Deve ter sido delicioso aos que, pelo menos por algum período, puderam acompanhar
just-in-time a filmografia de algum
grande diretor do passado. No caso de Alfred Hitchcock, por exemplo: o mestre
do suspense superava-se a cada produção que lançava, reelaborando às vezes a
mesma ideia ao longo do tempo, desde a fase inglesa (anos 20 e 30), passando
pelos primeiros anos nos Estados Unidos (década de 40) até chegar às
obras-primas definitivas (50 e 60). É perceptível que a confusão no teatro
lotado de “Os 39 Degraus” (1935) se repetira em “Cortina Rasgada” (1962), ou o
mesmo tenha ocorrido com a cena da escada de “Suspeita” (1941) e, depois, na
clássica de “Psicose” (1960), a que Norman Bates mata o detetive. Dois exemplos
de um realizador que soube como poucos reciclar suas próprias ideias e
progredir constantemente.
Dadas as devidas dimensões, os espectadores e cinéfilos de hoje podem gozar
dessa sensação quanto ao cinema de Alejandro González Iñárritu. Ele, que começara em alto nível com a trilogia “Amores
Perros” (2000), “21 Gramas” (2003) e “Babel” (2006), resvalou um pouco no
hiperbólico “Biutiful” (2010) mas logo retomou-se com o labiríntico "Birdman" (2014), Oscar de melhor filme do ano passado. Agora, o cineasta mexicano,
aproveitando com parcimônia elementos de todas as suas realizações anteriores,
avança em estilo e estética e lança o filme que certamente é sua obra-prima até
então: “O Regresso”. Dos favoritos
para levar o mesmo prêmio que “Birdman”, é a produção de mais indicações este
ano, 11 no total, tendo ainda grandes chances à estatueta em Melhor Ator, com Leonardo DiCaprio, e em Direção, com o próprio Iñárritu.
O filme, baseado numa história verídica (sobre o romance de Michael
Punke) situa-se na primeira metade do século XIX e conta a história de Hugh
Glass (DiCaprio), um forasteiro que parte com seu filho para o oeste americano
disposto a ganhar dinheiro caçando. Atacado por um urso na floresta, fica
seriamente ferido e é abandonado à própria sorte por um dos parceiros, John
Fitzgerald (Tom Hardy, digno de Oscar também), o qual ainda mata seu filho.
Entretanto, mesmo com toda adversidade, Glass consegue sobreviver e inicia uma
árdua jornada em busca de vingança. Dado a personagens fortes, o talentoso
DiCaprio, provavelmente o melhor ator de sua geração, se esbalda no papel. É
impressionante vê-lo na pele de Glass nas cenas de solidão desafiando a
natureza opressiva e ainda doente, com dor, fome e dilacerado por dentro pela
brutal perda do filho.
Com a ajuda de um elenco afinado e de uma fotografia acachapante (de Emmanuel
Lubezki, impecável tanto nos grandes planos quanto nos fechados), Iñárritu
compõe um filme extremamente intenso, porém rigoroso. Nada está fora do lugar,
nem mesmo a intensidade. Do roteiro (Iñarritu e Mark L. Smith) ao figurino, da
cenografia à edição de som, da trilha sonora – do mestre Ruiychi Sakamoto – à montagem (Stephen Mirrione). Tudo é muito exato, porém, sem recair no artificial, comum
ao tecnicista cinema norte-americano. Afinal, está se falando de um esteta do
cinema da atualidade. Estão preservados vários elementos estilísticos que já se
tornaram marcas de Iñárritu: sua câmara andante, contemplativa e participativa,
o estreitamento entre civilização e barbárie, o limite entre vida e morte, o
contato com o etéreo e, mais do que tudo, o animalesco instinto de
sobrevivência do bicho homem.
Com esse suco, o diretor cria um western
estilizado em que a carga emocional é permanente, mas muito bem conduzida.
Diferentemente de outros filmes seus, em “O Regresso” Iñárritu, tão louvado
pela linguagem inovadora, vale-se sem embaraço de uma narrativa clássica. E não
poderia ter sido a melhor escolha, pois o enredo se presta a isso. Neste caso,
a estrutura tradicional do cinema preenche o enredo, prescindindo da
dificultação intrínseca à linguagem moderna. Com uma trama em que os
personagens são apresentados de início e partindo de um problema, gera-se uma
“crise” na história que faz com que os caminhos se diluam e se dificultem. Esse
problema de resolução complicada é vencido pouco a pouco pelo personagem
principal, gerando tensão à história, até que este chegue a seu objetivo. Não
muito diferente de milhares de filmes nesta linha, o clímax é uma vingança. A
construção dos personagens também respeita isso: há o herói com mais qualidades
que defeitos e que, embora bruto, é movido por sentimentos genuínos. Em
contrapartida, o vilão é tomado de inveja e maldade, enquanto há aqueles que,
por não penderem nem a um nem a outro, cumprem a função de dar o contrapeso. Como
na vida. Entretanto, até nisso é dado um teor diferenciado. Seguindo a
abordagem realista que permeia toda a história, os índios não são nem os perversos
dos bang-bangs enlatados nem idiotas
indefesos. São, sim, mostrados como a História os deve ver: um bravo povo
dizimado pela gananciosa civilização do homem branco.
