muito acima de qualquer expectativa média ou qualquer previsibilidade que se pudesse ter. O terreno da música pop, mais do que qualquer outro campo de produção artística, é ideal para que proliferem embaralhamentos (bem como epifanias) deste tipo. A rigor, em se tratando de Júpiter Maçã, é extremamente difícil separar com clareza tais personificações (o “gênio”, o “folclórico” e o “chapado”). A não ser que se queira, deliberadamente, mais do que enfrentar a complexidade viçosa que ele carrega, produzir insinuações e desacreditações sutis a respeito dela. É o que faz Antunes. Desse modo, Júpiter resulta, no mínimo, como um tipo suspeito.
E há mais. Trata-se de focar, num tom crítico e severo, o “comportamento abusivo do gênio incompreendido, como um todo”. Aqui, através de outra definição vaga e inespecífica, sugere-se algo sobre a conivência necrófila dos fãs e o apego dos gaúchos aos “mitos datadões do rock” clássico. Em outros termos, está se falando sobre perversidade e culpabilização dos fãs (assim equiparáveis, num extremo radicalíssimo, à criminalização do próprio músico, exigida conforme episódio relatado [ou melhor: insinuado, apenas, sem o devido trato jornalístico]). Está se falando ainda sobre a desatualização dos gaúchos, presos em clichês trágicos e românticos, incapazes de ceder diante do curso natural e incorrigível da história (leia-se: as mãos do mercado). Júpiter Maçã deveria ter se tornado Cidadão Instigado, assevera Antunes.
Ou seja: são avaliações muito parciais, muito auto-centradas, que advogam para si uma centralidade e uma razão centralizadora incapazes, em última instância, de dar conta das mutações descentralizadoras, da criação policêntrica, do exercício de dissolução de núcleos de poder e força estética que marcaram, permanentemente, a trajetória de Flávio Basso. Numa pérola, Alex Antunes chega a dizer que Basso “não estava se embatendo com nada real”, parecendo não reconhecer que este suposto ente imaginário, esta fantasia doente, tirou-lhe, por fim, a vida real de que gozava. É o caso raro de uma irrealidade mortal.
O artigo termina abruptamente. Deixa-nos a sensação de que faltou complementar o argumento, assinar a pintura, assumindo-lhe, a ferro e fogo, a autoria. Esta falta parece o produto de um recuo político e estratégico – jogadas ao ar, como já estão, as insinuações. E Júpiter Maçã, claro, “pode ser considerado vítima de uma doença, a da adição a substâncias”. Ponto. Assim como Alex Antunes pode não saber exatamente o que fala. Ou pode também não querer dizê-lo integralmente, talvez por razões pessoais, razões que desconhecemos, que não podem ser ditas ou ouvidas; talvez por simples (e inconfessável) respeito ao morto, aos estrangeirismos, às fantasias e à complexidade da vida que ele deixou.


