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domingo, 12 de junho de 2016

COTIDIANAS nº 440 ESPECIAL DIA DOS NAMORADOS - Namorada... é que é serpente



Filippo tinha duas paixões na vida: cinema e Aurora. Mas comecemos pela mais analisada e analisável: o cinema.
Embora fosse farmacêutico, Filippo gostava mesmo era de sétima arte. Não no sentido de fazer cinema, mas de apreciá-lo. Era dedicado na sua profissão, e a cumpria muito bem. Mas os “24 quadros por segundo”, a magia do cinema, era o que realmente lhe movia. Era o que recheava sua cabeça inventiva e romântica. De certa forma, a vida de farmacêutico até o ajudava a dedicar-se ao que gostava: além de os horários na farmácia favorecerem, pois lhe davam a noite para poder ver o que queria, também ganhava o suficiente para ir ao cinema, comprar filmes e, solteiro, assistir a vários deles na TV a cabo madrugada adentro. E não era com blockbusters ou aventuras explosivas que Filippo se animava. Era cinéfilo mesmo, na verdadeira acepção da palavra. Conhecia cinema a fundo: europeu, asiático, norte-americano, alternativo, indiano, russo e por aí vai. De qualquer escola, movimento ou polo produtivo, fosse Cinema Novo Japonês ou Dogma 95, noir ou Realismo Fantástico, Filippo conhecia ao menos alguma coisa representativa.
De todas as nacionalidades do cinema, entretanto, a que mais lhe agravada era a italiana. Não necessariamente pela descendência, mas porque adorava a picardia, o conceito fotográfico, o sabor do idioma e o humor sarcástico do cinema da Itália até nos filmes não propriamente de comédia. Claro que admirava as obras dos mestres Fellini, Pasolini, Antonioni, Petri, De Sica, Visconti. Mas se deliciava mesmo era com as comédias italianas. Títulos como “Volere, Volare”, “Ladrões de Sabonete”, “O Incrível Exército de Brancaleone” e “O Monstro“ faziam-lhe a cabeça. Uma delas, porém, era a sua preferida, não apenas entre as comédias, mas entre todas as escolas, movimentos, nacionalidades e filmografias: “Parente... É Serpente”. O longa de Mario Monicelli era seu filme de cabeceira, o primeiro de todas as suas listas. Só havia um contrassenso nisso: Filippo não tinha este filme em sua videoteca. Já tivera, mas o perdera – e isso tinha uma explicação incômoda para ele. Mas exceto o fator estritamente emocional, que em seguida explicaremos, a priori, para um colecionador – ainda mais para quem gostava tanto de “Parente... É Serpente” – isso era uma falha gravíssima. Chegava a culpar-se por não tê-lo mais em sua prateleira: “Por que fui fazer a besteira de deixar o filme com ela?”
“Ela” quem? A Aurora, ora. Sim, Aurora, a segunda paixão de Filippo, aquela cuja análise é um tanto mais intrincada do que a de cinema. Mas tentemos: moça um pouco mais magra que o normal, talvez por sua estatura um pouco acima da média, era naturalmente sexy mesmo não fazendo o estilo “gostosona”. Esteticamente era bem proporcional: bunda, coxas, peitos, boca, cintura: tudo sem exagero mas sem faltar nada. Porém, o que lhe fazia sensual mesmo era seu jeitinho, o jeitinho que encantava os homens. Foi assim com Filippo naquele churrasco na casa do Douglas há quase seis anos: encantamento. Mas não só ele: o Maikinho, o Ventura, o Biboca, o Haroldo e até o dono da casa, noivo, gamaram naquela misteriosa fotógrafa lépida, faceira e desatenta aos olhares desejosos. A Priscila, a noiva do Douglas, levara a amiga na festa para fazer uns registros fotográficos despretensiosamente e sem cobrar nada, pois ela queria treinar a luz com a nova lente que acabara de comprar. Mas o que embasbacou de verdade a galera não foram as fotos, mas, sim, a própria Aurora fotografando. Era um show ao vivo do tal “jeitinho”. Com seu cabelo preto curtinho e espetado, ela passava de um lado para o outro, se agachava, se contorcia, falava sozinha, fazia careta quando encostava o visor no olho, punha uma pontinha da língua para fora da boca vermelha de batom para conferir o resultado. Era descolada, espontaneamente alegre e de gestos largos, como se não se importasse com a presença dos átomos à sua volta para exercê-los com liberdade, com iluminação própria. Uma esfinge. Uma aurora.
Ocorreu que o jeitinho de Aurora não bateu com o de mais ninguém naquela festa, apenas com o jeito nerd de Filippo. Os óculos de armação grossa estilo anos 60, o cabelo arrumado cujo corte permitia ao menos uma franja subversiva e a cabeça quadrada que comportava ricos olhos verdes trazidos de Bérgamo pelos bisavós na primeira leva da imigração italiana ao Rio Grande do Sul, cativaram a aparentemente distraída Aurora. Na verdade, confessou depois a Filippo, ela o percebera logo que entrara pela porta, sentado num banquinho tomando uma cerveja com o copo americano quase vazio. Até lhe mostrou uma série de fotos que batera dele com zoom, de longe, para não dar na vista o interesse. Fotos encantadas, que Filippo, todo bobo, não cansava de ver e rever mesmo anos depois.
Foi bonito o romance dos dois. Aurora foi a primeira namorada de verdade de Filippo, a primeira a quem ele realmente se afeiçoara. Já Filippo foi para Aurora o encontro de algo que ela precisava para preencher sua alma inquieta e perscrutadora. Era como se ele fosse um necessário prego cravado no chão segurando a barra de sua saia de modo que ela não saísse correndo desordenadamente mundo afora. Os quase dois anos de relacionamento correram com mais alegrias do que brigas. Na verdade, belicismo não era uma característica de nenhum dos dois. Apenas ocorria, isso sim, momentos de total tristeza de Aurora. Inexplicáveis. Tão sem justificativa visível que, no dia seguinte, aparecia ela de novo lépida e faceira como se nada tivesse acontecido. Filippo, por amor ou covardia, relevava.
O romance avançava para um enlace permanente: Aurora mudara-se para o apê de Filippo na Barão do Triunfo, no Menino Deus, e estabeleceram uma bonita rotina conjugal. Viajavam juntos e planejavam outras viagens; preparavam baldes de pipoca para as sessões de cinema na sala; iam ao super toda semana repor a dispensa; faziam sexo com bastantes frequência e prazer; levavam o Golias ao veterinário; pagavam a mensalidade da facúl de Aurora; compravam pão para o café da manhã do dia seguinte; essas coisas.
Tudo harmonioso, não fosse o tal jeito misterioso de Aurora. Embora gostasse de Filippo, sua ligação com ele, ou melhor, com os relacionamentos amorosos, guardava complexidades. Com o passar do tempo, foi ficando mais e mais inquieta. Ela parecia sempre estar em busca de algo que não encontrava – ou preferia não encontrar para permanecer buscando. Filippo nunca escutara dela, por exemplo, um “eu te amo”. Pelo contrário, costumava ouvir de Aurora, em tom brincadeira, outra sentença: “eu não sou casável”. E no mais, Filippo inconscientemente sabia que o seu prego cravado no chão não conteria Aurora para sempre, pois uma hora ou outra a barra do vestido se rasgaria e ela, enfim, sairia desorientada pelo planeta Terra.
