"Nunca os temas negros de candomblé tinham sido tratados com tanta beleza, profundidade e riqueza rítmica (...) é esta sem dúvida a nova música brasileira (...) digo-o em consideração a sua extraordinária qualidade artística, à misteriosa trama que os envolve: um tal encantamento em alguns que não há como sucumbir à sua sedução, partir em direção ao seu patético apelo."
Vinícius de Moraes,
na contracapa da edição original
Assim que aquilo começou a tocar foi como seu eu tivesse
sido capturado por um canto de sereia. Aquele coro feminino quase hipnótico,
aquele batuque, aquele aquela voz sussurrada, aquele violão mágico. O que era
aquilo? O violão sofisticado de Baaden
Powell, unido à poesia característica e ao vocal arrastado de Vinícius de
Moraes, explorando os ritmos afro-brasileiros com classe, estilo, requinte, ao
mesmo tempo que com simplicidade e crueza, compunham um dos álbuns mais
notáveis da música brasileira, “Os Afro-Sambas”,
de 1966.
Uma perfeita mescla de técnica, poesia, brasilidade,
africanidade, sincretismo, tradições, folclore e genialidade em um trabalho que
leva ao limite a multiplicidade e as possibilidades dentro da linguagem do
samba e das vertentes da música brasileira desde suas mais remotas origens.
“Canto de Ossanha”que abre o disco é simplesmente
emocionante com seu dueto inicial de Vinícius com a atriz Betty Faria, naquela
espera com voz ofegante para a introdução do refrão e finalmente na explosão do
estribilho com o coro do Quarteto em Cy. Lindíssima,
espetacular, fantástica!
O Quarteto em Cy, que a propósito, faz os vocais de apoio em
todas as canções do álbum, são destaque na incrível “Canto de Xangô”, de
arranjos vocais admiráveis de linhas clássicas contrastando com uma percussão
marcante bem característica de pontos de umbanda; e na linda “Bocoché” na qual
as vozes parecem emergir do fundo do mar.
“Tempo de Amor” é bem samba-de-raiz, bem samba de
fundo-de-quintal, que aliás foi a intenção de como o disco deveria soar. Puro, primário como uma roda de samba, rústico
como um terreiro de candomblé. “Canto do Caboclo Pedra-Preta” também soa bem
crua, bem básica e o destaque é para a interpretação magistral de Vinícius, que nem sequer era um grande cantor. Já “Tristeza e Solidão” é mais requintada,
e embora tenha o instrumental percussivo, a bateria, os agogôs, os atabaques, bem
destacados e evidentes, aparece como uma espécie de bossa-nova bem trabalhada.
O disco fecha com “Lamento de Exu”, faixa sem letra, marcada
apenas pela técnica da execução de Baden, emoldurada por evoluções vocais
líricas do coro feminino, constituindo, então, um encerramento grandioso e
digno de um grande álbum.
Um dos discos que mais me impactou nos últimos tempos. Assim
que comecei a ouvi-lo na casa do meu irmão, Daniel , conforme descrevi acima, me apaixonei. Até copiei
um arquivo para mim, mas como sou chato e gosto mesmo de mídias originais, recentemente
adquiri uma edição inglesa do álbum. Foi meio difícil achar, mas valeu o
esforço. Aqui no Rio, por exemplo, estive em uma loja de discos bem conceituada
em MPB, a Toca do Vinícius, à cata deste “Afro-Sambas” e de uma boa coletânea do
Nelson Cavaquinho. Chagar a ir até lá era algo do tipo “se não tiver na Toca do
VINÍCIUS, não tem mais em lugar nenhum”. O dono da loja indicou-me que encontraria
facilmente algum do Nélson em uma Loja Americanas da vida, mas meio que me
desanimou quanto ao “Afro-Sambas”, dizendo-me que somente com muita sorte o encontraria
em LP no Brasil, e em CD só encontraria no exterior, mas que me parabenizava pelo
bom gosto. Agradeço, caro comerciante, ainda mais sabendo dos títulos que lida
e manuseia todos os dias em sua loja, mas o elogio não é para mim. Não sou eu, o
disco que é de muito bom gosto. De muitíssimo bom gosto. Eu só fui capturado.
Numa das conversas que tivemos sobre as nossas infâncias, confessei ao Clayton e ao Daniel, com muita emoção que “A Arca de Noé” é a trilha sonora que eu mais gostava e lembrava a minha primeira infância. Nada em termos fonográficos, nenhum outro disco podia se comparar a “Arca de Noé” e olha que o páreo tinha as obras “Os Saltimbancos”, “Sítio do Pica-pau Amarelo”, "Plunct-Plact-Zum!", “Pirlimpimpim” e o “Grande Circo Místico” só para começar a listinha básica de musicais das crianças que cresceram entre 1973 a 1983.
Na época da Arca, eu, uma guria entre 7 e 8 anos de idade, me divertia com a minha irmã repetindo muitas vezes as canções que minha mãe ajudava a gente a lembrar, porque não tínhamos os LPs. “A Arca de Noé” ficou na minha memória musical depois que assisti ao programa de televisão de mesmo nome exibido no início da década de 80, na Rede Globo. Os registros sonoros se fixaram tão fortemente nas minhas retinas, ouvidos e coração, que por muitos anos, lembrava dos detalhes visuais de cada apresentação. Lembrava dos gestos e dos figurinos/cenografias dos convidados que fazem parte do elenco musical dos volumes 1 e 2.
