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quinta-feira, 28 de novembro de 2013

cotidianas #256 - Uma Floresta



Quem é amante de música como eu vai entender essa história, mas quem é fã da banda inglesa The Cure vai, mais do que isso, se identificar. Embora tenha ocorrido há uns bons anos, a sensação daquele acontecimento ainda me é bastante presente. Os “bons anos” a que me refiro significam 23 deles atrás, em 1990. O local: a emblemática loja Mesbla da Voluntários da Pátria, Centro de Porto Alegre.

Era um início de noite de um dia útil qualquer, terça, quarta, qualquer coisa assim. Hora do pico: pessoas pegando condução, umas correndo para os compromissos noturnos, outras voltando para casa, comércio fechando, meretrício abrindo, ambulantes aproveitando o movimento para vender, frotas de coletivos lotando as ruas, muito zunzunzum. Minha mãe, que trabalhava na Senhor dos Passos, combinou comigo de nos encontrarmos ao final de seu expediente, por umas 18h30. Ela precisava comprar algo ou simplesmente pesquisar preços, não lembro ao certo. Lembro, sim, de pegá-la em seu trabalho e rumarmos em direção da Mesbla, por ficar ali perto e por ser um dos poucos estabelecimentos que se mantinham abertos até mais tarde do que o horário normal do comércio.

A Mesbla, para os que não conhecem, era uma loja de departamentos (tal qual uma Magazine Luiza ou Colombo da vida) de origem francesa cuja falência, decretada em 1999, diz-se, se deu por má administração. Porém, naquela época, princípio dos anos 90, a Mesbla ainda reinava, embora, por debaixo dos panos, já se prenunciava a derrocada, o que só veio a público anos depois, quando tentaram em vão salvar o negócio e as lojas foram fechando aos poucos até definhar. Havia outra loja Mesbla na esquina da Otávio Rocha com Dr. Flores (onde funciona hoje uma Manlec). No entanto, a da Voluntários era “A” Mesbla. Majestosa. Moderna. Convidativa. Numa época em que outras boas lojas de departamento já guerreavam entre si com ofertas e preços, as também extintas Grazziotin, Hipo-Incosul, JH Santos e Arapuã (que se situavam se não na mesma rua, no entorno), nenhuma batia a Mesbla. Lá era o shopping de uma Porto Alegre que, naquele então, tinha apenas o Iguatemi como grande centro comercial.

Parte desta importância se devia, certamente, à arquitetura do Edifício Mesbla. Projetado pelo arquiteto Arnaldo Gladosch, em 1944, o prédio, marco da arquitetura comercial da cidade, se já era vistoso por fora, com sua fachada acompanhando a curvatura da rua e cuja superfície explorava a textura dos tijolos em tom terroso-escuro, por dentro, então!... No seu interior, os três primeiros pisos eram integrados através de mezaninos em forma de anéis, enquanto os demais, destinados a escritórios, desenvolviam-se perifericamente, liberando uma área central que possibilitava uma iluminação vinda do cume em todos os pisos de loja. Isso sem falar na visibilidade do seu todo, apreciável de qualquer ponto em que se estivesse.

Depois que aquela Mesbla fechou as portas, antes mesmo de a empresa anunciar a falência, duas situações vividas por mim envolvendo o prédio – hoje pertencente ao Centro Cultural do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia e onde se pretende, em breve, instalar a nova sede do Museu de Arte Contemporânea do Rio Grande do Sul – me geraram sentimentos opostos. Uma delas, em 1997, de puro deleite, quando pude visitar a 1ª Bienal do Mercosul, evento o qual, inteligentemente, se valeu da beleza e da disposição espacial do prédio para integrar lindamente o desenho de sua arquitetura a quadros, esculturas e instalações da nata da arte moderna brasileira. A outra circunstância, no entanto, nada tem de encantadora, pois foi quando, a trabalho, em 2009, fui à TV Ulbra à época em que as emissoras da universidade, então dona do imóvel, se transferiram da cidade de Canoas para lá. Encontrei tudo “remendado”: divisórias, paredes móveis e estúdios montados no hall que, numa lógica funcional e burra, descaracterizaram totalmente o local, dando-me, logo ao entrar, a nítida sensação de que não estava no mesmo lugar. Nada daquele visual clean e do espaço amplo, que fazia destacar com clareza os produtos e as pessoas que circulavam. Não localizei nem a grande escada em alas simétricas ao fundo da área central, nos moldes dos primeiros magazines de departamentos do século XIX, que facilitavam a progressão vertical do público no interior da loja.

Naquele início de noite com minha mãe, no entanto, não subi as escadas da Mesbla. Enquanto ela comprava-pesquisava suas bugigangas noutros andares, eu permaneci no térreo, pois ali ficava o que me interessava: os discos. O setor de Música e Vídeo era ao fundo e à esquerda do salão principal, com seus módulos para LP’s separados por categorias (Cantor Nacional, Banda Nacional, Gauchesco, por exemplo) mais os mostruários de fitas K7 e as de VHS, que não recordo como ficavam expostas. Ao chegar, o vendedor do departamento, um rapaz de uns 30 anos de quem não lembro o nome (perdoem-me, mas quem me conhece sabe que tenho dificuldade de gravar nomes, ainda mais quando de um acontecimento de tanto tempo atrás), cumprimentou-me como pede a conduta de um bom atendimento varejista. Porém, percebi que ele ficou observando (com motivo de sobra) aquele pré-adolescente de 12 anos vestido de blusa preta, calças jeans rasgadas num dos joelhos, tênis tipo basquete sujos, cabelo pixaim com corte quase moicano, óculos de grau com armação redonda e de cor azul fluorescente e, para arrematar, pendurado no pescoço por uma corrente metálica, um crucifixo de ferro fundido de uns 14 cm de altura, que tomava a extensão do tórax, comprado não numa loja de artigos de rock, mas num antiquário da rua Fernando Machado. Sim: eu me vestia desse jeito, algo entre o punk, o dark e eu mesmo. E pior: minha mãe, mais por coragem do que por amor, mesmo que fizesse algum comentário a respeito de um exagero ou outro, andava com seu filho numa boa pelo Centro ou onde fosse. Inclusive em lojas de departamentos.