A desagradável suspeita de Filippo se confirmara: a frase não tinha nada de brincadeira. Com a justificativa de fazer uma pós em São Paulo, Aurora um dia pegou sua mala e seus equipamentos fotográficos e foi morar na como ela agitada Sampa. Fim do romance, assim, sem mais nem menos, sem muita explicação. Sem olhar Filippo nos olhos na despedida. Como uma fuga, como uma busca por algo que provavelmente nem ela sabia o quê.
Não precisa dizer que Filippo ficou arrasado. Até parara de assistir filmes por um bom tempo, de modo a não gravar uma impressão ruim da obra por causa de sua inevitável fossa. Gostava muito de cinema para deixar que uma paixão maculasse a outra. “Imagina rever ‘Persona’ do Bergman nesse estado deplorável!”, pensava em sua melancolia cinéfila. “Aurora”, do Murnau, então: nem pensar! Um dia, chegara ao ponto de escondê-lo, pois seus olhos teimosamente percorriam a fileira de DVD’s na parede para baterem justo naquele maldito título: “Aurora”. No entanto, no momento em que engaiolava o clássico de Murnau, Filippo percebeu que, pouco antes na prateleira, organizada por ordem alfabética de cineastas, vagava uma caixinha. Era no “M” de Monicelli. Sim, faltava-lhe “Parente... É Serpente”. Numa recapitulação de milésimos de segundo, lembrara-se que emprestara para Aurora logo que começaram a namorar, ainda quando não moravam juntos. Ela levara para casa para assistir sozinha o filme predileto do recente namorado, num gesto de afeição dela. Já o de Filippo era de quem já acreditava naquele relacionamento, pois emprestar um item de sua coleção era uma raridade, e fazê-lo justamente com “Parente... É Serpente”, então! Uma prova de amor eterno.
Não foi eterno. Depois da tristeza pela separação, Filippo foi se recuperando do jeito que dava. Anos se passaram, namorou umas duas moças, transou com essas e mais outras três sem compromisso, mas não se firmou com nenhuma delas. Ia levando, mas sempre com Aurora lá no fundo da cabeça. Já se acostumara à vida sem ela e sem seu filme preferido. E como não convinha ir atrás dela, foi à cata do filme. Bateu aquela vontade de revê-lo, que todo cinéfilo tem para como suas fitas queridas de tempos em tempos. Pesquisou no site da Cultura e... “esgotado”. “Ok: vou procurar no site da Saraiva”. Igual. Livraria da Folha... idem. Todo comprador de internet sabe que não achar o que quer nesses sites é um mau sinal. Provavelmente é porque o produto não está disponível mesmo. Já aflito, fez uma busca genérica no Google pelo título do filme mais a palavra “comprar”. Nada, nem no Mercado Livre, onde só encontrara um VHS para vender – e ele não tinha mais videocassete há anos.
Mesmo pouco acostumado em baixar filmes, tentou ainda achar em sites de torrent e, incrível: não tinha também! Nem no Youtube, que, mesmo que tivesse, para Filippo, um colecionador à moda antiga, não cabia se contentar em tê-lo com uma imagem pixelada e correndo o risco de dessincronizar áudio do vídeo. Sim, tinha que se convencer: “Parente... É Serpente” estava fora de catálogo.
Ele se maldizia. Não convencido, pegou um dia um pedaço do horário de almoço e foi a um brique na Alberto Bins, onde sabia ter muita coisa rara. Com medo de receber de cara a má notícia do dono da loja, foi ele mesmo procurar. Em meio àquela zona totalmente fora de ordem, logo percebeu que não era possível achar qualquer coisa ali dada a bagunça, a pouca iluminação e a quantidade amazônica de DVS’s, CD’s, livros, revistas, vinis, VHS’s e até fitas cassete. Tudo junto e misturado. Um museu abarrotado e empoeirado. Podia até ser que tivesse o que procurava, mas não conseguiria achar por si só no pouco tempo que dispunha, só com muita sorte. Precisaria, enfim, consultar o dono da loja:
- Ei, tu tem o DVD do filme “Parente... É Serpente”?
- Não. – respondeu secamente sem pestanejar e nem olhar para Filippo.
- Mas tu tem certeza? Tu nem parou pra pensar, não consultou aí o computador. – disse Filippo, apontando com o queijo para um notebook dinossáurico do qual o homem não tirava os olhos.
- Tenho certeza. Esse filme tá fora de catálogo. – respondeu com a segurança de quem conhece o mercado em que atua enquanto Filippo escutava sua digitação e o som de aviso de bate-papo do Facebook saltarem do note.
- Puxa... É que, sabe, eu tinha esse filme, mas emprestei...
- Pra uma mina?
- É... pra uma namorada. – falou Filippo, constrangido com a previsibilidade de seu ato. – Ele se mudou pra São Paulo, e daí...
- Cara: que besteira que tu fez, hein? – tirando os olhos do Facebook e finalmente olhando para Filippo. – Esse filme é tri bom. Faz tempo que eu vi. Ih! Um tempão. E vou te dizer uma coisa: tu perdeu uma grana. Esse DVD é uma raridade hoje em dia. Nem no Mercado Livre tu encontra.
- É, eu já sei.
- Eu sei como é: já fiz essa merda também. O que a gente não faz por uma buceta, né? – disparou o homem, rindo, tentando criar uma cumplicidade machista.
- Não é isso, cara. – respondeu imediatamente Filippo franzindo a testa.
Mais emputecido pela busca frustrada do que ofendido com o outro, Felippo preferiu sair da loja e ir embora. Mas numa coisa ele tinha que concordar com aquele sujeito grosseiro: que besteira foi fazer em deixar o filme com Aurora! Perdera a amada e o filme amado ao mesmo tempo.
Anos se passaram até que, um dia, quando Filippo já se acostumara com a condição “sem Aurora” e “sem filme predileto”, algo improvável acontece. Voltando do Zaffari da Getúlio Vargas em direção à sua casa, Filippo dobra a esquina e com quem ele se depara? Aurora. Ela, um caminhão de mudanças estacionado na calçada e várias caixas sendo transportadas para dentro de um prédio a duas quadras de seu apartamento. Ambos pararam e se olharam com surpresa.
- Oi, Lippo!
- Oi... Aurora. Tu aqui?... – falou, apontando com o queixo para o prédio.
- Sim! Tô me mudando pra cá. Legal, né? Voltei pra Porto por que... tava com saudade daqui, do meu lugar, dos amigos. E também pra ficar perto da mãe, que anda doente. Lembra da mãe, né, dona Doralice?
- Sim, claro que lembro.
- Pois é. A mãe tá morando aqui pertinho, naquele condomínio ali na Barbedo com a Getúlio, sabe? E com esses problemas dela, o meu irmão morando em Londres, não tinha ninguém pra ficar com ela, que tá velhinha.
- Que coisa... Manda um beijo pra tia Doralice. E melhoras pra ela.
- Mando, mando, sim – disse animada, sorrindo graciosamente.
Ficaram se olhando sem trocar palavras por alguns segundos, ele segurando as sacolas brancas do Zaffari nas duas mãos, ela abraçando uma caixa grande com o número 39 escrito com hidrocor preta, que fez Filippo lembrar-se imediatamente do filme de Hitchcock, “Os 39 Degraus”, e da cena do carro de “Blow Up”, do Antonioni.
- Então: casou? – indagou ela, interrompendo o silêncio.
