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segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

Racionais MC’s – “Sobrevivendo no Inferno” (1997)




“Refrigere minha alma e guia-me pelo caminho da justiça.” 
Salmo 23, capítulo 3


“Ilumina minha alma, louvado seja o meu senhor/ Que não deixa o mano aqui desandar/ E nem sentar o dedo em nenhum pilantra/ Mas que nenhum filha da puta ignore a minha lei.” 
– Da letra de “Capítulo 4, versículo 3”


Era Réveillon de 1997. Após muitas cervejas, samba, risadas e conversas altas no volume típico da minha família, pouco depois da virada do ano, nas primeiras horas de 1998, meu primo-irmão Leandro “Lê” Reis Freitas me chama para dentro da casa ao lado da garagem onde todos se reuniam. Fugíamos um pouco da algazarra, pois Lê queria me mostrar algo para se ouvir com atenção. Olhando-me com convicção e euforia, ele me disse: “Dã, tu tem que ouvir isso!”. Era um disco. Um disco de rap chamado “Sobrevivendo no Inferno”, dos Racionais MC’s, que completa 20 anos em 2017.

Sabia que ele curtia bastante rap, então não estranhava que quisesse me apresentar algum artista. Geralmente, não me animava tanto, admito, haja vista que o rap nacional sempre me parecia ficar bastante a dever ao dos Estados Unidos e principalmente ao Public Enemy, meus preferidos do estilo até hoje. Mas aquilo que Lê me mostrava era, definitivamente, diferente. O início salta com um “Ogunhê!”, a saudação ao orixá Ogum do Candomblé. Imediatamente, começa um rap arrastado feito sobre a base de “Ike’s Rap 2”, de Isaac Hayes – o mesmo sample usado em “Glory Box”, do Portishead, e “Hell Is Round the Corner”, do Tricky. Era uma versão originalíssima de “Jorge da Capadócia”, de Jorge Ben. Agradou-me bastante, mas Lê me alertou: “Essa é legal, mas o melhor vem a partir de agora”.

Sim, o melhor vinha em seguida. Após um prólogo interessantíssimo, muito bem escrito e revelador (a vinheta “Gênesis”), a faixa seguinte trazia em sua letra o mais pungente e expressivo manifesto escrito no Brasil depois do Antropofágico, do Concretista e do Tropicalista. E mais: sem ter a intenção de ser um manifesto propriamente dito, o que aumenta ainda mais sua força. Ali, falava-se de algo que estava grudado na garganta há muito tempo, bem dizer, desde que os escravos vieram para o Brasil, séculos atrás. Desde que, alforriados, os negros permaneceram na miséria por descaso do estado. Num trecho, a letra diz: “Minha intenção é ruim/ Esvazia o lugar/ Eu tô em cima, eu tô afim/ Um, dois pra atirar/ Eu sou bem pior do que você tá vendo/ O preto aqui não tem dó/ É 100% veneno/ A primeira faz ‘bum’, a segunda faz ‘tá’/ Eu tenho uma missão e não vou parar”. Era “Capítulo 4, Versículo 3”, a brilhante canção que mostrava, com todas as letras, que os Racionais, formado pelos mc’s Mano Brown, Edi Rock e Ice Blue e o DJ KL Jay, realmente tinham uma missão. E que não iriam parar.

Enquanto a noite seguia animada lá fora, Lê e eu ouvíamos de cabo a rabo o longo 5º disco dos Racionais, o ápice da maturidade dos rapazes da Zona Sul paulista e o melhor disco de rap brasileiro de todos os tempos, 14º colocado na lista da revista Rolling Stone dos 100 melhores álbuns da história da música brasileira. Tínhamos a noção de que estávamos diante de algo diferenciado e revolucionário. Além da qualidade técnica nunca antes atingida no rap no Brasil, com samples bem escolhidos e elaborados, densidade sonora e produção impecável do próprio KL Jay, “Sobrevivendo...” era um grito até então ensurdecido. O grito da periferia – em sua grande parte, negra. Um grito de revolta e ressentimento pelo apartheid social brasileiro; um grito agressivo contra a desigualdade de classes; um grito de protesto contra a repressão da polícia e do estado. Mas tudo traduzido em poesia, musicalidade, criatividade. “Sobrevivendo...” propunha uma revolução ideológica.

Os anos 90, primeira década da democracia no Brasil, traziam nas rádios o samba “embranquecido” do pagode e o conveniente “rap de classe média” de Gabriel O Pensador. Ou seja: os pretos mesmo não estavam representados. Precisou que o rap levantasse a bandeira, e os Racionais MC’s cumpriram essa função abrindo definitivamente um novo paradigma para a música brasileira em temas como “Diário de um Detento”, “Mágico de Oz”, “Fórmula Mágica da Paz” e a já mencionada “Capítulo 4...”. Nelas fala-se abertamente sobre o racismo e a miséria na periferia de São Paulo, marcada pela violência e pelo crime, numa representação muito maior do que somente aquilo: era um retrato da sociedade brasileira.

Outra das melhores do disco e da banda, "Tô Ouvindo Alguém me Chamar" disseca a vida de um assaltante, homem pobre que, ao contrário do irmão advogado, escolheu o caminho do crime. A narrativa de Brown é brilhantemente contada em fluxo de consciência a partir do momento da morte do protagonista, engendrando uma sucessão de flashbacks que vão construindo a história. A batida (tirada de Charisma", de Tom Browne) ganha sons de pulso cardíaco, que dialoga metalinguisticamente com o tema. A dramaticidade da saga do marginal é uma aula de escrita. Afundado nas drogas e na criminalidade, ele é morto com a mesma arma que um dia havia presenteado seu parceiro de delinquência (o Guina, único personagem que o nome mencionado). A recorrente referência ao irmão, cuja figura se confunde com a do parceiro, com a do pai e do sobrinho, é tocante, como nesta passagem, quando o criminoso, agonizando, percebe que já está na berlinda: “Meu irmão merece ser feliz/ Deve estar a essa altura/ Bem perto de fazer a formatura/ Acho que é direito, advocacia/ Acho que era isso que ele queria/ Sinceramente eu me sinto feliz/ Graças a Deus, não fez o que eu fiz/ Minha finada mãe, proteja o seu menino/ O diabo agora guia o meu destino”.