Júpiter Maçã em Porto Alegre*

Flávio Basso foi uma das figuras mais controversas da música jovem feita no Rio Grande do Sul nos últimos trinta anos. É também um dos maiores talentos já vistos na cena local, sem sombra de dúvida. De fato, notoriedade e controvérsia não lhe faltaram em momento algum. Gostaríamos de examinar aqui, em função de sua representatividade, o modo como este artista singularíssimo se traduziu e se deixou traduzir no imaginário da cidade.
O bar Garagem Hermérica, por exemplo, situado na rua Barros Cassal, entre 1992 e 2013, foi o ambiente (de contatos, bebedeiras, vínculos afetivos e circulação de informações) no qual "A Sétima Efervescência" (1997), seu primeiro álbum solo, foi concebido. Por hipótese, pode-se dizer (pode-se suspeitar, pelo menos) que o Garagem Hermética – em sua primeira fase (cf. Leo Felipe, 2014) – é justamente o “lugar do caralho”, que ele canta numa de suas canções mais conhecidas, a música de abertura, o primeiro grande hit do álbum.
“Eu preciso encontrar/ Um lugar legal pra mim dançar/ E me escabelar/ Tem que ter um som legal/ Tem que ter gente legal/ E ter cerveja barata/ Um lugar onde as pessoas/ Sejam mesmo afudê/ Um lugar onde as pessoas/ Sejam loucas / E super chapadas/ Um lugar do caralho/ Sozinho pelas ruas de São Paulo/ Eu quero achar alguém pra mim/ Um alguém tipo assim/ Que goste de beber e falar/ LSD queira tomar/ E curta Syd Barrett e os Beatles/ Um lugar e um alguém/ Que tornarão-me mais feliz/ Um lugar onde as pessoas/ Sejam loucas e super chapadas/ Um lugar do caralho/ Lugar do caralho.”
No entanto, para encontrarmos Porto Alegre inscrita na obra de Júpiter Maçã, não devemos procurá-la explicitada, límpida e fácil, prontamente exposta nas letras das composições. Do ponto de vista referencial, acreditando-se então em sua carga denotativa, “Um Lugar do Caralho” narra buscas noturnas e aventuras lisérgicas paulistanas. É a cidade de São Paulo que funciona como um campo de ações, no qual anunciam-se algumas vontades e emerge uma pequena série de referências simbólicas (que são também referências anímicas). Porto-alegrense, no caso, é a coloquialidade, o repertório de gírias e o sotaque empregados.
Convém lembrar que o rótulo “rock gaúcho”, como disseram Humberto Keske e Lidiani Lehnen (2012), antes de indicar uma procedência geográfica, indica um certo acento, um certo dialeto – um dialeto gaúcho, dizem os autores –, alguma insularidade, “moldada entre o conservadorismo e a vanguarda cultural” (Keske e Lehnen, 2012, p. 521). “A Sétima Efervescência” é assim: conservador (pois revivalista) e vanguardista, quase displicente em relação ao horizonte real em que está imerso. Quase nada é dito sobre Porto Alegre, sobre a vida em Porto Alegre. A rigor, não há ali nenhum localismo, nenhum tradicionalismo, nenhuma cultura gaúcha (num sentido folclórico ou etnográfico, ao menos).
A cidade deixa-se avistar apenas de passagem, numa ou noutra menção, numa ou noutra estrofe, um tanto lateral e circunstancialmente. É o caso das canções “Querida Superhist x Mr. Frog” (que diz: “Hey querida, domingo vamos passear lá no Parque da Redenção/ Vamos viajar”) e “Eu e Minha Ex” (“Eu e minha ex/ Na tempestade/ Sob o mesmo guarda-chuva/ Pelas alamedas de Porto Alegre/ Do Mercadão até o Bom Fim). E isto é tudo. Com exceção de “Canção para Dormir”, que fala, muito de relance, sobre uma lenda típica da região sul do Brasil (“Eu acredito em fantasmas/ Em mula sem cabeça/ Negrinho do Pastoreio”), não há mais nada. Absolutamente nada. E não faz a menor falta!
Todavia, esta desaparição da cidade do universo temático do artista se mantém nos quatro discos posteriores? Em linhas gerais, sim. Como predominância, sim. Os olhos de Júpiter não estão vidrados na cidade. Muito embora, algumas ocorrências sinalizem certas nuances e/ou variações importantes. É o caso da canção “Bridges of Redemption Park”, de “Plastic Soda”, uma bossa nova escrita como uma crônica afetiva sobre o Parque da Redenção, cuja letra diz: “Brigdes of Redemption Park/ So little/ So chinese/ So guiding/ So inviting/ There is few Buddhist and Christians/ Some ‘gloomy’/ And people who drop out to see…”.
Mas sua singularidade não reside apenas nisto, no fato de ser um aparte, uma ilha temática – um retrato de Porto Alegre fazendo-se então visível –, num conjunto de obsessões e preocupações outras, muito mais habituais, quase sempre na linha “sexo, drogas e rock and roll”, apresentadas em tônicas mais ou menos ácidas, conforme o estilo musical invocado. Trata-se de uma bossa nova cantada em inglês, versando sobre um conhecido parque situado próximo ao centro da cidade. No entanto, de algum modo, o cenário descrito, em seu significado e em sua aderência local, é contradito e duplamente neutralizado, seja pelo idioma (o inglês, língua universal), seja pelo imaginário construído em torno do gênero (o caráter nacional, não necessariamente regionalista, da bossa nova).
Mas há outros casos equiparáveis. Um deles é “Casa de Mamãe”, do álbum “Uma Tarde na Fruteira”. Num trecho, a letra diz o seguinte:
“Olhando os mísseis na tevê/ Tomando chá/ Tô hospedado na capital/ Com Thalita F. Jones/ Na casa de mamãe/ Outra vez/ Na casa de mamãe/ Além disso eu nem progredi/ No meu blues tropicalista/ No meu blues neo-modernista/ Na minha canção mais estereofônica/ Eu gosto de Porto Alegre/ Eu gosto de Porto Alegre/ Eu gosto de Porto Alegre/ Eu gosto de Porto Alegre.”
É um relato enfático, de tons intimistas e metalinguísticos, mas que pouco diz verdadeiramente sobre a cidade. Recorrer, portanto, ao conteúdo manifestado nas letras não é, decididamente, uma boa estratégia. Não só porque canções como “Casa de Mamãe” e “Bridges of Redemption Park” perfazem um grupo minoritário, junto com mais duas ou três, mas porque a relação de Júpiter Maçã com Porto Alegre é mesmo muito mais complexa, podendo ser decomposta e examinada a partir de várias outras angulações complementares. Em primeiro lugar, pode-se cotejá-la à trajetória, às fases da carreira do artista, que vai amadurecendo e se transformando, artisticamente, que vai sendo reconhecido na medida em que se constitui um mercado midiático (um conjunto de rádios e espaços de mídia impressa, por exemplo) e a própria cultura do rock local.

