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terça-feira, 24 de janeiro de 2012

cotidianas #131 -Super (II)



grafite de Ge Feng


- Moça... Moça... Moça!
Parou num susto a atenta leitura e virou o rosto para o lado com uma sincera expressão de surpresa e estranheza. Como um scanner, seus olhos verdes percorreram duas vezes de cima a baixo aquela figura vestida com elegância casual, alta, de traços bem desenhados e de olhar seguro. Pois deu tempo de perceber, entre uma escaneada e outra (ela era perita nisso), que o olhar daquele rapaz jovem e magro tinha, por detrás dos óculos fundos, um jeito firme e seguro que lhe era estranhamente familiar. Como ela permaneceu em silêncio, mesmo que continuasse olhando-o fixamente, ele prosseguiu:
- Com licença: posso lhe dizer uma coisa importante para mim?
- ... humm? – respondeu mais com as narinas do que com a boca naquele tom de desconfiança e descrédito repelente que usava quase conscientemente em horas de desconforto, mas que, inexplicavelmente, não abalou seu mais novo interlocutor.
- Sabe – disse ele, saindo da posição levemente arqueada de quem pede autorização para entrar em algum lugar, chegando agora centímetros mais perto para que ninguém além dos dois ouvisse o que ia revelar. – Sabe: eu nunca acreditei em Deus. Mas passei a acreditar desde agora a pouco, segundos atrás. Quanto te vi.
Recuou a boca da altura do ouvido dela e ficou em silêncio uns segundos, lançando um olhar firme e grave nos olhos de Ana Cláudia.
- Somente um ser superior para ter criado uma mulher tão linda. – acrescentou já afastado e no mesmo tom de voz suave de quando começou a falar, demarcando o ponto final com um piscar de olhos em câmera lenta. Recolheu o olhar e o carrinho de compras e, despedindo-se só com a cabeça, sério e sereno, sumiu no corredor dos congelados. Desapareceu.
Ainda estática, pasma, pensou: “que maluco!”. Tentou armar um sorriso de indiferença, mas o que saiu foi um de perplexidade. Sentiu-se ridícula com aquele sorrisinho e o desfez logo, pois não havia mais interlocutor à sua frente para exercitar a indiferença. Sentiu-se confusa. Ana Cláudia espichou o pescoço e acreditou ter visto no horizonte aquele rapaz esquisito – e estranhamente atraente por não lhe parecer atraente – entre embalagens coloridas e pessoas concentradas em suas próprias vidas e compras. “Ah, as pessoas!”. Tocou-se de que havia outros no supermercado. Largou ligeiro o xampu dentro do carrinho sem concluir aquela desinteressante leitura do rótulo, jogou os cabelos loiro-acinzentando recém-escovados para trás e seguiu em linha reta, como se seu destino fosse aquele desde a eternidade.
“E se tiverem notado? Será que fiz aquela cara?...”, perguntou-se, já ficando receosa. De fato, a estranha abordagem mexera com ela. Um desconcerto inesperado. Não identificava bem porque, mas confundira sua cabeça, e isso lhe perturbava. Por que aquele tipo meio nerd, nada a ver com uma executiva como ela, inventou de abordá-la assim, tão diretamente, tão inadvertidamente? “O que ele viu em mim? Será a maquiagem, ou o cabelo? Como alguém faz isso tão sério e sem... sem... sem uma brincadeirinha antes, sem tentar lançar um charme? Assim, no seco?!” Franziu a testa, pois de repente lhe passou pela cabeça se aquilo, de fato, tinha sido uma cantada. ”Será?... Nããão! Se estivesse tão interessado assim, ele pelo menos ficaria para ouvir minha resposta – que, claro, seria um ‘obrigada’ educado seguido de um ‘adeus’ dispensador. Afinal, o Luiz Renato não ia gostar nada de ver isso. Mas será que ele realmente ia se importar?... Faz horas que tá desatento comigo, anda grosseiro. Sempre foi grosso. Certo que tá de amante! Mas eu sei me vingar. Ah, isso eu sei! E esse menino não chega nem aos pés da qualidade de homem que eu posso ter. Tipo o Michel. Homem boooom! Humm, o Michel... Ah, se o Luiz Renato sabe... É: não é de hoje que esse casamento tá uma merda. Não fosse essa bendita sociedade! E o Bruninho, que não vive sem ele. E eu também não sei se ia me fechar com outro homem. Com todos os defeitos, o Luiz Renato é como eu: sabe o que quer da vida, e isso é que importa. E não acredita nessas bobagens de