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segunda-feira, 16 de março de 2020

cotidianas #672 - Pílula Surrealista #41


Sem apreciar o sabor de nada, Fábio almoçava no restaurante da esquina a mascadas lentas e sem vontade quando seus dentes morderam algo pedregoso. De má fama perante os colegas de firma, o restaurante era para os padrões não muito exigentes de Fábio aceitável. Mas pedra na comida?! Isso ele não esperava. Teria vindo misturado ao arroz de má qualidade? Ou uma pedra escura disfarçada entre os feijões, que também foi para a panela junto com os grãos mas, diferentemente destes, não amoleceu? Teria de admitir aos colegas que, sim, eles estavam certos com relação àquele estabelecimento “morte lenta”, aquele “pé-sujo” desqualificado.

Mas não demorou para perceber que estava enganado: o pedaço duro e um tanto esfarelento que mordera era, na verdade, um dente. Seu próprio dente, mais especificamente um segundo pré-molar inferior. Recolheu-o entre os lábios discretamente com a ponta dos dedos para que ninguém à sua volta percebesse, mas
não conseguira esconder o espanto quando enxergou aquele pedaço de osso bucal, que se desprendera inteiro de sua boca como que arrancado com instrumento de extração. Ficou a admirá-lo por alguns segundos escondido à altura da mesa, assombrado com algo de seu próprio corpo que lhe parecia um desconhecido. Um pedaço de si usado todos os dias mas que, estranhamente, nunca tinha visto por aquele ângulo, por aquela perspectiva em três dimensões. “Será que é assim que minha dentista enxerga meus dentes?”, refletiu Fábio.

Enrolou o novo conhecido num guardanapo de papel, guardou-o no bolso e foi embora dali. Nem sequer terminou o almoço, o qual recém havia dados as primeiras garfadas. Foi direto para o banheiro da dispensa da firma. Mirou-se no pequeno espelho e refletiu sobre a oportunidade que se abria diante de si... Nunca conseguira enxergar-se por dentro, conhecer-se, ir àquilo que é no íntimo. Terapia, remédios, livros de autoajuda, palestras motivacionais, tudo pra quê? Sempre se mostraram totalmente inúteis. Aquilo, sim, era um autorreconhecimento.

Desembrulhou o dente e o acomodou sobre a pia, cujo branco da cerâmica quase fazia confundirem-se um e outro. Na caixa de ferramentas logo abaixo, sacou o alicate e, um a um, arrancou os outros 31 dentes da boca. À medida que os ia tirando, passava na água corrente para tirar o excesso de sangue e os enfileirava junto ao abençoado pioneiro até, por fim, formar uma nova boca fora de si próprio. Enfim, sonho realizado: podia conversar consigo mesmo pela primeira vez em infelizes e malvividos 38 anos. O papo rendeu horas, tarde e noite adentro, sem perceber o tempo passar, de dois amigos há muito esperando por aquele encontro.

Daniel Rodrigues

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