* O texto é parte de um artigo maior e mais desenvolvido, publicado no México, como um capítulo independente, num volume sobre música e cidade na América Latina. A publicação saiu no primeiro semestre de 2015. Aqui, alguns pequenos ajustes foram feitos. A referência correta é: SILVEIRA, Fabrício. Porto Alegre en el espejo partido de Júpiter Maçã. In: VARGAS, Herom y KARAM, Tanius (eds). De Norte a Sur: música popular y ciudades en América Latina. Apropiaciones, subjetividades y reconfiguraciones. Mérida (Yucatán, México): Secretaría de la Cultura y las Artes de Yucatán, D. R. Consejo Nacional para la Cultura y las Artes, Editorial Libro Abierto, 2015, p. 347-376. Agradeço a Herom Vargas e Tanius Karam, os organizadores do livro.

Referências
FELIPE, Leo. A Fantástica Fábrica. Porto Alegre – RS: Publicatto Editora, 2014.
KESKE, Humberto Ivan; LEHNEN, Lidiani. Na trilha sonora dos pampas: a batida pesada do rock ‘n’ roll a la gaúcho. Rio de Janeiro – RJ, Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), revista Polêmica, v. 11, n. 3, julho/setembro de 2012, pp. 503-523.

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FAIXAS:

  1. "Um Lugar do Caralho" – 4:58
  2. "As Tortas e as Cucas" – 4:39
  3. "Querida Superhist x Mr. Frog" – 5:40
  4. "Pictures and Paintings" – 3:09
  5. "Eu e Minha Ex" – 5:52
  6. "Walter Victor" – 3:43
  7. "As Outras Que Me Querem" – 2:43
  8. "Sociedades Humanóides Fantásticas" – 6:42
  9. "O Novo Namorado" – 3:12
  10. "Miss Lexotan 6mg Garota" – 4:57
  11. "The Freaking Alice (Hippie Under Groove)" – 5:09
  12. "Essência Interior" – 7:00
  13. "Canção Para Dormir" – 3:13
  14. "A Sétima Efervescência Intergaláctica" – 2:38

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OUÇA O DISCO


terça-feira, 17 de maio de 2016

João Bosco - "Acústico" (1992)


“Na direção de programação da MTV,
participei da implantação de novos programas,
entre [estes] o Acústico.
Fiz a direção geral com Rogério Gallo
e a direção do programa ficou a cargo do Adriano Goldman.
Na véspera sentamos como João Bosco no hotel
para decidir o repertório.
Ele pegou o violão e disse ‘vai ser assim’.
E nós ‘então tá bom’.”
Marcelo Machado,
cineasta e um dos responsáveis
por lançar a MTV Brasil em 1990.


Quem assiste hoje a MTV Brasil talvez não acredite que aquele canal acéfalo foi um dia a coisa mais interessante da época da televisão brasileira pré-canais por assinatura. No início dos anos 90, aquela nova e arejada emissora de sinal UHF, mesmo que a precária aparelhagem dos televisores de então gerasse uma sintonia com imagem chuviscada para desafortunados como eu, trazia um sopro de modernidade e até de vanguarda diante das poucas alternativas de TV aberta que se tinha, fosse pela estética dos videoclipes, pelas novidades musicais e plásticas, pela concepção descomplicada de apresentação e do Jornalismo ou mesmo pela programação.

Uma das atrações advindas foi o Acústico MTV, reprodução do projeto também recente na MTV norte-americana, o MTV Unplugged, cuja ideia era trazer releituras do repertório de artistas que rodavam na emissora através de clipes em especiais de meia hora. Isso tinha tudo para dar certo também no Brasil, país em que o canal vivia uma fase de crescimento de audiência e cujo estilo musical tradicionalmente valoriza a composição sem eletrificação. Depois de estrear com dois nomes do rock brazuca, Barão Vermelho e, em seguida, Legião Urbana, o terceiro escolhido foi um verdadeiro representante da MPB: João Bosco. O que naquela época podia soar estranho a um canal jovem, visto que música popular era ainda muito vista como “música para velhos”, se justificou plenamente, o que se confere no excelente álbum “Acústico”.  Virtuose do violão e dono de estilos de tocar e cantar muito próprios e apurados, João Bosco presenteou o público com um apanhado cirurgicamente bem pinçado de seu extenso cancioneiro, criando aquele que é talvez o melhor unplugged realizado nesses pagos tropicais.