De fato, muito dos Racionais se deve à cabeça privilegiada de Mano Brown. Ele é o rapper que superou o discurso rebelado mas geralmente pouco articulado do hip hop brasileiro, abrindo caminho para gente como Emicida e Criolo. Brown é, sem medo de errar, um dos maiores escritores brasileiros da atualidade – léguas à frente de nomes celebrados da literatura como Paulo Coelho, Fabrício Carpinejar ou Martha Medeiros. Para se ter ideia, segundo pesquisa da revista Billboard Brasil do ano passado, ele figura entre os 50 artistas mais completos do país. Suas letras trazem uma improvável e incomparável mistura de consciência social e racial e ativismo político com pitadas de religiosidade católica, evanvélica e afro misturadas ao melhor português, seja o culto ou o vulgar. Tudo como muita contundência e até agressividade. “Minha palavra vale um tiro e eu tenho muita munição”, diz um de seus versos.

Essa força expressiva está no maior clássico do disco, canção de muito sucesso à época: “Diário de um Detento”. Quase uma versão musical do livro “Estação Carandiru”, de Dráuzio Varella, a música de Brown, realista e crítica, amarra a narrativa de depoimentos do ex-presidiário Jocenir. Sobre o sample de “Easin' In”, de Edwin Starr, é uma carta que perpassa o dia anterior ao massacre do Carandiru (2 de outubro de 1992) até o dia seguinte à tragédia, 3. A abertura é inesquecível: “São Paulo, dia 1º de outubro de 1992, 8 horas da manhã/ Aqui estou, mais um dia/ Sob o olhar sanguinário do vigia/ Você não sabe como é caminhar/ Com a cabeça na mira de uma HK/ Metralhadora alemã/ Ou de Israel/ Estraçalha ladrão que nem papel”. Uma “rima preciosa” – tipo que uniformiza palavras de idiomas distintos –, vem logo na sequência: “Na muralha, em pé, mais um cidadão José/ Servindo o Estado, um PM bom/ Passa fome, metido a Charles Bronson.  Outros trechos, cujas sentenças são verdadeiros petardos, impressionam igualmente: “Sua cara fica branca desse lado do muro” ou “Já ouviu falar de Lúcifer?/ Que veio do Inferno com moral um dia/ No Carandiru, não, ele é só mais um/ Comendo rango azedo com pneumonia” ou ainda “O ser humano é descartável no Brasil/ Como Modess usado ou Bombril.”

A onomatopeia “Ratátátá”, repetida algumas vezes e que vai se avolumando no decorrer da letra, ao mesmo tempo dá a ideia do trem que passa em frente ao presídio, elemento que simboliza a tortuosa passagem do tempo na prisão, quanto o som de tiros, como um prenúncio da chacina. Ali, naquela realidade, o destino inevitável é a morte. Vendo nos noticiários as rebeliões e acontecimentos violentos ocorridos em vários presídios brasileiros nos últimos tempos, “Diário...” parece lamentavelmente atual.

Se Brown apavora com canções como esta, Edi Rock, entretanto, não fica muito para trás. Mais fraco em termos letrísticos, ele ganha na criatividade das melodias e na voz potente. “Periferia é Periferia (Em Qualquer Lugar)” é um caso: baseada num tema de Curtis Mayfield, sampleia uma série de outros rap’s brasileiros, como os pioneiros Thaíde e DJ Hum, Sistema Negro e MRN. Já “Rapaz Comum” tem uma pegada mais gangsta ao samplear Dr. Dre e Snoop Dogg, retrazendo o mote de “Tô Ouvindo...” ao relatar, na 1ª pessoa, os momentos de agonia de “um preto a mais no cemitério”. É dele também o ótimo instrumental e "Qual Mentira Vou Acreditar?", parceria com Brown e a faixa mais light do repertório. A letra conta as funções de festas e pegações, mas nem por isso deixa de tocar no tema do racismo, como nesta engraçada passagem em que Ice Blue relata a Edi um episódio em que levava uma “mina” no carro. “Eu ouvindo James Brown, pá.../ Cheio de pose/ Ela perguntou se eu tenho, o quê? Guns N' Roses?/ Lógico que não!/ A mina quase histérica/ Meteu a mão no rádio e pôs na Transamérica/ Como é que ela falou?/ Só se liga nessa/ Que mina cabulosa/ Olha só que conversa/ Que tinha bronca de neguinho de salão, (não)/ Que a maioria é maloqueiro e ladrão (aí não)/ Aí não mano! Foi por pouco/ Eu já tava pensando em capotar no soco”.

“Mágico de Oz”, outra de Edi (“Queria que Deus ouvisse a minha voz/ E transformasse aqui no mundo Mágico de Oz”), é mais um sucesso de “Sobrevivendo...”. Evidencia o mundo desamparado da mendicância infantil e a falta de esperança e horizonte de quem nasce na pobreza. Por falar em “magia”, Mano Brown manda a última joia do disco: “Fórmula Mágica da Paz”. Espécie de autobiografia, canta a reflexão do próprio autor quando se deparou com a fronteira entre o crime ou o “caminho do bem”. Com um fluxo narrativo impressionante, Brown relembra: “Não tava nem aí, nem levava nada a sério/ Admirava os ladrão e os malandro mais velho/ Mas se liga, olhe ao seu redor e me diga/ O que melhorou? Da função, quem sobrou?/ Sei lá, muito velório rolou de lá pra cá/ Qual a próxima mãe que vai chorar?”. Momentos trágicos, como o de um “rapaz comum” da comunidade que morre baleado, o fazem pensar: “Na parede o sinal da cruz/ Que porra é essa? Que mundo é esse?/ Onde tá Jesus?/ Mais uma vez um emissário/ Não incluiu Capão Redondo em seu itinerário/ Porra, eu tô confuso/ Preciso pensar/ Me dá um tempo pra eu raciocinar/ Eu já não sei distinguir quem tá errado, sei lá/ Minha Ideologia enfraqueceu/ Preto, branco, polícia, ladrão ou eu”. Os questionamentos, entretanto, logo dão lugar à consciência: “Agradeço a Deus e aos Orixás/ Parei no meio do caminho e olhei pra trás/ Meus outros manos todos foram longe de mais/ ‘Cemitério São Luis, aqui jaz’.”

“Salve” repete a base de “Jorge...”, finalizando o disco de rap mais vendido da história mesmo que por um selo independente, Cosa Nostra, ou seja, sem a estrutura de uma grande gravadora por trás. Oficialmente, foram 1,5 milhão de cópias comercializadas, porém, não se contabilizam aí os outros milhões de cópias ilegais, uma vez que se estava no auge da pirataria de CD’s no Brasil à época – nós mesmos, Lê e eu, ouvíamos um pirateado naquela fatídica noite de 1º de janeiro.