Como não tinha por hábito comprar filmes para assistir no videocassete, pois me eram caros (alugava-os como solução), meu interesse ali era voltado especialmente para os discos de vinil. Diletante já naquela época, colecionava junto com meu irmão o que me era possível com a mesada, mas a maioria dos discos, inevitavelmente, eram apenas objetos de desejo que eu não cansava de admirar nas prateleiras das lojas. Repetia este ritual de contemplação mais uma vez ali na Mesbla, dedilhando volume após volume para, ávido por conhecer mais, descobrir novos títulos, ver os já conhecidos e aqueles que almejava ter ou rever os que já figuravam na discoteca de casa. Passando pela letra C da fileira de Bandas Internacionais, deparei-me com os LP’s de um dos meus grupos preferidos desde aqueles idos: o The Cure. Tinham posto para venda os mais populares em vendagem e conhecimento do cliente mediano, afinal, tratava-se de uma loja de departamentos que, vendedora de produtos muito mais caros e rendosos, não se preocupava em ser especialista justamente em discos. Disco era coisa para aficionados como eu. E o vendedor.

Havia ali dois ou três do Cure, provavelmente “The Head on the Door”, álbum de carreira repleto de hits da banda, de 1985, e “Standing on a Beach”, de um ano depois, a coletânea com os maiores sucessos de Robert Smith e Cia. até então, um campeão de vendagens. O terceiro, no entanto, não podia ser classificado exatamente um estrondo de vendas. Não era o exótico “The Top” nem o deprê “Pornography”, mas, sim, o único LP oficial ao vivo da banda até aquele momento, de 1984: o “Concert”. Embora fosse dos que já tivesse em casa, puxei-o da pilha com surpresa e emoção e fiquei a admirar a capa. Foi quando ouvi uma voz atrás de mim perguntar-me com empolgação:

- Tu gosta de The Cure?!

Virei-me e constatei que quem me perguntava era o vendedor da loja. Respondi que sim com um sorriso tanto de surpresa quanto de identificação. Comentei que meus preferidos (na época era) do Cure eram o “Pornography” e o “Faith”, os bem gothic-punk, mas que gostava muito, no “Concert”, entre outras coisas, da sonoridade da bateria do Andy Anderson, um negrão que assumira as baquetas do grupo naquela época e que tocava forte como um bate-estacas. Foi visível que o tal moço da loja também se identificou comigo, tendo ficando, inclusive, positivamente espantado por aquele pirralho conhecer e gostar do mesmo que ele, de uma geração mais velha – situação que vira e mexe me ocorria quando era mais guri. Ele ainda disse:

- Eu fui no show deles no Gigantinho. Foi demais. – contou-me com emoção. – Cara, me dá esse disco aqui que eu vou colocar pra rodar.

Sim: ele interrompeu uma Paula Abdul ou George Michael qualquer que tocava sonolentamente na vitrola e substituiu por The Cure. Pelo “Concert”. O som dos alto-falantes, espalhados por toda a loja, saía, tirando as interrupções para os anúncios em voz dos vendedores ao microfone, somente dali. Ou seja: toda a Mesbla estava prestes a escutar The Cure. Ele pôs na primeira faixa. Chiados da agulha no sulco e entra um sobe-som da plateia ovacionando a banda que, percebe-se, entrava no palco naquele instante para abrir o “concerto”. Robert Smith dá boa noite e anuncia a canção de abertura. Andy Anderson faz um longo rolo na bateria conjugando tom-tom e surdo, abrindo caminho para que toda a banda entrasse explodindo naquele clima soturno e denso, de guitarras distorcidas, teclados espaciais e bateria possante. Era “Shake Dog Shake", para delírio do público, meu e do vendedor.

Escutamos a música inteira entre uma conversa e outra sobre partes da mesma que achávamos legal e sobre nossa paixão pelo Cure. Tudo num volume ambiente, afinal, o som ia para toda a loja. Não que Cure não pudesse tocar na Mesbla, mas o “Concert”, cheio de músicas da fase dark da banda, carregado em sonoridades ruidosas e perturbadoras, além do fato de ser ao vivo, o que adensa as vibrações irregulares por causa do rumor da plateia, não era exatamente o mais aconselhável para uma situação como aquela. Por isso, respeitávamos os ouvidos das senhoras que, como minha mãe, estavam lá para comprar uma colcha, roupa de banho, artigos para casa, etc. Mas nossa vontade era de arrebentar as caixas de som! Durante a conversa, concordamos que a melhor performance da bateria era a de “A Forest”. Sem dúvida. Afinal, aquela marcação de ritmo da música original pedia mesmo uma batida forte. Empolgado, ele virou o lado e foi direto nesta faixa. Largou a agulha ainda no fervor da multidão, que vibrava com o final de “A Hundred Years”, a anterior. Foi a partir dali que a luminosa e moderna loja Mesbla se transformou...

A clássica abertura de teclados, num tom grave e ritualístico, mórbido como que vindo de dentro de uma caverna, e as espaçadas frases da guitarra prenunciando o riff, levam a galera ao êxtase. E nós também. Começava um dos épicos do Cure. Já alheio a qualquer outra coisa que estivesse por perto, inclusive o seu gerente ou outros clientes, o vendedor aumentou o volume. Naquele mesmo momento, a sensação foi de que anoitecera dentro da Mesbla e de que entrávamos definitivamente para dentro de uma selva fechada e escura. Parecia que ninguém mais existia em nossa volta. Só nós, a música e uma floresta.

A introdução de “A Forest”, de pouco mais de 1 minuto, parece ter durado uma hora. Nós, diante daquele som, não falávamos, talvez com receio de alertar os bichos à espreita. Até que, finda a abertura, entra, enfim, a tal batida, marcada em dois tempos, pesada, esmurrando as caixas da bateria e até mais acelerada que na versão original. Arrasador! Meu companheiro silvícola não se conteve e aumentou ainda mais o volume. Para o máximo! Os acordes de “A Forest” retumbavam pelos corredores, fazendo vibrar as mesas, os eletrodomésticos, as vidraças e as louças do setor de Bazar.

Robert Smith dizia: “The sound is deep/ In the dark/ I hear her voice/ And start to run/ Into the trees/ Into the trees...” (“O som é profundo/ Na escuridão/ Eu ouço a voz dela/ E começo a correr/ Para dentro das árvores/ Para dentro das árvores...”). E corríamos, ali, parados. Sentíamos o som reverberar por todo o espaço, tomando totalmente os 15 metros de altura que iam do chão ao teto (ou seria a copa?).