- Eu? Não. E tu?
- É, também não. – disse Aurora, sorrindo novamente. – Tive uns rolos em São Paulo, um outro em Budapeste, que eu passei um tempo lá. Até cheguei a morar junto por um tempo, mas, sabe como eu sou, né? “Não sou casável”, rsrs.
- É, eu sei...
- Tu não casou mesmo, então?
- Só se for com a farmácia e com meus filmes. – brincou Filippo, e os dois riram.  – A propósito: tu te lembra que eu te emprestei, faz anos isso, o meu DVD do “Parente... É Serpente”? Sabe, aquela comédia italiana do Mario Monicelli, que eu gostava muito, que eu vira e mexe comentava. Eu te emprestei antes de a gente... morar...
- Humm, acho que sei... Não lembro direito. Tenho uma vaga lembrança.
- Tu te lembra, sim: a gente até comentava que um dos personagens tinha o meu nome. Deve tá em alguma dessas tuas caixas aí.
- Não me lembro de ter visto lá em casa... Porque tu sabe, né? Minhas coisas são sempre uma bagunça! Pode ser que esteja nas minhas coisas. Tenho que procurar. É que foi tão rápida a mudança lá em São Paulo, tudo na correria, que só soquei tudo pra dentro e me toquei de lá. Nem sei direito o que tem dentro dessas caixas. Não vou estranhar se eu abrir alguma e encontrar um bicho, rsrs.
- Vai ver, tu encontra não o filme, mas uma serpente de verdade!
Riram juntos.
- Por falar em bicho, e o Golias? – lembrou-se ela, interessada.
- Foi morar com a mãe lá em Faria Lemos. Vida de cachorro velhinho não combina mais com a correria da cidade, apartamento, concreto. Agora tá curtindo uma casa com pátio e verde lá na Serra.
- Querido! Saudade dele.
Novo silêncio, agora por falta de assunto.
- Então... tchau.
- É, tenho que terminar aqui a mudança. – afirmou Aurora, convencendo-se.
- E eu tenho fazer meu almoço. A gente se fala, agora que estamos pertinho de novo, né?
- Sim! Meu celular novo com prefixo 51 é esse aqui – disse-lhe, soltando a caixa e pegando um cartão de dentro da bolsa. Ele anotou o seu celular atrás de um segundo cartão dela e despediram-se com dois beijinhos.
- Se tu achares o meu filme, me avisa, tá?
Filippo não acreditou que ela fosse ligar, e nem ele ligaria. Procurou-a no Face, achou seu perfil, mas não solicitou amizade. Adicioná-la no WhatsApp, nem pensar. Não iria atrás dela por orgulho e pela mágoa ainda mal resolvida, a qual despertara naquela semana desde que a revira.
Mas ela ligou:
- Alô?
- Oi Lippo! É a Aurora! Que tu tá fazendo?
- Eu? Tô em casa, organizando umas coisas, dando um tapa na casa, uma faxina. Por quê?
- É que eu tinha um job pra fazer agora de noite, um evento de um cliente, mas mixou. O cara desmarcou comigo em cima do laço. Tu vê, que desgraçado?!... Daí, eu pensei: por que não convidar o Lippo pra vir conhecer o meu novo apê?
- Sei...
- A gente podia jantar alguma coisinha. Tu sabe que eu não sou boa na cozinha, né? Continuo não sendo. Mas a gente chama um sushi, uma pizza, assiste um filme, sei lá. Tá tudo meio com cara de mudança aqui ainda, mas tu é de casa. Que tu acha?
- Bem... é que eu...
- Ah, Lippo, não vem com desculpa! Tu tá faxinando a casa numa sexta-feira às seis da tarde. É sinal que tu não tem nada melhor pra fazer! Diz que vem, diz que vem!
- Tá, Aurora. Acho que eu vou, sim. Deixa eu tomar um banho, que eu cheguei da farmácia e não parei. Mais tarde eu bato aí.
- Oba! Que bom que tu vem. Vou também dar uma organizada na casa pra te receber.
- E vem cá: por acaso o tal filme que tu pensou de a gente ver é o meu?
- De que filme tu tá falando, Lippo?
 - O “Parente... É Serpente”, Aurora! Que tu disse que ia procurar, pra ver se ainda tava contigo. Tu achou?
- Sinceramente, Lippo, não encontrei nada, pelo menos não nas caixas que eu abri até agora. Na real, tô achando que esse filme não tá comigo, viu? Acho que tu emprestou pra outra pessoa, outra namorada... e tá confundindo.
- Eu tenho certeza que te emprestei, Aurora. Faz tempo, mas foi pra ti. Mas, tá: deixa pra lá. Dá um tempinho que daqui a pouco tô chegando aí.
Filippo tomou banho mas vestiu-se despreocupadamente, pois não tinha a menor esperança de que alguma coisa voltasse a acontecer entre Aurora e ele depois de tanto tempo. Estava errado. Jantinha regada a vinho chileno, sala iluminada só pela luz da tevê, ela contando histórias de São Paulo e da Hungria, ele, dos aprontos do Golias, e não demorou muito. Conversa vem, conversa vai: pintou clima. A transa foi bonita e apimentada como nos velhos tempos, ali mesmo na sala e depois no quarto, madrugada adentro. Fluiu. Parecia que os anos nem haviam se passado. Aurora se entregou com prazer, linda nua. Filippo, no céu, dormiu exausto e suspenso com a sensação de que fora picado novamente pelo veneno deleitoso de sua Aurora.
Naquele sábado era sua folga, então, relaxado, Filippo deixou o sono se estender e acordou no meio da manhã ouvindo o barulho de chuva no vidro da janela. Sozinho. Não precisou chamar mais de duas vezes por Aurora para concluir que ela já não estava. Seus equipamentos sobre a cômoda não se encontravam mais ali. Decerto, tinha trabalho para fazer. Vestiu-se, bateu a porta do apartamento e desceu o elevador para voltar para casa. Não tinha porque ficar esperando ela voltar. No hall, o porteiro lhe avistou e o chamou:
- O senhor que é o senhor ‘Felipo’?
- Sim, sou eu mesmo – respondeu desconfiado.
- Dona Aurora deixou isso aqui pro senhor. Ela já tava saindo pelo portão, toda cheia de cousa, mala, bolsa, máquina de retrato, mas daí voltou aqui e disse pra mim lhe entregar isso aqui, que ela não queria voltar no apartamento pra não acordar o senhor.
E lhe estendeu a encomenda.
- A que hora foi isso?
- Cedo da manhã, senhor. Umas 6 horas.
Filippo finalmente tinha de volta seu DVD de “Parente... É Serpente”. Por dentro do plástico da caixinha, tapando a capa, um bilhete escrito a mão por Aurora:
“Lippo,
Tenho um trabalho (dava para ver escrita, por debaixo da rasura de caneta, a palavra “em”) longe, muito longe.
Na Índia.
Vou ficar seis meses fora, se não mais. Não sei ainda.
Não espera por mim, tá? Me desculpa. Tu sabe como eu sou.
Adorei te rever.
Te amo.
Adeus.”
Não assinou. Apenas gravou um beijo com seu batom cor vermelho-coral.
Felippo mal se despediu do porteiro. Atravessou a passos anestesiados a rua já molhada pela chuva que começava a apertar e foi para casa. Chegando, imediatamente repôs seu DVD perdido na prateleira sem revê-lo. Pegou, sim, o filme de Murnau, que desencarcerou do armário. Mesmo subvertendo uma norma de cinéfilo, de não assistir a um filme mudo de manhã – pois filme mudo é para ser visto no cinema ou de noite –, mecanicamente pôs para rodar aquele romance de final feliz. Sob a luz do dia, que vazava pelos cantos da janela fechada, lágrimas desesperançadas corriam soltas de seu rosto enquanto revia “Aurora”, tantas que se igualavam à quantidade de pingos da chuva que lá fora molhavam a calçada.