Mesmo que criticável pelo discurso de “vingança racial”, pela apologia ao ódio ou até da visão machista e homofóbica por vezes, é inegável a importância do papel que cabe aos Racionais MC’s na cultura pop brasileira nesses últimos 20 anos desde que “Sobrevivendo...” foi lançado. Afinal, uma voz calada por tanto tempo e das maneiras mais cruéis que o ser humano é capaz, caso do povo africano e seus descendentes diretos, quando posta para fora, só pode vir carregada de coisas boas e ruins. A causa dos direitos humanos é mais valiosa do que qualquer coisa quando a mesma é subvertida. A única solução é a reação. Confesso que, naquela primeira audição, o discurso maniqueísta me chocara. Mas quem sou eu, um “mano” cuja história de vida sempre teve boas condições sociais (ou seja: protegido de uma série de constrangimentos e humilhações), para julgar? Neste sentido, o rap brasileiro dos anos 90, capitaneado pelos eles, alinhou-se ao que o samba do morro representou ao longo do século XX: a resistência. Se o samba agoniza mas não morre, o rap sobrevive e mata. E se hoje se fala tanto e com propriedade de “empoderamento” das minorias e “orgulho negro”, a tal missão que os Racionais se impuseram, violentamente pacífica, foi cumprida com êxito.

Racionais MC's - "Diário de um Detento"


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FAIXAS
1. Jorge da Capadócia (Jorge Ben)
2. Gênesis (Mano Brown)
3. Capítulo 4, Versículo 3 (Brown)
4. Tô Ouvindo Alguém Me Chamar (Brown)
5. Rapaz Comum (Edi Rock)
6. Instrumental (Rock)
7. Diário de Um Detento (Brown/ Jocenir)
8. Periferia é Periferia (Em Qualquer Lugar) (Rock)
9. Qual Mentira Vou Acreditar (Brown/Rock)
10. Mágico de Oz (Rock)
11. Formula Mágica da Paz (Brown)
12. Salve (Brown)

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OUÇA O DISCO
Racionais MC's - Sobrevivendo no Inferno


quinta-feira, 17 de novembro de 2016

Os 12 personagens mais assustadores do cinema


O cinema é capaz de mexer com as nossas emoções como pouca coisa consegue, mesmo a gente sabendo que, na grande maioria das vezes, aquilo que estamos vendo seja apenas uma encenação. Somos, com total aceitação, levados a acreditar na “mentira” e com ela se comover. Jean-Claude Carrière, fascinado por essa magia que talvez apenas o cinema tenha no universo das artes, comenta em seu “A Linguagem Secreta do Cinema” que os instrumentos de persuasão do cinema podem parecer simples: emoção, sensação de medo, repulsa, irritação, raiva, angústia. Mas, pontua ele, “na realidade, o processo é muito mais complexo”, provavelmente até indefinível. “Envolve os mais secretos mecanismos do nosso cérebro, incluindo, talvez a preguiça, a natural indolência, a disposição para renunciar às suas virtudes por qualquer adulação.”

Isso explica em parte porque sentimos tanto medo de alguns personagens. E não estou falando apenas dos assassinos dos filmes de terror: há pessoas (afinal, acreditamos que elas, mesmo lá dentro da tela, existam de verdade) que, mesmo num drama ou outro gênero menos horripilante nos provocam igual sensação de temor. Quando essa magia intrínseca do cinema observada por Carrière se junta ao talento de cineastas e atores, a química é bem dizer infalível. Aí, soma-se a isso ainda nossa aceitação quase pueril ao que vemos e dá pra imaginar o que acontece: frio na espinha.

Ainda por cima, o universo dos vilões aterrorizantes é inegavelmente fascinante. Quem, mesmo tremendo as pernas a cada gesto que o dito cujo venha a dar, não aprecia (ou pelo menos reconhece que é sui genneris) a figura de um Freddy Krueger ou Michael Myers? Mas, como disse, não tratamos aqui somente dos carniceiros, afinal, destes é até previsível que imputem medo. Elencamos aqueles personagens e seus respectivos atores cujos papeis são tão críveis que não faríamos nenhuma questão de cruzar com eles algum dia na vida – e não precisa nem ser uma pessoa, inclusive.



O penetrante olhar do canibal Lecter.
1 – Hannibal Lecter (Anthony Hopkins)
O absolutamente frio psiquiatra, que atravessou a fronteira da sanidade para passar a matar por prazer – às vezes, até se alimentando de suas vítimas, dando-lhe o simpático apelido de Hannibal “Canibal” –, é provavelmente o mais célebre psicopata da história do cinema. Hopkins, com talento e muita sensibilidade, dá vida ao personagem do escritor Thomas Harris, o qual aparece pela primeira vez na tela no clássico “O Silêncio dos Inocentes” (Demme, 1991). Continuou assustador em outros longas, “Hannibal” (2001), “Dragão Vermelho” (2002) e “Hannibal - A Origem do Mal” (2007), mas vê-lo no primeiro e disparado melhor da série é até hoje imbatível em termos de qualidade cênica – e de medo também.





2 – Norman Bates (Anthony Perkins)
É inegável que as patologias psíquicas dão muito substrato para a criação deste tipo de personagem, seja na literatura ou no cinema. E claro que os diversos transtornos mentais existentes são um prato cheio para roteiristas. Norman Bates, psicótico atormentando pelo Complexo de Édipo encarnado como jamais o próprio Perkins conseguiu igualar, é até hoje um enigma que desafia os psiquiatras. Mas numa coisa todo mundo concorda: o cara dá medo pacas! Com a mão habilidosa de Alfred Hitchcock"Psicose", de 1960, tem talvez o melhor personagem de um thriller no melhor filme do mestre do suspense.


Monólogo final de Norman Bates - "Psicose"


Pacino, mais assustador que
muito serial-killer.
3 – Michael Corleone (Al Pacino)
Os filmes de máfia são recheados de personagens marcantes e não raro assustadores, pois altamente violentos. Porém, talvez pelo tratamento literário de drama dado por Mario Puzo, pela escolha acertada de Coppola do jovem Pacino para o papel e, obviamente, pelo talento do ator, nenhum se compare ao filho mais novo de Don Corleone. Empurrado pelo destino para o crime organizado, o ex-oficial do Exército tornou-se, mais do que qualquer outro de seus irmãos, o chefão mais impiedoso e frio da cosa nostra. Se no primeiro longa vê-se sua conversão à máfia até a natural sucessão ao pai, em "O Poderoso Chefão - parte 2", de 1974, ele está mais apavorante do que muito serial killer. Com um olhar, ele faz qualquer um congelar. Poderoso, dá-se direito a qualquer coisa, e nunca se sabe o que está maquinando naquela mente obsessiva. Coisa boa, não é. Seja nos acessos de raiva, seja no mais contido e calculista silêncio, Michael é apavorante.