É interessante notar a maturidade adquirida por Iñárritu no transcorrer
de sua filmografia. Este começou com três filmes de tramas corais, quase novelas,
bastante alicerçadas no roteiro do conterrâneo Guillermo Arriaga. Em
“Biutiful”, quando tenta emancipar-se do parceiro de escrita, escorrega
principalmente neste quesito, exagerando na dose de dramaticidade. Não repete o
erro e, ainda por cima, realiza o inesperado e ousado “Birdman”, em que
apresenta uma narrativa totalmente contemporânea e igualmente distinta da
utilizada em seus primeiros filmes. Assim, em “O Regresso” Iñárritu pinça com
inteligência feições de todas as suas obras anteriores, porém, sem deixar com
que este perca personalidade. De “Biutiful”, está o aspecto espiritual do
protagonista, que mantém contato constante com a esposa morta e, depois, com o
filho. Até o enquadramento e o conceito fotográfico da tomada da copa de
pinheiros altos com fumaça e cinzar no ar sob a neve é parecida. De “Birdman”,
mesmo sendo o que mais se difere de “O Regresso” entre suas obras, é visível
que a câmera na mão, ligeira mas firme e de ritmo humano, é novamente um
personagem a mais na trama. Da trilogia
inicial, também: no segundo quadrante do filme criam-se quatro histórias
paralelas: Glass tentando voltar; os companheiros já chegados ao forte;
Fitzgerald e um comparsa a caminho; e o grupo de franceses trapaceando os
índios. De “Amores Perros”, em especial, a equiparação bicho x homem é ainda mais clara. Um pouco de cada um dos cinco
anteriores, mas principalmente do próprio “O Regresso”.
A impactante e real cena do ataque do urso.
Outro fator-base da história, também largamente usado no cinema
clássico – mas de fácil ocorrência de erros –, são os elementos da natureza simbolizando
os narrativos. A atmosfera selvagem não é apenas mostrada permanentemente
através da fotografia, inóspita e desafiadora, mas num conceito amplo em que o
homem é apenas mais um componente dentro daquele universo, assim como os animais
e as intensas intempéries. Os sentidos estão todos despertos. Do tato, a
umidade, o frio, o calor, a dor. Da audição, o zumbido do vento, o ofego do
respirar, o estrondo das quedas d’água, os ruídos da mata. Tudo se mistura e se
integra com muita propriedade à edição de som e à trilha sonora, igualmente
inserida com lucidez e sem excessos. Tudo é vivo, o que faz com que tudo seja também
morte. Dessa forma, Iñárritu se utiliza do ambiente natural e dos sentidos não
como adereço, mas numa constante construção dos personagens e da narrativa. Glass,
por exemplo, durante o seu regresso e ainda tentando se recuperar da surra do
urso, põe sobre os ombros uma pele justamente deste grande mamífero, como se
assumisse o papel do bicho. Antes mesmo, quando, muito debilitado, assiste a Fitzgerald
matar seu filho sem poder fazer nada e espuma saliva pela boca, a mesma que o
próprio urso deixa escorrer sobre seu rosto quando o ataca, pois o fazia pelo
mesmo motivo que movia Glass: proteger sua cria. Homem e animal: nenhuma
diferença.
DiCaprio, atuação para Oscar novamente.
Essa cena, aliás, é altamente impactante e merece destaque. Feita com
um urso de verdade, o mais impressionante é que o ator também é de verdade.