para Luis.


sexta-feira, 9 de novembro de 2012

"A Invenção de Hugo Cabret", de Martin Scorsese (2011)




Com cinco minutos de filme eu estava impaciente...
Com meia-hora de filme eu já estava cansado.
Passada uma hora eu já me encontrava, era sim, irritado.
O autômato:
uma usina para acender
uma lâmpada.
Nossa, que filme cansativo. Sim, mesmo com toda aquele freneticismo e correira o aclamado "A Invenção de Hugo Cabret", de Martin Sorsese, um dos melhores diretores de cinema de todos os tempos, é um pé-no-saco!. O desgaste não se dá pelo ritmo alucinate que a ação traz em grande parte do tempo, com as peripécias do menino, as perseguições na estação, a dinâmica de filmagem, mas pelo fato de que tudo isso, durante grande parte do tempo, não leva a nada. O filme demora demais para se desenvolver e sem justificativa aceitável. Não é nem em nome de uma paciência de Kurosawa , nem de uma enrolação de Tarantino, de uma contemplabilidade de um Tarkovsky, nem de um intelctualismo de um Godard, da profundidade de um Bergman... Não. Scorcese simplesmente perde tempo! Desperdiça mais de uma hora no desenvolvimento da situação do autômato para uma conclusão, deste elemento em particular, absolutamente decepcionante e de importância discutível (para não dizer dispensável) dentro de todo o contexto.
Mas não quero me fixar só do arrastamento da história. Não é só por isso que o filme é ruim: a trama é mal desenvolvida, as situações são clichês, os diálogos são bobos, os personagens excessivamente caricatos, o roteiro é fraco, as melhores características do diretor ficam apagadas. Martin Scorsese, diretor que volta e meia tenta atirar em outras direções (veja-se "Na Época da Inocência", "A Última Tentação de Cristo", "A Ilha do Medo") desta vez, tentando fazer um filme que atingisse um público diferente do seu habitual, acostumado a crueis banhos de sangue e viganças, acabou por fazer mesmo um filme INFANTIL na acepção mais completa do termo. "Ah, mas é uma declaração de amor ao cinema"... Não, não! Pode parar! Já vi homenagens mais simplórias, mais limitadas, sem toda aquela parafernália visual e bem mais objetivas, inteligentes e emocionantes do que essa. Nem as referências cinematográficas conseguem ter força o suficiente e na melhor das hipóteses, talvez, consigam excitar algum cionéfilo neófito. O que vale mesmo são os trechos dos filmes do grande homenageado, Georges Mélliès, mas que, convenhamos, não precisavam estar dentro de outro filme para se justificar e valer pelo que são.
Sinceramnte não entendi o porquê de tamanha reverenciação em torno deste filme que para mim é um dos mais fracos deste diretor, do qual sou grande admirador. Mas, como trata-se um diretor de mais acertos que erros, resta esperar que se recupere no próximo. Certamente o fará. E estarei ansioso à espera.

Cly Reis

terça-feira, 11 de julho de 2017

"O Inquilino", de Alfred Hitchcock (1927)


Não é sempre que um artista consegue, desde cedo, estabelecer um estilo próprio de produzir sua arte. Isso pode acontecer com pintores, músicos, escritores e, claro, com cineastas. Não se trata de demérito, afinal, na maioria das vezes, para se chegar a uma síntese de elementos conceituais que pertençam ao universo do autor e se manifestem com inteireza na obra, carece, sim, que se percorra algum chão.

A inconsistência das primeiras obras, entretanto, parece não valer para todos os criadores do cinema, principalmente, quando se está falando de gênios como o inglês Alfred Hitchcock. “O Inquilino” (The Lodger: A Story of the London Fog), de 1927, seu primeiro longa-metragem – ainda da fase muda e rodado na Inglaterra 13 anos antes de ele se radicar nos Estados Unidos –, guarda muito dos elementos estilísticos que adotaria em sua extensa, exitosa e referencial filmografia. Descontada, claro, a ainda pouca experiência que os 28 anos lhe ofereciam, bem como a carência de recursos de toda a Europa do período entre-Guerras, nota-se no filme tanto as trucagens técnicas criativas quanto os elementos narrativos que consagrariam o “mestre do suspense” e, mais do que isso, ajudariam a formatar a linguagem do cinema comercial no decorrer do século XX.

A começar pela história: pequena, tensa e baseada em temáticas que se sustentam em conflitos psicológicos. Um serial killer, ao estilo Jack, O Estripador, inicia uma série de assassinatos em Londres, tendo como fator em comum o de suas vítimas serem todas mulheres loiras. Um novo hóspede, Jonathan Drew (Ivor Novello), chega ao hotel do casal Bounting e aluga um quarto. O homem tem estranhos hábitos, como o de sair em noites nevoentas. Ele também guarda a foto de uma moça loira, o que faz com que a suspeita das mortes facilmente recaiam sobre ele. Daisy (June Tripp), a filha dos Bouting, também loira, é modelo e está noiva de um detetive. Incomodado com a presença de Jonathan e pressionado a achar uma solução para os crimes, o policial o prende, acusando-o de ser o assassino.

O esquisito inquilino Jonathan (Ivor Novello): acusação, culpa e crime
O argumento é suficiente para Hitchcock desenvolver os conflitos internos dos personagens e as naturais consequências desse desequilíbrio, que tanto sustentarão seus filmes subsequentes. A dúvida e a ambiguidade, por exemplo, estão no centro da história de “O Inquilino”. O comportamento esquisito de Jonathan, que coloca interrogações no que se refere a sua sanidade, intenções e até gênero sexual, desencadeiam a desconfiança da polícia e da sociedade e, consequentemente, a imputação da culpa. Não é difícil encontrar em toda a filmografia de Hitchcock personagens levianamente acusados antes de poderem se explicar, casos de “Os 39 Degraus” (1935), “Interlúdio” (1946), “O Homem Errado” (1956), “Cortina Rasgada” (1966) ou “Frenesi” (1972), pegando-se um por década.

Em sequência, tomadas de escada de "O Inquilino", "Chantagem e Confissão" e "Um Corpo que Cai"
Igualmente, “O Inquilino” já apresenta a inventividade na utilização dos recursos técnicos, pelos quais Hitch não apenas surpreendeu espectadores muitas vezes ao longo dos anos como, mais que isso, ajudou a inventar soluções, tornando-se um dos precursores dos efeitos visuais tal qual se convencionou no cinema. Assinaturas de sua direção, como a fotografia expressionista, os enquadramentos bem pensados, detalhes de objetos, zoons, close no rosto de uma mulher gritando e até travelling dentro de um automóvel dão ao filme um ritmo bastante atrativo e pop. Ainda, as vertiginosas tomadas em plongée de escadaria, fator narrativo imprescindível a filmes dele de épocas distintas, como "Chantagem e confissão" (1929) e "Um Corpo que Cai" (1958), Além disso, a agilidade da montagem em momentos de clímax, colocando o espectador em uma espiral de tensão, fazem lembrar a perseguição no parque de diversões de “Pacto Sinistro” (1951) ou a famosa cena do assassinato do chuveiro de “Psicose” (1960), para ficar em dois exemplos.

Close em mulher gritando, uma das
marcas de Hitch
Afora isso, outras semelhanças com filmes que rodaria posteriormente chamam atenção. A cena inicial da aglomeração de pessoas diante de um corpo no rio lembra direto a também primeira cena de “Frenesi” (1972), que Hitchcock rodaria já em final de carreira, 45 anos depois deste debut cinematográfico. Fácil associar ainda a cena final, em que Jonathan, em apuros, fica pendurado na grade e prestes a cair, com as sequências também conclusivas de “Intriga Internacional” (1959) e de “Janela Indiscreta” (1954), quando o diretor usa o mesmo precedente como catarse dramática. Além, é claro, da fixação pelas loiras – as blond girls Kim Novak, Doris Day, Tippi Hadren e Ingrid Bergman, entre outras – e da sempre presente culpa da sensualidade feminina, associada a desejos tanto carnais quanto letíferos.