O êxito começa na concepção: ao contrário de todos os outros acústicos, por mais incrível isso pareça em se tratando de um formato de apresentação no qual se propõe justamente uma sonoridade intimista, João Bosco o fez sozinho no palco, apenas voz e violão. Como seus mestres Baden Powell e João Gilberto. É que com um violão em punho, João Bosco faz chover! Se para outros fariam falta percussão e acompanhamentos, ao autor de “O Bêbado e a Equilibrista” não há nenhuma necessidade. Recuperando canções de várias fases, desde os clássicos dos anos 70 imortalizados por Elis Regina até sucessos recentes à época do lançamento, o cantor e compositor, repetindo o conceito de arranjo que já acertara em “100ª Apresentação”, de 1983, juntou isso a temas escritos com parceiros de peso. Um destes é “Odilê Odilá”, feita com Martinho da Vila. Após uma introdução solo ao violão impressionante em que já diz a que veio – onde dobra o som do instrumento, dando a nítida impressão de terem dois violonistas tocando –, Bosco abre o show com este samba no qual recupera, bem a seu estilo e ao de Martinho, referências da africanidade e dos ritmos brasileiros de raiz, engendrando um maxixe de cores modernas. Esta se emenda com “Zona de Fronteira”, parceria com os poetas Antônio Cícero e Waly Salomão do então recém-lançado álbum homônimo que, por outra via, também toca na temática africana: ”Rei/ Eu sei que sou/ Sempre fui/ Sempre serei/ Obá/ De um continente por se descobrir/ Já alguns sinais/ Estão aí/ Sempre a brotar/ Do ar/ De um território que está por explodir”.

Outra da parceria com Cícero e Waly, a intensa “Holofotes” dá no formato voz-violão a liberdade ideal para Bosco mostrar toda sua técnica e sensibilidade, numa interpretação que supera a versão original. Sob uma base sincopada, a letra junta versos de dois dos maiores poetas brasileiros: “Desde o fim da nossa história/ Eu já segui navios/ Aviões e holofotes/ Pela noite afora/ Me fissurarm tantos signos/ E selvas, portos, places/ Línguas, sexos, olhos/ De amazonas que inventei...”. Hit nacional alguns anos antes, a bela “Papel Machê” se encaixa bem no repertório por ser conhecida da plateia, contrastando com outros números bastante ligados ao contexto dos anos 70 e talvez distantes da realidade daquele público então presente.

Este papel de resgate cabe ao medley com “Quilombo” (1973), “Tiro de misericórdia” (1977) e “Escadas da Penha” (1975), composições dos primeiros discos do artista e nas quais a parceria dele com Aldir é determinante. Nas três, a forte temática do candomblé e da herança da África negra. A mais impressionante e provavelmente melhor do espetáculo – muito por causa do violão de Bosco, que mantém uma batida de samba intensa, repetitiva e rápida, forjando um clima espiral hipnótico – é “Tiro...”, a qual conta a história de um menino do morro aparentemente comum, mas que, por conta da proteção dos orixás, era invejado e malquisto pelos inimigos. A letra de Aldir é de uma riqueza literária espantosa, aproximando-se da prosa de Jorge Amado uma vez que engendra um espaço narrativo em que coabitam real e imaginário, concreto e transcendência, ou seja, o mundo dos homens (“Aiyê”) e o universo das forças não-terrenas (“Òrun”). Os versos dizem: “Exus na capa da noite soltara a gargalhada/ e avisaram a cilada pros Orixás/ Exus, Orixás, menino, lutaram como puderam/ mas era muita matraca e pouco berro”. Para arrematar, Bosco engata no mesmo ritmo “Escadas...”, que versa sobre a mesma potência das entidades místicas sobre a realidade ao colocar várias situações em que, ao serem influenciadas pelo poder das preces feitas na igreja da Penha (“A doideira da chama/ Chamou [...] O remorso num canto/ Cantou...”, por exemplo), alteram seu estado (“A doideira da chama/ Velou [...] O remorso num canto/ Guardou...”). Nada menos que admirável.

Outro medley traz as “líticas” “Granito” e “Jade”. A primeira, parceria com Cícero, questiona as semelhanças essenciais entre homem e pedra, numa abordagem em certo aspecto parecida com a do candomblé. Já “Jade”, do próprio Bosco, trata-se de uma balada de romantismo tocante, tanto por melodia quanto por letra (“Pedra que lasca seu brilho/ E queima no lábio/ Um quilate de mel/ E que deixa na boca melante/ Um gosto de língua no céu...”). “Romantismo” e “essência” são as palavras-chave de “Memória da Pele”, outra dele com Waly. Que versos lindos e profundos esses: “Eu já esqueci você, tento crer/ nesses lábios que meus lábios sugam de prazer/ sugo sempre, busco sempre a sonhar em vão/ cor vermelha/ carne da sua boca/ coração”.