Eu e minha irmã na época em
que conhecemos "A Arca de Noé"
Muitos anos se passaram e já adulta me deparei com os dois volumes da Arca em CD e relembrei, faixa a faixa, cada poema. As músicas estavam tão vivas em mim que cheguei a apresentar “Corujinha”, da “Arca de Noé 1”, numa audição em 2008 promovida por todos os estudantes da Profª de música Maria Beatriz Noll. Aliás, foi ela também quem me mostrou a versão italiana de “A Casa”, no LP “L´Arca – Canzoni per bambini” a partir da produção de Sergio Endrigo que reuniu vários intérpretes italianos em versões das canções do volume 1 feitas por Vinícius de Moraes.
Cada vez que escuto a “Arca de Nóe” de Vinicius de Moraes, acompanho em poesia as vozes e a respiração de Milton Nascimento, Moraes Moreira, Alceu Valença, MPB 4, Elis Regina, Frenéticas, Fabio Jr., Boca Livre, Ney Matogrosso,Marinae Walter Franco só para citar os intérpretes do volume 1. O mais interessante é que parte deles já fazia parte do repertório diário que eu colocava na vitrola, após chegar da escola diariamente para fazer meus shows dublados com o som no volume máximo.
A “Arca de Noé” é o último trabalho poético-musical de Vinicius de Moraes lançado nos anos de 1980 e 1981 – este último, póstumo. Em entrevista ao jornalista Tárik de Souza, o produtor Fernando Faro reafirma que Vinicius trabalhou até pouco antes de morrer. “Na madrugada em que se foi, vertia do italiano para o português os poemas da Arca. E cobrava de mim: ‘Faro, me dá logo esse treco!’. Ele respirava esse disco, atento a todos os detalhes”, conta o produtor dos shows e dos álbuns da dupla Toquinho-Vinicius.
No volume 2, alguns intérpretes se repetem, mas as participações de Fagner, Jane Duboc, Elba Ramalho, Grande Otelo, Clara Nunes, Céu da Boca e Paulinho da Viola são muito especiais, diversificando os temas e os gêneros musicais.
A poesia de Vinicius é tão imensamente bela e se ampliou tanto na voz desses intérpretes que está na memória de crianças, jovens e adultos por sua qualidade, irreverência e pureza. A poesia d’“A Arca de Noé” é capaz de coisas que você nem imagina, como, por exemplo, reencontrar a sua criança toda a vez que a escuta. Experimente.
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FAIXAS - "Arca de Nóe 1": 1 - A Arca de Noé-Abertura - Chico Buarque e Milton Nascimento 2 - O Pato - MBP 4 3 - A Corujinha - Elis Regina 4 - A Foca - Alceu Valença 5 - As Abelhas - Moraes Moreira 6 - A Pulga - Bebel 7 - Aula de Piano - Frenéticas 8 - A Porta - Fábio Jr. 9 - A Casa - Boca Livre 10 - São Francisco - Ney Matogrosso 11 - O Gato - Marina 12 - O Relógio - Walter Franco 13 - Menininha - Toquinho 14 - Final - Instrumental
FAIXAS - “Arca de Noé 2”: 1 - Abertura - A Arca de Noé - Dionísio Azevedo 2 - O Leão - Fagner 3 - O Pinguim - Toquinho 4 - O Pintinho - Frenéticas 5 - A Cachorrinha - Tom Jobim 6 - O Girassol - Jane Duboc 7 - O Ar (O vento) - Boca Livre e Vinicius de Moraes 8 - O Peru - Elba Ramalho 9 - O Porquinho - Grande Otelo 10 - A Galinha d'angola - Ney Matogrosso 11 - A Formiga - Clara Nunes 12 - Os Bichinhos e o Homem - Céu da Boca 13 - O Filho Que Eu Quero Ter - Paulinho da Viola
"Ao entregar a letra, num golpe de ironia e audácia, o advogado da gravadora pediu que a proibissem; os censores então, como que para contrariá-lo, liberaram "Construção" sem cortes."
relatado pelo escritor Humberto Werneck, no livro "Tantas Palavras - Letra e Música",
songbook de Chico Buarque
Tijolo por tijolo num desenho mágico. Assim foi construído "Construção"(1971), disco espetacular de Chico Buarque de Holanda; o primeiro gravado após sua volta do exílio, provavelmente o melhor do artista e um dos maiores da música brasileira. Ao contrário da boa parte dos discos de Chico que eram verdadeiras colchas de retalho com músicas feitas em épocas diferentes, com parceiros variados, para fins diferentes (filmes, peças, homenagens), "Construção" fora planejado para ser efetivamente um álbum e provavelmente por isso mostre uma coesão, uma unidade, uma encaixe tão perfeito entre as músicas que o tornam diferenciado na obra do cantor.
Constitui praticamente uma grande sinfonia cotidiana, uma grande ópera do homem comum, com tragédias, amores, sangue e emoção. Reforçam esta sensação de obra erudita os arranjos ousados e intensos do maestro Rogério Duprat, com suas cordas e metais poderosos. Já em "Deus lhe Pague" que abre o disco esta intensidade fica demonstrada: ela é forte, ela é densa, com sua condução grave, sua percussão pesada e com as vozes do MPB4 intensificando o sarcasmo da gratidão.
