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terça-feira, 12 de junho de 2018

cotidianas #571 - "Vida, vida"



I.
Imagem do filme "O Espelho", de Andrei tarkovski (1975)
Não acredito em pressentimentos, e augúrios
Não me amedrontam. Não fujo da calúnia
Nem do veneno. Não há morte na Terra.
Todos são imortais. Tudo é imortal. Não há por que
Ter medo da morte aos dezessete
Ou mesmo aos setenta. Realidade e luz
Existem, mas morte e trevas, não.
Estamos agora todos na praia,
E eu sou um dos que içam as redes
Quando um cardume de imortalidade nelas entra.

II.
Vive na casa e a casa continua de pé
Vou aparecer em qualquer século
Entrar e fazer uma casa para mim
É por isso que teus filhos estão ao meu lado
E as tuas esposas, todos sentados em uma mesa,
Uma mesa para o avô e o neto
O futuro é consumado aqui e agora
E se eu erguer levemente minha mão diante de ti,
Ficarás com cinco feixes de luz
Com omoplatas como esteios de madeira
Eu ergui todos os dias que fizeram o passado
Com uma cadeia de agrimensor, eu medi o tempo
E viajei através dele como se viajasse pelos Urais

III.
Escolhi uma era que estivesse à minha altura
Rumamos para o sul, fizemos a poeira rodopiar na estepe
Ervaçais cresciam viçosos; um gafanhoto tocava,
Esfregando as pernas, profetizava
E contou-me, como um monge, que eu pereceria
Peguei meu destino e amarrei-o na minha sela;
E agora que cheguei ao futuro ficarei
Ereto sobre meus estribos como um garoto.

Só preciso da imortalidade
Para que meu sangue continue a fluir de era para era
Eu prontamente trocaria a vida
Por um lugar seguro e quente
Se a agulha veloz da vida
Não me puxasse pelo mundo como uma linha.


*********
"Vida, vida"
Arseni Tarkovsi
(poema recitado no filme "O Espelho"
de Andrei Tarkovski)

domingo, 10 de junho de 2018

Copa do Mundo Madonna - Quartas-de-Finais

Não sabe brincar, nem desce pro play porque agora a coisa aqui é só de gente grande.
Só restaram oito e, a gente sabe, que oito hits de Madonna, tem que se respeitar.
Realizado o sorteio, saíram os confrontos das quartas-de-finais e não tem refresco pra ninguém. É só jogaço! O ruim, que a gente sabe, é que quatro grandes músicas da Rainha vão ficar pelo caminho.
Novamente não tivemos clássicos locais e de agora em diante, apenas o álbum "Erotica" que colocou dois representantes nas quartas, poderá ter um enfrentamento direto na próxima rodada ou na final. Já as outras vagas dessa fase ficaram com os álbuns "Like a Virgin", "Bedtime Stories", "Music", "I'm Breathless", "MDNA" e com a coletânea "The Immaculate Collection" que trazia duas inéditas, uma delas, nossa representante nas quartas-de-finais.
Confira abaixo os enfrentamentos da atual fase da Copa do Mundo Madonna:



sábado, 9 de junho de 2018

O Rappa - "Rappa Mundi" (1996)





"O futebol faz parte da cultura nacional não é à toa. 
É um esporte que representa pra caramba
a maneira que a gente vive.
O que é?
Você driblando as atrocidades,
as condições impróprias que a gente tem."
Falcão, vocalista