“Corsário” é mais um momento especial. De relativo sucesso no final dos anos 80, essa canção traz um dos melhores poemas/letras de Aldir (e olha que são várias a disputar!). “Meu coração tropical/ está coberto de neve, mas/ ferve em seu cofre gelado/ e a voz vibra e a mão escreve: mar”. O lirismo é tal que Bosco, com assertividade, abre o tema com o poema “E então, que quereis...?”, do poeta russo Maiakowsky (“Fiz ranger as folhas de jornal abrindo-lhes as pálpebras piscantes. E logo de cada fronteira distante subiu um cheiro de pólvora perseguindo-me até em casa...”), o qual casa temática e estilisticamente com a música. Novamente, o dedilhado ágil do violão sobre acordes difíceis de executar dá à interpretação uma consistência melódico-harmônica sui generis, algo que somente um instrumentista de alto nível consegue extrair.

Para terminar, Bosco surpreende com uma fusão temporal em que aproxima rock britânico e samba de batuque ao inserir Beatles (“Eleanor Rigby”, anos 60) em Noel Rosa (“Fita Amarela”, anos 30). E como funciona! Completando este pot-pourri, “Trem Bala”, dele, Waly e Cícero, que traz uma mensagem de consciência e esperança às novas gerações, representadas ali pela jovem plateia: “A blitz ali na frente diz que aqui a onda/ tá mais pro Haiti do que pro Havaí/ Se as coisas nos reduzem simplesmente a nada/ de nada simplesmente temos que partir”. A base é de um toque ligeiro, que exige muita destreza, ao mesmo tempo em que intercala cantos com partes quase faladas, além das brincadeiras com a voz a la Clementina de Jesus típicos dele. Bosco, com sua característica simpatia, técnica e prazer pelo o que faz, cativa o público e consegue dar, com a maior naturalidade, um ar jovial ao especial mesmo sendo um artista “das antigas”, provando o quanto MPB, rock, pop e qualquer outra classificação são pura definição de gênero. Tudo é simplesmente música: atemporal e rica a qualquer um que se interesse.

O projeto Acústico da Music Television nacional foi ganhando cada vez mais visibilidade, e não demorou muito para que se tornasse um produto de pura venda para as grandes gravadoras e para a própria MTV. Ironicamente, foi o ótimo acústico de Gilberto Gil, de 1994, o começo do fim, uma vez que o mesmo estourara na mídia, vendendo milhões de discos e alertando de vez as gravadoras para (mais) uma fonte de renda ao sanguessuga e pouco criativo mercado fonográfico. Começaram a vir então shows chatos, incoerentes, duvidosos e megalomaníacos, contrariando totalmente a proposta intimista inicial, e a série, desvirtuada, nunca mais foi a mesma. Se hoje virou moda fazer shows desplugados, às vezes até pautando toda uma turnê em torno disso, o sempre corajoso e arrojado João Bosco é um dos principais responsáveis pela formação do mesmo no Brasil. Mas para o cara que enfrentou a censura do Governo Militar com hinos de resistência e denúncia uma contribuição como esta é apenas mais uma entre as tantas que deu à música brasileira.
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FAIXAS:
1. Odilê Odilá (Martinho da Vila, João Bosco)/ Zona de fronteira (João Bosco, Antônio Cícero, Waly Salomão)
2. Holofotes (João Bosco, Waly Salomão, Antônio Cícero)
3. Papel machê (Capinan, João Bosco)
4.  Granito (João Bosco, Antônio Cícero)/ Jade (João Bosco)
5. Quilombo/ Tiro de misericórdia/ Escadas da Penha (João Bosco, Aldir Blanc)
6. Memória da pele (João Bosco, Waly Salomão)
7. E então que quereis...? (Maiakovsky – Versão: Emílio Guerra)/ Corsário (João Bosco, Aldir Blanc)
8. Eleanor Rigby (John Lennon, Paul McCartney)/ Fita amarela (Noel Rosa)/ Trem bala (João Bosco, Antônio Cícero, Waly Salomão)