"Cotidiano" que a segue alivia o clima num samba descontraído faz um infinito ciclo do dia-a-dia. "Desalento", um samba triste com uma cuíca chorosa, parceria com Vinícius de Moraes, é um dos poucos casos de música que não deveria estar ali uma vez que faria parte originalmente do compacto de "Apesar de Você" que acabou não saindo, vetado pela censura.
A faixa título, "Construção" é a verdadeira ópera trágica cotidiana: dramática desde sua sonoridade até seus versos pessimistas. Um dia na vida de um operário de obra; aquele dia que ele, cansado da vida, da injustiça, da mesmice, decidira ser o último de sua vida. E Chico descreve isso de maneira mágica, brincando com as palavras, jogando com os versos, num exercício formal absolutamente bem engendrado, amarrando a letra toda por uma anáfora que serve de fio condutor e mantendo uma admirável regularidade silábica de dodecassílabos. A dramaticidade da letra, da situação do operário, do incidente fatal ganham proporções ainda maiores novamente com a orquestração de Duprat e com o coro do MPB4 até chegar a um final onde repete-se um trecho de "Deus lhe Pague" (dentro de "Construção") reafirmando toda e desesperança.
Segue com o gostoso samba "Cordão"; com a lamentosa "Olha, Maria" parceria com Vinícius e Tom Jobim, bem com a cara do maestro soberano; com o desafiador "Samba de Orly" que não se privou, mesmo em época de censura forte e violenta, de falar de quem estava fora do país morrendo de saudades mas que não podia voltar por 'forças maiores'. "Minha História", uma adaptação de uma canção italiana de Lucio Dalla chamada "Gesù Bambino", também teve seus problemas com a censura e com a igreja pela menção a um Menino-Jesus de procedência indigna e vida marginal e boêmia, à qual Chico então teve que se contentar em deixar o nome que pretendia traduzir simplesmente, apenas entre parênteses e no original em italiano.
O disco baixa a rotação totalmente na última faixa, numa espécie de canção de ninar, como que num convite a um relaxamento depois de tantos dramas, compromissos e agruras, em que Chico se despede com "Acalanto". A última peça. O último tijolo.
A obra estava completa.
Álbum mais que fundamental! E não sou apenas eu que digo: "Construção" é um dos poucos discos brasileiros na publicação "1001 Discos Pra Ouvir Antes de Morrer", livro que conta com avaliações de críticos especializados do jornalismo internacional; além disso, foi eleito o terceiro melhor disco brasileiro de todos os tempos na edição brasileira da Rolling Stone, e também pela mesma revista, a canção "Construção" foi considerada a melhor música brasileira da história.
É pouco?
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FAIXAS:
"Deus lhe Pague" – 3:19
"Cotidiano" – 2:49
"Desalento" (C. Buarque, Vinícius de Moraes) – 2:48
"Construção" – 6:24
"Cordão" – 2:31
"Olha Maria" (C. Buarque, V. de Moraes, Tom Jobim) – 3:56
"Samba de Orly" (C. Buarque, Toquinho, V. de Moraes) – 2:40
"Valsinha" (C. Buarque, V. de Moraes) – 2:00
"Minha História (Gesù Bambino)" (Lucio Dalla; versão de C. Buarque) – 3:01
"Acalanto" – 1:38
*todas as músicas, Chico Buarque, exceto as indicadas *******************
Ouça: Chico Buarque Construção
Como venho ressaltado aqui no blog, a temporada de show está ótima. Mais
um destes belos espetáculos, que vi ao lado de Leocádia Costa e de minha
querida Martha Becker, ocorreu no Teatro Bourbon Country, quando o cantor,
compositor e violonista Toquinho e a
cantora Maria Creuza se reuniram
para homenagear Vinícius de Moraes. A ocasião – comemorativa aos 15 anos do
escritório jurídico TozziniFreire de Porto Alegre, que patrocinou o show – foi
especial. Isso porque a dupla havia se apresentado junto apenas em um
espetáculo, justo no histórico show de 1970 que os reuniu com Vinicius e que
deu origem a um dos mais celebrados discos ao vivo da MPB, “Vinicius de Moraes
en La Fusa”, gravado em Buenos Aires. Depois, nunca mais pisaram num palco
juntos.
Porém, felizmente, ambos estão ativos para poderem repetir o feito. O
show, na verdade, não se restringia apenas ao repertório de Vinicius de Moraes,
pois é mesmo comandado por Toquinho, este virtuose do seu instrumento que, como João Bosco e seu mestre Baden Powell, aprendeu não apenas a tocar mas também a
cantar e, principalmente, compor (alinhando-se a uma seleta estirpe de
compositores que vai de Liszt e Rachmaninoff a Jimi Hendrix e Louis Armstrong).
Assim, “Toco” – como é carinhosamente chamado por Maria Creuza –, teve a
“sorte”, segundo o próprio, de cocriar com outros grandes mestres da música
brasileira, como Chico Buarque, Paulo César Pinheiro, Jorge Ben e o próprio Baden, autores que também aparecem no set-list.