Absorvidos por aquela atmosfera selvagem, os versos: “Again and again and again...” nos fazia investir mais ainda mata adentro. E de novo, e de novo, e de novo. Será que saberíamos voltar agora? “I’m lost in a Forest”? We lost in a Forest? O maravilhoso solo de guitarra, cheio de efeito de pedal, já avançava e levava a canção para o final, em que os instrumentos pouco a pouco vão morrendo, perdendo-se no escuro da noite silvestre. Anderson dá o último soco da bateria; ficam apenas as guitarras e os teclados, que logo se retira, para, por fim, manterem-se as cordas, que saem de cena uma a uma. Cessam as guitarras e fica apenas o baixo, que suspira espaçadamente os últimos pares de acordes: “tan dan - tan dan - tan dan...”, até sua propagação esvaecer de vez no espaço.

Bastou a música terminar para tudo voltar a ser como era antes. Claridade, senhoras comprando ou pesquisando preços, crianças correndo e berrando, vendedores vendendo. Uma loja de departamentos. Entretanto, entreolhamo-nos com a sensação de que algo diferente ainda pairava no ar, mas que não tínhamos mais como saber ao certo o que era. Retomados, trocamos ainda algumas animadas palavras de “cureanos” até que minha mãe retornou para irmos embora. Despedi-me do parceiro de viagem calorosamente, afinal, só nós sabíamos a experiência que tínhamos vivido naqueles 6 minutos e 46 segundos minutos entre o primeiro e o último acorde de “A Forest” que pareceram durar uma madrugada inteira.

Indo em direção à porta de saída, minha mãe ainda observou impressionada:

- Tu faz amizade rápido, hein, Dã?!

- ... É-é... – respondi meio bobo, ainda sem muita noção do que se sucedera ali naquele magazine entre tantos objetos supérfluos e desnecessários, entre tantas pessoas que eu não conhecia e jamais conhecerei.


O segurança abriu-nos a porta da entrada e, ao sairmos para a rua, educadamente deu-nos “boa noite” antes de fechá-la novamente como quem passa o cadeado numa jaula. Antes de a passagem ser totalmente fechada, porém, juro ter escutado, vindo lá de dentro da loja, o uivo de um lobo, o que, lamentavelmente, logo se perdeu no ruído metálico da frenagem desvairada dos ônibus que cumpriam, com suas toneladas de realidade, a correria irracional da vida, deixando-me com a dúvida, até hoje, se realmente escutei aquilo.



domingo, 4 de novembro de 2012

John Cale – “Sabotage/Live” (1979)




“You better be ready for war.” (“É melhor você estar pronto para a guerra”)
da letra de “Mercenaries”


Eu teria tranquilamente pelo menos outros três ou quatro discos de John Cale para incluir numa lista de ÁLBUNS FUNDAMENTAIS  o que talvez ainda seja reparado por mim, pelo Clayton ou outro colaborador do blog. Mas faço questão de começar justamente por um disco ao vivo que, via de regra, não tem a mesma “fundamentabilidade” dos de estúdio. Mas esse é um “live” diferente, como, aliás, é a marca deste genial e camaleônico cantor, compositor, arranjador e produtor galês. O referido disco é “Sabotage”, registro avassalador gravado por Cale em 1979 no lendário CBGB, boteco que, no início dos anos 70, foi palco do surgimento do punk, cena da qual o próprio foi um dos principais artífices.
Cale é um verdadeiro esteta. Já apareceu na cena artística de Nova York nos anos 60 como uma lenda. Ex-aluno do vanguardista La Monte Young, levou sua pegada erudita moderna para a não menos lendária banda Velvet Underground e, sob a batuta de Andy Warhol e ao lado de Lou Reed  formou uma das parcerias musicais mais inventivas da história da música contemporânea. Não bastasse, o cara largou o Velvet após apenas dois discos (mas suficiente para deixar sua marca) e entrou numa carreira solo regida pelo mais absoluto ecletismo, indo do mais tosco punk-rock até a mais refinada suíte romântica a la Brahms. Coisa que apenas um maestro genial como ele teria condições e conhecimento para tanto. De 1969 para cá, produziu, lançou bandas e artistas, compôs inúmeros discos próprios e/ou em parceria, fez trilhas sonoras, enfim: soltou a criatividade.
“Sabotage”, o disco em questão, faz parte de sua trilogia proto-punk iniciada no magnífico “Fear” (1974) e no não menos brilhante “Guts” (1977). Porém, é no terceiro da série que Cale detona tudo, num dos mais pungentes e, ao mesmo tempo, bem elaborados discos de rock já ouvidos. A banda é afiadíssima: Mark Aaron, esmerilhando na guitarra solo; Joe Bidewell, competente nos teclados; Doug Bowne, mantendo super bem o ritmo na bateria, às vezes dando espetáculo; George Scott, com seu baixo grave e fundamental para o arranjo e textura; Deerfrance, a musa da cena punk nova-iorquina nos backings e colaborando também na percussão; e o próprio Cale, que manda ver no piano, guitarra-base, segundo baixo, viola (originalmente seu instrumento-base) e, claro, vocal.
"Mercenaries (Ready for War)", com sua base de baixo constante, grave e pesada, começa pondo a galera pra poguear. Cale solta o verbo numa letra que critica a sociedade e o militarismo, como um bom punk, desfechando ao som da explosão da bomba que ilustra a capa. Aaron é outro que destrói nesta, dando uma noção do que viria em seguida. Mantendo a pegada e o sarcasmo, "Baby You Know" vem na sequência com um ritmo marcial e um motivo constante de teclados super legal, lembrando Joy Division. Ótima.
“Evidence” traz um riff matador de guitarra, mas não menos legal na linha de baixo. Punk até dentro dos olhos, mas com aquele toque de Cale: um inconfundível refinamento até na escolha das poucas notas de um rock básico. “Dr. Mudd”, mais melodiosa mas não menos guitarrada, antecede a excelente “Walking the Dog”,  clássico do Rhythm and Blues numa versão quase irreconhecível de tão reelaborada. O baixo sustenta a melodia numa combinação de notas dissonantes, dando até a (falsa e proposital) impressão de estar desafinado. Mas as guitarras também não deixam por menos, mandando super bem.
Aí vem um dos pontos altos do show: “Captain Hook”. Com mais de 11 minutos, que passam sem se perceber tamanha sua densidade musical, começa com um motivo minimalista de teclado constante, enquanto os outros instrumentistas deitam e rolam solando. Todos. Porém, o que parecia ser uma peça instrumental toma outro rumo, e somente ali pelos 4 min vira um rock magistral, arrastado e carregado, com a bela voz de Deerfrance fazendo coro e a de Cale – já bem rouca a esta altura do show – proferindo uma letra longa e melancólica. A canção vai num crescendo até estourar em energia e agressividade. De tirar o fôlego.
A linda “Only Time Will Tell” quebra o ritmo numa melodia suave feita por Cale especialmente para a afinada e doce voz de Deerfrance, tal como ele e Lou Reed faziam nos tempos de Velvet, como em “Femme Fatale”, para Nico, e “After Hours”, para Moe Tucker. Uma surpresa e uma graça especial ao show. Mas a delicadeza não dura muito tempo, pois a pancadaria volta novamente na faixa-título. Aliás, pancadaria “desordenada”. A destreza erudita de Cale o fez criar uma melodia sem um centro tonal claro, somente duas notas de guitarra que se repetem de quando em quando, transmitindo uma verdadeira sensação de sabotagem. Assim, as guitarras, o baixo, a bateria e as vozes se estabefeiam no espaço sonoro, cada uma tentando se encaixar dentro de uma harmonia vaga e dissonante. E a galera delira. Genial.
Para terminar, não podia ser diferente: uma marcha militar, “Chorale”, lenta e quase fúnebre. Fim da guerra e mensagem dada: todos perderam naqueles tempos de pós-Vietnã e Guerra Fria.
Um dos principais diferenciais de “Sabotage” para a grande maioria dos discos ao vivo é que todo o repertório é feito de canções inéditas compostas especialmente para esta performance. Ou seja, Cale pensou em um disco não com versões ao vivo de músicas já gravados em estúdio como geralmente se faz, mas, sim, num set list inédito que soasse como uma apresentação mesmo, tendo em vista que essas peças funcionariam melhor com a reverberação acústica ampla, ruídos, interferências e imprevisibilidades de um show. Um exemplo disso é a rouquidão de Cale naquele dia. O tom geralmente elegante e grave de sua voz dá lugar a uma interpretação rasgada e agressiva, o que intensifica a força das execuções, coisa que seria evitada em um estúdio.
Toda a trilogia, mas principalmente “Sabotage”, faz jus ao movimento punk, naqueles idos já reconhecido internacionalmente pelo sucesso de Sex Pistols,  The Clash,  Ramones e cia. mas de muito conhecida por Cale. É como se ele, artista essencial e influente para este movimento tão importante à história do rock e da cultura pop em geral, o avalizasse e dissesse aos punks: “É isso aí, gurizada”.