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OUÇA O DISCO






terça-feira, 10 de junho de 2014

COTIDIANAS ESPECIAL nº300 - O Encadernador de Livros


O Encadernador de Livros
de Jowilton Amaral da Costa


— Bom dia. O senhor é o seu Lobato? — Perguntou Antônio, estudante de Medicina do segundo período da Universidade Federal de Sergipe. Um jovem alto, com grandes olhos azuis e cabelo loiro pixaim, com longos dreadlocks escondidos embaixo de uma touca com as cores da bandeira jamaicana. Um observador menos atento não suspeitaria minimamente do tamanho de suas madeixas. Trazia consigo, com muita dificuldade, os três volumes da última edição do Sobotta.
— Sim, sou eu mesmo. Quem é você, filho? — Falou o velho, esticando seu rosto macilento, por entre a janela, a qual o parapeito servia de mesa de trabalho, em direção ao jovem que acabara de chegar, e apertando os olhos, por de trás de duas grossas lentes de grau, rodeadas por uma medonha armação, na tentativa de enxergar melhor seu interlocutor. O velhusco se assemelhava a uma fuinha usando óculos “fundo de garrafa”. Essa imagem fez com que Antônio sufocasse uma gargalhada.
— Sou filho do doutor Porfírio. Ele me mandou aqui para deixar estes livros para o senhor encapar. — Respondeu Antônio, quase bufando, após pousar as “bíblias” no resguardo.
— Ah, sim, que honra. O seu pai é meu cliente há muitos anos. Não só ele, mas também seu avô, seu bisavô, seu... Enfim, toda a sua nobre família, meu caro. Uma linhagem de médicos respeitados em todo país. Não é mesmo?
— É. — Respondeu Antônio sem empolgação.
Justamente por causa dessa “linhagem de médicos respeitados em todo país” que Antônio estava sendo obrigado a cursar Medicina. Logo ele que não suportava ver sangue e morria de medo e asco dos cadáveres que tinha de manipular nas aulas de anatomia. Detestava biologia, detestava a medicina, detestava seu pai por interferir em suas escolhas e, principalmente, odiava a si mesmo por ser um poltrão e não enfrentar o tirano e dizer que seu sonho não era aquele. Ele sonhava em estar em cima de um palco cantando reggae. E realmente era bom nisso, verdadeiramente muito bom. Possuía todos os predicados de um líder de banda de sucesso. Tinha carisma, era bem apessoado, e dominava o público como poucos, além de ser dono de uma voz poderosa, voz de “negão”. Não obstante a sua pele alva, ele sabia que havia genes da mãe África correndo em seu sangue. Seu cabelo provava isso. E se sentia orgulhoso. No entanto, o doutor Porfírio não podia ouvir falar em reggae, muito menos imaginar que seu único filho não haveria de seguir seus passos. O cabelo à moda Rastafári foi engolido muito a contragosto, engasgadamente. Antônio teve que prometer ao pai que cortaria assim que iniciasse as disciplinas profissionalizantes.
— Então você é o Antônio. Conheci você quando ainda era um nenenzinho que apenas engatinhava e chorava. — Falou e sorriu, mostrando seus dentes enegrecidos e soltando um bafo pútrido, com odor de sangue e pus. Antônio não conteve um calafrio de repugnância. Percebeu também que não só o hálito do velho era fétido, e sim todo ele. Seu Lobato parecia estar envolto por uma redoma mal cheirosa. O jovem sentiu-se mal. Precisou respirar profundamente para controlar uma ânsia de vômito que o arrebatou.
— Sim, sou eu mesmo. — Falou apressadamente, prendendo a respiração. Desejava sair de perto daquele sujeito o quanto antes. — Meu pai pediu que o senhor o avisasse por telefone quando os livros estivessem prontos. Ele vem buscá-los pessoalmente.
— Sim, sim, está muito bem. Eu ligarei para o doutor. Ele não disse mais nada? — O velho interrogou.
— Ah, também disse que os livros deveriam ser encadernados com o material especial, e desta vez gostaria de uma cor clara.
— Pois está muito bem. Cor clara. — Concluiu encarando Antônio com uma feição de curiosidade, e emendou:
— O doutorzinho ainda não sabe de nada, não é mesmo? — Seu rosto abriu-se numa carranca esquálida e grotesca. Antônio suspeitou que aquilo fosse um tipo de risada, e não conteve outra tremedeira, desta vez de medo.
— Não sei do que o senhor está falando, seu Lobato.
— Pois muito bem, sim, sim, está tudo certo. Em breve o doutorzinho saberá. Todos de sua família sabem. Sim, sim, todos eles sabem, sabem sim... Sabem sim... —Continuou a repetir as últimas palavras como num mantra, parecendo ter entrado em transe e esquecido completamente a presença do pretenso pop star, que aproveitou para dar o fora dali o mais rápido que pôde.