Sim, não é um dublê: é o próprio DiCaprio, inteiro dentro do personagem. Mesmo
contracenando com um animal adestrado, ele saiu bem machucado pelo que se tem
notícia. Valeu o esforço. Certamente é das cenas mais célebres dos últimos 20
anos, junto com a chuva de sapos de “Magnólia” ou o acidente no ringue com a
lutadora de “Menina de Ouro”. Daquelas que entra para a seleta lista de cenas
inesquecíveis do cinema mundial. Mas não apenas essa: o filme é uma sucessão de
grandes momentos e sequências, várias daqueles de tirar o espectador da
poltrona, como o ataque indígena do início, a fuga de Glass sobre o cavalo e,
obviamente, o duelo final, cujo requinte da montagem remete ao tempo fílmico de Sergio Leone e John Ford. Chega a ter parecença com o tradicional ritmo de Quentin Tarantino, que o próprio muito se valeu no seu último longa, "Os Oito Odiados", também um western eque guarda-lhe também semelhanças
estéticas. Diferentemente do filme de Tarantino, cujo proveito do máximo das
sequências e dos diálogos o tornam de fato por vezes arrastado, em “O Regresso”,
por conta da conjunção do tom realístico e da estrutura clássica da narrativa,
os tempos de tensão e distensão estão perfeitos. Simbolizam, em última
instância, a luta eterna entre o calor e o frio, entre o fogo e a água, entre o
som e o silêncio, entre o bem e o mal. Entre o espaço e o tempo.
É o próprio tempo que, já fora da tela, poderá aligeirar-se no que
tange a premiar Iñárritu dando-lhe a primazia jamais alcançada por ícones como
William Wyler, Elia Kazan e Billy Wilder: o de levar o Oscar de Diretor em dois
anos seguidos – feito obtido por apenas dois craques desde 1929: John Ford e Joseph
L. Mankiewicz. Ou, contrariamente, o mesmo tempo venha a reconhecer com atraso
DiCaprio, merecedor da estatueta há bastante tempo, seja em filmes que
concorreu (“O Aviador”, “Diamante de Sangue”, "O Lobo de Wall Street") ou não
(“Django Livre”, “J. Edgar”). Além destes, “O Regresso” desponta como favorito
para levar ainda Filme, Ator Coadjuvante, Fotografia e Edição de Som. O
reconhecimento no prêmio Bafta anteviu isso. Afinal, não se trata apenas da
melhor produção de 2016: é, sim, um dos grandes dos últimos 10 ou 15 anos. Pode-se
colocá-lo tranquilamente ao lado de títulos como “A Vida dos Outros”, "Guerra aoTerror" e “Ida”. Daqueles que vem para entrar para a lista dos essenciais do
cinema, porque o tempo (novamente ele) é quem o dignificará para a eternidade.
Ganhe o Oscar ou não.
E dizer que eu virava a cara para Sergio Mendes... Visão totalmente equivocada a minha, como se, para ser músico, precisasse necessariamente ser um prolífico compositor. De fato, esso não é o caso de Mendes, pianista que erigiu sua carreira em grande parte sobre o repertório de outros autores elaborando engenhosos arranjos que unem sofisticação harmônica à satisfação pop. Foi isso que ele fez com maestria em temas como “Mais Que Nada”, do Jorge Ben, “Água de Beber”, de Tom Jobim e Vinícius de Moraes, e "Fool on the Hill", dos Beatles, por exemplo, para citar três clássicos de seu cancioneiro. Mas parecia-me insuficiente, pois dava-me a impressão de que tanto sua obra era menor por causa disso quanto seu êxito se dava justamente pelo critério muitas vezes simplista do público norte-americano. Superados meus preconceitos e já admirador da obra de Mendes há algum tempo, assisti com muito prazer a “Sergio Mendes no Tom da Alegria”, documentário dirigido e roteirizado por John Scheinfield, premiado documentarista norte-americano afeito aos registros audiovisuais de músicos como John Coltrane, Herb Albert, John Lennon e Bing Crosby.
A produção gringa, no caso de Mendes, se justifica plenamente. Desde que o Regime Militar o afugentou do Brasil dias após o Golpe de 1964, o músico, que já tinha contatos e nutria certo respeito na terra de Charlie Parker já da época em que a bossa nova estourara por lá no início dos anos 60 (havia gravado, em 1963, por exemplo, um disco em parceria com Cannonball Adderley), decide fazer as malas e seguir carreira por lá. E dá muito certo. Depois de alguma batalha inicial na nova terra, sua inteligência musical o condicionou a criar a Brasil 66, banda que contava com músicos brazucas e ianques e com a qual gravou nove discos entre 1966 e 1971 de estrondoso sucesso. Com o grupo, Mendes juntava a brasilidade do samba e a levada do jazz e da soul, criando um híbrido até então inédito que virou cult. Os gringos, desde então, o reverenciam - até mais do que os brasileiros. Nessa lista de admiradores, estão Quincy Jones, Herb Albert, Lani Hall, John Legend e Black Eyed Peas.