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A edição em CD, lançada em 1999, traz ótimos extras. Primeiro, as três faixas do EP “Animal Justice”, de 1977, uma espécie de “quarto da trilogia”. Por último, a excelente obra gothic-punk "Rosegarden Funeral of Sores", posteriormente gravada super bem pelos darks do Bauhaus  em que Cale, apenas com um sintetizador marcando a percussão, uma linha de baixo e uma guitarra urrando faz arrepiar a espinha de medo de qualquer vivente.

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FAIXAS:
1. "Mercenaries (Ready for War)"
2. "Baby You Know"
3. "Evidence"
4. "Dr. Mudd"
5. "Walkin' the Dog" (Rufus Thomas, Jr.)
6. "Captain Hook"
7. "Only Time Will Tell"
8. "Sabotage"
9. "Chorale"

 
Bônus tracks (CD 1999)

10. "Chickenshit"
11. "Memphis" (Chuck Berry)
12. "Hedda Gabler"
13. Rosegarden Funeral of Sores"

todas de autoria de John Cale, exceto indicadas

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domingo, 23 de novembro de 2014

"The Smiths - A Light That Never Goes Out - A Biografia", Tony Fletcher (2014)





"Quando escrevi sobre o Echo and the Bunnymen e sobre o R.E.M.,
no fim dos anos 80,
o processo pareceu relativamente fácil.
Na época, eu não entendi que isso se devia ao fato de os dois grupos serem entidades em total funcionamento,
com integrantes seguros na companhia uns dos outros
a ponto de
apenas me contarem sobre os demais
o que gostariam de ouvir sobre si mesmos,
e suficientemente jovens para não serem especialmente
protetores com seus legados
ou terem deixado para trás qualquer lembrança ruim(...)
Com os Smiths o processo foi muito complicado."
Tony Fletcher



Sempre vou com uma certa reserva quando leio biografias de artistas porque muitas vezes os relatos que compõe o trabalho não passam de um amontoado de fofocas, diz-que-me-diz, achismos, especulações, fatos nunca confirmados ou sem evidências, restando apenas, de realidade mesmo, apenas fatos incontestes de domínio público que saíram no jornal, entrevistas concedidas e coisas do tipo (aí é mole). Mas fui surpreendido positivamente pela ótima biografia de uma das minhas bandas favoritas, “The Smiths – A Light That Never Goes Out – A Biografia”, onde autor, Tony Fletcher, um jornalista, biografo já experimentado, rodado, experiente com outras bandas, mergulha fundo na história do quarteto de Manchester, The Smiths, buscando elementos desde as origens históricas das famílias, do povoamento de Manchester, do contexto social da cidade, do país, até chegar à formação dos meninos em escolas católicas severas, em bairros operários, deparando-se com crise, desemprego, mas com as descobertas musicais que os levariam a serem o que foram.
Contemporâneo dos integrantes dos Smiths e até mesmo presente em alguns episódios, o autor destrincha com habilidade os fatos que envolveram a curta trajetória da banda, relatando-os de forma competente numa narração muito bem estruturada e envolvente.
Para os fãs, o livro só fará reforçar a admiração pela banda, pelas suas virtudes, suas técnicas individuais, suas inspirações, e por seu repertório, embora revele de forma bastante imparcial e impiedosa a personalidade difícil, egocêntrica e quase insuportável de Morrissey, revelando-a, entre outras razões, como um dos principais motivos para o fim prematuro do grupo.
Mas, de todo modo, é absolutamente fascinante conhecer um pouco da descoberta mútua de Morrissey e Marr, o início da parceria, as primeiras composições, conhecer um pouco mais sobre cada música, o sucesso, a idolatria e tudo mais.
“The Smiths – A Biografia” é extremamente revelador no que diz respeito ao regime praticamente amadorístico com o qual a banda conduzia suas questões empresariais, fato tão decisivo para a abreviação da história da banda como para o fato de torná-la diferenciada e fazer com que não caísse na vala comum de bandas de megasucesso; aprofunda a questão do envolvimento com drogas por parte do baixista Andy Rourke; mergulha nas turnês e em seus bastidores, conseguindo no êxtase e nas catarses do público; esmiúça o processo construtivo, passo a passo, de vários canções do grupo, com destaque especial para “How Soon Is Now?”, um dos maiores clássicos da banda e uma de suas grandes pérolas, cheia de camadas de guitarra e outros recursos de estúdio; e ajuda a esclarecer o fim, até então nunca muito bem explicado.
Nada daquelas biografias chatas, cansativas. Não! Ótimo livro, leitura fluída, fácil sem ser limitado e ainda por cima de uma banda do meu coração. Uma vida curta mas cheia de histórias, polêmicas, conflitos e desdobramentos. Pouco tempo de existência mas o suficiente para escrever seu nome definitivamente na história do rock.