Seu Lobato, ainda falando só, dirigiu-se aos fundos de sua casa, saindo da exígua sala onde trabalhava encadernando livros. Ele exercia esta profissão há muitos anos, incontáveis anos, sempre na expectativa de pedidos como aquele, que valessem a pena. Um trabalho com o material especial equivale a quase três meses de trabalho com os forros comuns. Três volumes salvariam o ano inteiro. O velhinho com cara de mamífero mustelídeo encontrava-se radiante quando abriu o alçapão ao rés do chão da cozinha e gritou, ajoelhado, olhando para baixo:
— THALES, OH THALES! — Desceu alguns degraus e chamou novamente. — THAAAALES. — Silêncio absoluto. — Não é possível que você esteja dormindo de novo, seu indolente de uma figa. — Ralhou o velho. — THALES, SEU CRETINO! APAREÇA! De repente, surge em meio às trevas do porão um sujeito muito alto, muito gordo e possuidor de uma imensa cabeça, vestido apenas com um fraldão geriátrico. Era Thales. O gigantesco homem, com mais de dois metros de altura, era portador de retardo mental, que o transformara numa criança hipercrescida. Sua idade cronológica era quarenta anos enquanto a mental não passava dos sete.
— Oi mestre. — Disse Thales, levantando uma de suas mãos rechonchudas e acenando para o homenzinho enrugado. — Depois ergueu a perna direita, virou-se de lado, apontando suas nádegas na direção de seu Lobato, fez uma cara de esforço e... “Bruuuuuu bru bru bruuuu”, soltou um sonoro gás pelo seu vaso traseiro. — Ops, desculpe mestre. — Gargalhou.
— Seu moleque malcriado. — Esbravejou o mestre encapador.
O Porão era um misto de curtume e matadouro. Peles, couros e peças de carne incomuns num açougue estavam pendurados por todos os lados. Seu Lobato encaminhou-se para a gaveta onde guardava as peles prontas para uso.
— Maldição. — Exclamou.
— O que aconteceu mestre? Perguntou Thales.
— Não temos mais peles brancas, só pardas e negras. Thales, hoje de madrugada nós sairemos para caçar. — O rosto do gigante iluminou-se.
O porão era na verdade um túnel, com vários corredores e com muitas passagens secretas para superfície. Estendia-se, em baixo do assoalho da cidade, por vários quilômetros quadrados. A antiga casa, situada na colina do Bairro Santo Antônio, próximo à igreja, era da família de seu Lobato há cento e cinquenta anos. Há um século e meio aqueles túneis eram usados em benefício da nobre e milenar arte de encadernar livros com pele humana.
Escolheram para caçada noturna um túnel que conduzia ao centro da cidade, que se exteriorizava dentro de uma casa abandonada a trezentos metros da Rua da Cultura. Aquele era o local predileto de seu Lobato para a espreita de suas vítimas. Na verdade eles estavam numa ruela, quase um beco, cercada por construções antigas em decrepitude e terrenos baldios, que cortava caminho em direção ao terminal rodoviário. Pelo o dia o atalho era muito usado, todavia, durante a noite o lugar se tornava deserto, silencioso e lúgubre. A quietude somente era cortada, aqui e acolá, pela algazarra de grupos de amigos que passavam no entorno. Contudo, sempre acontecia de alguém apressado e corajoso, ou mesmo um desavisado boêmio acabar entrando naquela sinistra passagem, vindo das festas que aconteciam nas proximidades.
Thales estava eufórico, aqueles passeios eram uma grande diversão para ele. Correr atrás das pessoas, vestido e pintado como um palhaço, segurando um enorme porrete, e assustá-las, trazia uma excitação extraordinária a sua limitada mente.
Após uma hora de espera, uma potencial presa aproximou-se. Vinha cambaleante e segurava em um das mãos uma garrafa de bebida. Parecia estar falando sozinho, com um interlocutor invisível. Ele gritava apontando o dedo para as paredes e imprecava cheio de fúria para um ouvinte imaginário. Seus longos cabelos sararás balançavam ao ritmo de sua indignação.
— É isso mesmo que o senhor ouviu, eu vou largar este maldito curso e vou fazer o que eu amo, está me ouvindo, hã? Está me ouvindo, papai? Eu vou largar aquela maldita faculdade.
Enquanto falava também dançava, dando pulinhos de um lado para o outro, jogando os braços para o alto, seguindo uma melodia que só cantava em sua cabeça, ao mesmo tempo em que vertia o líquido da garrafa em caudalosas goladas.
Logo depois da visualização da vítima, Thales saiu furtivamente do esconderijo e levou silenciosamente seu corpanzil para o fim da rua, na outra esquina. O relógio da catedral acabara de anunciar três horas da manhã. Seu coração batia descompassado de emoção. Finalmente, depois de muitos dias, ele iria brincar. Pena que durava tão pouco.