Close com um sorriso nada covidativo.
4 - Alex Forrest (Glenn Close)
Não são apenas homens que fazem o espectador arrepiar. A maníaca de Alex Forrest, de “Atração Fatal” (Lyne, 1988), vivida por Glenn Close, é o melhor exemplo. Inconformada com um “pé na bunda” que levara de um homem casado, Dan Gallagher (Michael Douglas), com quem tivera um caso, ela passa a persegui-lo e a assombrar não apenas a ele, mas toda a sua família. Memoráveis cenas, como a do coelhinho de estimação da filha de Dan cozinhando na panela ou quando, depois de uma briga em que ele quase a estrangula, ela solta um sorriso horripilante, não deixam dúvida da força dessa personagem. Aliás, através da psicopatia, um símbolo à época do novo comportamento feminino, que não aceita mais a imposição machista nas relações. Não tem mais perdão: traiu, é penalizado.





5 - Alien (Bolaji Badejo)
Na magia do cinema, o medo pode vir da maneira que se bem entender. Pois não é a forma humana do ator nigeriano Bolaji Badejo que configura o seu personagem mais marcante. É a fantasia que ele veste, a do extraterrestre mais apavorante do cinema: Alien. Vários da mesma espécie dão as caras no bom “Aliens - O Resgate” (Cameron, 1986) e nas desnecessárias sequências. Mas nada se compara à excelente ficção-terror de 1979, de Ridley Scott, em que apenas um exemplar da espécie vai parar dentro da nave espacial em uma missão cheia de problemas. Um, aliás, é mais que suficiente para botar terror em todo mundo. O mais interessante é que o bicho não é muito visto, pois há o recurso fotográfico e cênico de dificultação do olhar, como pede um bom thiller. O vemos de fato, por inteiro e em luz suficiente, apenas mais para o fim da fita, quando o clímax já está lá em cima. Aí, só resta se segurar na poltrona.


Cena do gato de Ripley - "Alien, o oitavo passageiro"


O Cady da primeira e o da segunda vaersão.
6 - Max Cady (Robert De Niro)
Um dos maiores atores da história, De Niro de tempo em tempo encarna figuras assustadoras, desde o taxista louco de “Taxi Driver’ até o comerciante de escravos Rodrigo Mendoza de “A Missão”. Mas nada se compara a Cady, em que revive o já ótimo personagem de Robert Mitchum na versão que inspirou Martin Scorsese a rodar "Cabo do Medo", de 1991 (“Círculo  do Medo”, 1962). União de QI elevado e músculos, o algoz da família Bowden é capaz de, aliado à abordagem do roteiro, confundir os papeis de vilão e herói. Quem é mais filha da puta ali: o ex-presidiário que se vale da liberdade para perseguir os outros, o advogado que o prendeu deliberadamente, a esposa conivente ou as leis da sociedade, interpretáveis e permissivas?






7 - HAL-9000 (Douglas Rain – voz)
Quem disse que só a violência do homem ou a selvageria do bicho podem assustar? A inteligência, quando direcionada para o lado ruim, é devastadora. Ainda mais quando essa inteligência for artificial, como a do computador HAL-9000, o cérebro-mãe da nave especial de "2001: Uma Odisseia no Espaço" (1968). Kubrick e Clarke criam o personagem mais estático e, talvez até por isso, amedrontador do cinema moderno. Mirar aquele seu “olho” de plástico é deparar-se com a frieza inumana capaz das piores coisas. Através de meticulosos comandos, a máquina, rebelde e neurótica, põe à sua mercê toda a tripulação, afetando, mesmo depois de “morto”, toda a expedição. Detalhe: a voz original de Douglas Rain já é suficientemente aterradora, mas a da dublagem para o português, feita pelo célebre Marcio Seixas na clássica versão da Herbert Richards, consegue superar.

Dublagem clássica de HAL-9000 - "2001: Uma Odisseia no Espaço"




8 - Zé Pequeno/Dadinho (Leandro Firmino da Hora/ Douglas Silva)
Tem que ser muito sem noção para dizer para um mal-encarado “como é que tu chega assim na minha boca?!” Não precisa ser cinéfilo pra conhecer a resposta que é dada, pois é naquela cena que um dos personagens mais incríveis do cinema dos últimos 30 anos surgia ainda mais temível. Se o pequeno Dadinho já apavorava por se ver uma criança com sede de matar nos olhos, o jovem traficante vivido magistralmente por Firmino em “Cidade de Deus” (2002), então, “lavou a égua” neste quesito. Violento, entorpecido, marginal, cruel. Como não esbugalhar os olhos quando esse cara manda matar uma criança pequena a sangue frio? Ninguém se meta com Dadinho! Ops! Agora é Zé Pequeno, foi mal aí.






O brilhante personagem de Barden.
9 - Anton Chigurh (Javier Barden)
Os irmãos Cohen são mestres do anticlímax, uma vez que seus filmes se valem largamente desse expediente, usado por eles com muita habilidade de forma a gerar impactos surpreendentes no espectador pelo jogo oportuno de quebra ou confirmação da expectativa. O personagem Anton Chigurh, encarnado por Javier Barden no faroeste moderno "Onde Os Fracos Não Tem Vez" (2007), é montado todo em cima dessa premissa. Absolutamente inexpressivo e unidirecional, o psicótico Anton não sente nada, apenas mata. A naturalidade com que ele elimina suas vítimas não tem glamour nenhum. Ele simplesmente pega e mata, e nada é capaz de freá-lo. Fora isso, dá um pavor danado sempre que ele aparece com aquela arma de ar comprimido.







10 - Harry Powell (Robert Mitchum)
“Lobo em pele de cordeiro” é a melhor definição para Harry Powell. Afinal, quem desconfiaria que um pastor aparentemente cheio de boas intenções se revelaria um tirano doméstico da pior espécie? Se a interpretação de Mitchum fora superada pela de De Niro como Max Cady, esta de "O Mensageiro do Diabo" (Laughton, 1955) fica para a história do cinema como uma das mais fortes e impressionantes já vistas nas telas. Filme impecável, também mas não apenas pelas atuações. Mas Mitchum, inegavelmente é o destaque.

"Amor-Ódio" - "O Mensageiro do Diabo"



Mais insano que qualquer outro Coringa.
11 – Coringa (Heath Ledger)
 O alucinado e diabólico vilão das histórias do Batman é um dos personagens mais originais da cultura pop mundial. Interpretá-lo é, obviamente, um privilégio. George Romero o fez muito bem na série e até o craque Jack Nicholson mandou muito bem no papel, mas nada se compara ao que Heath Ledger fez em "O Cavaleiro das Trevas" (Nolan, 2008). Ele encarna Coringa, a ponto de, dizem, amaldiçoar-se, haja vista que morreu logo depois das filmagens. Ledger achou como poucos atores para o limiar entre a loucura e a lucidez, entre o burlesco e o austero. Menção que não podia deixar de faltar na lista.






