Recomendado pelos prêmios significativos que vem recebendo, como a cobiçada Palma de Ouro em Cannes, “A Fita Branca”, de Michael Heneke, é aquele tipo de filme que não acaba com o final da sessão. O escurecimento gradual da tela com a passagem dos créditos no mais profundo silêncio é um convite à reflexão. As mais variadas sensações e dúvidas ficam suspensas na mente do espectador, e em pouco tempo acabamos por perceber que toda a chamada à trama ao mistério, ao suspense não era mais que uma máscara para a verdadeira intenção do diretor que era o tempo todo se aprofundar na natureza das pessoas e daquela comunidade onde viviam.
Tendo como ponto de partida uma série de incidentes, que se revelam depois propositais, Michael Heneke vai aos poucos saindo do geral para o particular e nos levando a conhecer as famílias de um pequeno vilarejo no interior da Alemanha, suas particularidades e personalidades, mostrando faces brutas, cruéis, invejosas, mesquinhas e preconceituosas, tudo isso inserido em um sistema patriarcal controlado por um barão que se faz impor mais pelo medo que pelo respeito, sempre às voltas também com a religião, que é ponto comum nas famílias naquela pequena sociedade.
Os referidos incidentes, pela reincidência e pelo aumento das gravidades, passam a causar medo nos cidadãos do lugar e aos poucos também a se mostrar como castigos a faltas cometidas. Coisas que acontecem dentro dos lares, desvios de caráter individuais ou injustiças, passam a ser julgados por algum vigilante (ou vigilantes) e atrocidades ou vandalismos são cometidos contra famílias como forma de punição.
Acaba-se criando um mistério, mas aí é que está a questão: ainda que fiquemos com a impressão que um grupo de crianças seja responsável por aquilo, por seu comportamento estranho e formação de grupos; mesmo que sejam eles; este não é o ponto principal, e sim o porquê destas crianças ou fosse lá quem fosse estar movido por aquele ímpeto justiceiro. É o contexto autoritário, é o rigor religioso, são os castigos domésticos, os abusos infantis, tudo contribuindo para a formação de um INDIVÍDUO repressor.
Devo admitir que tinha-me passado despercebido, e somente depois lendo uma crítica do filme, que me alertei para o fato de que o narrador (um professor morador da vila), anos depois nas suas reminiscências, ao relatar os fatos, os classifica como fundamentais para se entender os acontecimentos que se sucederiam nas décadas seguintes na Alemanha. Na concepção do diretor, o narrador por certo se refere à formação da sociedade que resultou no nazismo. Que aquele tipo de contexto social, autoritário, patriarcal, segregaconista, às portas da 1° grande guerra, acabaria por formar os indivíduos que moldaram a política fascista que culminou na 2° Guerra Mundial. A própria representação da fita branca no braço das crianças, para lembrar da sua pureza, tem como intenção esta alusão aos judeus dos guetos com suas braçadeiras com a estrela de Davi, usadas como forma de diferenciação.
Bom..., aceitável enquanto influência, impulso, mote, mas espero que o sr. Michael Heneke não tenha se enganado e encarado isto como uma desculpa, do tipo, um psicopata fatiou a namorada porque o pai batia nele. Não serve. Por mais que aceitemos que o sistema interno da Alemanha e do seu povo pré-1° guerra, já contribuísse para o que acabou se tornando, não servirá de justificativa para o Holocausto e para todas as atrocidades cometidas durante a 2° Guerra. Se não é por ai, a causa apresentada é válida sim, mas apenas se somada a outras tantas. Jamais sozinha.
Mas independente disso, não pode-se tirar os méritos cinematográficos, que são muitos, na realização deste filme. A começar pela belíssima e precisa fotografia em preto-e-branco que é parte importante do conceito pretendido, reforçando expressões, ressaltando os contrastes, texturas e dando uma atmosfera sombria e fria ao lugar. Destaque também para a organização dos elementos, fazendo com que conheçamos primeiro o todo e só depois entraemos no detalhe, fazendo isso de forma tão sutil que, de repente estamos dentro da casa vendo os problemas de determinada família e neste mergulho vemos que eles são mais sérios do que pareciam e o mergulho continua e continua psicologicamente. E ainda destacar o jogo de mostra-e-esconde que faz, deixando totalmente límpido e evidente o que já está explícito, e ocultando elementos do que possam dar margem à especulações e análises deixando as conclusões a cargo do espectador.
Temática ousada, técnica apurada, qualidade, suspense e beleza plástica. Ingradientes que fazem de "A Fita Branca" um programa sem risco de arrependimento.
Segue abaixo um trecho de uma entrevista do diretor, que dá uma idéia das pretensões dele com “A Fita Branca”: “Não ficaria feliz se esse filme fosse visto como um filme sobre um problema alemão, sobre o nazismo. Este é um exemplo, mas significa mais que isso. É um filme sobre as raízes do mal. É sobre um grupo de crianças, que são doutrinadas com alguns ideais e se tornam juízes dos outros – justamente daqueles que empurraram aquela ideologia goela abaixo deles. Se você constrói uma idéia de uma forma absoluta, ela vira uma ideologia. E isso ajuda àqueles que não têm possibilidade alguma de se defender de seguir essa ideologia como uma forma de escapar da própria miséria. E este não é um problema só do fascismo da direita. Também vale para o fascismo da esquerda e para o fascismo religioso. Você poderia fazer o mesmo filme – de uma forma totalmente diferente, é claro – sobre os islâmicos de hoje. Sempre há alguém em uma situação de grande aflição que vê a oportunidade, através da ideologia, para se vingar, se livrar do sofrimento e consertar a vida. Em nome de uma idéia bonita você pode virar um assassino.”
Rola hoje à noite em Los Angeles a cerimônia do Oscar. Fora alguma grande zebra, "Avatar" leva os prêmios principais e também os técnicos. Na verdade não vi o filme mas sabemos que a academia gosta desse tipo de suprprodução, grande apelo, grandes bilheterias e tal. O que impulsiona a indústria, mesmo.
De resto torço pelo máximo possível de estatuetas para Tarantino e sua turma, com o bom "Bastardos Inglórios", indicado em 8 catergorias, incluindo filme e diretor. Particularmente, como já havia dito, acharei merecidíssimo se Christoph Waltz levar o prêmio de coadjuvante pelo seu papel de Cel. Landa.
Também gostei demais da atuação de Carey Mulligham em "Educação" apesar de saber do brilhante papel que faz Gabourey Sidiba em "Preciosa", que pode ser surpresa também em outras categorias.
Queria ter visto antes da premiação "O Segredo de Seus Olhos",mas da categoria Filme Estrangeiro, só vi mesmo "A Fita Branca" que me deixou ótima impressão, mas que acho que não leva a de filme, mas seria justíssimo se ganahasse fotografia.
Novidade também este ano é o fato de termos 10 indicados na categoria melhor filme. Acho que desqualifica um pouco - tem anos que mal se arranja 5 pra competir -, mas vá lá.