Maria Creuza, ainda com seu belo timbre mas de voz já um pouco cansada,
faz boas participações no meio e no final. Foi ela quem comandou clássicos como
“Você abusou”, “Se Todos no Mundo Fossem Iguais a Você” e “Eu Sei que Vou te
Amar”, este, seu melhor momento. Juntos, cantaram outras pérolas: “A
Felicidade”, “Tomara” e “Samba em Prelúdio”, de Baden (que promove na segunda
parte um lindo contracanto com as vozes de ambos), autor este do qual Toquinho
ainda tocou uma impressionante versão de “Berimbau”, do memorável "Os Afro-Sambas" (1966), em que o violão, de tão bem tocado, parecia realmente soar como o típico
instrumento afro.
Toquinho, um mestre com seu violão
foto: Dulce Helfer
De resto, o show é todo de Toquinho. Simpático e conversador, ele
contou histórias e comentou praticamente todos os números, fosse antes ou
depois. Afinal, histórias dele, dos tempos de bossa nova e, principalmente, do “vivido”
amigo Vinicius, não faltam. Uma destas foi a que deu origem a um de seus
maiores sucessos, “Tarde em Itapuã”. Ele, na época adolescente, vira o poeta escrevê-la
em sua casa em Salvador e se encantara com os versos. Só que a mesma estava
prometida para outro gênio da música brasileira musicar: Dorival Caymmi. No
entanto, Toquinho, ousado, roubou o papel e aproveito que voltava uns dias para
São Paulo para criar a melodia. Na volta a Bahia, encontrou Vinicius
desesperado atrás do seu escrito e, para aplacar sua fúria quando soube que tal
havia sido surrupiado, Toquinho tocou-a ao violão para o mestre. Meia hora
depois, mais calmo, Vinicius aceitou não repassá-la a Caymmi e assim nasceu um
dos maiores clássicos da MPB.
O show teve ainda momentos de bastante emoção, como nas interpretações
de “A Casa” e “O Pum”, do infantil "A Arca de Noé", último projeto de Vinicius com
Toquinho antes de morrer, em 1980, obra que permeia a infância de muita gente
que estava ali – a começar pela minha e de Leocádia, que, inclusive, já
escreveu sobre sua ligação com “A Arca...” aqui no blog. Na mesma linha, as
tocantes “O Caderno” (preferida do próprio Toquinho, dele com Mutinho) e
“Aquarela”, com sua letra lúdica e realista (“Nessa estrada não nos cabe conhecer ou ver o que virá/ O fim dela
ninguém sabe bem ao certo onde vai dar/ Vamos todos numa linda passarela/ De
uma aquarela que um dia enfim/ Descolorirá.”), foram de levar às lágrimas. Como
ele mesmo disse, o desafio de fazer música para os pequenos é se despir das
complexidades harmônicas do adulto e se comunicar com as crianças sem
subestimá-las.
No seu tributo ao “poetínha” couberam ainda “Samba pra Vinicius” (“Poeta, poetinha vagabundo/ Quem dera todo
mundo fosse assim feito você/ Que a vida não gosta de esperar/ A vida é pra
valer/ A vida é pra levar/ Vinícius, velho, sarava”), dele e de Chico,
“Chega de Saudade”, marco inicial da bossa nova em que deram vivas a João Gilberto, e, claro, as tão famosas parcerias com Vinicius: “Cotidianas n° 2”, "Como
Dizia o Poeta” e a atualíssima “A Tonga da Mironga do Kabuletê”: “Você que lê e não sabe/ Você que reza e não
crê/ Você que entra e não cabe/ Você vai ter que viver...”. Nem parece ter
sido escrita nos anos 70... Pra terminar, “Regra três”, bis que fechou a noite.
É muito bonito ver na ativa um verdadeiro representante de um período
tão fértil da música brasileira, um cara que faz com propriedade a ligação
entre os compositores dos anos 50 (Tom Jobim, Antonio Maria, Dolores Duran,
Carlos Lyra, entre outros) com o período pós-bossa nova dos anos 60 e 70 (Chico,
Baden, Elis Regina, festivais, tropicalistas) e, ainda assim, resgata a
tradição dos violeiros e do choro, um dos estilos seminais do samba moderno. E
mais digno ainda assistir eles homenageando Vinicius de Moraes, que revelou Maria
Creuza e que, com Toquinho, principalmente, escreveu nada menos do que cerca de
130 canções, hoje eternizadas geração após geração. Toquinho teve sorte? Sim, mas,
muita competência. Parafraseando o poeta: que nos desculpem os inaptos, mas
talento é fundamental. E Toquinho tem de sobra.
Acima, capa original, com arte de Carlos Leão As outras duas, capas das versões para os mercados latino e francês, respectivamente, de 1973
"São demais os perigos desta vida
Pra quem tem paixão principalmente
Quando uma lua chega de repente
E deixa no seu, como esquecida
E se o lugar que atua desvairado
vem se unir uma música qualquer
Vem se unir uma música qualquer..."
O disco “São Demais os Perigos Desta Vida...”, deToquinho e Vinícius de Moraes. é, parafraseando os próprios, para viver um
grande amor. Desde a primeira vez que o escutei, tornou-se um vinil inseparável
para mim e que está sempre à mão. Escuto todo ele, mas a faixa que lhe dá
título, “São Demais...” é a que se repete... se repete... se repete. Tanto na
tristeza de uma perda como na espera de um outro grande amor como nas alegrias
próprias de um novo começo.