Cly Reis



quinta-feira, 18 de março de 2010

"Telephone" - Lady GaGa & Beyoncé

Cara, não tinha visto ainda e achei bem legal o novo clipe da Lady GaGa. Nem curto muito sonoramente. Acho que ela é muuuuito mais imagem do que tenha algo a acrescentar musicalmente, ainda que, pelo conjunto moda-estilo-música-atitude-mídia, ela tenha grantido seu lugar de destaque no cenário pop atual.
No clipe em questão, de "Telephone", o que chama a atenção é a série de referências legais das mais variadas, desde as cinematográficas, como as de Tarantino (notem na Pussy Wagon de Kill Bill e nos créditos de abertura e encerramento) e as de Ridley Scott (a cena final do clipe copia Thelma e Louise); passando por "Thriller" de Michael Jackson (notem na dança quando ela sai do presídio) indo até a arte-pop de Andy Wahrol e Lichenstein presente em vários momentos.
O clipe é dirigido pelo ótimo Jonas Akerlund do polêmico "Smack my Bitch Up" do Prodigy e de diversas colaborações com Madonna, que é outra das referências evidentes do clipe. Bom, no caso de Madonna, não só no clipe, mas na carreira da Lady GaGa.
Curta aí. Bem legal:




fonte: blog Freak Show Business

segunda-feira, 24 de junho de 2013

14 Video Portraits by Robert Wilson








“Vídeo, cinema e fotografia são oferecidos como documentos de desempenho, mas raramente se aproximam da experiência tridimensional, o soa como eles irradiam através do teatro, iluminação, uma vez que envolve um lado, a antecipação da audiência, o gesto sutil do ator individual”

 Noah Khoshbin & Matthew Shattuck. 





“Se ele se move, eles vão vê-lo” 
Andy Warhol. 





“A carreira de Robert Wilson tem a assinatura de uma grande criação artística”
Susan Sontag.


O Santander Cultural realizou em 2010 a Mostra Robert Wilson – Video Portraits numa parceria antenada com as redes sociais e novas tecnologias durante a 17º edição do Porto Alegre em Cena na cidade de Porto Alegre. Em todo o espaço expositivo via-se os 14 vídeo-retratos produzidos pelo artista norte-americano em alta definição no suporte de telas de 1,5m de altura. Wilson está entre o teatro e as artes visuais de vanguarda, sendo um multiartista conhecido também por suas técnicas de iluminação e cenários no teatro americano.

Os vídeo-retratos apresentados nessa Mostra reuniam atores, artistas, dançarinos, escritores, atletas, pessoas de todas as origens, e animais que refletem a amplitude da carreira de Wilson. Entre eles figuravam: o chinês Zhang Huan, o escritor Gao Xingjian, os atores Brad Pitt e Steve Buscemi, Alan Cumming e Winona Ryder, Ditta von Teese, Jeanne Moreau e Johnny Depp entre outros. Produzidos a partir de uma parceria entre Robert Wilson e as câmeras Voom HD Networks uma empresa de TV onde Robert foi artista residente a partir de 2004. Os Vídeo-Portraits são retratos de celebridades e anônimos caracterizados por um formato que vai além da fotografia, inclui cinema e teatro, literatura e música de múltiplas dinâmicas reveladas no retrato do vídeo. As criações de Wilson apresentam uma linguagem de movimentos mínimos, gestos sutis e coreografados, somados a arranjos cenográficos sofisticados, aqui as trilhas musicais e as palavras também tem força. Aliás a ligação de Wilson partindo inspiradamente do ambiente cenográfico com a música vem desde 1976 quando apresenta o trabalho com seu parceiro Philip Glass "Einstein on the Beach".

Para estes vídeo-retratos a música torna-se parte integrante da peça, em vez de apenas uma ilustração auditivo de um tema visual. Executando a gama de gravações de campo às pontuações do jogo de vídeo, desde o clássico ao blues, ao rock ao punk dos retratos de vídeo contêm uma lição na abordagem contemporânea de apropriar-se de toda a história das gravações sonoras. Alguns críticos que abordaram as obras chegaram a questionar se Wilson está sinalizando com essas gravações sonoras um caminho da música do futuro. Será?
A impressão que temos é que o artista transporta para a tela em HD o seu velho conhecido – o palco. Nele faz todas as intervenções e correlações possíveis. A fotografia se dá pela quase imobilidade dos personagens que se congelam e se movimentam num tempo nem sempre real, brincando assim com a observação do espectador e com a sua própria noção de tempos.

Um das obras que mais gostei é a que apresenta o escritor Gao Xingjian (Prêmio Nobel da Literatura 2000 vive na França e em 1997 tornou-se cidadão francês - é também tradutor da obra de Samuel Beckett e Eugène Ionesco, além disso é roteirista, diretor de teatro e pintor). O vídeo-retrato com seu nome está datado no ano de 2005 e tem música de Peter Cerone “Never Doubt I Love, Desert”. A música pontua o tempo que a escrita percorre pelo rosto de Gao. E sugere as relações estabelecidas entre um lugar onde a solidão é uma situação permanente e um estado emocional onde o deserto pode confirmar ou negar de maneira provocativa uma afirmação duvidosa. Nesta obra o que se move quase todo o tempo é a escrita e o personagem serve de meio para recebê-la. A face do escritor recebe a frase “La solitude est une condition nécessaire de la liberte” escrita em letra manuscrita no idioma francês. Aos poucos ela se forma cruzando o rosto do escritor e tão logo está escrita começa a desaparecer culminando com a abertura dos olhos dele ainda sob a pontuação da música. 

Um texto tão carregado de emoção precisa de tempo para ser absorvido. A frase evoca reflexões. O tempo da escrita coincide com o tempo real de leitura da frase, mas não com o que a frase diz. Qual tempo de solidão é necessário para que se escreva tal reflexão? Ainda – esta frase faz parte de algum livro do escritor ou é uma frase universalmente conhecida? Será que a intenção de Wilson é fazer com que o espectador perceba que escrever é um trabalho interno profundo? E que esse mergulho na construção do texto, faz parte do processo de criação sobre o que se coloca de fato no papel?