Mendes e sua Brasil 66:a música brasileira ganha os EUA
A abordagem do documentário se dá pelo olhar estrangeiro, mas mantém o tempo todo ligação com o Brasil. Isso porque, mesmo tendo se integrado tão bem ao mercado norte-americano, sua música e referências sempre foram essencialmente brasileiras e latinas. Aliás, isso é o que lhe diferenciou num momento pós-bossa nova em meados dos anos 60, quando mundo ansiava por uma continuidade ao caminho aberto por Tom, João Gilberto e outros. Como dizem Nelson Motta e Boni em depoimento, o sentimento com relação à Mendes à época em que ele começara a fazer sucesso nos Estados Unidos era o de que ele havia “vencido”, ou seja: um brasileiro que conseguira achar a química certa para levar a cultura do Brasil mundo afora sem deturpá-la, e sim, adaptando-a. Entre os feitos de Mendes está o de praticamente ter sido o primeiro artista do mítico selo A&M Records, então iniciante e pelo qual o próprio Tom gravaria anos mais tarde discos históricos da segunda fase da bossa nova.No que toca ao filme, essa visão de fora tem suas vantagens e desfavorecimentos. O que não é tão bom é o tom meio didático, principalmente do início da fita, quando é necessário explicar “o que é bossa nova” ou “o que foi o Golpe Militar”, o que, ao invés de ampliar o entendimento, resultam numa generalização um tanto superficial. Não que um documentário não deva explicar, mas é possível partir de um ponto menos simplório. Porém, nada que comprometa, até porque as virtudes do longa compensam, como a disponibilidade de um rico material audiovisual e fotográfico – o apreço documental que norte-americanos têm muito mais em relação a várias outras nações, a começar pela brasileira – e, principalmente, o acesso a entrevistados. Não que seja impossível a uma equipe brasileira chegar a fontes estrangeiras – vejam-se os docs “Milton Nascimento: Intimidade e Poesia” e "O Dia que durou 21 Anos", exitosos nesta ponte EUA-Brasil – mas, convenhamos: quem mais conseguiria com facilidade que alguém como o ator Harrison Ford (responsável, no início da carreira, pela construção do estúdio de Mendes em Los Angeles) desse depoimento que não fosse conterrâneo seu? Fora isso, é mais fácil agregar à obra fontes do Brasil estando nos Estados Unidos do que o contrário.
“Sergio Mendes no Tom da Alegria”- trailer
Essa fronteira entre EUA e Brasil que o filme se põe ao documentar um artista com um pé em cada extremo da América também traz coisas curiosas. A visão dos norte-americanos é a principal delas. Muito bonito de ver, por exemplo, a reverência de Quince e Will.I.Am ao colega brasileiro. Este último, inclusive, faz um comentário interessante próximo ao fim do longa, quando, falando da longevidade do trabalho de seu ídolo, diz que, durante sua trajetória, vários presidentes entraram e saíram e ele continua ativo. Will.I.Am´, porém, está referindo-se a presidentes dos Estados Unidos e não do Brasil, raciocínio que, obviamente, só poderia vir de um norte-americano.
Numa narrativa um tanto comum, mas eficiente, “Sergio Mendes no Tom da Alegria” faz uma louvação aos então 80 anos que o artista completara em 2020, pontuando momentos em que este, um apaixonado pela música, reinventou-se. Invariavelmente com um sorriso cativante no rosto, é o próprio Mendes que conta sobre a adaptação inicial a outro país e mercado, a composição do megassucesso AOR “Never Gonna Let You Go”, cantada por Joe Pizzulo e Leza Miller nos anos 80 (sim, é de Mendes!), o renascimento com o disco “Brasileiro”, nos anos 90, a sua redescoberta pela nova geração dos últimos 20 anos para cá e a indicação ao Oscar de Melhor Trilha Sonora por "Rio". Tudo feito com um homenageado em vida, participativo e lúcido, outro bom exemplo que podíamos copiar mais dos norte-americanos.
Sergio Mendes e seu sorriso contagiante: 80 anos de amor pela música
Quentin Tarantino ataca outra vez. Seu autointitulado oitavo filme “Os Oito Odiados” merece uma rápida
reflexão. Pra começar, o diretor volta ao Oeste – que foi retratado em “Django
Livre” – e se utiliza de alguns símbolos do gênero, como a música de Ennio Morricone (inferior à de clássicos como as partituras compostas para Sergio Leone) e a utilização do 70 mm Panavison como antigamente, deixando a tela
cheia.
Como sempre, Quentin se esforça para subverter os cânones do gênero. Ao
invés das pradarias verdejantes dos westerns
de John Ford, vemos uma paisagem insólita, coberta de neve, que vai percorrer
toda a projeção. Os personagens não estão divididos entre mocinhos e bandidos.