Veja abaixo as listas dos incdicados em todas as categorias:
Melhor Filme
Avatar
Um Sonho Possível
Distrito 9 Educação
Guerra ao Terror Bastardos Inglórios
Preciosa - Uma História de Esperança
Um Homem Sério
Up - Altas Aventuras
Amor Sem Escalas
Melhor Diretor
James Cameron - Avatar
Kathryn Bigelow - Guerra ao Terror Quentin Tarantino - Bastardos Inglórios
Lee Daniels - Preciosa - Uma História de Esperança
Jason Reitman - Amor Sem Escalas
Melhor Ator
Jeff Bridges - Coração Louco
George Clooney - Amor Sem Escalas
Colin Firth - Direito de Amar
Morgan Freeman - Invictus
Jeremy Renner - Guerra ao Terror
Ator Coadjuvante
Matt Damon - Invictus
Woody Harrelson - O Mensageiro
Christopher Plummer - The Last Station
Stanley Tucci - Um Olhar do Paraíso Christoph Waltz - Bastardos Inglórios
Melhor Atriz
Sandra Bullock - Um Sonho Possível
Helen Mirren - The Last Station
Carey Mulligan - Educação
Gabourey Sidibe - Preciosa - Uma História de Esperança
Meryl Streep - Julie e Julia
Melhor Atriz Coadjuvante
Penelope Cruz - Nine
Vera Farmiga - Amor Sem Escalas
Maggie Gyllenhaal - Coração Louco
Anna Kendrick - Amor Sem Escalas
Mo'Nique - Preciosa - Uma História de Esperança
Melhor Roteiro Adaptado
Distrito 9 Educação
In The Loop
Preciosa - Uma História de Esperança
Amor Sem Escalas
Melhor Roteiro Original
Guerra ao Terror Bastardos Inglórios
O Mensageiro
Um Homem Sério
Up - Altas Aventuras
Melhor Animação Longa-Metragem
Coraline
O Fantástico Sr. Raposo
A Princesa e o Sapo
The Secret of Kells
Up - Altas Aventuras
Melhor Animação Curta-Metragem
French Roast
Granny O´Grimn´s Sleeping Beauty
The Lady and the Reaper (La Dama e la Muerte)
Logorama
A Matter of Loaf and Death
Melhor Filme Estrangeiro
Ajami (Israel)
O Segredo dos Seus Olhos (Argentina )
O Leite da Amargura (Peru )
O Profeta (França ) A Fita Branca (Alemanha )
Melhor Documentário Longa-Metragem
Burma Vj
The Cove
Food Inc.
The Most Dangerous Man In America: Daniel Ellsberg and the Pentagon Papers
Which Way Home
Melhor Documentário Curta-Metragem
Province
The Last Campaign of Governos Booth Gardner
The Last Truck: Closing of a GM Plant
Music by Prudence
Rabbit à la Berlin
Melhor Curta-Metragem
The Door
Instead of Abracadabra
Kavi
Miracle Fish
The New Tenants
Melhor Direção de Arte
Avatar
O Mundo Imaginário do Doutor Parnassus
Nine
Sherlock Holmes
The Young Victoria
Brilho de Uma Paixão
Coco Antes de Chanel
O Mundo Imaginário do Doutor Parnassus
Nine
The Young Victoria
Melhor Montagem
Avatar
Distrito 9
Guerra ao Terror Bastardos Inglórios
Preciosa - Uma História de Esperança
Melhor Trilha Sonora Original
Avatar
O Fantástico Sr. Raposo
Guerra ao Terror
Sherlock Holmes
Up - Altas Aventuras
Melhor Canção Original
"Almost There" - A Princesa e o Sapo
"Down in New Orleans" - A Princesa e o Sapo
"Loin De Paname" - Paris 36
"Take it All" - Nine
"The Weary Kind" - Coração Louco
Melhor Edição de Som
Avatar
Guerra ao Terror
Bastardos Inglórios
Star Trek
Up - Altas Aventuras
Melhor Mixagem de Som
Avatar
Guerra ao Terror Bastardos Inglórios
Star Trek
Transformers: A Vingança dos Derrotados
Melhores Efeitos Especiais
Avatar
Distrito 9
Star Trek
Melhor Maquiagem
Il Divo
Star Trek
The Young Victoria
A cerimônia comandada por Steve Martin e Alec Baldwin, começa às 22h (horário de Brasília).
Globo e TNT transmitem para o Brasil.
Não sei quanto a quem não é cinéfilo de carteirinha, mas mais de uma vez me surpreendi tanto com a abertura de um filme, que a sensação imediata era a de quem nem precisava mais continuar assistindo. Foi assim quando, em 1995, na companhia de vários amigos – em sua maioria absoluta amantes de cinema mas não necessariamente cinéfilos – reunimo-nos para ver o VHS locado de “Pulp Fiction: Tempo de Violência”, do Quentin Tarantino. Eu não havia visto “Cães de Aluguel” ainda, seu primeiro e anterior longa, embora já ouvisse todo o debate em torno do nome do cineasta que dizia-se estar revolucionando o cinema. Mas o que me despertava maior interesse era, principalmente, porque o filme em questão havia ganhado a Palma de Ouro em Cannes. Isso, mais do que toda a celeuma sobre Tarantino significar ou não um novo capítulo na história da 7ª Arte (o que poderia ser, escaldado que sou, um exagero proposital, comum na mídia), de fato me surpreendia. Cannes desde cedo em minha vida cinéfila fez muito sentido, pois cresci assistindo seus premiados e indicados, que não raro eram (ainda são) alguns dos melhores filmes que já assisti, como “A Balada de Narayama”, “Coração Selvagem” e “Mephisto”. No caso de “Pulp Fiction”, ainda mais por saber tratar-se de um filme “comercial” norte-americano e não algum cult europeu ou asiático, isso, sim, chamava-me mais a atenção e despertava a curiosidade de vê-lo.
Pusemos a fita no videocassete. A grande maioria sabe o que acontece nos primeiros minutos de “Pulp Fiction”, né? A sequência do diálogo entre Pumpkin (Tim Roth) e Honey Bunny (Amanda Plummer) antes de assaltarem o restaurante e a entrada triunfal dos letreiros iniciais com “Miserlou” de Dick Dale arrasando com um surf-rock na trilha e, ainda pelo meio dos créditos, a mudança de música, como se alguém tivesse mudado uma estação de rádio para o funkão “Julgle Boogie”, da Kool & The Gang. Tudo aquilo, o estilo; a atmosfera pop; a inteligência da montagem; o bom gosto musical; o tom de tele-seriado B; a referência a Godard no nome da produtora A Band Apart: toda essa sequência minimamente bem pensada de como iniciar um filme me fez ficar absolutamente estarrecido. Somava-se a isso a engenhosidade da montagem no momento em que Pumpkin e Honey Bunny levantam-se sobre o banco do restaurante (e Roth diz: “I love, Honey Bunny”, e eles se beijam em close antes de apontarem as armas) e anunciam o roubo, a imagem congela e mantém-se o áudio das falas – estas, aliás, extremamente musicais, tanto que se tornam inseparáveis da música de Dale que vem na sequência no próprio disco da trilha sonora. Apaixonei-me pelo filme que mal havia começado.
"Pulp Fiction", Quentin Tarantino (1994)
Excitado, eu olhava para meus amigos na sala enquanto aquela série de genialidades iam surgindo da tela para observar suas reações, mas todos, embora estivessem, sim, gostando, nem de perto se exaltavam como eu. Aquele sentimento de arrebatamento era única e exclusivamente meu. Cheguei a perguntar, incrédulo: “Gente, vocês estão vendo a MESMA coisa que eu?!”. A resposta? Com desdém adolescente: “Sim, Dani, o que é que tem? O filme tá recém começando”. Sim, o filme estava recém começando, mas não de um jeito normal. Para mim (e para muito cinéfilo e estudiosos do cinema) confirmava-se ali a tal revolução cinematográfica atribuída a Tarantino. Não precisava nem ver o filme por completo: era certo que o cinema, então a 4 anos de completar seu primeiro século de existência, mudava a partir dali, e isso era o máximo de eu estar presenciando. Aprendi, naquela situação, que não era uma pena meus amigos não estarem vendo o mesmo que eu: era, sim, o que me diferenciava do senso comum na forma de ver e sentir cinema.
Não foi a primeira abertura de filme que me surpreendeu a de “Pulp Fiction”, claro, mas é certo que esta sensação de entusiasmo se me repetiu várias vezes. Seja em casa ou numa sala de cinema, de vez em quando sou pego de surpresa com algum começo de filme que, como um bom disco de música, sabe dar o start certo e cativar de cara quem o está apreciando, mesmo que a obra em si não corresponda tanto a seu bom início – embora seja geralmente um bom indicativo. Pois essa lista se propõe a elencar justamente isso: não os filmes inteiros, mas seus primeiros minutos. A rigor, por “openning scene” entendemos não somente o design de créditos, mas o suficiente para apresentar o filme, embora não seja necessariamente uma regra.