12 - Jack Torrance (Jack Nicholson)
Se Stanley Kubrick já conseguira assustar com um computador, imagina quando ele volta toda a história para isso. É o caso do perfeito "O Iluminado" (1979), outra das obras-primas do cineasta costumeiramente reconhecido como o grande filme de terror de todos os tempos e a melhor adaptação de Stephen King para as telas. Mas seu impacto certamente não seria o mesmo se não tivesse a força de Nicholson no papel de Jack Torrance. Ele vale-se de toda sua técnica e sensibilidade cênicas a serviço da construção do personagem que vai perdendo o controle de sua sanidade, pois, mediunicamente vulnerável, sucumbe aos espíritos “sanguessugas” ligados àquele que Jack foi na vida passada: um serial killer que matou toda sua família.

por Daniel Rodrigues

domingo, 12 de junho de 2016

COTIDIANAS nº 440 ESPECIAL DIA DOS NAMORADOS - Namorada... é que é serpente



Filippo tinha duas paixões na vida: cinema e Aurora. Mas comecemos pela mais analisada e analisável: o cinema.
Embora fosse farmacêutico, Filippo gostava mesmo era de sétima arte. Não no sentido de fazer cinema, mas de apreciá-lo. Era dedicado na sua profissão, e a cumpria muito bem. Mas os “24 quadros por segundo”, a magia do cinema, era o que realmente lhe movia. Era o que recheava sua cabeça inventiva e romântica. De certa forma, a vida de farmacêutico até o ajudava a dedicar-se ao que gostava: além de os horários na farmácia favorecerem, pois lhe davam a noite para poder ver o que queria, também ganhava o suficiente para ir ao cinema, comprar filmes e, solteiro, assistir a vários deles na TV a cabo madrugada adentro. E não era com blockbusters ou aventuras explosivas que Filippo se animava. Era cinéfilo mesmo, na verdadeira acepção da palavra. Conhecia cinema a fundo: europeu, asiático, norte-americano, alternativo, indiano, russo e por aí vai. De qualquer escola, movimento ou polo produtivo, fosse Cinema Novo Japonês ou Dogma 95, noir ou Realismo Fantástico, Filippo conhecia ao menos alguma coisa representativa.
De todas as nacionalidades do cinema, entretanto, a que mais lhe agravada era a italiana. Não necessariamente pela descendência, mas porque adorava a picardia, o conceito fotográfico, o sabor do idioma e o humor sarcástico do cinema da Itália até nos filmes não propriamente de comédia. Claro que admirava as obras dos mestres Fellini, Pasolini, Antonioni, Petri, De Sica, Visconti. Mas se deliciava mesmo era com as comédias italianas. Títulos como “Volere, Volare”, “Ladrões de Sabonete”, “O Incrível Exército de Brancaleone” e “O Monstro“ faziam-lhe a cabeça. Uma delas, porém, era a sua preferida, não apenas entre as comédias, mas entre todas as escolas, movimentos, nacionalidades e filmografias: “Parente... É Serpente”. O longa de Mario Monicelli era seu filme de cabeceira, o primeiro de todas as suas listas. Só havia um contrassenso nisso: Filippo não tinha este filme em sua videoteca. Já tivera, mas o perdera – e isso tinha uma explicação incômoda para ele. Mas exceto o fator estritamente emocional, que em seguida explicaremos, a priori, para um colecionador – ainda mais para quem gostava tanto de “Parente... É Serpente” – isso era uma falha gravíssima. Chegava a culpar-se por não tê-lo mais em sua prateleira: “Por que fui fazer a besteira de deixar o filme com ela?”
“Ela” quem? A Aurora, ora. Sim, Aurora, a segunda paixão de Filippo, aquela cuja análise é um tanto mais intrincada do que a de cinema. Mas tentemos: moça um pouco mais magra que o normal, talvez por sua estatura um pouco acima da média, era naturalmente sexy mesmo não fazendo o estilo “gostosona”. Esteticamente era bem proporcional: bunda, coxas, peitos, boca, cintura: tudo sem exagero mas sem faltar nada. Porém, o que lhe fazia sensual mesmo era seu jeitinho, o jeitinho que encantava os homens. Foi assim com Filippo naquele churrasco na casa do Douglas há quase seis anos: encantamento. Mas não só ele: o Maikinho, o Ventura, o Biboca, o Haroldo e até o dono da casa, noivo, gamaram naquela misteriosa fotógrafa lépida, faceira e desatenta aos olhares desejosos. A Priscila, a noiva do Douglas, levara a amiga na festa para fazer uns registros fotográficos despretensiosamente e sem cobrar nada, pois ela queria treinar a luz com a nova lente que acabara de comprar. Mas o que embasbacou de verdade a galera não foram as fotos, mas, sim, a própria Aurora fotografando. Era um show ao vivo do tal “jeitinho”. Com seu cabelo preto curtinho e espetado, ela passava de um lado para o outro, se agachava, se contorcia, falava sozinha, fazia careta quando encostava o visor no olho, punha uma pontinha da língua para fora da boca vermelha de batom para conferir o resultado. Era descolada, espontaneamente alegre e de gestos largos, como se não se importasse com a presença dos átomos à sua volta para exercê-los com liberdade, com iluminação própria. Uma esfinge. Uma aurora.
Ocorreu que o jeitinho de Aurora não bateu com o de mais ninguém naquela festa, apenas com o jeito nerd de Filippo. Os óculos de armação grossa estilo anos 60, o cabelo arrumado cujo corte permitia ao menos uma franja subversiva e a cabeça quadrada que comportava ricos olhos verdes trazidos de Bérgamo pelos bisavós na primeira leva da imigração italiana ao Rio Grande do Sul, cativaram a aparentemente distraída Aurora. Na verdade, confessou depois a Filippo, ela o percebera logo que entrara pela porta, sentado num banquinho tomando uma cerveja com o copo americano quase vazio. Até lhe mostrou uma série de fotos que batera dele com zoom, de longe, para não dar na vista o interesse. Fotos encantadas, que Filippo, todo bobo, não cansava de ver e rever mesmo anos depois.
Foi bonito o romance dos dois. Aurora foi a primeira namorada de verdade de Filippo, a primeira a quem ele realmente se afeiçoara. Já Filippo foi para Aurora o encontro de algo que ela precisava para preencher sua alma inquieta e perscrutadora. Era como se ele fosse um necessário prego cravado no chão segurando a barra de sua saia de modo que ela não saísse correndo desordenadamente mundo afora. Os quase dois anos de relacionamento correram com mais alegrias do que brigas. Na verdade, belicismo não era uma característica de nenhum dos dois. Apenas ocorria, isso sim, momentos de total tristeza de Aurora. Inexplicáveis. Tão sem justificativa visível que, no dia seguinte, aparecia ela de novo lépida e faceira como se nada tivesse acontecido. Filippo, por amor ou covardia, relevava.
O romance avançava para um enlace permanente: Aurora mudara-se para o apê de Filippo na Barão do Triunfo, no Menino Deus, e estabeleceram uma bonita rotina conjugal. Viajavam juntos e planejavam outras viagens; preparavam baldes de pipoca para as sessões de cinema na sala; iam ao super toda semana repor a dispensa; faziam sexo com bastantes frequência e prazer; levavam o Golias ao veterinário; pagavam a mensalidade da facúl de Aurora; compravam pão para o café da manhã do dia seguinte; essas coisas.