Vários elementos narrativos e técnicos presentes em “O Inquilino” seriam aperfeiçoados pelo diretor no decorrer de mais de 50 anos de carreira – aliás, tal qual fizera em toda sua obra, num incansável aprimoramento metalinguístico. Mas é fato que, já em seu primeiro projeto atrás das câmeras, Alfred Hitchcock lançara as bases daquilo que lhe tornaria uma marca: o hoje largamente conhecido gênero triller psicológico. Sua estética apurada, exigência técnica e a constante intenção de mexer com as emoções do espectador fizeram de Hitchcock uma referência, haja vista que buscara permanentemente a associação entre uma linguagem própria e sustentada na gramática original do cinema a um diálogo com o público. Não à toa, por isso, vários de suas realizações se tornaram clássicos, visto que respondem não apenas ao cinema enquanto arte, mas também como entretenimento. E se obras-primas como “O Homem que Sabia Demais” ou “Um Corpo que Cai” são como quadros irretocáveis, é porque estas devem bastantemente ao bem-acabado esboço “O Inquilino”.

Assista ao filme "O Inquilino"



por Daniel Rodrigues

terça-feira, 25 de agosto de 2015

"Adeus à Linguagem", de Jean-Luc Godard (2015)



"Aqueles que não têm imaginação
buscam refúgio na realidade."
frase que aparece na tela
no início do filme



Um dos poucos diretores que me fazem correr para o cinema para assistir a seus filmes é Jean-Luc Godard, talvez por ser um dos últimos vivo de uma turma que mudou o cinema. Fellini já foi, Truffaut já foi, Hitchcock já foi, Kubrick foi, Pasolini, Bergman, Tarkovski, Glauber... Quem está aí? Scorsese, Copolla, Saura, Allen, Wenders...talvez Trier, mais atualmente. Mas Godard é um daqueles poucos que se confunde com a história do cinema, uma dos que criaram uma escola, um dos que estabeleceram uma nova linguagem. E é a propósito de linguagem que trata seu novo filme, aliás, é, em tese, uma despedida dela. "Adeus à  Linguagem" é, como vem sendo seu cinema nos últimos anos, muito mais um exercício anaítico, estilistico, filosófico e visual do que um filme convencional com trama, cronologia, personagens, cenários, etc.
A natureza, um dos elementos investigados por
Godard em seu ensaio cinematográfico
tem belíssimas imagens proporcionadas pelo 3D
Exatamente por se fixar na LINGUAGEM, Godard explora e extrapola todas as suas possibilidades, não importando-se, mesmo, de causar desconforto no espectador com imagens desfocadas, ruídos, cortes abruptos, diálogos incompletos e incoerentes, entendendo que tais recursos por si só já fazem parte de uma indução de sentidos e portanto ao ser apresentada e interpretada, já passa a ser linguagem. Godard examina  LINGUAGEM de forma absolutamente ampla, destrincha a palavra e todos seus significados para, no fim das contas mostrar o quão deficiente está a comunicação das pessoas, as relações humanas. Examina a linguagem do corpo, da filosofia, da cor, da sensação, da estranheza, da natureza, das relações humanas, do silêncio e tanto lhe interessa a amplitude do tema que, mesmo a breve trama centrando-se em um casal que discute a relação àquela moda francesa t´pica da nouvelle vague, o personagem principal, se é que podemos chamar assim, a aprtir de certo momento passa a ser um cachorro, que de certa forma simboliza a pureza da linguagem, a perfeita comunicação através da não-comunicação.
Roxy, o cão do próprio Godard,
é, de certa forma,
o protagonista do filme.
Se já corro para ver um Godard no cinema normalmente, este em 3D, me fez ir mais rápido ainda ao cinema, uma vez que produções alternativas assim não duram muito em grandes salas com qualidade e tecnologia para exibição deste recurso, até porque os donos do negócio estão mais é interessados em tirar logo o chato do filme europeu que vai ser visto por meia dúzia de gatos pingados pra lotar a casa com algum Vingadores ou Senhor dos Aneis da vida. Na verdade, perdi a paciência com o 3D rapidamente. Vi duas ou três coisas, uma só que valera a pena, e de resto pareceu-me que não compensava visualmente para a dor de cabeça a incômodo que me causava a utilização daqueles óculos. Mas, enfim, tinha curiosidade para ver como um cineasta bom, com ideias, viesse a utilizar o recurso.
Os tradicionais letreiros do diretor,
lançados na tela, também servem-se 
produtivamente do 3D.
Sim, já tinha visto o Hugo Cabret do Scorsese mas devo admitir que me decepcionei um pouco. Todo mundo ficou muito fascinado e tudo mais, mas para mim pareceu meramente um grande carnaval estético com uma pitada poética cinematográfica que não foi suficiente para torná-lo um bom filme, mas isso já é outra história. Quanto a Godard, acho que utilizou a LINGUAGEM 3D muito bem no que se propunha e o resultado, para quem já cansou de ver só explosões saltando da tela, é interessante e válido. Desfoca o 3D, o duplica de forma genial, ironiza o próprio título utilizando um  "Ah", num plano avançado e um "Dieux" ao fundo naqueles seus tradicionais letreiros na tela, salienta um móvel, uma mão, um elemento qualquer saltando da tela, brinca com as palavras, com a comunicação, com o visual, com a linguagem. O que posso dizer é que a tecnologia colaborou com a LINGUAGEM do diretor que tem sua identidade tão consolidada e sua linha de discussão já tão estabelecida, que mesmo que quisesse dar adeus a ela, não conseguiria. Bem-vindo à nova linguagem, Godard.




Cly Reis

quinta-feira, 6 de abril de 2023

Aqueles 10 filmes argentinos imperdíveis

 

Darín, o grande astro do cinema argentino
contemporâneo e presente em várias obras
Este post vem cumprir uma promessa feita há alguns anos. Conversávamos eu e dois colegas de trabalho durante o almoço e, papo vai, papo vem, lá pelas tantas o assunto caiu – como não é incomum de acontecer comigo e amigos meus – em cinema. O tema: cinema argentino contemporâneo. Compartilhamos ali do mesmo gosto pelo cinema realizado pelos hermanos e começamos a falar sobre nossas preferências dentro desta cinematografia. Foi então que, percebendo-se que alguns dos títulos dos quais eu comentava ambos não tinham visto ainda, eles ficaram curiosos para conhecer e tratamos de que eu fizesse uma lista com os meus filmes argentinos preferidos.

A lista, como se vê, não saiu em seguida. Voltamos do almoço para nossos postos e as obrigações nos fizeram esquecer de qualquer ludicidade. Mas os anos se passaram e o cinema da Argentina segue muy bien, gracias. Vários filmes foram produzidos neste meio tempo, inclusive dignos de comporem uma lista como esta além dos que já haviam sido realizados até então quando daquela nossa conversa. A bem da verdade, desde o brilhante “A História Oficial”, o primeiro Oscar de Melhor Filme para um argentino, em 1985, isso já se anunciava. A meu ver, no entanto, não foi com o hoje cult “Nove Rainhas”, de 2000, o start, pois o ainda considero imaturo e artificial. Porém, o filme, mesmo com suas inconsistências, já era o sinal que o curso do Rio do Prata havia sido achado. A partir dali, só foi “golazo”.

O contundente "A História Oficial":
1º Oscar da Argentina
Pois a indicação ao Oscar de Melhor Filme Internacional de “Argentina, 1985”, certamente um dos novos entrantes deste rol, fez-me resgatar a ideia agora atualizada. Esta amostragem aqui, então, vem resgatar – mesmo com este atraso do tamanho do Obelisco – a tal promessa. As 10 indicações servem tanto para estes meus amigos (espero que esta postagem chegue a eles) como qualquer um que também admire o melhor cinema feito na América Latina nos últimos 30 anos. Sim, porque a Argentina certamente passou o Brasil neste quesito, o que se reflete inclusive nas conquistas e na simples comparação entre um cinema e outro durante este tempo. (e olha que o cinema brasileiro se tornou bastante pujante nas últimas duas décadas!)