Outro aspecto que me chamou atenção é que essa mesma obra foi exposta em Museus com diferentes suportes o que legitima o diálogo entre o meio digital e os espaços expositivos sejam eles de vanguarda ou tradicionais, sendo esse um fator que se relaciona a proposta de trabalho de Wilson que interliga novamente áreas aparentemente incompatíveis. 

Os vídeos-retratos foram exibidos em Los Angeles, Berlim, Áustria, Itália, Espanha, Rússia, EUA, Singapura, Alemanha e em New York em plena Times Square. Fico imaginando o impacto destes retratos numa avenida que é conhecida por um fluxo de imagens, cores e agitação constantes. As obras de Wilson são coloridas, contrastadas e com uma definição incrível, totalmente conectadas ao universo pixelado e frenético da Times Square que guarda para si uma profusão de anúncios publicitários, divulgação de espetáculos e reúne os mais refinados investidores mundiais. O que diria Warhol , um dos pais e Mestre destas relações entre comunicação e Arte sobre, por exemplo, a imobilidade da pantera negra que Robert expõe nesta Mostra? “Se ele se move, eles vão vê-lo", diz Andy. E quando ele se moverá? Se isso acontecer a que momento poderemos capturar esse gesto? Eis que o desafio está lançado: perceba e questione seu corpo em reação a estas obras, teste sua paciência em esperar por um movimento e transporte-se a figura do leitor de Arte, em frente a contemporaneidade explícita de Wilson independente de qual personagem ou cidadão esteja retratado na sua frente. Participe desse espetáculo e perceba o quanto você faz parte disso tudo.
Gao Xingjian: assista ao vídeo-retrato





terça-feira, 3 de abril de 2018

Copa do Mundo The Smiths

Pânico nas ruas de Londres! Pânico nas ruas de Manchester! Vai começar a Copa The Smiths! Sim, porque aqui no ClyBlog a Copa do Mundo não se decide dentro de campo mas sim dentro de um estúdio ou em cima de um palco. Assim como fizemos em 2014, na época do mundial disputado no Brasil, quando tivemos torneios musicais envolvendo The Cure, Legião Urbana e Beatles, teremos as emocionantes disputas de canção contra canção, em duelos de mata-mata, até descobrirmos qual a melhor musica de um artista. Reivindicado na nossa edição de 2014, The Smiths foi escolhido para dar início à nossa temporada de jogões musicais de 2018. A fórmula é simples: começamos com 64 músicas, ou seja, 32 confrontos; depois 16, oito nas oitavas de final, quatro jogos nas quartas, dois jogos na semi e, por fim, a grande decisão. Na primeira fase, os 20 singles somados a 12 das mais populares ficam de um lado do chaveamento e enfrentam as restantes, o que impede num primeiro momento confrontos como The Boy With The Thorn... contra This Charming Man, por exemplo, mas a partir da segunda fase não tem mais restrições aí é quem cair pela frente. Os jogos de cada fase serão distribuídos entre fãs da banda que analisarão cada confronto e, pensando futebolisticamente, darão um resultado à partida. "Girl Afraid atropela Golden Lights e faz 5x0", por exemplo, ou "Bighmouth Strikes Again empata com How Soon is Now? e teremos decisão nos pênaltis...", e assim por diante.
Estão escalados para decidir os jogos a amiga e fãzaça dos Smiths, Patrícia Ferreira; o já tradicional colaborador José Júnior; além de nós os titulares da casa, Daniel Rodrigues e, eu, Cly Reis, que não poderíamos ficar fora dessa de jeito nenhum.
Vai ter Copa! E aqui no ClyBlog ela vai ter muita música. A bola vai começar rolar, ou melhor, o som vai rolar e não tem pra Bob Charlton, George Best ou David Beckham, porque quem manda em Manchester mesmo é Morrissey, Marr, Andy e Joyce.
Doces e meigos hooligans, preparem-se: Manchester vai tremer.


C.R.

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Exposição "I'm A Cliché" - CCBB - Rio de Janeiro (18/09/2011)





Estive ontem, finalmente, na exposição "I'm a Cliché - Ecos da Estética do Punk" no CCBB, aqui no Rio, um retrato da estética do punk, na companhia do meu irmão, colaborador, jornalista e blogueiro, Daniel Rodrigues, que é tão amarradão no assunto quanto eu.
Muito legal a exposição!
Melhor do que eu imaginava.
da série "Rimbaud em
Nova York"
Destaque principalmente para os trabalhos dos fotógrafos Bruce Conner e David Wojnarowicz que me impressionaram muito positivamente, especialmente este último com a série "Rimbaud em Nova York".
No restante, muito legais os espaços do Velvet Underground com projeções de pequenos filmes do padrinho Andy Wahrol e a sala dos Sex Pistols com toda aquela identidade visual inconfundível dos puplilos de Malcolm McLaren.
entrada da exposição:
passeando entre LP's
Bacana também a entrada da exposição com um pórtico por onde se passa e se vê, ali, nas paredes capas de discos marcantes do movimento, enquanto os alto falantes tocam exemplares clássicos de punk-rock como Kennedy's, Television, New York Dolls e outros. Enquanto instalação de exposição, era até meio tosca pra falar a verdade, mas é sempre um barato passear entre as capas dos discos que nos marcaram e empolgam ao som daquela trilha sonora.
Entre Sid e Johnny
na sala dos Pistols
Punks, roqueiros e simpatizantes, apressem-se. A exposição só fica até 02 de outubro.

domingo, 9 de outubro de 2016

John Lennon and Yoko Ono - "Double Fantasy" (1980)



"O disco é um diálogo,
e temos ressuscitado nós mesmos,
de certa forma, como John e Yoko.
Não como John ex-Beatle e Yoko ex-Plastic Ono Band.
É apenas nós dois,
e nossa posição foi a de que,
se o disco não vendesse,
isso significava que as pessoas
 não querem saber sobre John e Yoko.”
John Lennon,
na histórica última entrevista
à Rolling Stone em maio de 1980

Eu acho que John está aqui conosco hoje.
Ambos, John e eu, sempre nos sentimos muito orgulhosos
e felizes por fazermos parte da raça humana.
E ele fez uma boa música
para a Terra e para o universo.
Yoko Ono,
ao receber o Grammy de Álbum do Ano
por “Double Fantasy” em fevereiro de 1981



Nesta semana, eu não poderia colocar outro disco entre os meus favoritos de todos os tempos que não fosse esta maravilha de “Double Fantasy”, o último disco de John Lennon. Por todos os motivos do mundo. Inclusive por ser a semana do aniversário dele. E por ser um disco que fala de uma coisa muito em desuso hoje em dia: relacionamentos que dão certo, apesar de tudo. E não briguem comigo, pois acho que a Yoko tem tudo a ver com este disco e com sua proposta. Montado como uma crônica da vida de um casal normal – mais ou menos, né? Afinal, eles eram John e Yoko –, o disco passeia pelas várias fases legais e outras nem tanto do cotidiano. Coisa que muita gente não quer nem ver pintada.