Tudo harmonioso, não fosse o tal jeito misterioso de Aurora. Embora gostasse de Filippo, sua ligação com ele, ou melhor, com os relacionamentos amorosos, guardava complexidades. Com o passar do tempo, foi ficando mais e mais inquieta. Ela parecia sempre estar em busca de algo que não encontrava – ou preferia não encontrar para permanecer buscando. Filippo nunca escutara dela, por exemplo, um “eu te amo”. Pelo contrário, costumava ouvir de Aurora, em tom brincadeira, outra sentença: “eu não sou casável”. E no mais, Filippo inconscientemente sabia que o seu prego cravado no chão não conteria Aurora para sempre, pois uma hora ou outra a barra do vestido se rasgaria e ela, enfim, sairia desorientada pelo planeta Terra.
A desagradável suspeita de Filippo se confirmara: a frase não tinha nada de brincadeira. Com a justificativa de fazer uma pós em São Paulo, Aurora um dia pegou sua mala e seus equipamentos fotográficos e foi morar na como ela agitada Sampa. Fim do romance, assim, sem mais nem menos, sem muita explicação. Sem olhar Filippo nos olhos na despedida. Como uma fuga, como uma busca por algo que provavelmente nem ela sabia o quê.
Não precisa dizer que Filippo ficou arrasado. Até parara de assistir filmes por um bom tempo, de modo a não gravar uma impressão ruim da obra por causa de sua inevitável fossa. Gostava muito de cinema para deixar que uma paixão maculasse a outra. “Imagina rever ‘Persona’ do Bergman nesse estado deplorável!”, pensava em sua melancolia cinéfila. “Aurora”, do Murnau, então: nem pensar! Um dia, chegara ao ponto de escondê-lo, pois seus olhos teimosamente percorriam a fileira de DVD’s na parede para baterem justo naquele maldito título: “Aurora”. No entanto, no momento em que engaiolava o clássico de Murnau, Filippo percebeu que, pouco antes na prateleira, organizada por ordem alfabética de cineastas, vagava uma caixinha. Era no “M” de Monicelli. Sim, faltava-lhe “Parente... É Serpente”. Numa recapitulação de milésimos de segundo, lembrara-se que emprestara para Aurora logo que começaram a namorar, ainda quando não moravam juntos. Ela levara para casa para assistir sozinha o filme predileto do recente namorado, num gesto de afeição dela. Já o de Filippo era de quem já acreditava naquele relacionamento, pois emprestar um item de sua coleção era uma raridade, e fazê-lo justamente com “Parente... É Serpente”, então! Uma prova de amor eterno.
Não foi eterno. Depois da tristeza pela separação, Filippo foi se recuperando do jeito que dava. Anos se passaram, namorou umas duas moças, transou com essas e mais outras três sem compromisso, mas não se firmou com nenhuma delas. Ia levando, mas sempre com Aurora lá no fundo da cabeça. Já se acostumara à vida sem ela e sem seu filme preferido. E como não convinha ir atrás dela, foi à cata do filme. Bateu aquela vontade de revê-lo, que todo cinéfilo tem para como suas fitas queridas de tempos em tempos. Pesquisou no site da Cultura e... “esgotado”. “Ok: vou procurar no site da Saraiva”. Igual. Livraria da Folha... idem. Todo comprador de internet sabe que não achar o que quer nesses sites é um mau sinal. Provavelmente é porque o produto não está disponível mesmo. Já aflito, fez uma busca genérica no Google pelo título do filme mais a palavra “comprar”. Nada, nem no Mercado Livre, onde só encontrara um VHS para vender – e ele não tinha mais videocassete há anos.
Mesmo pouco acostumado em baixar filmes, tentou ainda achar em sites de torrent e, incrível: não tinha também! Nem no Youtube, que, mesmo que tivesse, para Filippo, um colecionador à moda antiga, não cabia se contentar em tê-lo com uma imagem pixelada e correndo o risco de dessincronizar áudio do vídeo. Sim, tinha que se convencer: “Parente... É Serpente” estava fora de catálogo.
Ele se maldizia. Não convencido, pegou um dia um pedaço do horário de almoço e foi a um brique na Alberto Bins, onde sabia ter muita coisa rara. Com medo de receber de cara a má notícia do dono da loja, foi ele mesmo procurar. Em meio àquela zona totalmente fora de ordem, logo percebeu que não era possível achar qualquer coisa ali dada a bagunça, a pouca iluminação e a quantidade amazônica de DVS’s, CD’s, livros, revistas, vinis, VHS’s e até fitas cassete. Tudo junto e misturado. Um museu abarrotado e empoeirado. Podia até ser que tivesse o que procurava, mas não conseguiria achar por si só no pouco tempo que dispunha, só com muita sorte. Precisaria, enfim, consultar o dono da loja:
- Ei, tu tem o DVD do filme “Parente... É Serpente”?
- Não. – respondeu secamente sem pestanejar e nem olhar para Filippo.
- Mas tu tem certeza? Tu nem parou pra pensar, não consultou aí o computador. – disse Filippo, apontando com o queijo para um notebook dinossáurico do qual o homem não tirava os olhos.
- Tenho certeza. Esse filme tá fora de catálogo. – respondeu com a segurança de quem conhece o mercado em que atua enquanto Filippo escutava sua digitação e o som de aviso de bate-papo do Facebook saltarem do note.
- Puxa... É que, sabe, eu tinha esse filme, mas emprestei...
- Pra uma mina?
- É... pra uma namorada. – falou Filippo, constrangido com a previsibilidade de seu ato. – Ele se mudou pra São Paulo, e daí...
- Cara: que besteira que tu fez, hein? – tirando os olhos do Facebook e finalmente olhando para Filippo. – Esse filme é tri bom. Faz tempo que eu vi. Ih! Um tempão. E vou te dizer uma coisa: tu perdeu uma grana. Esse DVD é uma raridade hoje em dia. Nem no Mercado Livre tu encontra.
- É, eu já sei.
- Eu sei como é: já fiz essa merda também. O que a gente não faz por uma buceta, né? – disparou o homem, rindo, tentando criar uma cumplicidade machista.
- Não é isso, cara. – respondeu imediatamente Filippo franzindo a testa.
Mais emputecido pela busca frustrada do que ofendido com o outro, Felippo preferiu sair da loja e ir embora. Mas numa coisa ele tinha que concordar com aquele sujeito grosseiro: que besteira foi fazer em deixar o filme com Aurora! Perdera a amada e o filme amado ao mesmo tempo.
Anos se passaram até que, um dia, quando Filippo já se acostumara com a condição “sem Aurora” e “sem filme predileto”, algo improvável acontece. Voltando do Zaffari da Getúlio Vargas em direção à sua casa, Filippo dobra a esquina e com quem ele se depara? Aurora. Ela, um caminhão de mudanças estacionado na calçada e várias caixas sendo transportadas para dentro de um prédio a duas quadras de seu apartamento. Ambos pararam e se olharam com surpresa.
- Oi, Lippo!
- Oi... Aurora. Tu aqui?... – falou, apontando com o queixo para o prédio.
- Sim! Tô me mudando pra cá. Legal, né? Voltei pra Porto por que... tava com saudade daqui, do meu lugar, dos amigos. E também pra ficar perto da mãe, que anda doente. Lembra da mãe, né, dona Doralice?
- Sim, claro que lembro.
- Pois é. A mãe tá morando aqui pertinho, naquele condomínio ali na Barbedo com a Getúlio, sabe? E com esses problemas dela, o meu irmão morando em Londres, não tinha ninguém pra ficar com ela, que tá velhinha.
- Que coisa... Manda um beijo pra tia Doralice. E melhoras pra ela.
- Mando, mando, sim – disse animada, sorrindo graciosamente.