"Aí estão é preciso ter cuidado
Porque deve andar perto uma mulher
Deve andar perto uma mulher que é feita
De música, luar e sentimento
E que a vida não quer de tão perfeita..."
A capa do disco, com desenho de Carlos Leão, é linda. A do meu LP está bem judiada. Não
têm muitas informações sobre o disco propriamente, e o encarte com os créditos
já nem me lembro mais. É o segundo disco da parceria gravado em 1972. E foi nesse
ano que descobri este disco, que mexe com a minha alma.
"E que a vida não quer de tão perfeita
Uma mulher que écomo
a própria lua:
Tão linda que só espalha sofrimento." da letra de "São Demais os Perigos Desta Vida...”
porW L A D Y M I R U N G A R E T T I
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FAIXAS:
01. "Cotidiano Nº 2" (Como Dizia O Chico...) 02." Tatamirô" (em louvor de Mãe Menininha do Gantois) "Ponto de Caboclo" da Bahia, em arranjo de Edinho do Gantois 03. "São Demais Os Perigos Desta Vida..." 04. "Chorando Prá Pixinguinha" 05. "Valsa Para Uma Menininha" 06. "Para Viver Um Grande Amor" 07. "Menina Das Duas Tranças" 08. "Regra Três" 09. "No Colo Da Serra" 10. "Canto De Oxalufa" Todas as faixas de autoria de Toquinho e Vinícius
Wladymir Ungarettifoi durante os últimos 25 professor de Jornalismo da Fabico/UFRGS. Exerceu a profissão por 40 anos em diversas redações. Comanda e edita o blog Pontodevista: www.pontodevista.jor.br e assina suas fotos com a marca Wu. Outros links: wladyunga.tumblr.com/ e br.pinterest.com/ungareti3499/
“Um heavy-samba que misturava os mestres da MPB com os sons internacionais resultou num dos melhores discos da história da música pop nacional.”
Nelson Motta
Era só um grupo de hippies doidões que, na utopia de viver em uma comunidade de “paz e amor”, saiu em bando da Bahia para se socar em um sítio em Vargem Grande, no Rio de Janeiro, estado onde a indústria fonográfica de fato acontecia naquele início de anos 70. Almejavam ganhar a vida tendo como inspiração seus ídolos do rock: Jimi Hendrix, Janis Joplin, Beatles, Mama’s & The Papa’s e por aí vai.
Num Brasil tricampeão de futebol e em plena ditadura de AI-5, os “heróis da resistência” e também baianos Gilberto Gil e Caetano Veloso recém voltavam do exílio em Londres. Os festivais, sufocados, já não tinham a mesma efervescência político-cultural. Nas rádios, o predomínio do pop mezzo-caipira mezzo-brega mezzo-romântica (ou seja: para tentar agradar a todo mundo) da dupla Antonio Carlos & Jocafi não desagradava aos militares, e isso era o que importava. O movimento hippie, assim como qualquer outra manifestação artística e cultural, não tinha a menor voz naquele cenário (a ver a repressão ao tropicalismo). Ou seja: aquela turma estava fadada a cair no esquecimento.
Até que um dia, ainda morando na cidade, aparece na porta do apartamento da galera um senhor sério de terno e gravata. Era a “cana”? O cheiro do baseado tinha incomodado tanto assim os vizinhos? Depois de muito se amontoarem para espiar pelo olho-mágico, perceberam de quem se tratava: era simplesmente o Brasil que lhes batia à porta. Ah! O outro nome do Brasil é João Gilberto, caso não saibam. E a turma de ripongos – formada por Baby Consuelo (vocal, percussão), Paulinho Boca de Cantor (vocal, percussão), Pepeu Gomes (guitarra, violão solo, craviola, arranjos), Dadi (baixo), Jorginho (bateria, bongô, cavaquinho), Baixinho (percussão e baixo), Bolacha (bongô) e liderada por Moraes Moreira (vocal, violão base, arranjos) e Luiz Galvão (composições) – era a banda Novos Baianos.
Formado ainda em Salvador, em 1968, os Novos Baianos lançariam um ano depois seu disco de estreia, “Ferro na Boneca” que, embora o relativo sucesso comercial, não podia ser repetido para um segundo trabalho. A fórmula roqueira já não condizia com o que a mídia e nem os próprios músicos ansiavam. Eram talentosíssimos: Moraes e Galvão, criativos compositores; Pepeu, o primeiro virtuose da guitarra brasileiro; Baby, uma intérprete irreverente e moderna; Dadi, um baixista de mão cheia. Mas sentiam que precisavam de sangue novo.
Foi então que, naquela aparição divina, o “velho baiano” trouxe-lhes o dendê que faltava na receita. A bossa nova, que o João Gilberto ajudara a cunhar em 1958 com Tom Jobim e Vinícius de Moraes, além de modernizar o samba, diminuindo seu compasso e adicionando toques do cool jazz americano, tinha impregnada na sua estrutura melódica e harmônica toda a tradição do samba, do maxixe aos standards da Rádio Nacional. Quer dizer: o exemplo da bossa de João Gilberto vai além da música: é o reconhecimento de um Brasil etiologicamente desenvolvido enquanto força artística. E os Novos Baianos captaram isso. Com o talento e experiência que tinham, em 1972, eles entraram no estúdio da Som Livre sob o comando de Eustáquio Sena para criar o disco que hoje é um dos mais importantes da música popular brasileira: “Acabou Chorare”.