A junção de fatores, a inventividade na disposição dos letterings, a edição, o prólogo, o design, o impacto da cena, o significado simbólico para com a história que será contada: tudo conta para impressionar e construir uma introdução digna de memória. As maneiras de fazer, assim como de se contar uma história em imagens, são infinitas, e não há um jeito melhor que outro. O critério para a escolha destes 30 exemplos sem ordem de preferência – e que pode tranquilamente ser ampliada por novos filmes ou por títulos aos quais não me ocorreram – é apenas o da sentir-se conquistado já na largada por uma obra cinematográfica. Aqueles filmes que, contrariando a lógica, recomendo que não sejam necessariamente vistos até o final. Os primeiros minutos já bastam.
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“Era uma Vez no Oeste”,Sergio Leone(1968)
São pouco mais de 7 min de puro deleite daquela que é
provavelmente a melhor abertura de um filme de todos os tempos. O filme de
Leone, aliás, por si merece essa alcunha, mas se se destacar apenas o seu começo
já está mais do que bem representado. O design, o cenário, os enquadramentos, a
disposição criativa dos letterings, o tempo da montagem, a arte e o figurino, a
fotografia. Tudo em perfeita sintonia e, mais que isso, conceitual, visto que
apresenta, sem precisar valer-se da poderosa música de Ennio Morricone e quase
sem nenhuma palavra dita, tal westerns do cinema mudo, as ideias centrais do filme:
o embate ideológico entre passado e futuro, entre vida e morte, entre instinto e consciência..
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“Cassino”,Martin Scorsese(1996)
Lembro também de, no cinema, sentir a reação da sala ao
surpreender-se com a explosão do carro do personagem Sam Rothstein, vivido por
Robert DeNiro, em “Cassino”, nos idos de 1996. Uma reação espontânea do
público, que, assim como eu, era abduzido para dentro da história em poucos
minutos de fita transcorridos. Scorsese, justificadamente fã de Saul Bass,
conseguira em vida trabalhar com o mestre do design de créditos
cinematográficos ainda em dois filmes: “Cabo do Medo”, de 1991, e neste, do ano
em que ele morreu.
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“Fahrenheit 451”,François Truffaut (1966)
A nouvelle vague foi o movimento que melhor soube subverter os padrões da linguagem cinematográfica. Esta ficção científica de forte crítica filosófica baseada na novela e Ray Bradbury, além de ser um dos melhores filmes de Truffaut e do cinema, inova desde o seu primeiro minuto. E de forma simples. Aliás: simples em formato, haja vista que se engendra apenas por uma sequência de imagens estáticas e monocromáticas em zoom in e uma locução que descreve aquilo que geralmente apareceria escrito. Porém, a simplicidade da sequência de "Fahrenheit 451" é de uma criatividade tamanha, visto que traduz conceitualmente o principal elemento da história, que é a proibição de qualquer material escrito num futuro distópico. Genial e simples.
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“Cidade de Deus”,Fernando Meirelles e Katia Lund(2002)
A experiência com "Cidade de Deus" também foi inesquecível. Fui assisti-lo pouco depois de seu lançamento já tomado pela fama em torno do filme. Na sala de cinema, pude comprovar estar diante da obra que demarca o antes e depois do cinema brasileiro, o filme que deu fim à dolorosa era da Retomada. E sua sequência introdutória (“Pega a galinha, pega a galinha!”), com a faca cintilante simbolizando o perigo, os fragmentos de imagens intercaladas por legendas, a foto em cores pulsantes, o som da lâmina sendo afiada misturado ao do samba para devorar a ave fujona. Uma cena de tensão que se cria em poucos minutos e que já diz a que o filme viera: para revolucionar o cinema nacional e mundial.
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“Um Corpo que Cai”,Alfred Hitchcock (1956)
Saul Bass foi, inegavelmente, o gênio do design de créditos em cinema. E quando a genialidade dele se encontrava com a de outros, como, no caso, Alfred Hitchcock, com quem colaborou mais de uma vez, aí era gol certo. Altamente conceitual, como os videoclipes musicais que passariam a existir apenas décadas depois, a entrada de "Vertigo", com o casamento perfeito com a trilha de Bernard Hermann e os efeitos especiais bastante ousados e criativos para sua época, ainda surpreendem. Se hoje fosse feito por computadores já seria louvável, imagina em 1956.
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“Psicose”,Alfred Hitchcock(1960)
Outro da colaboração Bass/Hitchcock, "Psicose" vale-se dos tradicionais grafismos que eram comuns ao trabalho de Bass, dono de um traço magnifico. A assustadora trilha de Hermann, sinônimo de thriller de suspense, é traduzida por linhas retas paralelas em p&b que se deslocam horizontal e verticalmente em conjunção com as letras, geram uma sensação de instabilidade e não-linearidade, ideia a qual, por sua vez, simboliza a perturbadora história do assassino psicótico Norman Bates. Junto com "Vertigo", aquele que é considerado o grande filme de Hitch. Não à toa.
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“O Segundo Rosto”,John Frankenheimer (1966)
Mais uma de Bass, esta perturbadora abertura de "O Segundo Rosto" é um verdadeiro exercício artístico. Valendo-se de potente trilha de Jerry Goldsmith e da trama de suspense psicológico do filme de Frankenheimer, Bass explora distorções como as do expressionismo alemão e carrega nas sombras e imagens projetadas em espelhos para, já de início, entrar na mente do espectador, que, a se confirmar pelo excelente longa, será conduzido a um mundo de medos e aflições internas. Poucas vezes uma introdução casou tão bem com a ideia central de uma obra.
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“O Jogador”,Robert Altman(1992)
Esta cena já esteve destacada aqui no Clyblog por outro
motivo: o plano-sequência. Pois Altman consegue com este engenhoso desenho de
cena não apenas criar uma das melhoras sequências sem corte da história do
cinema (afinal, o próprio filme trata sobre os bastidores da sua indústria) como, por conta
exatamente disso, causar um incrível impacto já no início do filme, visto que o
plano-sequência é justamente o que o abre. Altman, dos melhores do cinema autoral dos Estados Unidos, sabia como ninguém abrir suas obras, haja vista "Nashville", "M*A*S*H*" ou "Três Irmãs", mas nada bate a de "O Jogador".
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“Magnólia”,Paul Thomas Anderson(1999)
Outro dos que fui assistir no cinema é fui totalmente
arrebatado. Também pudera: que forma criativa de se começar um filme! P.T.Anderson põe pra baixo o queixo do espectador num prólogo ao mesmo tempo
divertido e instigante, que relaciona fortuitos momentos da história, para, ao final, triunfantemente, soltar a imagem da flor "Magnólia" abrindo-se em velocidade acelerada sobre a projeção de diversos vídeos. Além disso, tem a
apaixonante música de Aimee Mann, a quem nem conhecia e passei a adorar por
causa da trilha do filme. Inteligentemente, a aparente dissociação dos
acontecimentos do prólogo antecipa a trama coral proposta pelo roteiro e a nada
casual relação entre aquelas histórias paralelas. “Isto não foi uma
coincidência”.
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“O Homem do Braço de Ouro”,Otto Preminger(1955)
Bass de novo, aqui na sua forma mais naturalmente criativa e
genial: grafismos e desenhos com seu traço característico sobre um fundo preto
e legendas sendo dispostas em conjunto com a música de Elmer Bernstein. A
primeira parceria do designer com Otto Preminger, com quem trabalharia em vários
outros projetos, também explora os meandros obscuros da mente humana, no caso,
de um baterista de jazz viciado em heroína vivido incrivelmente pelo jovem (mas
já ídolo) Frank Sinatra. Só o desenho do braço distorcido já é uma das mais
felizes contribuições de Bass para a história do cinema e do design.