Todos são foras-da-lei. Novamente, ele se preocupa em usar o racismo, tão
presente em “Django Livre”, e especialmente a misoginia. Samuel L. Jackson é o
Major Marquis Warren, caçador de recompensas que carrega os cadáveres, enquanto
seu “colega” John Ruth – maravilhosamente interpretado por Kurt Russell –
prefere levar os condenados vivos. No caso, a condenada Daisy Domergue
(Jennifer Jason Leigh, num daqueles papéis destinados pelo diretor para
reavivar carreiras, como realizado com Pam Grier e Robert Forster).
A paisagem insólita e opressiva é um dos elementos da narrativa.
Interessante é que sem querer estragar as inúmeras surpresas que o
roteiro em capítulos permite, “Os Oito Odiados” traz no centro de sua trama a
figura feminina de Daisy, envolvida numa grande confusão quando os personagens
ficam todos isolados em um armazém no meio do nada em Wyoming. Tarantino usa o
exíguo espaço como um palco de teatro, onde os personagens vão se apresentando
uns aos outros e tudo chega a um clímax muito antes do final. Como ele havia
feito em "Bastardos Inglórios", na famosa cena do bar quando os soldados americanos
são confrontados por um oficial alemão e tudo termina em carnificina.
Narrando um flashback, o
diretor desvenda o mistério e transforma o banho de sangue em uma espécie de
anticlímax, quando o espectador fica se perguntando “qual será o ‘coelho’ que ele vai tirar da cartola para resolver a
trama?”. Só posso dizer que a justiça é feita. Todos os atores em cena têm
seus momentos de brilho. Destaque especial para o veterano Bruce Dern –
redescoberto em "Nebraska" - usado como um dos personagens mais reacionários em
cena, o General Sandy Smithers, que dizimou uma tropa de negros durante a
Guerra de Secessão. Pode-se dizer que Tarantino escalou Dern, um reconhecido
rebelde de Hollywood, num papel exatamente o oposto da personalidade do ator. O
diretor também coloca em cena seu elenco de preferidos como a dublê Zoe Bell,
Michael Madsen e Tim Roth (lembram dele sangrando durante todo “Cães de
Aluguel”?).
Russel, de atuação destacada.
O banho de sangue sempre presente em seus filmes ganha um status de
quase caricatura em “Os Oito Odiados”. Para resolver o imbróglio, Tarantino faz
uma autocitação, usando o prólogo de “Bastardos Inglórios” para introduzir o
personagem do galã Chaning Tatum, aqui quase irreconhecível. A fotografia de
Robert Richardson, velho companheiro de Tarantino, valoriza cada canto da
cabana onde os personagens ficam isolados. A direção de arte consegue recriar o
ambiente daqueles armazéns do velho oeste e os efeitos especiais valorizam a
violência proposta pelo diretor.
Aqui no Brasil, não há intervalo, como nos Estados Unidos, o que não
permite ao espectador um segundo de folga. De uma maneira geral, a crítica não
tem gostado de “Os Oito Odiados”, reclamando de sua duração, de passagens
dispensáveis no roteiro e dos diálogos nada inspirados. Se um dos trunfos do diretor
em trabalhos anteriores era a conversa, sempre afiada, irônica e demolidora,
aqui parece ter se estendido em demasia e se utilizado do termo racista “nigger” uma centena de vezes, reforçando
o preconceito. Um trabalho menor na filmografia de Quentin Tarantino, “Os Oito
Odiados”, mesmo assim merece ser visto.
“José Mojica, mestre do terror e dos espaços profundos.”
Glauber Rocha
“Sua câmera não mente jamais e confirma o desejo de reinventar o gênero horror com uma deformação formal, que só se encontra em alguns verdadeiros pioneiros”.
Rogério Sganzerla
Nas primeiras décadas do século XX, alguns dos cineastas que
ajudaram a construir a linguagem do cinema o fizeram com muita criatividade e
intuição. Passados os pioneiros anos em que Griffith e Méliès abriram os
portais daquele mundo de imaginação, foi a vez de outros realizadores, principalmente
Vidor, Hitchcock, Lang, Sternberg e Clair, desvelarem aquela pedra bruta.
Com recursos tecnológicos e financeiros geralmente parcos de um período de entre-Guerras,
era a inventividade em criar soluções, trucagens e métodos que os fazia obter o
resultado que pretendiam em frente à câmera e... ação! Estava feita a magia.
As décadas se passaram e os polos produtores e escolas de
cinema foram assimilando a gramática audiovisual de maneira formal e técnica.
Porém, o primitivismo criativo, algo genial e admirável em qualquer realizador,
inclusive nos mais estudados, é ainda mais valioso quando surtido com
espontaneidade. Caso do já saudoso José Mojica Marins, morto no último dia 19
de fevereiro. Eternizado como seu principal personagem, o assustador coveiro Zé
do Caixão, o diretor – um autodidata que mal tinha o primário concluído, quanto
mais um curso de cinema – alinha-se a este time de cineastas cuja linguagem
cinematográfica lhe era natural e transbordante.