romantismo. Muito menos em religião, em Deus. Rá-rá! Hoje em dia, é quase impossível achar homem assim, são tudo uns bobos. Por isso a gente fecha tão bem, eu acho... Nos casamos porque sabemos crescer juntos, sabemos dar valor ao que a gente ganha. A gente sabe fazer dinheiro juntos, coisa rara num casal. A Sílvia sempre nos critica, diz que a gente usa o dinheiro pra se ‘escudar dos sentimentos’, que isso é ‘fuga da realidade’, bla bla bla, bla bla bla, todo aquele papo dela. Mas não temos vergonha de pensar assim, nããão! A gente não acredita nessa balela de que dinheiro não compra felicidade. Isso é mentalidade de quem não sabe ganhar dinheiro, igual a Sílvia e aquele tipo de rapazinho-que-não-tem-onde-cair-morto que ela tá sempre pegando. Dinheiro, se não traz felicidade, meu bem, pelo menos manda o motoboy entregar direitinho na tua porta. Rárárárá! Ai, que horror! Se meu pai me ouve falando isso! Seu Werner é sempre tão sério...”
Porém, aquilo continuava lhe importunando: e se foi uma cantada? A essas alturas, já estava jogando automaticamente os produtos dentro do carrinho, sem ver preço nem direito o que levava. “Por que meter Deus nessas coisas?”, pensava bastante incomodada. Até que se deu conta de que podia topar de novo com ele. Rodou a cabeça meio assustada para ver se aquela alma não reaparecia. (“Teria sido verdade?...”) “É, tomara que nunca mais apareça!”, dizia-se, já mordiscando o crucifixo que levava no pescoço. Quando inseguros, uns mexem nos cabelos, outros roem as unhas ou coçam a cabeça. Ana Cláudia, nessas horas, crava os dentes em Jesus. Ah, se seu Werner a visse fazendo isso! Desde cedo na vida, sua relação com Deus era conturbada. Quando criança, no interior, não entendia porque era obrigada a ir à missa e a rezar naquele altar sombrio e assustador dentro da sua própria casa. “E o suplício que era aquela reza antes de cada refeição?” Umas duas ou três vezes, distraída no restaurante, fez menção, numa naturalidade idiota, de levar o indicador à testa antes da primeira garfada. Deu-se conta no meio do movimento e, constrangida, fingiu uma coçadinha no nariz pontiagudo. Sílvia seguidamente brinca dizendo que a amiga acredita mais em Kotler do que em Deus. Embora o tom de ironia, Ana Cláudia acha graça e não rebate. Pois talvez seja verdade.
“Mas ele pareceu tão seguro quando me disse aquilo... ‘Somente um ser superior para ter criado uma mulher tão linda’”. Gravou. Riu para dentro, deixando escapar para fora um leve sorriso de contentamento nos lábios. “Eu, linda... e aquele olhar. Fixo em mim, sério, quase não piscava. Cruz credo! Me deu até medo! E se esse louco me atacasse?! Nããão. O olhar era de autoridade, de poder, não de má intenção. Me lembrou até o seu Werner... Aquele jeito de quem sabe o que eu estou pensando, de quem sabe...”
Ana Cláudia olhava para o infinito, perdida em seus pensamentos, quando sentiu que algo lhe avisava que, no fim daquele infinito, havia a cara de uma moça. Voltando daquele sono desperto em que se encontrava, a visão de Ana Cláudia foi rapidamente desembaralhando, formando uma imagem nítida. Olhou a moça com uma sincera expressão de espanto de quem só agora se apercebia de que não havia uma máquina registrando suas compras, mas, sim, uma adolescente espinhenta, de maquiagem exagerada sobre as pálpebras e já um tanto impaciente.
- Débito ou crédito, senhora? – entoou a menina, dando a entender que refazia a pergunta.
- ... d... débito. Não! Minto: crédito! Crédito, por favor.
Enfiou a chave, mas não a virou. Com zoom nos olhos, mirou por segundos a sacola de compras que largara no banco do carona e, no silêncio dos vidros blindados, sentiu uma repentina vontade de chorar. “Chorar não é do teu feitio”, lembrou-se do Luiz Renato falando com aquele sorrisinho de pouco-caso e dedicando mais atenção ao copo de uísque. Com certa raiva de si mesma, refez-se e voltou a ser a alta executiva segura e invejada. Antes de dar a partida, olhou de novo para a sacola a seu lado e, sem saber precisar ao certo nem porque aquilo lhe angustiava, teve a clara sensação de que não conseguira comprar alguma coisa.

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