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“A Marca da Maldade”,Orson Welles (1958)
Outro que, assim como "O Jogador", também tem um dos grandes
plano-sequências da história cinematográfica para começar o filme. Porém,
havemos de dar ainda mais mérito para o sempre inquieto e criativo Orson Welles
em ousar abrir um filme deste jeito nos anos 50, quando o cinema e os
espectadores tinham como padrão o formato convencional de créditos iniciais. Nunca se
havia visto uma cena de abertura tão complexa, com vários atores e figurantes em cena,
câmara em travelling, mudança de enquadramento de primeiríssimo plano para
planos médios e grande, num espaço físico extenso e com direito até à explosão.
E tudo isso SEM corte. Caramba! Como se não bastasse, o longa confirma todas as
expectativas de seus de minutos iniciais naquele que é, talvez, o grande de
Welles.
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“Uma Mulher É uma Mulher”,Jean-Luc Godard(1961)
Godard, assim como Truffaut e seus companheiros de nouvelle
vague, nunca deixaram de inovar a maneira de começar a contar suas histórias. O
suíço, aliás, comumente radical, já fez muito filme que, a rigor, não começa
nunca – e nem “termina”, consequentemente, como “Je Vous Salue, Marie” ou “FilmSocialisme”. Mas uma das marcas que Godard nunca abandonou é o trato formal da
tipografia dos letterings, os quais se utiliza geralmente com fontes
não serifadas tipo Futura ou Arial (e nas cores da bandeira da França) sobre
fundo escuro, encurtando os limites entre poesia concreta, cinema, vídeoarte e
literatura. Caso de “Uma Mulher é Uma Mulher”, que ele faz a proeza de apresentar genialmente
em menos de 2 min.
****
“Fellini 8 1/2”,Federico Fellini(1963)
Fellini não cria suspense nenhum em relação ao nome do filme, o
qual aparece já no segundo frame sobre fundo escuro na forma da conhecida logo.
Mas a partir dali o que se vê até os 3 min que se transcorrem é a mais absoluta
genialidade felliniana. A história do cineasta pressionado pela crise de
criatividade é expressa numa espécie de prólogo onírico minuciosamente bem
construído. O claustrofóbico engarrafamento, cuja mudez é ensurdecedora, e os
olhares condenatórios à sua volta, sufocam aquele homem sem rosto dentro de seu
carro a ponto de fazê-lo... sair voando! A lindeza do sonho se encerra numa
praia, sobrevoando o mar e sendo puxado por uma corda da areia por ele próprio,
que tem a companhia de um homem de capa sobre um cavalo negro. E o melhor: o oitavo filme (mais um média) de Fellini mantém esse nível até o fim.
****
“2001: Uma Odisseia no Espaço”,Stanley Kubrick(1969)
A ficção científica
que estabeleceu o padrão do gênero para sempre é uma aula de narrativa para
realizadores até hoje, o que inclui sua marcante abertura. Copiado e
referenciado centenas de vezes, o início de "2001", de apenas 1 min30’, é,
contudo, dos mais originais da história da 7ª Arte. Traduzindo em imagens
siderais grandiosas a impactante abertura da sinfonia "Also Sprach Zarathustra",
de Richard Strauss, Kubrick mostra o raro alinhamento do planeta com Sol com a
Lua valendo-se, para isso, de poucos mas precisos elementos: tela escura que
vai aos poucos revelando a imagem e apenas três letreiros em tipografia Futura: “Metro-Goldwyn-Mayer Presents”, “A Stanley Kubrick Production” e o nome do
filme em tamanho maior (com o detalhe do Copyright abaixo bem pequeno). Separadamente
do filme, só esse trecho já pode ser considerado uma obra-prima.
****
“O Poderoso Chefão”,Francis Ford Coppola(1972)
Este é um caso de uma forma própria de apresentar a
história. O nome, através da bela logo com a mão divina comandando a marionete com
o letreiro “Mario Puzo’s The Godfather” e os acordes da clássica música tema de Nino Rota, já
está garantido no segundo frame. Porém, os 6 minutos seguintes apenas de
diálogos traduzem diversos níveis narrativos e simbólicos que serão trazidos
nas quase 3 horas de fita subsequentes. As relações de poder, a inteligência
manipuladora do Padrinho, os valores familiares, os papeis sociais, os meandros
dos poderosos... muita coisa é dita ou subentendida até o momento em que Vito
Corleone (Marlon Brando, espetacular) cheira a rosa de sua lapela e dá-se continuidade
à “festa”.
****
“A Terceira Geração”,Reiner Werner Fassbinder(1979)
Um dos maiores estetas do cinema, o alemão Fassbinder deve muito de suas criativas aberturas de filmes a um contemporâneo e conterrâneo seu ligado à arte moderna a quem muito se inspirava para isso: Joseph Beuys. Não raro, as introduções de seus filmes referenciam o estilo de Beuys, com tipografias monocromáticas dispostas sobre imagens em movimento ou estáticas, criando peças dignas de galerias expositivas. O começo de “A Terceira Geração” é um deles, com os créditos pulsando no ritmo de uma batida cardíaca enquanto vão sendo apresentados sobre um zoom out que vai descortinando um apartamento com telas, móveis e pessoas.
****
“Assassinos por Natureza”,Oliver Stone(1994)
Cineasta pautado pelo experimentalismo, Oliver Stone desde
seu primeiro longa, “Platoon”, de 1986, sempre soube começar bem um filme.
Porém, 8 anos depois, ao invés de tornar-se mais conservador, Stone mostra-se
saudável e surpreendentemente ainda mais ousado com o altamente pop e
sarcástico “Assassinos por Natureza”. O começo do filme é visivelmente influenciado pela
linguagem dos videoclipes da MTV, emissora à época em alta, seja pelos enquadramentos
distorcidos, pelo movimento de câmera frenético, pela alteração brusca de ISO
ou pela montagem de ritmo musical. Tão musical, que, na cena, o violento casal
espanca e mata pessoas em um restaurante com absoluto prazer ao som do
punk-rock da L7.
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“Persona”,Ingmar Bergman (1960)
Um dos maiores cineastas de todos os tempos, Bergman tinha
total domínio da narrativa. Porém, a introdução de seus filmes invariavelmente
traziam a fonte Times sem serifa sobre fundo escuro. Mas Bergman sabia
quando contrariar o próprio estilo, e o profundo “Persona” incitou-lhe a isso.
Num conceito de vídeoarte – já existente nas galerias contemporâneas
mas pouco exploradas no cinema de arte –, o cineasta funde imagens em alta
profusão, usa fotos reais e ousa em enquadramentos e fotografia p&b. Tudo
de forma a criar uma atmosfera de sonho e fluidez do tempo/espaço o qual
Bergman tão bem constrói naquele que é considerado“o filme mais difícil de
todos os tempos”.
****
“Cidadão Kane”,Orson Welles(1940)
Em seu primeiro longa, o então jovem Welles, com apenas 25
anos, inovava consideravelmente o modo de abrir uma história filmada. Aliás,
não somente essa parte, mas em diversos aspectos da linguagem cinematográfica
daquele que é ainda hoje para muitos o melhor filme de todos os tempos. Quanto
à introdução, mesmo com o título revelado imediatamente ao começo (seria muita
transgressão não informar pelo menos isso ao público da época), nunca havia se
visto um prólogo in média rés (com o qual se começa uma narrativa no auge da
ação antes de começar de novo para explicar como se chegou lá), tão comum hoje.
Enigmática (o que será aquele "Rosebud" dito antes do cara morrer?!), a primeira imagem que aparece traz uma placa com a mensagem “No
Trapessing” (“Não Ultrapasse”). Era Welles, o mesmo que anos antes havia
apavorado multidões com a transmissão em rádio d'"A Guerra dos Mundos", manipulando
o subconsciente do espectador.