Ficaram se olhando sem trocar palavras por alguns segundos, ele segurando as sacolas brancas do Zaffari nas duas mãos, ela abraçando uma caixa grande com o número 39 escrito com hidrocor preta, que fez Filippo lembrar-se imediatamente do filme de Hitchcock, “Os 39 Degraus”, e da cena do carro de “Blow Up”, do Antonioni.
- Então: casou? – indagou ela, interrompendo o silêncio.
- Eu? Não. E tu?
- É, também não. – disse Aurora, sorrindo novamente. – Tive uns rolos em São Paulo, um outro em Budapeste, que eu passei um tempo lá. Até cheguei a morar junto por um tempo, mas, sabe como eu sou, né? “Não sou casável”, rsrs.
- É, eu sei...
- Tu não casou mesmo, então?
- Só se for com a farmácia e com meus filmes. – brincou Filippo, e os dois riram.  – A propósito: tu te lembra que eu te emprestei, faz anos isso, o meu DVD do “Parente... É Serpente”? Sabe, aquela comédia italiana do Mario Monicelli, que eu gostava muito, que eu vira e mexe comentava. Eu te emprestei antes de a gente... morar...
- Humm, acho que sei... Não lembro direito. Tenho uma vaga lembrança.
- Tu te lembra, sim: a gente até comentava que um dos personagens tinha o meu nome. Deve tá em alguma dessas tuas caixas aí.
- Não me lembro de ter visto lá em casa... Porque tu sabe, né? Minhas coisas são sempre uma bagunça! Pode ser que esteja nas minhas coisas. Tenho que procurar. É que foi tão rápida a mudança lá em São Paulo, tudo na correria, que só soquei tudo pra dentro e me toquei de lá. Nem sei direito o que tem dentro dessas caixas. Não vou estranhar se eu abrir alguma e encontrar um bicho, rsrs.
- Vai ver, tu encontra não o filme, mas uma serpente de verdade!
Riram juntos.
- Por falar em bicho, e o Golias? – lembrou-se ela, interessada.
- Foi morar com a mãe lá em Faria Lemos. Vida de cachorro velhinho não combina mais com a correria da cidade, apartamento, concreto. Agora tá curtindo uma casa com pátio e verde lá na Serra.
- Querido! Saudade dele.
Novo silêncio, agora por falta de assunto.
- Então... tchau.
- É, tenho que terminar aqui a mudança. – afirmou Aurora, convencendo-se.
- E eu tenho fazer meu almoço. A gente se fala, agora que estamos pertinho de novo, né?
- Sim! Meu celular novo com prefixo 51 é esse aqui – disse-lhe, soltando a caixa e pegando um cartão de dentro da bolsa. Ele anotou o seu celular atrás de um segundo cartão dela e despediram-se com dois beijinhos.
- Se tu achares o meu filme, me avisa, tá?
Filippo não acreditou que ela fosse ligar, e nem ele ligaria. Procurou-a no Face, achou seu perfil, mas não solicitou amizade. Adicioná-la no WhatsApp, nem pensar. Não iria atrás dela por orgulho e pela mágoa ainda mal resolvida, a qual despertara naquela semana desde que a revira.
Mas ela ligou:
- Alô?
- Oi Lippo! É a Aurora! Que tu tá fazendo?
- Eu? Tô em casa, organizando umas coisas, dando um tapa na casa, uma faxina. Por quê?
- É que eu tinha um job pra fazer agora de noite, um evento de um cliente, mas mixou. O cara desmarcou comigo em cima do laço. Tu vê, que desgraçado?!... Daí, eu pensei: por que não convidar o Lippo pra vir conhecer o meu novo apê?
- Sei...
- A gente podia jantar alguma coisinha. Tu sabe que eu não sou boa na cozinha, né? Continuo não sendo. Mas a gente chama um sushi, uma pizza, assiste um filme, sei lá. Tá tudo meio com cara de mudança aqui ainda, mas tu é de casa. Que tu acha?
- Bem... é que eu...
- Ah, Lippo, não vem com desculpa! Tu tá faxinando a casa numa sexta-feira às seis da tarde. É sinal que tu não tem nada melhor pra fazer! Diz que vem, diz que vem!
- Tá, Aurora. Acho que eu vou, sim. Deixa eu tomar um banho, que eu cheguei da farmácia e não parei. Mais tarde eu bato aí.
- Oba! Que bom que tu vem. Vou também dar uma organizada na casa pra te receber.
- E vem cá: por acaso o tal filme que tu pensou de a gente ver é o meu?
- De que filme tu tá falando, Lippo?
 - O “Parente... É Serpente”, Aurora! Que tu disse que ia procurar, pra ver se ainda tava contigo. Tu achou?
- Sinceramente, Lippo, não encontrei nada, pelo menos não nas caixas que eu abri até agora. Na real, tô achando que esse filme não tá comigo, viu? Acho que tu emprestou pra outra pessoa, outra namorada... e tá confundindo.
- Eu tenho certeza que te emprestei, Aurora. Faz tempo, mas foi pra ti. Mas, tá: deixa pra lá. Dá um tempinho que daqui a pouco tô chegando aí.
Filippo tomou banho mas vestiu-se despreocupadamente, pois não tinha a menor esperança de que alguma coisa voltasse a acontecer entre Aurora e ele depois de tanto tempo. Estava errado. Jantinha regada a vinho chileno, sala iluminada só pela luz da tevê, ela contando histórias de São Paulo e da Hungria, ele, dos aprontos do Golias, e não demorou muito. Conversa vem, conversa vai: pintou clima. A transa foi bonita e apimentada como nos velhos tempos, ali mesmo na sala e depois no quarto, madrugada adentro. Fluiu. Parecia que os anos nem haviam se passado. Aurora se entregou com prazer, linda nua. Filippo, no céu, dormiu exausto e suspenso com a sensação de que fora picado novamente pelo veneno deleitoso de sua Aurora.
Naquele sábado era sua folga, então, relaxado, Filippo deixou o sono se estender e acordou no meio da manhã ouvindo o barulho de chuva no vidro da janela. Sozinho. Não precisou chamar mais de duas vezes por Aurora para concluir que ela já não estava. Seus equipamentos sobre a cômoda não se encontravam mais ali. Decerto, tinha trabalho para fazer. Vestiu-se, bateu a porta do apartamento e desceu o elevador para voltar para casa. Não tinha porque ficar esperando ela voltar. No hall, o porteiro lhe avistou e o chamou:
- O senhor que é o senhor ‘Felipo’?
- Sim, sou eu mesmo – respondeu desconfiado.
- Dona Aurora deixou isso aqui pro senhor. Ela já tava saindo pelo portão, toda cheia de cousa, mala, bolsa, máquina de retrato, mas daí voltou aqui e disse pra mim lhe entregar isso aqui, que ela não queria voltar no apartamento pra não acordar o senhor.
E lhe estendeu a encomenda.
- A que hora foi isso?
- Cedo da manhã, senhor. Umas 6 horas.
Filippo finalmente tinha de volta seu DVD de “Parente... É Serpente”. Por dentro do plástico da caixinha, tapando a capa, um bilhete escrito a mão por Aurora:
“Lippo,
Tenho um trabalho (dava para ver escrita, por debaixo da rasura de caneta, a palavra “em”) longe, muito longe.
Na Índia.
Vou ficar seis meses fora, se não mais. Não sei ainda.
Não espera por mim, tá? Me desculpa. Tu sabe como eu sou.
Adorei te rever.
Te amo.
Adeus.”
Não assinou. Apenas gravou um beijo com seu batom cor vermelho-coral.
Felippo mal se despediu do porteiro. Atravessou a passos anestesiados a rua já molhada pela chuva que começava a apertar e foi para casa. Chegando, imediatamente repôs seu DVD perdido na prateleira sem revê-lo. Pegou, sim, o filme de Murnau, que desencarcerou do armário. Mesmo subvertendo uma norma de cinéfilo, de não assistir a um filme mudo de manhã – pois filme mudo é para ser visto no cinema ou de noite –, mecanicamente pôs para rodar aquele romance de final feliz. Sob a luz do dia, que vazava pelos cantos da janela fechada, lágrimas desesperançadas corriam soltas de seu rosto enquanto revia “Aurora”, tantas que se igualavam à quantidade de pingos da chuva que lá fora molhavam a calçada.