Mojica como Zé do Caixão à época de "À Meia Noite..."
À margem do mainstream, Mojica firmou seu nome pela via do cinema marginal. Independente e amador, ele não produzia para nenhum grande estúdio e penava
para financiar seus projetos, mas seu cinema de terror bizarro inspirado nos B
Movies e, igualmente, calcado no noir e no western norte-americanos e seus
grandes estetas – Orson Welles, John Ford, Howard Hawks, John Huston – driblava qualquer escassez de recursos. Esmerava-se nos roteiros e tinha uma técnica intuitiva apurada para a fotografia, a edição, a construção de personagens e a condução narrativa. Assim foi por toda sua carreira, “fazendo chover” mesmo com
baixos orçamentos, a exemplo dos celebrados “À Meia-Noite Levarei Sua Alma” (1964),
“Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver” (1967) e “O Estranho Mundo de Zé doCaixão” (1968).
Duas exceções, entretanto, mostram que, nas raras ocasiões
em que teve recursos para produzir melhor, Mojica não desperdiçava. Um deles é,
justamente, seu último longa, de 2008, “Encarnação do Demônio”, produzido por
Paulo Sacramento e no qual, após mais de seis décadas de carreira transcorridas,
finalmente conseguiu fazer um filme nos moldes do que sempre sonhou. O outro
título de sua extensa filmografia em que se vale de uma produção digna é
“Exorcismo Negro”, de 1974 (ano em que havia ganho dois prêmios na França, L’Ecran Fantastique e Tiers Monde). Produzido por Aníbal Massaini Neto – financiador de
pornochanchadas, mas responsável também por bons longas históricos como “Independência
ou Morte” e “Corisco, o Diabo Loiro” –, tem poucas locações, menos de 15 personagens
e alguns figurantes. Se não se trata de uma superprodução, é suficiente para o
diretor estabelecer um padrão de qualidade, que coloca “Exorcismo Negro” entre
os seus melhores.
Na história. na onda do então recente sucesso de “O Exorcista”, de um ano antes, Mojica
viaja para passar o Natal com os amigos num sítio onde vivem e escrever a
história de seu próximo filme. No entanto, coisas misteriosas começam a se
suceder na casa, com seus amigos sendo possuído por alguma força sobrenatural. Ele
descobre que a matriarca da família fez, no passado, um acordo com a bruxa Malvina
para engravidar e salvar seu casamento. Em troca, Malvina deve indicar o filho
do Satanás, Eugênio, para se casar com a menina. Além disso, Mojica entra em
conflito com o próprio Zé do Caixão, que está pronto para recolher as almas
daquela família. Como é peculiar de Mojica, a autorreferência e o jogo de
sentidos para com seu alter-ego dão à obra um ar metalinguístico, assim como já
havia proposto em “O Despertar da Besta” e “O Estranho Mundo...”
Mojica com a família de amigos em "Exorcismo...": tensão o tempo todo
O versátil Jofre Soares sendo acometido pelo espírito de Zé do Caixão
Possessão e exorcismo: influências do recente sucesso de "O Exorcista"
“Exorcismo...” traz um manancial de referências obrigatórias
a filmes de horror: a casa assombrada, objetos que se movem sozinhos, corpos
sendo tomados por espíritos malignos, bichos peçonhentos, mistérios familiares
que vem à tona, erotismo grotesco, um animalzinho de estimação judiado e uma
criança cuja inocência é ameaçada pelo mal. Porém, mais do que uma sucessão de
clichês, o filme tem a qualidade de que tudo é tecnicamente bem realizado: efeitos
especiais, cenas de briga, trucagens com sangue, cenografia, corte da edição. Diferentemente
do que se viu por muito tempo no cinema nacional e que se tornou-lhe,
inclusive, uma pecha. Merece atenção especial, entretanto, a fotografia (quesito
no qual Mojica sempre foi irreparável), que concilia a dureza da sombra marcada
e a coloração que capricha nos tons quentes – principalmente, claro, no
vermelho-sangue. Igualmente, não apenas o uso bem articulado da trilha sonora,
outra conhecida qualidade do diretor, como, também, da própria seleção das
músicas, como as de Syd Dale, Daniele Amfitheatrof e Michel Magne.