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“Manhattan”,Woody Allen(1979)
Assim como Bergman, Allen tem um estilo geralmente muito próprio de iniciar seus filmes, quase que invariavelmente com legendas em fonte tipo Windsor Light Condensed e uma música inteligentemente bem selecionada para sonorizar. Porém, como o mestre sueco em "Persona", Allen também sabe transgredir a si próprio. Em "Manhattan", ao invés do fundo preto com letterings, ele monta uma pequena sinfonia urbana com uma sequência de imagens documentais e poéticas de sua Nova York num cristalino p&b. A sutileza da forma como anuncia o título (e nada mais que isso), num letreiro luminoso de uma rua qualquer do bairro, prevê a abordagem que será dada aos personagens do filme: todos meras continuações do próprio corpo da cidade. Poesia.
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“Laranja Mecânica”, Stanley Kubrick (1971)
Com total domínio do fluxo narrativo, Kubrick é um craque
das aberturas. "O Grande Golpe", "O Iluminado" e o já citado "2001: Uma Odisseia no
Espaço" são exemplos, mas outro diferenciado neste sentido é "Laranja Mecânica".
Uma música feita em sintetizador começa sobre uma tela vermelha até quase 30
segundos, quando finalmente surgem os primeiros letterings numa tipografia Arial
negritada. Percebe-se, então, que a tal música é uma versão eletrônica da peça “Music
for the Funeral of Queen Mary”, de Henry Purcell, do século XVII. O fundo
vermelho se transforma em azul e, de novo, em vermelho para anunciar o nome do
filme. Até que, num corte brusco, muda para o close da figura andrógena de Alex
(Malcom McDowell), personagem principal da história de Anthony Burgess. Dessa
imagem, Kubrick não corta novamente e, sim, a faz prosseguir num travelling frontal-out
sob o off do brilhante texto que reproduz o fluxo de pensamento de Alex, o qual
situa o espectador do universo de distopia que se verá a partir dali.
****
“Arizona Nunca Mais”, Joel e Ethan Coen (1987)
A abertura do segundo e cativante filme dos irmãos Coen,
quando eles ainda eram uma revelação, no final dos anos 80, é tão criativa, engraçada,
pop e publicitária (no bom sentido), que serve como trailer. A história do assaltante
pé-rapado H.I. McDonnough (Nicholas Cage) contada em off por ele mesmo enquanto
as imagens vão sendo exibidas com a trilha magistral de Carter Burwell – suas idas
e vindas pra cadeia, os personagens bizarros que conhece no caminho – denotam, pelo
brilhante texto, principalmente, seu coração bom. O mesmo que o faz conhecer o
amor de sua vida, a policial Ed (Holly Hunter). Depois, eles resolvem
sequestrar um dos sete bebês da ricaça família Arizona, mas aí é que a história
mesmo começa...
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“Alien: O 8º Passageiro”, Ridley Scott (1979)
Lembrando a abertura de "2001", filme ao qual Scott bastante
homenageia neste revolucionário terror espacial, tem, assim como na obra de
Kubrick, um desenho de cena simples mas muito eficiente. Uma câmera se desloca
no espaço da esquerda para a direita em uma panorâmica enquanto veem-se
manchas brancas surgirem, as quais vão formando numa uniformidade não-sequencial o nome
“Alien” em uma fonte pesada e sem serifa. Não há nos créditos, mas diz que
também é obra de Saul Bass.
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“Monty Python em Busca do Cálice Sagrado”, Terry Gilliam e Terry Jones (1975)
Como avacalhar os créditos iniciais de um filme? O grupo Monty Python tem a resposta. Em “Monty Python em Busca do Cálice Sagrado”, usando praticamente só tipografia e tela preta, eles conseguem subverter tudo que se imagina de uma opening scene. Sob uma trilha austera, os subtítulos são exibidos, até que, bem abaixo, algumas palavras com caracteres escandinavos começam a aparecer. Frases totalmente desconexas como “Não vai ter feriado na Suécia este ano?” ou uma história esquisita de um alce que mordeu a irmã de alguém. Eis, então, que surge um crédito para explicar o erro nos créditos: “Nos desculpamos pela falta de subtítulos. Os responsáveis foram despedidos”. Muda a música, mas as intromissões continuam, e um novo aviso, agora de que os responsáveis por demitir os demitidos também foram demitidos. Já com uma absurda trilha mexicana, a confusão segue até o fim e, com muito “esforço”, conseguem dar o nome dos diretores: Terry Gilliam e Terry Jones, principais responsáveis por essa bagunça toda.
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“007: O Espião que me Amava”, Lewis Gilbert (1977)
Poderia citar vários tanto anteriores ou posteriores a este filme, mas esta de "O Espião que me Amava" se tornou uma referência dentro da própria franquia. A começar que a abertura com créditos nunca está dissociada do prólogo, que sempre começa com a famosa “gun barrel sequence”, em que um vilão qualquer está olhando por uma mira e vê 007 entrar em cena e atirar contra ele. Depois, os minutos de ação, neste caso, mostrando o agente em duas de suas situações comuns: namorando e se aventurando. Já a abertura em si, assinada pelo mestre Maurice Binder, designer gráfico que estabeleceu o estilo das clássicas aberturas dos filmes de James Bond, consolidaria os elementos que caracterizariam para sempre as chamadas iniciais da série: arte figurativa com efeitos de elementos da história, uso da figura/silhueta de figuras e pessoas - como a do próprio ator que faz JB (Roger Moore à época) -, a fonte Arial fina e branca, o disparo de pistola e, claro, uma trilha especial feita para aquele filme, no caso "Nobody Does it Are Bether", com a Carly Simon – das melhores.
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“Crepúsculo dos Deuses”,Billy Wilder (1945)
O sucesso de consagradas comédias como “Se Meu Apartamento Falasse” e “Quanto Mais Quente Melhor” fez com que Wilder ficasse pouco lembrado por outros gêneros como o suspense e o drama aos quais, contudo, ajudou a solidificar um novo padrão de qualidade na Hollywood dos anos 40 e 50. Este clássico do cinema é uma prova de sua versatilidade, o que deve bastante de seu impacto pela forma como inicia. O modo aparentemente fortuito como o título aparece, numa placa indicando o mítico endereço “Sunset Boulevard”, é precedido por uma câmera em travelling filmando o asfalto cinza na direção de algum lugar específico. É onde está o corpo desfalecido do narrador. Sim! Como em "Memórias Póstumas de Brás Cubas", em "Crepúsculo dos Deuses" é o morto, afogado numa piscina, quem está narrando pleno de consciência de seu estado moribundo. Impossível não ter curiosidade de assistir até o fim.
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“Apocalypse Now”, Francis Ford Coppola (1979)
Não há nenhuma palavra escrita dizendo que filme é. Mas nem precisa. O grande plano de uma floresta é aos poucos invadido por helicópteros que cruzam a tela e uma fumaça começa a levantar. Percebe-se, porém, que a fumaça não é de areia, mas, sim, o venenoso napalm. Até que várias bombas caem sobre a mata, provocando gigantescas explosões. A música que toca não podia ser outra: “The End”, da The Doors. É um presságio. É a guerra. É o Vietnã. É “o horror”. Diversas imagens apocalípticas se fundem ao rosto de um homem em close, o personagem principal do filme, o perturbado Capitão Benjamin Willard (Martin Sheen). A sensação de quebra no tempo perfaz todo o longo filme, que perscruta os mais terríveis meandros psicológicos da guerra.