A veia brasileira já diz a que veio de cara, abrindo o disco com “Brasil Pandeiro” numa versão histórica do samba de Assis Valente (composição de 1940, imortalizada na voz de Carmen Miranda) incluída no repertório por indicação de João Gilberto. Ali já estava tudo pelo o que a banda passou a ser reconhecida a partir de então: a fusão incrivelmente harmoniosa e orgânica do regional e do universal, onde tudo é samba ao mesmo tempo em que é rock, que é baião, que é frevo, que é pop. E com rebeldia, bom humor e pegada!
Em seguida, talvez grande obra-prima dos Novos Baianos enquanto conjunto: “Preta Pretinha”. Uma balada de mais de seis minutos que inicia apenas com voz e violões brejeiros, e que vem num crescendo aonde os outros elementos da banda vão sendo adicionados aos poucos até um final emocionante em que todos brilham. Aliás, esta é uma das características do disco: ser extremamente bem executado, a ver a bela instrumental "Um Bilhete Pra Didi", de pura técnica e inúmeras referências melódicas que vão de Hendrix a Jacob do Bandolim.
Há "Mistério do Planeta", "A Menina Dança" e “Tinindo Trincando”, canções pop com levada de MPB e um trabalho de guitarra excepcional de Pepeu Gomes. Mas é mesmo a raiz afro-brasileira que dá o tom: em "Swing de Campo Grande" (“Minha carne é de carnaval/ Meu coração é igual”) e “Besta é Tu” a galera chama no pé! Esta última, claramente surgida de um momento de discussão que acabou dando samba.
A ligação com as raízes do Brasil, que João Gilberto tão bem traduziu na bossa nova na sua inaugural batida de violão e seu modo econômico mas completo de cantar, entraram na música dos Novos Baianos de forma consistente e definitiva. Mas não com exageros. E esta releitura inteligente do moderno e do antigo fez com que “Acabou Chorare” se alinhasse ao tropicalismo, tão carente de um novo gás naquele instante. “Nós vimos o tropicalismo de Gil e Caetano e acreditamos que era possível criar algo novo”, disse Galvão certa vez.
O fato é que esta obra abriu portas para que bandas como Paralamas do Sucesso, Pato Fu, Rappa e Skank tenham hoje terreno para misturar o pop que vem de fora com ritmos brasileiros sem que se lhes torçam a cara por isso. Com justiça, “Acabou Chorare” é considerado discoteca básica essencial, tanto que consta como primeiríssimo da lista dos 100 discos fundamentais da música brasileira pela revista Rolling Stone.
Mas falta falar ainda da verdadeira pérola do disco: a faixa-título. Se em “Preta Pretinha” o talento de todos é chamado em cena, na faixa “Acabou Chorare” são apenas os violões de Moraes e Pepeu que brilham. E isso basta. Bossa nova total, esta delicada canção de ninar, além da linda melodia (e o rico solo de Pepeu ao final), traz na letra uma novidade na música brasileira enquanto estilo. Antes mesmo de grandes obras musicais para crianças como “A Arca de Noé” de Vinícius ou “Os Saltimbancos” de Chico Buarque, ela versa palavras do imaginário lúdico infantil com uma pureza e inocência que suscitam imagens incomuns e até surreais. Neologismos, palavras que se encadeiam pela sonoridade, frases “sem sentido”. Afinal, quem não há de se emocionar com os singelos versos que dizem que a abelhinha “Faz zunzum e mel”, ou que ela “Tomou meu coração e sentou/ Na minha mão”?
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“Acabou Chorare” têm como “musa” a filha de João Gilberto, a hoje internacionalmente conhecida Bebel Gilberto, com 6 anos na época. A coisa toda surgiu do convívio dos dois com a banda. O título, algo como “parou o choro”, era dito por Bebel e vem da confusão que ela fazia entre os idiomas português, espanhol e inglês por conta dos períodos de residência no México e EUA, além do Brasil.
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Foi João Gilberto também quem, um dia, sentado na rua ao lado de Moraes e Galvão, ao ver uma linda mulata passar caminhando com “seus requebros e maneiras”, disse aos dois a frase que inspirou a música Moraes, gravada em 1979: “olha lá, gente: lá vem o Brasil descendo a ladeira!”
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FAIXAS: 1. "Brasil Pandeiro" (Assis Valente) 2. "Preta Pretinha" (Luiz Galvão / Moraes Moreira) 3. "Tinindo Trincando" (L. Galvão / M. Moreira) 4. "Swing de Campo Grande" (Paulinho Boca de Cantor / L. Galvão / M. Moreira) 5. "Acabou Chorare" (L. Galvão / M. Moreira) 6. "Mistério do Planeta" (L. Galvão / M. Moreira) 7. "A Menina Dança" (L. Galvão / M. Moreira) 8. "Besta é Tu" (L. Galvão / Pepeu Gomes / M. Moreira) 9. "Um Bilhete Pra Didi" (Jorginho Gomes) 10. "Preta Pretinha (reprise)" (L. Galvão / M. Moreira)
A Bossa-Nova já era uma sensação nacional e João Gilberto já era seu representante mais significativo quando o estilo cameçou a despertar interesse também fora do Brasil. A sofisticação do ritmo, a singularidade da batida, a modernidade do conceito era algo que impressionava os americanos naquele final de década de 50 e no rastro desta descoberta internacional, seguiram-se diversas releituras, interpretações e parceiras. Provavelmente a mais marcante delas tenha sido a que envolveu o saxofonista norte-americano Stan Getz e o gênio brasileiro, do violão de voz maviosa, João Gilberto. Executando, na maioria, músicas de Tom Jobim, um dos mestres do gênero, com o próprio Tom ao piano, a dupla produziu algumas das melhores versões de clássicos da música brasileira no álbum "Getz/Gilberto" de 1964, combinando o violão notável de João e seu vocal ímpar, ao sax tenor grave e sedutor de Getz, conduzidos por vezes pela voz sensual, rouca, quase infantil de Astrud Gilberto, então esposa do cantor.