Cena do ritual: apavorante e na medida certa
Mas, além disso, o ritmo de “Exorcismo...” é perfeito. Aquilo
que é um problema em alguns filmes de Mojica, fruto justamente da dificuldade de
produção que invariavelmente enfrentava, a continuidade é um trunfo deste
longa. A narrativa mantém a tensão e dá sustos do início ao fim. A chegada do
personagem Mojica à casa dos amigos, por exemplo, é sucedida por uma série de
acontecimentos aterrorizantes, que não deixam o espectador descansar. A
sequência do ritual macabro, excessivamente longa em outras realizações do
cineasta (“Delírios de um Anormal” e na reedição estendida de “O Despertar...”),
aqui está na medida exata entre a alucinação vivida pelo personagem e o ritmo
narrativo, que não cansa quem assiste.
Premiado internacionalmente, celebrado por referências como
Glauber Rocha, Gustavo Dahl e Rogério Sganzerla e, bem mais tarde, descoberto
pelo mercado norte-americano, que o intitularia como Coffin Joe. Nada foi
suficiente para que Mojica vencesse as restrições ao seu trabalho por quase todo
o período em que esteve ativo, dos anos 40 até o século XXI. Nos anos 80, espremido
pela censura e pelo sistema, partiu para o cinema pornô, que ao menos lhe daria
alguma grana. Pouco antes de conceber seus últimos filmes, já nos anos 2000,
Sganzerla escrevia sobre o amigo e admirado cineasta: “Além de nunca ter
recebido nem adiantamento, quanto mais condições de produção compatíveis com
seu talento, não filma há 15 anos, sendo vítima do descaso, inépcia,
irresponsabilidade ou talvez preconceito”. Pouco visto em seu próprio país, “Exorcismo...”
é, certamente, um dos melhores filmes de terror da década de 70 – rica neste
gênero, aliás. A se ver por este resultado, imagine se Mojica tivesse recebido
o devido reconhecimento em vida?
Estive, dia desses, visitando a exposição "50 anos do Realismo" e é verdadeiramente impressionante a sensação que transmitem as obras expostas. As esculturas são assombrosamente reais nos mínimos detalhes da anatomia humana, mas as pinturas, óleos e acrílicas, foram as que mais me impressionaram sendo quase impossível dizer que não seriam fotos antes de um olhar mais atento e aproximado quando se consegue, aí sim, observar as pinceladas e a técnica de pintura. A mostra que traz cerca de 100 obras das últimas cinco décadas, entre pinturas, esculturas, vídeos e instalações interativas, de 30 artistas brasileiros e internacionais faz um recorte inédito da realidade na arte e apresenta além dos espaços destinados a obras tridimensionais de escultores de diferentes gerações do hiper-realismo, modelos em 3D e espaços de interatividade e realidade virtual. Vale a pena visitar e ficar impressionado com a perfeição dos trabalhos.
Já no saguão de entrada, a primeira das
esculturas que impressionam pela riqueza de detalhes.
Foto? Não!!!
Uma impressionante pintura a óleo.
("Close-up", Simon Hennessey)
Mais um óleo inacreditável:
"No Parking", de John Salt
As cenas urbanas corriqueiras de Ralph Goings,
aqui, pessoas em uma lanchonete.
Ralph Goings novamente na aquarela Ford Preto, de 1975
A paisagem rural de Richard McLean e ao lado o detalhe
no qual, aí sim, podemos notar a pincelada
A série bastante "simples" mas de efeito incrível,
de Sven Drül, "S.D.E.T."
O brasileiro Pedro Campos com seu "Um Dia Quente", de 2008,
óleo sobre tela.
Outro óleo de Pedro Campos que impressiona pelas cores.
Série de crítica ao capitalismo de Tom Martin
David Kessler pintando em acrílico sobre alumínio e madeira
E essas ondas? O que dizer?
Óleo sobre tela de Antonio Titakis
A luz do dia e a passagem do tempo
O edifício Flatiron, acrílica sobre compensado de Andres Castellanos
Mias uma impressionante paisagem feita a óleo.
Vista invernal para o exterior de um shopping.
Belíssimo nu de Simon Hennessey
"Daquilo que conduz ao anímico", óleo sobre tela
de Fábio Magalhães
Trabalho incrível, meio acrílico, meio grafite
Desenho a lápis de Paul Cadden,
"Reflexões sobre ter deixado um lugar"
As tatuagens saltam do corpo e a figura salta da tela.
O sono retratado por Craig Wylie.
"Conjuntura", óleo sobre tela, de 2008
"Sozinho", escultura de Giovanni Caramello
"Diálogo", também de Giovanni Caramello
Escultura de John Deadre de mãe com o filho no colo.
A perfeição é absurda!
No detalhe, o rosto da criança.
"Christine", de John Deandrea,
com o detalhe do rosto, ao lado.
No saguão, na saída, uma obra
para deixar reflexões no ar.