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“Cléo das 5 às 7”, Agnés Varda (1962)
Outra grande esteta do cinema moderno, Varda pautou toda sua filmografia pela inventividade narrativa e estética, a qual passava por um filtro muito pessoal. Em "Cléo das 5 às 7", seu primeiro longa, fica clara esta criatividade seja na forma como no conteúdo. A mesa de uma cartomante é filmada em plongê mostrando somente o baralho e as mãos dela e da cliente. Os subtítulos em branco são gerados conforme a disposição das cartas sob um silêncio que provoca tensão. Que mensagem as cartas vão dizer? E dizem: a jovem Cléo tem apenas 2 horas de vida, o tempo que o filme transcorrerá: das 5 da tarde às 7 da noite. Varda dá um show em montagem e no jogo simbólico entre cor, que aparece somente quando as cartas são lidas (supostamente, enquanto ainda há vida), e p&b, que domina o filme, marcado pela agourenta previsão que atormentará a personagem.
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“A Pantera Cor-de-Rosa”, Blake Edwards (1963)
Um modo interessante de se abrir filmes – e que fecha muito bem para comédias – é a animação. No entanto, como as da série Pink Panther, não tem igual, principalmente a do primeiro da franquia. A atrapalhada mas elegante pantera de cor exótica criada pelo próprio Blake Edwards virou desenho animado para a TV depois do filme tamanho o sucesso que fez exatamente na abertura do filme, assinada pelos designers e animadores David H. DePatie e Fritz Freleng. Aliás, este é o único momento em que ela, fugindo do ainda mais atrapalhado inspetor Jacques Clouseau, aparece, visto que o nome Pantera Cor-de-Rosa é o de uma pedra preciosa na trama. Além da simpatia da Pantera, ainda tem a infalível trilha do genial Henri Mancini, uma música altamente charmosa e de fácil assimilação, tanto que virou o tema de jazz mais conhecido de todos os tempos.
Aproveitando a data comemorativa do Dia dos Pais, lembramos aqui de filmes que, sob enfoques distintos entre si, abordam o tema da paternidade. Produções de diferentes nacionalidades e épocas que, a seu modo, trazem, por conta das peculiaridades culturais e históricas, também diferentes formas de expressão daquilo que é ser pai. Porém, uma coisa fica evidente em todos estes títulos: o amor. Seja incondicional, conflituoso, arrependido, culpado ou manifesto, está lá sentimento que norteia a relação entre eles, pais, e seus filhos.
Fazendo uma panorâmica, vê-se que há menos filmes significativos sobre pais do que de mães. Pelo menos, aqueles em que o pai é protagonista e não simplesmente uma figura acessória. Até por isso, torna-se interessante levantar uma listagem como esta no dia dedicado a eles. Escolhemos 9 títulos, afinal, estamos no dia 9. E detalhe: selecionamos apenas filmes premiados, desde Oscar até premiações estrangeiras ou nacionais. Indicações imperdíveis aos que ainda não viram, lembrança bem vinda aos que, como eu, terão a felicidade de revê-los - de preferência, com seus pais.
PAI PATRÃO, irmãos Taviani (Itália, 1977)
Baseado no romance autobiográfico de Gavino Ledda, conta a
história da dura infância e adolescência do escritor quando, aos seis anos, é
obrigado pelo pai a abandonar os estudos para trabalhar no campo. Todas as suas
tentativas de mudar de vida são abortadas pela ignorância e violência do
patriarca. Aos 20 anos, ainda analfabeto, Gavino acaba entrando para o
exército, onde adquire, enfim, algum conhecimento. Renunciando à carreira
militar, ele volta à sua terra para seguir estudando. No entanto, o choque com
o pai é inevitável.
Explorando a linda paisagem e luz naturais da região da
Sardenha, “Pai Patrão” é um tocante e contundente drama que põe a nu extremos
da relação entre pais e filhos, fazendo-se psicanalítico mesmo naqueles confins
da Itália. O pai (muito bem interpretado por Omero Antonutti) é uma
representação do quanto os instintos do bicho homem falam mais alto quando a
ignorância impera. O amor, existente – e contraditoriamente motor disso tudo –,
submerge diante do medo e da insegurança de uma pessoa despreparada para
aspectos da paternidade. A abordagem dos Taviani é crítica ao ressaltar o
comportamento de vários personagens muito próximo ao de animais. Também,
surpreendem ao desviar em alguns momentos o foco dos protagonistas, mostrando
ações e pensamentos de outros que os rodeiam, evidenciando sentimentos muito
parecidos com os de Gavino e de seu pai.
Gavino, já adulto, encara seu pai: amor e ódio
Palma de Ouro no Festival de Cannes, “Pai Patrão” foi a afirmação
dos irmãos Vittorio e Paolo Taviani como importantes cineastas da
cinematografia moderna italiana a partir dos anos 70, uma vez que tinham como
herança a responsabilidade de fazer jus à obra de gênios já consolidados como
Fellini, Antonioni e Pasolini. Os Taviani, no entanto, cunharam um estilo mais
próximo ao dos neo-realistas, principalmente De Sica, no engenhoso jogo de
grandes e médios com primeiros planos, adicionando a isso um modo sempre muito
peculiar de contar as histórias, este, próprio do cinema moderno.
A FONTE DA DONZELA, de Ingmar Bergman (Suécia, 1960)
Na Suécia do século XIV, um simples casal cristão dono de uma propriedade rural incumbe a filha Karin (Birgitta Pettersson), uma adolescente pura e virgem, de levar velas para a igreja da região. No caminho, ela é estuprada e assassinada por dois pastores de cabras. Quando a noite chega, ironicamente os dois vão pedir comida e abrigo para os pais de Karin, onde são recebidos cordialmente. Porém, ao descobrirem a tragédia, os pais são tomados pelo sentimento de ódio.
Temas recorrentes na obra do sueco, a morte, a religiosidade e a compaixão servem de tripé para essa história magistralmente dirigida por Bergman. O contraste entre luz e sombra da fotografia em preto-e-branco do mestre Sven Nykvist realça, principalmente a partir da segunda metade da fita, a polaridade emocional da trama: bem e mal, Deus e Diabo, brutalidade e candura, vingança e perdão, vida e morte. O dilema recai sobre o pai, interpretado pelo lendário Max Von Sydow (recentemente morto, no último mês de março), que, com o coração dilacerado e pressionado pela mulher a matar os criminosos, perde a cabeça. E sua religiosidade? E a culpa em sujar-se de sangue? E a dor sua e da esposa? Isso aplacará a perda? Como administrar tudo isso?
filme "A Fonte da Donzela"
Vencedor do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro e do Globo de Ouro na mesma categoria, esta obra-prima de Bergman valoriza, como em “Pai Patrão”, os elementos da natureza (água, pedra, sol, terra) como representação dos desafios essenciais da vida, mas difere do filme dos Taviani no tratamento da relação pai-filho. Se no outro a questão centra-se na distância emocional entre os personagens, aqui, é a morte que se impõe como separação. Por este ângulo, mesmo num filme transcorrido na Idade Média, “A Fonte da Donzela” é atualíssimo, pois traz um dilema muito comum na sociedade urbana atual: o de como os pais se posicionam diante da perda de um filho vitimado pela violência. Afinal, trata-se de uma obra incrível e significativa a qualquer época.
STALKER, de Andrei Tarkowski (Rússia, 1979)
Em um país não nomeado, a suposta queda de um meteorito criou uma área com propriedades estranhas, onde as leis da física e da geografia não se aplicam, chamada de Zona. Dentro dela, segundo reza uma lenda local, existe um quarto onde todos os desejos são realizados por quem pisa seu chão. Com medo de uma invasão da população em busca do tal quarto, autoridades vigiam o local e proíbem a entrada de pessoas. Apenas alguns têm a habilidade de entrar e conseguir sobreviver lá dentro: os chamados "stalkers". É aí que um escritor, um cientista querem entrar e contratam um stalker para guiá-los lá dentro. No caminho até o quarto, vão passar por rotas misteriosas e muitas vezes, mutáveis, que simbolizam uma ida ao subconsciente e a verdades de suas próprias naturezas nem sempre afáveis. Acontece que este stalker (Alexandre Kaidanovski) quer salvar a sua filha mutante e desenganada alcançando o misterioso quarto.