Vamos começar com “(Just Like) Starting Over”, o primeiro grande sucesso do disco. John diz nela que, mesmo que se conheçam há tempos e já tenham atravessado poucas e boas, “É como se nós estivéssemos nos apaixonando de novo/ será como começar de novo”. Claro que no caso deles, um ex-Beatle e uma artista plástica de classe alta japonesa, as coisas ficam mais fáceis, mas a luta com o dia-a-dia é a mesma. Lá pelas tantas, John diz pra Yoko: “Por que não nos mandamos sozinhos/ Viajamos para algum lugar muito, muito longe/ Estaremos juntos por nós mesmos/ como fazíamos nos velhos tempos”. A velha tática de escapar da rotina. Só que, aqui, o lance é estar juntos.

“Kiss Kiss Kiss” traz Yoko pedindo pra John beijá-la, tocá-la, dar-lhe carinho num clima new wave (estilo musical de sucesso na época). Durante a canção, Yoko lhe pede atenção para que este amor não se perca. Como na vida real, os beijos e os carinhos levam até o orgasmo, que é explícito. Pelo menos, em japonês.

“Cleanup Time” já traz John contando suas vicissitudes caseiras. Naquele tempo, Yoko foi cuidar das finanças da família, enquanto John ficou responsável pelo filho Sean e pela casa. “A rainha está na casa da moeda/ contando o dinheiro/ o rei está em casa fazendo pão e mel/ sem amigos e até agora sem inimigos/ completamente livres/ Sem ratos a bordo do navio mágico de harmonia (perfeita)”. A perfeição da harmonia está entre parênteses porque nada é realmente perfeito. Enquanto “Starting Over” fazia a apologia da viagem para fugir da rotina, em “Cleanup Time”, John garante que “Não interessa quão longe viajemos/ Onde nós formos/ O centro do nosso círculo/ será sempre nosso lar”. O casal se entocou no seu apartamento no Edifício Dakota durante os anos em que John esteve fora do circuito.

Depois dessa lição caseira de felicidade, as coisas começam a pesar. Yoko vem com “Give me Something”. E as reclamações aparecem com tudo: “A comida está fria/ Seus olhos estão frios/ A janela é fria/ A cama é fria/ Me dê alguma coisa que não esteja fria, me dê”. É bom lembrar que Yoko fez parte daquelas famílias japonesas que criaram suas filhas para o casamento, mas que piraram no meio do caminho. Ela se envolveu com artes plásticas, teve uma filha e começou seu caso com John enquanto ele estava casado. O feminismo estava em seu DNA. No final, ela afirma: “Te dei minhas batidas do coração/ e um pouco de lágrimas e carne/ não é muito, mas enquanto estiver aí/ você pode pegar”. Tudo isso num cenário novamente new wave. É de se notar que, enquanto John é mais tradicional em suas escolhas musicais, Yoko sempre circulou pela vanguarda.

Depois desta reclamação, ele se dá conta de que as coisas não estão exatamente muito bem e diz: “Estou perdendo você” numa batida blues. A música, “I’m Losing You”, conta um pouco do que foi o famoso “Lost Weekend” de John em 1974, quando se separou de Yoko e tomou todas ao lado de bebuns juramentados como Ringo Starr, Harry Nilsson, Elton JohnKeith Moon, entre outros menos cotados. Pra começar, ele diz que: “Aqui em um quarto estranho/ no final da tarde/ O que estou fazendo aqui?/ Não tem dúvidas sobre isso/ Estou perdendo você/ De alguma maneira, as linhas se cruzaram/ A comunicação se perdeu/ Nem consigo falar contigo pelo telefone/ apenas tenho de gritar/ que estou perdendo você”. A dor de John é palpável, assim como as guitarras lancinantes de Hugh McCraken, Earl Slick e do próprio John. Ele tenta se defender, afirmando que “você diz que não está ganhando o suficiente/ Mas eu te lembro de todas as coisas ruins/ Então que diabo tenho de fazer?/ Botar um bandaid?/ E parar com o sangramento agora/ parar com o sangramento agora”. No final da canção, John tenta novamente se defender dizendo: “Sei que te magoei então/ mas isso foi muito tempo atrás/ E bem, você ainda tem de carregar esta cruz?/ Não quero ouvir sobre isso/ Estou perdendo você”.

O curioso é que, na mesma batida firme e no tempo de Andy Newmark, Yoko dá sua versão da história. Em “I’m Moving On”, ela mantém sua postura de confronto. “Guarde sua conversinha suave pra quando estiver paquerando/ Guarde seus beijos de segunda-feira para sua dama de vidro/ Quero a verdade e nada mais/ Estou indo embora, estou indo embora, você está ficando chato”. Ao contrário de todo o disco – e mantendo sua postura de sempre –, Yoko foge da vanguarda e da modernidade da new wave daquele momento e segue sua diatribe na batida do blues, mostrando que o sofrimento é dos dois.

Para aliviar a pressão, John faz sua homenagem ao filho Sean, então com cinco anos de idade. “Beautiful Boy” inicia com o pai dizendo ao filho para “Fechar os olhos/ não ter medo/ O monstro se foi/ está indo embora e seu pai está aqui”. Os steel drums de Robert Greenidge dão a medida da suavidade da canção. Mesmo assim, algo dizia a John que as coisas não estavam bem. Em diversos momentos do disco, tanto ele quanto Yoko, soltam pistas de que havia uma ameaça no ar. “No oceano, navegando pra longe/ mal posso esperar/ ver você crescer/ mas acho que ambos deveremos ser pacientes”. E a premonição se consuma quando afirma: “Antes de atravessar a rua/ pegue minha mão/a vida é o que acontece a você/ enquanto você está ocupado/ fazendo outros planos”. É bom lembrar que, na noite em que foi assassinado, John e Yoko voltavam do estúdio onde mixavam seu próximo disco, “Milk and Honey”, lançado postumamente.