para Luis.


terça-feira, 8 de dezembro de 2009

"Círculo do Medo" (1962) de J.Lee Thompson e "Cabo do Medo" (1991) de Martin Scorcese




Tava passando no TCM, era a sessão dos 50 filmes pra assistir antes de morrer e eu não tinha visto ainda. Então, eu não podia correr o risco de morrer (toc, toc, toc) sem ver "Círculo do Medo", de J.Lee Thompson que renderia posteriormente uma refilmagem de Martin Scorcese entitulada aqui no Brasil "Cabo do Medo" (que aliás é o nome original da versão antiga também.
Minha curiosidade residia muito em ver como a versão original caracterizava o terrível Max Cady, vivido por Robert de Niro no remake, e como se configurava a relação do criminoso com o advogado que o metera na cadeia. Cady no original é vivido por Robert Mitchum que, a propósito de atuações perversas e assustadoras, já havia protagonizado o ótimo "Mensageiro do Diabo" de forma maligna, e aqui para minha surpresa não fica devendo nada à interpretação de De Niro. Mictchum consegue ser tão sinistro quanto, tão sarcástico quanto, tão sádico quanto e só não mais violento porque o cinema da época não permitiria. Mas mesmo assim o filme é curiosamente muito ousado neste apecto para sua época (e não à toa, tendo problemas com censura), sendo até mesmo extremamente insinuante em determinados momentos como no evidente desejo do maluco pela filha semi-adolescente do advogado ou no suposto estupro da esposa do mesmo.
Um outro elemento que tinha curiosidade de saber como era colocada na versão antiga era se estava presente o elemento anti-ético apresentado na refilmagem que levara Max Cady à cadeia. E realmente não, não havia este elemento e este provavelmente foi o grande ganho de Scorcese em relação à versão antiga. Com a introdução de questões morais e éticas, transgredidas por todos os envolvidos em determinado momento do filme, Scorcese conseguiu fazer com que ninguém ficasse como anjinho na história e em determinado momento a família ameaçada fica minada por estas questões dentro do próprio lar.
Os dois Max Cady, ambos de dar medo,
cada um à sua maneira
Lógico, é certo que o Max é um psicopata, um criminoso, mas o diretor faz com que não deixemos limpo em nosso julgamento, um advogado, que jurou defender a lei e a verdade, e que omitiu provas para pôr atrás das grades seu próprio cliente. Não acabamos torcendo pelo vilão, mas acabamos sim com um certo asco e desprezo pelo novo Sam Bowden, interpretado por Nick Nolte, ao passo que o antigo, Gregory Peck, o máximo que faz de ilegal foi chamar uma gangue pra dar um corretivo no delinqüente.
Salvo isto, "Círculo do Medo (1962)" é excelente até em termos de direção com algumas cenas quase que rigorosamente copiadas por Scorcese tamanha a qualidade da filmagem original de J.Lee Thompson.
Suspense de primeira, com certeza muito inspirado em Hitchcock, o que fica mais evidenciado ainda pela trilha sempre arrepiante do colaborador de Hitch, Bernard Herrmann.
Vale a pena ver os dois!


Cly Reis