Talvez o melhor filme de Tarkowski, “Stalker” é uma ficção-científica hermética e reflexiva sobre o homem e a sua existência, sendo a questão da paternidade a chave para tal reflexão. Trazendo a atmosfera onírica comum aos filmes do russo, vale-se do fantástico de “Solaris” (1971), porém burilando-lhe o cerebralismo existencial. A narrativa, transcorrida num clima de suspensão do tempo/espaço, tem como motor o amor de um pai desesperado em salvar sua filha. Ou seja: assim como em “Solaris”, a percepção difusa da realidade é totalmente explicável pelo estado de angústia vivido pelo protagonista. É como se, participante de sua busca, o espectador também adentre naquele mundo surreal. A sempre brilhante fotografia sombreada, o cenário apocalíptico e o recorrente uso de elementos sonoro-visual-narrativos como a água (símbolo da vida) unem-se ao ritmo muito peculiar, pois contemplativo e poético, de Tarkowski.
Os três homens adentram a Zona, mas é o pai que carrega a motivação mais genuína
Vencedor do Prêmio Especial do Júri do Festival de Cannes de 1980, este filme ímpar na história do cinema alinha-se, em verdade, com outros filmes de arte do gênero ficção científica produto do período de Guerra Fria, em que a noção temporal é imprecisa, a humanidade jaz desenganada, o estado comprometeu-se e os avanços tecnológicos, promessas de avanço no passado, não deram tão certo assim no presente. Haja vista “Alphaville” (Godard, 1965), “Laranja Mecânica” (Kubrick, 1972) e “Fahrenheit 451” (Truffaut, 1966). Esse compromisso de crítica recai ainda mais sobre Tarkowski como cidadão da Rússia, um dos pilares da tensão planetária junto com os Estados Unidos.
KRAMER VS. KRAMER, de Robert Benton (EUA, 1979)
Se já falamos da questão paterna nos confins da Itália rural, na Idade Média e num lugar imaginário, aqui o tema é colocado na modernidade urbana norte-americana. No enredo, Ted Kramer (Dustin Hoffman), leva seu trabalho acima de tudo, tanto da família quanto de Joanna (Maryl Streep), sua mulher. Descontente com a situação, ela sai de casa, deixando Billy, o filho do casal, com o pai. Ted, então, tem que se deparar com a necessidade de cuidar de uma vida que não apenas a dele, dividindo-se entre o trabalho, o cuidado com o filho e as tarefas domésticas. Quando consegue ajustar a estas novas responsabilidades, Joanna reaparece exigindo a guarda da criança. Ted porém se recusa e os dois vão para o tribunal lutar pela custódia de Billy.
“Kramer vs. Kramer” é arrebatador. Começando pelas interpretações dos magníficos Hoffman e Maryl. No entanto, mesmo com o talento que os é inerente, não estariam tão bem não fosse o roteiro contundente, que aprofunda o drama familiar e social aos olhos do espectador. Os diálogos são tão reais e bem escritos, que naturalmente transportam o espectador para situações conflituosas da vida cotidiana, gerando identificação com os personagens. Quantos pais já não foram despedidos do emprego justo no momento em que estava tentando se erguer. E qual pai não ficaria desesperado e sentindo-se culpado por um acidente com seu filho, principalmente quando o acontecido pode ser usado pela mãe para justificar a perda da guarda?
Ted aprendendo e gostando de ser pai
Tamanho êxito como obra não passou despercebido. O filme foi o principal vencedor do Oscar de 1980, abocanhou os de Melhor Filme, Diretor, Ator, Atriz Coadjuvante e Roteiro Adaptado, além de vários Globo de Ouro e outros festivais. Exemplo de drama da cinematografia norte-americana, uma vez que o filme de Robert Benton consegue unir atuações muito bem dirigidas, um roteiro “europeizado”, visto que forte e realista – feito raro em Hollywood – e um enredo tocante, mas que facilmente poderia escorregar para o piegas ou uma enfadonha DR. Filmado no mesmo ano de “Stalker”, traz a figura do pai em um momento de autorreconhecimento desta condição, ao passo de que o filme russo, esta condição já foi compreendida. No entanto, em ambas as produções, a distância entre as culturas são movidas pela mesma busca de um pai pela sobrevivência do filho.
A BUSCA, de Luciano Moura (Brasil, 2012)
Filme brasileiro relativamente recente, renova o olhar para o problema da distância entre pais e filhos (estado inicial e propulsor da narrativa de “Kramer...”) por questões sentimentais não resolvidas ou dialogadas. Theo Gadelha (Wagner Moura) e Branca (Mariana Lima) são casados e trabalham como médicos. O casal tem um filho, Pedro (Brás Antunes), que desaparece quando está perto de completar 15 anos. Para piorar a situação, Theo fica sabendo que Branca quer se separar dele e que seu mentor (Germano Haiut) está à beira da morte. Theo sai em busca do filho sumido, viagem que o impele a se redescobrir e a ressignificar a relação com o filho.
Road-movie muito bem realizado, “A Busca” tem na atuação de Moura, principalmente, a grande força da obra. Ele transmite ao espectador desde a irascibilidade e insensibilidade de um homem controlador e fechado em si próprio até, conforme o trama se desenrola nos lugares que percorre em busca do filho, passar pelo desespero, a frustração, a esperança e o encontro consigo mesmo. Todos estes momentos perfeitos por uma grande solidão emocional, estado ao qual o caminho lhe dá condições de repensar e transformar.
Wagner Moura em etapa do trajeto em busca de seu filho e de si mesmo
Vencedor do Prêmio do Público no Festival do Rio 2012, “A Busca” lembra o recorrente mote narrativo de filmes iranianos, a se citarem “Vida e Nada Mais”, “Gosto de Cereja”, “O Círculo” e “O Balão Branco”. Sempre há algo a se buscar, seja alguém ou algo que não se sabe exatamente ao certo. Metáfora da vida, essa busca simboliza a passagem do tempo e a (mesmo que não acontece durante o filme) inevitável morte, que um dia alcançará a todos independentemente da rota. Essa simbologia ganha ainda mais realce pelo fato de se tratar da genealogia sanguínea, ou seja: a única possibilidade de não-morte. O longa de Luciano Moura reafirma o entendimento de que, mais do que o final, o importante mesmo é o que se faz na jornada.
IRONWEED, de Hector Babenco (EUA, 1987)
Francis Phelan (Jack Nicholson) e Helen Archer (Maryl Streep, olha ela aí de novo!) são dois alcoólatras que vivem mendigando nas ruas tentando sobreviver às lembranças do passado: Ela, deprimida por ter sido uma cantora e pianista cheia de glórias e hoje estar na sarjeta. Já o caso dele é o que tem a ver com o tema em questão: o motivo por viver como um vagabundo é a não superação do trauma de ter sido o responsável pela morte do filho, ao deixá-lo cair no chão ainda bebê 22 anos antes. Ao mesmo tempo, Francis precisa voltar à realidade, e conseguir um emprego para dar um pouco de conforto à companheira Helen, já muito doente e enfraquecida. E o sentimento de pai do protagonista é, ao mesmo tempo, pena e salvação, uma vez que se configura como a única força capaz de tirá-lo da condição de mendicância.
Ainda mais do que “Kramer...”, “Ironweed” é um filme sui generis na cinematografia dos Estados Unidos, e isso se deve, certamente, ao olhar sensível do platino-brasileiro Hector Babenco. Com o aval dos estúdios para fazer uma produção própria em terras yankees após o grande sucesso do oscarizado “O Beijo da Mulher Aranha”, produção financiada com dinheiro norte-americano mas bastante brasileira em conteúdo e abordagem, o cineasta transpõe para as telas – com a habilidade de quem havia extraído poesia do abandono infantil – o romance de William Kennedy e dá de presente para dois dos maiores atores da história do cinema um roteiro redondo. Isso, ajudado pela fotografia perfeita do craque Lauro Escorel e edição de outra perita, Anne Goursaud, responsável pela montagem de filmes com “Drácula de Bram Stocker” e “O Fundo do Coração”, ambos de Francis Ford Coppola.
cenas de "Ironweed"
“Ironweed” levou o prêmio da New York Film Critics Circle Awards de Melhor Ator para Nicholson, embora tenha concorrido tanto a Oscar quanto Globo de Ouro. Babenco foi um cineasta tão diferenciado que, conforme contou certa vez, Nicholson, bastante sensibilizado com o filme que acabara de realizar, procurou-o um dia antes da estreia e pediu para ir à sua casa para o reverem juntos e que, durante aquela sessão particular, segurou bem firme na mão de Babenco e não a soltou até terminar.