A propósito dela, sua interpretação para "Corcovado" é absolutamente fantástica! Não que em "The Girl from Ipanema", a outra cantada por ela no álbum, não seja ótima, mas aquele início ( "quiet night of quiet stars" ) é simplesmente de amolecer as pernas. Mas não só ela brilha em "Corcovado". João canta de uma maneira emocionante e a entrada para o sax de Getz e , ah..., de tirar o fôlego.
Getz e João em 1963
Já a citada "Garota de Ipanema", mesmo no seu trecho em inglês, permanece graciosa como uma moça passeando pelo calçadão, com destaque especial nesta para o piano do mestre Antônio Brasileiro; em "Doralice" o vocal de João, fazendo as vezes de trumpete, conversa com o sax de Getz; "Pra Machucar Meu Coração" como propõe o título, é pra machucar mesmo, apaixonada e com um vocal sentido de João.
"Só Danço Samba" é bem ritmada e gostosa; em "O Grande Amor", ao contrário das demais, o sax de Stan Getz é que abre a canção se extendendo com um longo solo até dar espeço, primeiramente para a voz de João e depois para o piano de Tom, até voltar em um solo final arrebatador; a tristonha "Vivo Sonhado" tem um daqueles trabalhos vocais admiráveis de João nesta que é a canção de encerramento do disco; e "Desafinado", outro dos grandes clássicos da MPB, é mais um dos pontos altos do álbum com shows particulares de cada um: João com sua voz instrumental e sua batida perfeita de vioão, Getz com aquelas entradas extasiantes de seu poderoso saxofone e o maestro Tom Jobim derramando as notas de seu piano como um bálsamo sobre a canção.
Disco apaixonante. Um dos meus preferidos da discoteca. Obra prima do samba, da bossa e do jazz, ou de tudo isso junto. Daqueles que não apenas se ouve mas se saboreia. Ouvir a voz doce de Astrud, a leveza da de João e o sax envolvente de Getz é uma das melhores coisas que se pode querer num final de tarde de preferência com o sol desaparecendo atrás do Corcovado.
Sem dúvida o disco que fez definitivamente a música brasileira romper fronteiras com o ritmo/estilo/gênero que, com certeza, foi e é até hoje a maior contribuição brasileira para a música mundial.
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FAIXAS: 1."The Girl from Ipanema" (Tom Jobim, Vinicius de Moraes, Norman Gimbel - versão) – 5:24 2."Doralice" (Dorival Caymmi, Antonio Almeida) – 2:46 3."Para Machucar Meu Coração" (Ary Barroso) – 5:05 4."Desafinado" (Tom Jobim, Newton Mendonça) – 4:15 5."Corcovado" (Tom Jobim, Gene Lees - versão) – 4:16 6."Só Danço Samba" (Tom Jobim, Vinícius de Moraes) – 3:45 7."O Grande Amor" (Tom Jobim, Vinícius de Moraes) – 5:27 8."Vivo Sonhando" (Tom Jobim) – 3:04
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Ouça: Stan Getz e João Gilberto - "Getz / Gilberto (1964)
“Quando eu era criança, as pessoas me perguntavam: ‘como é teu nome?’ Eu respondia: Adriana Partimpim. Meu pai até hoje só me chama de ‘Partimpim’.”
Adriana Calcanhoto
"Os artistas japoneses do grande período mudavam de nome várias vezes na vida. Amo isso!!!" Adriana Partimpim
“ADRIANA CALCANHOTO: Era possível, através da música, passar para o outro lado e adentrar o mundo fascinante dos adultos...?
ADRIANA PARTIMPIM: O disco foi feito para eu ser a criança que sou hoje e não a que já fui.
ADRIANA CALCANHOTO: Então o ‘disco infantil’...
ADRIANA PARTIMPIM: Ao invés de música para crianças, tarja que não considero exata, preferi chamar de disco de CLASSIFICAÇÃO LIVRE. Que, no fundo, é tudo o que ele mais gostaria de ser.” Trecho da entrevista que Adriana Partimpim concedeu à Adriana Calcanhoto na época do lançamento do disco
Vinicius de Moraes, depois dos vários projetos literários e musicais que encabeçou durante mais de 40 anos de vida artística, voltou seu olhar, no último deles, às crianças. Nada das mulheres, das paixões ardentes, da boemia, da praia ou dos orixás. O histórico “Arca de Noé”, em parceria com Toquinho e que envolveu vários outros artistas convidados, fez escola no Brasil no que se refere à produção cultural para os pequenos. Elevou-a – junto com outros igualmente célebres, como “Sítio do Picapau Amarelo”, “Pirilimpimpim” e “Plunct Plact Zum” – a um nível de igual qualidade ao que Vinicius fizera na bossa-nova e na literatura.