Mas não tem comparação: é na terra de Gardel que se atingiu um nível muitas vezes de excelência (e de exigência) técnica que contamina uma grande parte da produção cinematográfica do país. Seja nos roteiros bem escritos, seja na técnica de nível “primeiro mundo”, seja na habilidade cênica, seja no carisma e competência de símbolos desse cinema, como o principal deles: Ricardo Darín. Mas não somente ele: Oscar Martínez, Martina Gusmán, Dario Grandinetti, Leonardo Sbaraglia, María Onetto e outros que brilham nas telas. Tudo está a serviço de um cinema eficiente, que sabe contar bem (e com criatividade) uma história. Um cinema que achou o tão almejado equilíbrio entre arte e entretenimento.

E como se trata de uma produção vultosa (inclusive aqueles que eu nem assisti), teve, claro, o que ficou de fora. Mas se quiserem incluir “Leonera” (Pablo Trapero, 2008), “A Odisseia dos Tontos” (Sebastián Borensztein e Eduardo Sacheri, 2019), “Koblic” (Borensztein, 2016), “Elefante Branco” (Trapero, 2012) e “Neve Negra” (Martín Hodara, 2017), sintam-se perfeitamente à vontade, que também merecem toda audiência.

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“O Segredo de Seus Olhos”, Juan José Campanella (2009)

Não se poderia falar em lista de melhores filmes argentinos sem incluir “O Segredo...”. Afinal, não se trata apenas de um dos melhores da história de seu país, mas, tranquilamente, da década de 2000 em todo o mundo, no mesmo patamar de "Match Point", "Cidade dos Sonhos", "Elefante" e "Onde os Fracos não Tem Vez". Muito teria para se falar do filme de Campanella: a atuação sublime de Ricardo Darín, o hipnotismo que a musa Soledad Villamil causa no espectador, do merecido Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, do impressionante plano-sequência do jogo de futebol, enfim. Mas o que pauta esta grande obra é, definitivamente, sua trama, tão envolvente quanto literária, visto que extraída com maestria por Campanella do livro de Eduardo Sacheri (que, aliás, colabora com o roteiro). Thriller, romance, comédia, policial, aventura, drama. Um pouco de tudo e tudo muito bem amarrado. (Amazon Prime)


“Abutres”, Pablo Trapero (2010)

Aqui, duas recorrências próprias do atual cinema da Argentina. A primeira delas, obviamente, é Ricardo Darín, que estrela vários filmes dessa lista e muitos outros dignos de estarem aqui mencionados também. A outra repetição é Trapero, o mais talentoso cineasta de sua geração na Argentina. Em ”Abutres”, ambos dão um show. Numa trama que, como é de costume aos argentinos, envolve drama, denúncia e história de amor, o filme trata de um advogado especializado em acidentes rodoviários, que descobre um esquema de corrupção e desvio de dinheiro às custas do sofrimento de pessoas simples. A cena final, sem dar spoiler, além de um surpreendente desfecho da história, tem o recurso de plano-sequência característico aos encerramentos dos filmes de Trapero. (Star Plus)


“Medianeiras – Buenos Aires na Era do Amor Virtual”, Gustavo Taretto (2011)

Comédia romântica, mas não como os enlatados de Hollywood, e sim com um olhar muito próprio da vida contemporânea na era que tudo impele a ser digital – inclusive as relações amorosas. Ganhador de melhor direção e melhor longa estrangeiro no Festival de Gramado, “Medianeiras” narra os encontros e desencontros de Martín e Mariana, os protagonistas-símbolo de uma geração emparedada pelas linhas simétricas das metrópoles. Solidão, neuroses, traumas, aflições, desilusões. Tudo sob o olhar da selva de concreto chamada Buenos Aires, que se revela como uma personagem onipresente. Para quem ama comédias românticas inteligentes como “Encontros e Desencontros”, “Bar Esperança”, e “(500) Dias com Ela”, pode por pra rodar “Medianeiras”, que o longa de Taretto é deste naipe. 


“O Clã”, Pablo Trapero (2015)

Trapero de novo. E aqui impecável. A assustadora história da família acima de qualquer suspeita, os Puccio, que sequestra pessoas ricas, cobra o resgate e assassina as vítimas assim que coloca a mão no dinheiro, guarda o aspecto de crítica político-social própria do cinema argentino. Baseado num caso real, mais do que apenas evidenciar fragilidades de seu país, “O Clã” revela perversidades obscuras sorrateiramente entranhadas na sociedade platina. Afinal, como duvidar que tamanha maldade aconteça numa sociedade que, em parte, acolheu uma das ditaduras mais sangrentas da América Latina? Memoráveis as cenas em que "Afternoon Tea", da Kinks, rola enquanto o circo de horrores acontece e, como de praxe quando se trata deste cineasta, o plano-sequência. Vencedor do Urso de Prata de Melhor Diretor em Veneza, Trapero faz seu melhor filme - e isso significa bastante considerando sua filmografia quase irretocável. (Star Plus)


“Relatos Selvagens”, Damián Szifron (2014)

A tradição dos filmes de episódios dos europeus e mesmo do Brasil nos anos 60 e 70 é inteligentemente recuperado, claro, pelos argentinos. E que filme! Potente, ferino, mordaz, grotesco. "Relatos Selvagens" reúne seis histórias distintas, que se complementam entre si por um fio condutor subjetivo mas evidente: o conflito entre barbárie e civilização. E pior: a primeira, fatalmente, sempre vence de algum jeito, seja nas vias de fato após, seja com uma bomba que exploda tudo. Darín, igualmente, não poderia estar de fora, estrelando o episódio em que um engenheiro de minas que se revolta contra o sistema e resolve se vingar com aquilo que ele melhor sabe fazer: explodir bombas. Embora não tenha levado, foi selecionado para os dois maiores prêmios do cinema mundial: a Palma de Ouro de Cannes e o Oscar de melhor filme estrangeiro. (HBO Max e Amazon Prime)


"O Pântano”, Lucrécia Martel (2001)

Além do já mencionado Trapero, o cinema argentino conta com vários outros cineastas talentosos. Porém, nenhum deles possui um estilo tão pessoal como Lucrécia Martel. Dona de um cinema de linhagem moderna carregado e perspicaz, ela vale-se da dificultação do olhar e da fragmentação narrativa para expressar sentimentos e angústias da sociedade contemporânea, adentrando nas profundezas de seus personagens. Texturas, sensorialidades e densidade se homogeizam para expor tensões interpessoais, que se encaminham fatalmente para o pior. Uma reflexão visceral sobre classe, natureza, sexualidade e política, e uma das mais aclamadas estreias de realização contemporâneas. Prémio para Melhor Primeira Obra no Festival de Cinema de Berlim.