O rock nacional dos anos 80 já começava a dar sinais de desgaste. Cazuza já tinha morrido, Renato Russo agonizava em público e sua doença refletia nos discos da Legião, Lobão começava a perder o rumo, os Titãs perdiam integrantes e a identidade, os Engenheiros se afastavam do grande público e, só os Paralamas, mesmo com discos um tanto irregulares, tenham conseguido sustentar o sucesso comercial e o interesse do público. Nesse ínterim, naquele início de anos 90, um bom time de novas bandas nacionais começava a dar as caras vindas de diferentes lugares do Brasil e trazendo sonoridades e propostas interessantes: os calangos do Raimundos e seu hardcore irreverente e desbocado; os mineiros do Pato Fu com seu bom humor e criatividade; o pessoal do Skank, também de Minas, apresentando com um pop gostoso e contagiante; também das Gerais o Jota Quest com seu pop-soul, estes já um pouco mais apelativos comercialmente; os recifenses do Mangue-Beat misturando sons regionais com peso e tecnologia; e no Rio, O Rappa, um pessoal que fundia reggae, com hip-hop, com soul, com MPB, utilizando-se de peso de guitarras distorcidas e elementos eletrônicos como samples e batidas programadas. A banda já havia aparecido bem com seu álbum de estreia, de mesmo nome, de 1994, chamando atenção, além da sonoridade, pelas ótimas letras com abordagens de questões sociais de forma lúcida e consciente, veio a conquistar definitivamente público e crítica com seu segundo álbum, "Rappa Mundi" de 1996.
Produzido pelo mestre dos estúdios no Brasil, Liminha, "Rappa Mundi" teve uma série de grandes sucessos com suas faixas sendo executadas incansavelmente nas rádios e na MTV. Contando com as letras sempre críticas e engajadas do então baterista Marcelo Yuka e com o vocal poderoso e versátil do carismático vocalista Falcão, a banda discorria sobre temas como drogas, violência urbana, trabalho infantil, religião, racismo e pobreza, das formas mais criativas, desde a maneira mais incisiva à mais bem-humorada.
Em "A Feira", por exemplo, faixa que abre o disco, num raggae-pop descontraído e embalado, falam sobre a venda de "substâncias ilícitas" e a facilidade de se encontrar os produtos em qualquer esquina; em "Miséria S.A." Falcão interpreta como se recitasse um texto decorado a criativa letra do cantor e compositor Pedro Luís, que imita aqueles bilhetinhos que pedintes entregam aos passageiros nos ônibus, escancarando a realidade da pobreza no Brasil e as situações a que se sujeitam homens, mulheres e muitas vezes crianças; "Vapor Barato", clássico multi-regravado da música brasileira, ganha uma versão competentíssima, mais embalada e de interpretação marcante de Marcelo Falcão, incluindo-se entre as grandes versões que a canção de Waly Salomão e Jards Macalé já recebeu. "Ilê Ayê", conhecida na voz de Gilberto Gil no álbum "Refavela", vai perfeitamente ao encontro do discurso e da proposta dO Rappa e com uma pegada mais elétrica e vibrante, é outra cover que não decepciona. Assim como "Hey Joe", outra versão, esta da canção imortalizada por Jimi Hendrix, que, embora não tenha o brilho daquela do gênio da guitarra, garante uma boa releitura em português e completamente carregada no reggae.
Grande sucesso, a inspiradora "Pescador de Ilusões" é aquele trunfo radiofônico perfeito; "Uma Ajuda" juntamente com "Lei da Sobrevivência" talvez sejam as menos empolgantes do disco; já "O Homem Bomba" e "Tumulto", por sua vez são incendiárias, ambas abordando a indignação do home  comum, do cidadão tão desrespeitado no dia a dia. "Tumulto", em especial, muito a calhar, fala sobre manifestações populares, povo, não o povo da Paulista, mas o povo de comunidades, indo à rua por justiça, por igualdade, por necessidades básicas ou por conta da violência cotidiana. Mais uma porrada dO Raapa!
Altamente ligados a futebol, torcedores e frequentadores de estádios, tendo inclusive participado da coletânea de hinos de clubes brasileiros, da revista Placar, gravando o hino do Flamengo, o esporte, que segundo eles mesmos tem tudo a ver com a música e com a vida do brasileiro, aparece em vários momentos no disco. A ótima "Eu Não Sei Mentir Direito", por exemplo, começa com os versos "No país do futebol/ Eu nunca joguei bem..." revelando alguém que, numa terra de onda a malandragem é a lei, não consegue se adaptar à conduta dominante enraizada na cultura do brasileiro; "O Homem Bomba", fala em "tocar bumbo na garganta do Maracanã"; "Óia o Rappa", música que fecha o disco e que também fala sobre o jeito do cidadão se virar, refere-se a "pênalti" quando a situação fica crítica numa batida da polícia num negócio informal um tanto suspeito. Mas é em "Eu Quero Ver Gol" que a verve futebolística fica totalmente exposta retratando a realidade de um torcedor que enfrenta os perrengues do dia a dia, dá duro durante a manhã na praia, mas que não quer perder de jeito nenhum o jogo do fim da tarde e, mais do que qualquer coisa, ver seu time ganhar ("Tô no rango desdas duas e a lombra bateu/ O jogo é as cinco e eu sou mais o meu/ Tô com a geral no bolso, garanti meu lugar/ Vou torcer, vou xingar pro meu time ganhar"). A versão do especial acústico gravado para a MTV, que posteriormente viraria CD e DVD, gravada em 2005 é ainda mais "boleira" e tem mencionados, em seu final, os nomes de vários jogadores da Seleção Brasileira que estavam prestes a disputar a Copa de 2006, num final apoteótico para aquela apresentação.
Depois de "Rappa Mundi" a banda ainda apresentaria o bom "Lado B, Lado A" mas após um incidente urbano em 2001, infelizmente cada vez mais familiar a todos nós, uma tentativa de assalto que vira a deixar Marcelo Yuka, baterista e principal compositor da banda paraplégico, O Rappa, com sua saída, perdia bastante em qualidade de letras e criatividade mostrando-se irregular e inconsistente, embora ainda conseguisse sustentar um relativo sucesso comercial. Mas "Rappa Mundi" com toda sua atitude, gingado, irreverência e sonoridade já havia garantido o nome dO Rappa em destaque entre os grandes discos da música brasileira e por extensão, para nós, na galeria dos ÁLBUNS FUNDAMENTAIS do ClyBlog.
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FAIXAS:
1. "A Feira" - Marcelo Yuka (3:59)
2. "Miséria S.A." - Pedro Luís (4:01)
3. "Vapor Barato" - Waly Salomão, Jards Macalé 4:23)
4. "Ilê Ayê" - Paulinho Camafeu (3:50)
5. "Hey Joe" (participação de Marcelo D2)  - Bill Roberts, versão: Ivo Meirelles, Marcelo Yuka (4:25)
6. "Pescador de Ilusões" -  Marcelo Yuka (4:29)
7. "Uma Ajuda" - Marcelo Yuka (4:29)
8. "Eu Quero Ver Gol" - Falcão, Xandão (3:41)
9. "Eu Não Sei Mentir Direito" -  Marcelo Yuka 4:03
10. "O Homem Bomba" - Marcelo Yuka (3:14)
11. "Tumulto" - Marcelo Yuka (3:14)
12. "Lei Da Sobrevivência (Palha de Cana)" - Falcão (3:05)
13. "Óia O Rapa" - Lenine, Sérgio Natureza (6:00)