Seu Lobato ficou onde estava aguardando ansiosamente o momento oportuno. Ao ver o jovem bêbado aproximar-se de onde Thales estava, levou a boca um apito e três curtos silvos singraram no ar da madrugada: “Pii, pii, pii.”. Era a deixa que Thales esperava.
Um enorme palhaço segurando um porrete de ferro saiu das sombras e caminhou lentamente para a saída da rua, fechando a estreita passagem com seu imenso corpo, sorriu macabramente e arrastou seu bastão metálico no chão de paralelepípedos. O homem que dançava parou. Tentou acertar seu corpo entorpecido na direção do colosso bizarro a sua frente. Apertou os olhos, balançou para frente e para trás desequilibradamente e falou:
— Mas que “cabrunco” é isso!
Thales começou a andar vagarosamente de encontro a seu novo amiguinho. O pique-e-pega iria começar. A velocidade da aproximação foi aumentando gradualmente, até chegar ao ponto de uma corrida alucinada, com o porrete acima de sua cabeça, firmemente agarrado por suas enormes mãos, enquanto expelia de sua boca um som assustadoramente gutural.
Essa cena “estifenquinguiana” fez com que o ébrio despertasse. Todo o álcool que circulava por seu corpo sublimou como num passe de mágica, dissipando-se, sendo substituída por uma torrencial descarga de adrenalina. Sentiu o gosto metálico na boca, e correu em disparada sem olhar para trás. Quase no mesmo instante avistou uma pequena silhueta, escondida num terreno abandonando, cercada por madeirites, que acenava chamando-o para lá. Não pensou duas vezes e seguiu na direção da mão que balançava. Passou a toda velocidade por uma pequena porta de madeira apodrecida que foi imediatamente fechada atrás de si. Quando se virou, resfolegando, e olhou para o velhinho que lhe encarava, espantou-se e disse:
— Hei, eu conheço... “Plof”. Sua frase foi interrompida por uma machadada, habilidosamente desferida, e com uma potência incrível para um velhinho de aparência tão frágil, que dividiu seu crânio em duas partes como a uma melancia. Minutos depois Thales chegou esbaforido.
— Thales pegue o corpo. — Mandou seu Lobato.
O grandalhão agachou-se e colocou o homem morto embaixo do seu braço direito, como um menino que carrega displicentemente seu brinquedo quebrado. Thales não esboçava nenhum tipo de emoção em suas feições, talvez, apenas, um mínimo de frustração por sua diversão evanescer tão rapidamente.
O corpo foi esfolado, toda a pele retirada delicadamente e com uma precisão cirúrgica, e jogada numa bacia de zinco contendo sal é um pouco de água. Pedaços da traseira também foram salgados e penduradas num varal. Ossos, vísceras e o restante da carne do humano abatido foram jogados para serem corroídos num tonel repleto de ácido fosfórico em altíssima concentração. Todo o sangue foi congelado. O sangue das vítimas era o segredo da longevidade e da vitalidade assombrosas daquele homenzinho espetacular e de seu gigante de estimação.
A curtição de pele humana segue os mesmo passos da convencional de couro animal. No entanto, o tempo levado da pele crua humana até o ponto ideal para a arte da encadernação é muito menor.
Em apenas dois dias a pele do jovem de cabelos rastafári foi usada para encapar os livros de doutor Porfírio, que acabara de chegar de um congresso de Reumatologia na França, e embora estivesse com muita saudade de casa e de seu filho, resolveu passar no “ateliê” de seu Lobato para pegar seus livros. Ele sempre ficava excitado quando via aquela arte. Sua família, oriunda da Europa, mantinha esta tradição desde o século XVII, e ele não via a hora de contar seus segredos para Antônio.
Já com os volumes de anatomia na mão, e se despedindo do velho Lobato, disse empolgadamente:
Ah, seu Lobato, o senhor é mesmo um artista. — Elogiou doutor Porfírio, ao passo que acarinhava seus dedos pela extensão dos volumes, sem imaginar, que sua pele roçava a pele de seu próprio filho. 



Jowilton Amaral da Costa é Cirurgião-Dentista e Escritor, nascido em Fortaleza, Ceará, hoje reside em Nossa Senhora de Lourdes, Sergipe. Tem quarenta anos, é casado e tem duas filhas. Possui cinco contos já publicados (Com a Benção de Deus, O Diário de um Soldado Colérico, Os Movimentos Rápidos dos Olhos, O Amaldiçoado G. T. Sullivam e Prato Frio) em livros de antologias. E mais três a serem publicados em breve (Os Observadores, A Estranha Família K e O Planeta X) também em antologias. Escreve contos de terror, suspense e policial, além de crônicas. Divulga seus textos em sua página Loucos Pensamentos, no facebook (www.facebook.com/loupen).