À PROCURA DA FELICIDADE, de Gabriele Muccino (EUA, 2007)
Chris (Will Smith) enfrenta sérios problemas financeiros e Linda, sua esposa, decide partir e deixá-lo. Ele agora é pai solteiro e precisa cuidar de Christopher (Jaden Smith), seu filho de 5 anos. Chris tenta usar sua habilidade como vendedor de aparelhos de exames médicos para conseguir um emprego melhor, mas só consegue um estágio não remunerado numa grande empresa. Seus problemas financeiros, inadiáveis, não podem esperar uma promoção nesta empresa e eles acabam despejados. Chris e Christopher passam, então, a dormir em abrigos ou onde quer que consigam um refúgio, como o banheiro da estação de trem. Mas, apesar de todos os problemas, Chris continua a ser um pai afetuoso e dedicado, encarando o amor do filho como a força necessária para ultrapassar todos os obstáculos.
Se é difícil a vida de um pai solteiro na América urbana, como em “Kramer...”, imaginem um jovem-adulto negro e pobre 30 anos atrás? Baseado na história real do empresário Chris Gardner, este comovente filme tem alguns trunfos em sua realização. Primeiramente, o de trazer à luz a superação individual de um negro na sociedade norte-americana e no meio corporativo capitalista, ainda hoje majoritariamente dominado por brancos. Segundo, por revelar Jaden, filho de Will na vida real que, além de uma criança graciosa, é talentoso, vindo a lograr uma carreira de sucesso a partir de então a exemplo do pai, também um talento mirim no passado. Por fim, o êxito de consolidar Will como um dos mais importantes nomes de sua geração, daqueles Midas de Hollywood capazes de fazer brilhar onde quer que ponham a mão.
Will e Jaden: pai e filho no cinema e na vida real
Além de indicações ao Oscar e ao Globo de Ouro, “À Procura da Felicidade” faturou o NAACP Image Award de Melhor Filme mas, principalmente, premiou pai e filho por suas maravilhosas atuações. Will, o Phoenix Film Critics Society Awards. Já o pequeno Jaden levou não só este como o MTV Movie Award de Melhor Revelação. A sintonia entre pai e filho na frente e atrás das câmeras é captada com delicadeza pelo cineasta italiano Gabriele Muccino, que se valeu desta química para transpor para o cinema esta história inspiradora para qualquer pessoa, quanto mais, para um pai.
UP: ALTAS AVENTURAS, de Pete Docter (EUA, 2009)
Carl Fredricksen é um solitário idoso vendedor de balões que está prestes a perder a casa em que sempre viveu com sua esposa, a falecida Ellie. Após um incidente, Carl é considerado uma ameaça pública e forçado a ser internado. Para evitar que isto aconteça, ele põe balões em sua casa, fazendo com que ela levante voo e vá em direção a Paradise Falls, na América do Sul, onde ele e Ellie sempre desejaram morar. Porém, Carl descobre que um “problema” embarcou junto: Russell, um menino de 8 anos.
A divertida e tocante animação, dirigida pelo assertivo Pete Docter (dos dois primeiros “Toy Story” e “Wall-E”), é das mais felizes realizações da Disney/Pixar. Acertos técnicos inquestionáveis como é de costume ao megaestúdio, mas principalmente, no enredo e nas metáforas que suscita. A simbologia do voo como elevação espiritual, da velhice e a proximidade com a morte é uma delas, bem como a casa como representação do corpo e daquilo que há no interior de cada um. Mas a trama toca também na questão da amizade, da lealdade e da paternidade, mas não necessariamente sanguínea. O ranzinza Carl, contrariado de princípio com a presença de Russell, vai se afeiçoando ao menino e compreendendo a importância do papel e da figura para este de um pai, o qual, ocupado com sua vida, pouco lhe dá atenção. As altas aventuras vividas por eles provam o quanto o pai também pode ser o que adota. Não no papel, mas no sentido mais emocional da palavra. Com o coração. O garoto, por sua vez, traz para o melancólico cotidiano de Carl, além de confusões – afinal, criança dá trabalho também – vida. Ah, e nisso inclui também a tiracolo um cãozinho, o simpático (e falante!) Dug.
O trio impagável de "Up": paternidade de quem adota com o coração
“Up” ganhou Oscar e Globo de Ouro de Melhor Filme de Animação e Melhor Trilha Sonora (Michael Giacchino), e chegou a concorrer a Oscar de Filme com títulos como “Guerra ao Terror” (vencedor), “Bastardos Inglórios”, “Avatar” e “Preciosa”, um feito para uma animação que seria igualado apenas por “Toy Story 3”, um ano depois. Uma qualidade do filme é que, devido à sua abordagem fantástica e resolução da trama, dificilmente terá uma continuidade, que, assim como acontece com várias outras animações, seguidamente entregam a primeira realização pela inconsistência e pela mera repetição caça-níquel. Vale muito também a pena assistir a versão brasileira dublada, que tem Chico Anysio impagável como Carl Fredricksen em um dos últimos trabalhos do humorista antes de morrer.
RAN, de Akira Kurosawa (Japão/França, 1985)
Adaptação de “Rei Lear”, de William Shakespeare, retrata de forma épica e brilhante o Japão feudal do século XVI, onde um velho senhor da guerra Hidetora, patriarca do clã Ichimonji (Tatsuya Nakadai), renuncia ao poder, entregando o seu império e conquistas aos três filhos: Taro, Jiro e Saburo. Tarô, o mais velho, seguindo a tradição do patriarcado japonês, torna-se o líder do clã e recebe o Primeiro Castelo, centro do poder, ficando Jiro e Saburo, respectivamente, com o Segundo e o Terceiro Castelo. Hidetora retém para si o título de “Grande Senhor” para permanecer com os privilégios Contudo, ele subestima como o poder recém-descoberto dos filhos irá corrompê-los e levá-los a virarem-se uns contra os outros.
Obra-prima, “Ran” é mais uma adaptação de Shakspeare que Akira Kurosawa promoveu de forma pioneira no cinema japonês – assim como para com outros autores não-orientais como Dostoiévski, Gorky e Arsenyev. Porém, desta vez em cores, diferentemente do que fizera em 1957 adaptando “Macbeth” em “Trono Manchado de Sangue”, o que amplia a magnífica fotografia em grandes planos, o desenho de cena primoroso, os figurinos em que os tons simbolizam estados psicológicos e cenografia que remete ao milenar teatro japonês.
trailer de "Ran"
“Ran” levou o Oscar de Melhor Figurino e concorreu a Melhor Direção de Arte, Fotografia e Diretor, sendo a primeira e última vez que Kurosawa seria nomeado pela Academia. A tragédia teatral ganha uma dimensão ainda mais bela na tela grande, mais do que adaptações anteriores da mesma peça, ao retratar os desacertos internos dos Ichimonji, evidenciando um problema recorrente em famílias poderosas, que é a briga pelo poder e o desafio à autoridade e figura do pai. Numa produção digna do anseio de seu realizador, "Ran" revela conflitos e sentimentos muito genuínos como inveja, cobiça e orgulho e questionando a ancestralidade como formas de manutenção (ou não) do sangue.
Daniel Rodrigues com colaborações deLeocádia Costa e Cly Reis