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Ouça:
O Rappa - Rappa Mundi


Cly Reis

quinta-feira, 7 de junho de 2018

cotidianas #570 - O Hino


para Nílson Araújo



A Juventus era um time de bairro diferenciado. Desde sempre primou por ter fardamentos completos, recusando-se a usar "uniforme palhacinho", como eles mesmos chamavam. Nada de calções de uma cor e meião de outra, uma camisa sem número e outra numerada com esparadrapo ou coisas do tipo. Se num primeiro momento os resultados não vinham e os membros fundadores penavam com derrotas e humilhações, a organização que apresentavam foi chamariz para que garotos mais talentosos se aproximassem e se juntassem aos originais, fazendo daquele timezinho uma esquadra quase imbatível na sua região.
Além de uniformes completos e variados, a Juventus tinha redes próprias, kit de massagem, arquivos de estatísticas e festa de confraternização e premiação todo final de ano com troféus, medalhas e tudo mais. Se alguns não eram tão habilidosos com a bola nos pés, davam sua contribuição de outra maneira e por sorte, a Juventus tinha entre seus integrantes alguns talentos em outras áreas que não a do futebol, que contribuíam ainda mais para sua diferenciação. Um de seus jogadores, por exemplo, mais talentoso graficamente, idealizava uniformes e produzira um moderno e original escudo para o clube. Outro, o Nílson, com dotes musicais elevadíssimos, orgulhoso por ter sido um dos fundadores e de fazer parte daquele projeto, propunha-se a compor para a Juventus um hino. Sim, um hino. Que time de bairro tinha um hino? Os outros podiam comprar novos uniformes, ter redes em suas traves, usar um escudo na altura do peito, mas um hino nunca teriam.
O hino seria apresentado, então, numa das festas de fim de ano e reinava uma certa expectativa em torno do acontecimento. E eis que chega o dia da comemoração! Nílson trouxe o hino numa fita cassete que ele mesmo gravara em casa com uma programação de teclado eletrônico. Pausa na festa, toca-fitas, expectativa e... play!
O hino era lindo! Exaltava a grandeza da Juventus, seu brio, suas vitórias, mas não sem deixar de lembrar das dificuldades do início. Era um verdadeiro hino.

"Somos Juventus de coração
Sentimentos que nunca vão terminar
Garra força luta e união
Pra certamente nesta vida triunfar"

Aí vinha o refrão:
"Juventus, para sempre
Vamos com raça lhe defender
Juventus para sempre
É o orgulho de quem vive pra vencer

Desde os tempos do antigo "Barroso"
A humildade e a devoção não vão sumir
Ser Juventus traduz a alegria
De uma equipe que igual não vai surgir

E vinha  novamente o refrão:
"Juventus, para sempre
Vamos com raça lhe defender
Juventus para sempre
É o orgulho de quem vive pra vencer"

E repetia, para enchê-los ainda mais de orgulho:
"É o orgulho de quem vive pra vencer
É o orgulho de quem vive pra vencer."

Todos ficaram emocionados, sem sombra de dúvida mas, sabe como é, homem além de não gostar de demonstrar emoções tem sempre aquele lado irreverente e talvez para disfarçar os sentimentos, um deles chamou atenção para algo que aparecia no refrão, quase por trás da voz. O que era aquilo? Um latido? "Juventus (AU,AU...) para sempre/ Vamos com raça te defender...".
Era uma gravação caseira. O Bolinha, o cachorro do Nílson resolvera de dar seu ar da graça exatamente no refrão da obra do seu dono. Resultado: o latido acabou, por assim dizer, incorporado ao hino. Desde aquele dia, o inspirado refrão criado pelo compositor do time, teve inexoravelmente acrescentado à sua letra o "au, au" do Bolinha, que era cantado, sim, com ufania a cada título ou feito importante, mas a partir de então sempre tendo acrescentado aquele indesejável ruído que viria a tornar-se, de certa forma, oficial.
"Juventus (AU, AU!) para sempre..."



Cly Reis