“Um Conto Chinês”, Sebastián Borensztein (2011)

O típico filme do novo cinema da Argentina: comédia dramática, com roteiro envolvente, referência a traumas nacionais (Guerra das Malvinas), um toque de romance e, claro, a estrela de Ricardo Darín. A trama é relativamente simples, mas convidativa: o ranzinza Roberto (Darín) trabalha numa loja de ferragens e vive de maneira metódica, mas sua rotina muda quando um chinês que não fala uma palavra de espanhol aparece em seu caminho, e ele decide ajudar o adorável forasteiro. Longe de se resumir a uma fórmula como no tradicional cinema comercial, “Um Conto...” faz uso desses elementos narrativos para compor um filme divertido e delicioso de se assistir, sem deixar de propor reflexão. Diversão com cérebro. Prêmio Goya de Melhor Filme Ibero-Americano. (Star Plus)


“Vermelho Sol”, Benjamín Naishtat (2019)

Esqueça o formato "diversão inteligente" de “Relatos...”, o toque romântico de “O Silêncio...” a comicidade de “Um Conto...”. “Vermelho Sol” é pura tensão e embrulho no estômago. Contando a história de um advogado arrogante, que vê sua vida perfeita desmoronar quando um detetive particular chega na sua pacata cidade para investigar um desaparecimento, o longa de Naishtat se assemelha a filmes marcantes do cinema que souberam narrar, com acuidade, o "começo do fim", como “A Fita Branca”, de Michael Haneke, para com a Primeira Guerra, ou “O Ovo da Serpente”, de Ingmar Bergman, que previa o que levou ao Holocausto. Duro, forte e absolutamente real. Afinal, por trás dos segredos dos personagens de “Vermelho...” havia uma ditadura militar se anunciando. Premiado em diversos festivais, como Toronto, Havana, San Sebastian, Rio de Janeiro e Recife.


“Nascido e Criado”, Pablo Trapero (2006)

Antes de “Leonera”, de “Abutres” e de “O Clã”, Trapero realizou está pequena obra-prima tocante e profunda sobre os limites da existência, confrontando o inato e a superfície, a natureza e a convenção social. Conta a história da família de Santiago, um jovem dedicado à decoração e à restauração de antigos objetos, que vive um repentino acidente na estrada, o qual desencadeia uma tragédia familiar e um violento giro em sua vida. Numa paisagem gelada do extremo-sul argentino, Santiago, irreconhecível, reaparece empregado num aeroporto perdido no fim de mundo. O cineasta volta sua lente para dois interiores: o humano e o das paisagens rústicas do pampa, para onde o personagem principal se refugia de si próprio. Na mesma medida, Trapero, dado a este olhar penetrante, atinge outro interior: o do espectador. (Prime Vídeo)


“Argentina, 1985”, Santiago Mitre (2022)

Globo de Ouro de Melhor Filme Estrangeiro (não levou o Oscar por pouco, pois merecia muito mais do que o badalado “Sem Novidades no Front”), "Argentina, 1985" narra a história verídica dos promotores públicos Julio Strassera e Luis Moreno Ocampo, que ousaram investigar e processar a ditadura militar mais sangrenta da Argentina. Sob forte pressão política, pública e militar, a dupla, amparada por uma jovem equipe de universitários engajados, encabeçou uma longa pesquisa antes de começar a julgar os cabeças do regime argentino naquele que é conhecido como Julgamento das Juntas. Não apenas Darín, que faz Strassera, mas Juan Pedro Lanzani, no papel de Ocampo, estão fenomenais. Igualmente, magnífica a cena da leitura da acusação no tribunal, um dos textos mais pungentes que o cinema latino-americano já viu. (Prime Video)




Daniel Rodrigues

quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

Claquete Especial de Natal



Papai Noel passou por aqui


Nesta época de final de ano, o cinema, essa representação encenada e diegética da realidade, reforça sua função, seja ela de ajudar a refletir ou simplesmente entreter (ou os dois juntos, por que não?). Como n’"O Poderoso Chefão - Parte 2", em que os acontecimentos da máfia e da política estão fervilhando em plena virada de 1959 para 1960 em Cuba, ou em “Boogie Nights”, quando todos interrompem a chegada da década de 80 por causa de um suicídio em plena festa de Réveillon, o dia de Natal também (ou a passagem de 24 para 25) aparece em alguns filmes não necessariamente como tema central, mas como um pano de fundo essencial àquilo que se quer contar. Às vezes é um detalhe, mas extremamente simbólico para determinada obra de cinema. Um nexo narrativo que contribui para a história de forma a lhe trazer os ícones que a data representa (o nascimento e o significado simbólico de Cristo, a figura pop do Papai Noel, a valorização dos sentimentos de fraternidade e compaixão, a representação do consumismo, o pertencimento à sociedade capitalista ocidental, etc.).

Por isso, o Clyblog registra aqui algo nessa linha: não aquelas comédias natalinas típicas que, embora divertidas, são óbvias. Aqui, fugimos da obviedade. Listamos, sim, filmes que se nutrem dos elementos natalinos mais profundos por assim dizer, ainda que apenas como instrumento para dar um toque à trama, para gerar contraste entre a aparência e real ou apenas para contar melhor uma história. Se você está cansado de assistir as franquias “Esqueceram de Mim” ou “Meu Papai é Noel”, aqui vão alguns títulos que não esquecem da data, mas vão além da mesmice – e que, justo por isso, merecem ser vistos mesmo em outras épocas do ano. Mesmo que, porventura, apenas passem pelo tema, o Natal, com seus significados, está lá.


“Duro de Matar” (“Die Hard”, John McTiernan, EUA, 1988) 

Provavelmente o melhor filme de ação dos anos 80 junto com “Um Tira da Pesada”, “48 Horas” e alguns outros poucos, tem o Natal como pano de fundo para uma trama inteligente que mescla policial, comédia e realismo (sim, realismo) na medida certa. O policial nova-iorquino John McClane (Bruce Willis) vai visitar a esposa em Los Angeles, que está numa festa de Natal da empresa onde trabalha, no edifício Nakatomi Plaza. Durante a festa, terroristas alemães, liderados por Hans Gruber (Alan Rickman) invadem o prédio e sequestram todos os convidados com a intenção de roubar milhões em ações da companhia. McClane escapa de ser aprisionado pelo grupo de Gruber e, com grande dificuldade, mas com perícia e astúcia, passa a combatê-los.

A fórmula é muito parecida com o que Hollywood fazia de muito tempo no gênero ação/policial – as sequências com o gancho da tensão e as explosivas cenas de ação, entremeadas por tiradas engraçadas que aliviam a seriedade e a periculosidade – mas adiciona-lhe algo que passaria a servir de exemplo para trocentas produções posteriores: a pegada realista. McClane derrota os terroristas neste dia de Natal atípico, mas o consegue a custas de muito esfolamento. O conceito de anti-herói, humano e mortal, é uma quebra de paradigma no cinema norte-americano do gênero. Se há estilhaços de vidro no chão e McClane está descalço, ele vai cortar o pé, ora essa! É exatamente isso que acontece, numa ressignificação do tipo James Bond, perfeito e inatingível. Tanto é que, por tudo que passa, McClane sai um trapo no final do filme, o qual finaliza emblematicamente com o jazz natalino “Let It Snow! Let It Snow! Let It Snow!” na voz de Vaughn Monroe. Igualmente, o contraste dos elementos visuais e alegóricos da data com a violência (o vermelho da roupa do Papai Noel com o sangue dos ferimentos) funciona muito bem. Daqueles que sempre que estão passando na TV se assiste, inevitável.


  • "Duro de Matar" - "Ho-Ho-Ho!"




“Morte e Vida Severina” (Walter Avancini, BRA, 1981)

Uma obra-prima da teledramaturgia mundial (vencedora do Emmy daquele ano), é a encenação do poema de João Cabral de Melo Neto, o qual se chama também “Auto de Natal Pernambucano”. Com músicas primorosas de Chico Buarque e aproveitando parte do elenco que Zelito Viana usara na filmagem da história quatro anos antes para o cinema, esta é, sem dúvida, a mais bela versão do texto clássico do poeta pernambucano.