“Watching the Wheels” é, provavelmente, a melhor música de todo o disco. Usando a metáfora de uma roda gigante como o movimento da vida, John faz um inventário da atitude das pessoas, fãs e jornalistas em relação ao seu sumiço. “As pessoas dizem que estou louco fazendo o que faço/ Bem, eles me dão todos os tipos de avisos pra me salvar a da ruína/ Quando digo que estou ok, eles me olham de um jeito estranho/ certamente você não está feliz, não está mais jogando”. No refrão, ele reforça sua postura: “Estou apenas sentado olhando a roda gigante girando e girando/ Eu realmente adoro vê-la rolar/ Não mais andando no carrossel/ eu apenas tive de deixar ir embora”. O oberheim de Ed Walsh percorre toda a música, enquanto John faz o tema ao piano. Outro destaque é para o baixo sempre presente de Tony Levin.

“Yes, I’m your Angel” traz Yoko brincando de jazz da década de 30, meio Billie Holiday, meio Bessie Smith (sem, é claro, o poder vocal destas duas cantoras). Até parece uma daquelas paródias jazzísticas que o grupo Queen fazia em seus discos dos anos 70, “A Night at the Opera” e “A Day at the Races”. A letra fala de um amor de conto de fadas que Yoko usa para dar um relax neste disco, onde o relacionamento entre homem e mulher, às vezes, chega a momentos muito difíceis.

“Woman” é simplesmente a maior declaração de amor que um cantor e compositor já fez para sua amada perpetrada em disco. Não somente porque tem um clima romântico, mas porque John admite suas falhas na condução do sucesso e da fama e porque dá o crédito a Yoko por tê-lo colocado no caminho certo. “Mulher, sei que você entende/ a criança dentro do homem/ por favor, lembre que minha vida está em suas mãos”. Depois de dizer isso, sobra muito pouco para John entregar. E ele consegue: “Mulher, deixe-me explicar/ Nunca pretendi te causar sofrimento ou dor/ então deixe-me dizer de novo, de novo, de novo/ Te amo agora e pra sempre”. Ao ouvir com fones, vocês vão notar os Benny Cummings Singers, um coral de igreja que participa sutilmente.

O disco até poderia terminar aqui tamanha a carga emocional que esta canção carrega. Mas Yoko ainda fala de seus “meninos” John e Sean em “Beautiful Boys”. Do filho, ela diz que “você é um menino bonito/ com todos os teus pequenos brinquedos/ teus olhos tem visto o mundo/ apesar de ter apenas quatro anos de idade... Por favor, nunca tenha medo de chorar”. Já a respeito de John, Yoko afirma que “sua mente mudou o mundo/ e agora você tem quarenta anos de idade/ você tem tudo o que conseguir carregar/ e ainda assim se sentir vazio/ Nunca tenha medo de voar”. O violão clássico de McCracken se mistura ao baixo fretless de Levin e aos teclados de Walsh dando um clima soturno à canção.

Na última participação de John no disco, a pop music beatelesca volta com “Dear Yoko”, outra declaração de amor, embalada numa faixa dançante e onde John retoma a harmônica dos velhos tempos, mesclada com as guitarras de Slick e McCracken, dois mestres dos estúdios. A canção chega a ser bobinha em alguns momentos como “mesmo quando eu vejo TV/ Tem um buraco onde você deveria estar/ Não tem ninguém deitado perto de mim, Yoko”. “Double Fantasy” também é um disco interessante porque alterna estes momentos mais “pesados”, de dificuldade no relacionamento de um casal, com climas mais animados, pra cima.

A influência da cultura japonesa na vida Yoko se faz presente em “Every Man Has a Woman Who Loves Him”, uma afirmação que eu realmente gostaria que existisse. Os teclados e as guitarras tecem uma teia de informação musical nipônica, enquanto as batidas de Newmark e o baixo de Levin marcam o ritmo. “Todo homem tem uma mulher que lhe ama/ na chuva ou no sol, na vida ou na morte/ se ele a encontrar em sua vida/ ele saberá ao colocar o ouvido em seu seio”. Depois, ela troca a perspectiva, falando da mulher: “Toda mulher tem um homem que a ama/ ao levantar ou cair na sua vida ou na morte/ e se ela o encontrar em sua vida/ Ela vai saber ao olhar em seus olhos”. No refrão, ela é quem faz o mea culpa: “Por que fico circulando quando sei que tu és a pessoa/ Por que eu corro quando tenho vontade de te abraçar?”.

O impressionante é que, ao chegar o final de “Double Fantasy”, Yoko tenha feito um exercício de premonição absoluto, sem imaginar o que iria acontecer. “Hard Times Are Over” ou “Os Tempos Difíceis Terminaram”. Num tom celebratório, Yoko começa dizendo que “tem sido muito difícil/ mas está ficando mais fácil agora/ Os tempos difíceis terminaram, terminaram por um tempo”. Mal sabia ela que, dois meses depois do disco ter sido lançado, Mark David Chapman faria todo aquele estrago na vida da gente em dezembro daquele mesmo ano. Com solo de sax de David Tofani, a canção usa os backing vocals para dar aquele astral de fim de disco. No relançamento do CD, ainda constam uma música que John estava terminando, “Help Me to Help Myself”, e a criticada “Walking on Thin Ice”, cuja mixagem encerrou no dia da morte de John e que Yoko lançou em fevereiro de 1981.

Além deste tom “cinema verité” de todo o disco, quando nem John nem Yoko escondem seus problemas e suas dificuldades, “Double Fantasy” tem a seu favor uma divisão bem clara de sonoridades: John mais clássico, tanto rock quanto pop, e Yoko trafegando com desenvoltura pela vanguarda e pelo new wave, muito em moda na época e cujos praticantes – especialmente The B-52’s – citavam nominalmente Yoko como grande influência.
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FAIXAS:
1. (Just Like) Starting Over - 3:56            
2. Kiss Kiss Kiss - 2:41   
3. Cleanup Time - 2:58 
4. Give Me Something - 1:34     
5. I'm Losing You - 3:57
6. I'm Moving On - 2:21
7. Beautiful Boy (Darling Boy) - 4:05     
8. Watching the Wheels - 3:59 
9. Yes, I'm Your Angel - 3:09      
10. Woman - 3:32           
11. Beautiful Boys - 2:55             
12. Dear Yoko - 2:34      
13. Every Man Has a Woman Who Loves Him - 4:03       
14. Hard Times Are Over - 3:19

Faixas inclusas na versão em CD, de 2000:
15. Help Me to Help Myself - 2:37
16. Walking on Thin Ice - 6:00
todas as faixas compostas por John Lennon e Yoko Ono

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OUÇA O DISCO

por Paulo Moreira