***************
Exposição "50 Anos do Realismo -
Do Fotorrrealismo à Realidade Virtual"
local:Centro Cultural Banco do Brasil Rio de Janeiro
endereço:Rua Primeiro de Março, 66 - Centro
visitação:de quarta a segunda, das 9h às 21 horas.
Mesmo assim o machismo imperava nos estúdios e
sufocava carreiras,
salvo alguns como Clift, que assumiu
e sofreu na carne o
preço.
Eles tentaram esconder Burt,
Scott e muitos outros, nos todos sabíamos,
mas os chefões nunca se renderam,
e eu poucas vezes”.
John Ford
Dos quatro deuses rebeldes do método Lee Strasberg – Marlon Brando, James Dean, Montgomery Clift e Paul Newman –, apenas Paul era
heterossexual. Clift era gay assumido e sofreu enormes rejeições, ainda que tenha enfrentado todas elas. Depois de aconselhado por Liz Taylor, virou um
arrogante de primeira; era sua defesa pessoal. James Dean não fazia esforço
para esconder a homossexualidade: frequentava bares gays onde adorava queimar o
corpo com cigarro em trips sexuais.
Marlon Brando, esse sim: traçou de Vivian Leigh a Jean Cocteau. E mais, muito
mais. Mas estes grandes atores não seriam os pioneiros. Tyrone Power, sir
Laurence Olivier, George Cukor, Vincent Price, Errol Flynn e o músico Cole
Porter, por exemplo, sempre tiveram preferências homossexuais. Errol desfilava
com muitas namoradas e lançava cantadinhas não correspondidas à sua partner, Olivia de Havilland. Além
disso, adorava desfrutar de orgias com homens e mulheres. Seu grande parceiro
de festinhas foi Willian Holden, que não era gay, mas topava a mulherada.
Os estúdios criaram vários casamentos de fachada para seus
atores de ponta. Queriam sempre abafar os comentários da imprensa sobre suas
sexualidades. Um deles era Burt Lancaster, que foi proibido de “sair do armário”.
Acabou casando forçadamente e tendo filhos. Mesmo assim, manteve
relacionamentos com Rock Hudson e Cary Grant. E, por fim, foi um grande
ativista do movimento gay. O charmoso Cary Grant e Randolph Scott, um dos reis
do western da "era dos
estúdios", segundo seus amigos pessoais, eram casados e mantinham famílias
para despistar os estúdios e a imprensa. Chegaram a morar juntos e foram
fotografados em momentos picantes na piscina. As fotos geraram revolta dos
chefões de "Oliú", que ameaçaram suspender trabalhos de ambos os
atores que foram obrigados a se separar. Após isso, Cary tentaria suicídio com
pílulas para dormir. Já Gary Cooper, bonito e másculo, o protótipo do herói
americano, foi aconselhado por seus agentes a abandonar seu parceiro sexual sob
pena de ter sua próxima produção cancelada – que se chamaria nada menos que
"Matar ou Morrer", um dos maiores westerns da história.
Mas o caso mais polêmico foi o do ator e galã Rock Hudson.
Em 1955, ele levava uma carreira ascendente no cinema, mas a tranquilidade logo
ia dar lugar a um escândalo: uma revista especializada em fofocas publicaria
uma matéria com fontes seguras sobre a homossexualidade de Hudson. Seus agentes
não perderam tempo e casaram o ator com sua secretária – o mesmo que aconteceu
com Anthony Perkins. O casamento "falso" durou poucos anos e logo o
galã entraria para uma vida de promiscuidade sexual sem limites. Hudson
recorria às ruas todas as noites e levava para a cama até vagabundos e jovens
de toda a cidade. Era um sexo mecânico e sem erotismo. A regra de Hudson era “quanto
mais, melhor”, não importando a “qualidade”.
O resultado de tudo isso acabou vindo anos mais tarde. Em
1984, o ator foi a primeira grande celebridade do cinema americano a ser
diagnosticada com HIV. Rock Hudson faleceu em 1985 em decorrência da doença e o
fato teve uma enorme proporção. Tanto que chamou a atenção de celebridades e do
governo dos EUA, quando muitos doaram quantias milionárias para as pesquisas da
cura da AIDS, tendo Hudson como símbolo póstumo da campanha. Em 1992 e com
menos estardalhaço da imprensa, o astro tímido de “Psicose”, Tony Perkins,
sucumbiria ao HIV. Elogiado por Hitchcock e por muitos diretores, e criticado
por sua opção sexual pela MGM, ele partiria discretamente em sua casa em
Hollywood, mas não sem antes dizer em uma entrevista: "Que possamos ser livres em nossas escolhas, mesmo pagando um
preço eu prefiro ser livre." Que assim seja.