De forte cunho social e denunciador, narra a trajetória do retirante nordestino Severino (José Dumond, impecável) do sertão árido à capital Recife através de versos musicados ou recitados em busca de respostas à vida miserável que leva. O que encontra em muitas das etapas dessa cruzada é apenas morte através do descaso e da desassistência do povo, de “Severinos iguais em tudo na vida”, o que o faz pensar em “saltar fora da ponte e da vida”. Mas o nascimento de mais um “Severino”, filho de um carpinteiro pobre mas sábio, vem trazer cores à desesperança. É a “boa nova” que o Natal ensina, o Cristo incutido naquela pequena e franzina vida que se rebenta. “E não há melhor resposta/ que o espetáculo da vida?”.





“A Felicidade não se Compra” (“It's a Wonderful Life”, Frank Capra, EUA, 1946)

Capra é um dos mestres do primeiro cinemão norte-americano. Era capaz de criar filmes de marcantes conceitos estético e narrativo a um espírito fortemente nacionalista, seja na valorização dos símbolos de seu país, seja no recorrente tom moral típico daquele povo, o qual vai da puerilidade à arrogância. No caso, mais para onírico, “A Felicidade...” conta a história de um espírito candidato a anjo que, para ganhar suas asas, recebeu a missão de ajudar um empresário (James Stewart) que, em virtude de grave problema financeiro, tinha a intenção de se suicidar. O aspirante a anjo aparece-lhe na véspera do Natal quando este está prestes a saltar de uma ponte. Ele fala de sua missão e comentou que seria um desperdício matar-se, pois ele era importante para muita gente. Ante o ceticismo de seu protegido, que se sentia um fracassado, o amigo espiritual mostrou-lhe várias situações que teriam acontecido se não fosse sua interferência: a morte do irmão, o desespero da II Guerra (recém terminada quando o filme foi rodado), a tristeza da esposa, a situação lastimável de sua cidade, entre outras.

Com fotografia P&B impecável – bastante forjada no cinema soviético de Eisenstein e Vertov –, Capra amarra uma história cheia de acontecimentos com um domínio narrativo espantoso sem deixá-la confusa ou chata. Trata-se de um típico clássico natalino, eu sei, mas com tamanha qualidade não daria para deixá-lo de fora – até por que, atualmente, está em desuso assistir a filmes antigos ainda mais nessa ditatoriamente colorida época natalina. No final, a mensagem é evidente, o que não lhe tira a emoção – até por que muito bem escrito e realizado.



“Cortina de Fumaça” (“Smoke”, Wayne Wang e Paul Auster, EUA/Alemanha, 1995)

Uma ode à solidariedade e ao respeito às diferenças, sejam elas raciais, de gênero ou qualidades pessoais. Tem coisa mais a ver com Natal isso? Pois esta pequena obra-prima com cara de Jim Jarmusch traz isso e mais um pouco. O “isso” é a história envolvente e coral: Auggie Wren (Harvey Keitel) tem uma tabacaria onde circulam tipos bem peculiares (olha aí as diferenças subtextualizadas). Ele também tem um hábito próprio: o de fotografar, às oito da manhã, a fachada de sua loja. É assim que ele conhece o escritor em crise criativa e emocional Paul Benjamin (William Hurt), que, por um momento fortuito, acaba conhecendo um jovem negro morador de rua a quem ajuda a encontrar seu pai. A história é, na verdade, um reencontro das raízes pessoais e dos laços afetivos mal resolvidos no passado.

O “um pouco mais” a que me referi é, além desse instigante subtexto, há a célebre cena em que Auggie vai parar na casa de uma senhora cega cujo neto furtara-lhe a loja. Ela, amorosa e sem os pré-conceitos de quem enxerga apenas com os olhos, o recebe e o convida para cear com ela naquela véspera de Natal. Tudo ao som da belíssima canção “Innocent When You Dream”, de Tom Waits. Cena emocionante. Uma história tão linda que, renovadas as emoções de todos na trama, motiva o até então travado escritor Paul em seu novo romance, chamado: “Auggie When’s a Christmas Story”.


  • "Cortina de Fumaça" - História de Natal de Auggie Wren



“O Natal do Charlie Brown” ou “Feliz Natal, Charlie Brown” (“A Charlie Brown Christmas”, Bill Melendez, EUA, 1965)

Já havia me referido ao filme indiretamente aqui no blog no Natal de 2013 quando escrevi sobre a magnífica trilha sonora de Vince Guaraldi nos ÁLBUNS FUNDAMENTAIS. Pois além da preciosidade que musica o episódio, a própria animação merece destaque. Com os elementos característicos da série de Charles Schulz, o curta “O Natal do Charlie Brown” é o primeiro desenho animado da turma dos Peanuts. Quando o questionador Charlie Brown reclama sobre o sentido materialista que as pessoas dão à data, Lucy sugere que ele se torne o diretor de uma peça teatral no colégio. Charlie Brown aceita, mas, claro, sua insegurança e os ingovernáveis fatores externos fazem com que ele perca o controle, frustrando-se. “Que puxa!” O amigo de todas as horas Linus, entretanto, lhe consola relembrando o verdadeiro sentido natalino.

Tem um Charlie Brown e Snoopy novo por estrear no Brasil que aproveita o Natal (comercialmente, inclusive) como pano de fundo, mas este aqui é insuperável, não só pela trilha original de Guaraldi mas pela precisão de Melendez na direção, que sempre imprimiu à série de TV a dose certa de doçura, comédia, entretenimento e ludicidade. Atração – e ensinamento – para crianças e adultos.


  • "O Natal do Charlie Brown" 






“Fanny e Alexander” (Ingmar Bergman, SUE/FRA/ALE, 1982)

Sou um tanto suspeito em falar desse filme, pois trata-se de meu preferido da longa, profícua e expressiva filmografia do gênio Bergman. Entretanto, como deixar de fora essa obra-prima que, além de alinhar-se bastante com o recorte que proponho, é o amadurecimento total de um artista que já nascera maduro para o cinema. Superprodução que encerra a carreira do cineasta na grande tela, transcorre-se em dois anos da primeira década do século XX na família Ekdahl. Após um alegre Natal, o pai de um casal de crianças morre. Deste momento em diante Alexander (Bertil Guve), o menino, passa a ver o fantasma do pai frequentemente. Tempos depois, sua mãe casa-se com um extremamente rígido religioso e as crianças são obrigadas a deixar a casa da avó paterna para viverem com a família do padrasto de hábitos severos, onde são tratados como prisioneiros. Na casa do padrasto o sensível e inventivo Alexander passa a ver o fantasma da primeira esposa dele e suas filhas, que haviam morrido tentando escapar dele. Decorrido algum tempo, a mãe se conscientiza da real personalidade do marido e de quanto seus filhos sofrem naquela casa e planeja um modo de tirá-los daquele lugar e levá-los de volta para casa.

O proposital clima espiritualista de toda a história faz cama para a impactante sequência da fuga, em que as forças divinas operam um milagre de Natal e os três conseguem escapar da prisão domiciliar. Haveria muito a se falar sobre “Fanny e Alexander” (a relação entre pais e filhos, a espiritualidade imanente, a percepção afinada da criança, a metáfora da vida como palco – e vice-versa –, os limites entre vida e morte, etc.) mas destaco aqui um fator primordial: o fato de o Natal estar presente no início e no final do filme. A data do nascimento de Jesus demarca dois momentos psicológicos e emocionais dos personagens, numa significação das possibilidades de mudança e desenvolvimento da vida e das pessoas. Cada um com suas qualidades e dificuldades, com suas personalidades e jeitos, mas passíveis de enxergarem o mundo para além de si mesmos. Afinal, é Natal.


  • "Fanny e Alexander" - Ceia de Natal









O ClyBlog deseja um
Feliz Natal a todos!