Com a morte do “Poetinha”, logo após o lançamento do primeiro volume de “Arca...”, em 1980, coincidindo com a acirrada competição televisiva dos programas infantis que tomariam os anos 80, essa proposta de oferecer alta qualidade de cultura para os baixinhos foi se esvaziando. Toquinho e Paulo Leminski bem que tentaram, mas sucumbiram a “Ilariês” e assemelhados. Parecia que não haveria jamais alguém que seguisse aquele caminho aberto por Vinicius em final de vida. Porém, passadas quase duas décadas e meia, o destino levou a gaúcho-carioca Adriana Calcanhoto a assumir esse espaço com o rico – e salvador – projeto “Adriana Partimpim”, de 2004.
A ideia de Adriana, a Calcanhoto, era antiga, de 10 anos antes. À época, ela já havia recolhido temas aos quais gostaria de propor uma nova roupagem sonora, mais solta, divertida e que agradasse tanto crianças quanto adultos. O parceiro Dé Palmeiro foi quem mais incentivou. Porém, imagina-se que deva ter contribuído em certa medida a forte ligação amorosa que Adriana passou a ter com a atriz e cineasta Suzana de Moraes, filha de Vinícius, com quem se casara quatro anos antes de “Partimpim” ser lançado. Pronto: havia juntado todo o necessário: a vontade de compor o repertório, sua experiência e qualidade artística, o apoio externo e o acolhimento emocional. Muito provavelmente, o universo viniciano dentro de casa (e do coração) contagiou Adriana ainda mais, quase que como uma bênção espiritual. O resultado é um disco com alma, diferenciado: ao mesmo tempo altamente musical, tanto no que se refere à escolha do repertório quanto em arranjos e sonoridade, mas também delicioso de se ouvir, pop no melhor sentido.
Não precisa mais de meia hora para isso. De grande experiência e rara sensibilidade, Adriana seleciona dez faixas tão certeiras que parecem, mesmo com idades de composição tão diferentes entre si, terem sido escritas para integrar somente esse disco. A beleza começa com um som de scratch de rap, seguido de uma batida de samba muito gingada e um violão digno dos melhores mestres do instrumento. É "Lição de Baião", canção do repertório de Baden Powell, gravada originalmente em 1961, e que tem a participação de ninguém menos que Louis Marcel Powell, filho e sucessor da maestria do pai nas cordas de nylon. Um barato a letra que brinca – como as crianças fazem! – com as palavras em francês e em português, construindo versos misturando os dois idiomas.
Quadrinhos que ilustram a canção "Oito Anos" (adrianapartimpim.com.br/um/)
"Oito Anos", que Paula Toller compôs para responder às inúmeras (e, não raro, capciosas) perguntas do filho Gabriel, virou um grande sucesso na voz de Partimpim. É divertidíssima em sua enumeração de indagações típicas de criança que está conhecendo o mundo. “Por que as cobras matam/ Por que o vidro embaça/ Por que você se pinta/ Por que o tempo passa”, são alguns dos versos que dão ideia da encrenca que é para uma mãe responder A própria autora comenta a respeito: "Quando cantei para o Gabriel fui mais mãe-artista que artista-mãe. Agora ouço Adriana interpretando ‘Oito anos’ como um menino esperto e adorável. Na leveza da voz dela, há espontaneidade e uma sutil implicância muito bem sacada, afinal, perguntar tanto é menos para saber a resposta do que para treinar a ferramenta perguntadora e a paciência do respondedor.”
A marchinha carnavalesca "Lig-Lig-Lig-Lé", dos anos 30, ganha um arranjo colorido em que se vale bem do clima com que Adriana orientou seus músicos: “tocaram com leveza, com delicadeza e espontaneidade, com muito humor e quase nenhuma coerência”. Querida desde a época de seu lançamento, no carnaval de 1937 (o noticiário da época a classificava como “sucesso fulminante” e “destinada a um recorde de bilheteria”), é das mais divertidas faixas do disco.
Mais do que “Oito Anos”, “Fico Assim sem Você”, na sequência, foi um verdadeiro hit de “Partimpim”, colocando o disco entre os mais vendidos da época. Versando um funk melódico de Claudinho & Buchecha – e cuja original já havia feito estrondoso sucesso nos anos 90 –, não só conquistou o grande público com sua bela melodia romântica e arranjo moderno – com a programação de ritmo funkeada, o violão bossa-nova de Adriana, bem como sua delicada voz, muito afeita à melodia da canção –, como, igualmente, prestou uma bonita homenagem à dupla carioca, desfeita tragicamente em 2002 por conta da morte de Claudinho. A letra, de certa forma, prenuncia a falta que um amigo faz ao outro caso se separassem (o que, fatalmente, ocorreu): "Avião sem asa/ Fogueira sem brasa/ Sou eu assim, sem você/ Futebol sem bola/ Piu-Piu sem Frajola/ Sou eu assim, sem você...". E o refrão não pode ser mais doce: "Eu não existo longe de você/ E a solidão é o meu pior castigo/ Eu conto as horas pra poder te ver/ Mas o relógio tá de mal comigo."
Outra delícia é "Canção da Falsa Tartaruga", em que o poeta concretista Augusto de Campos, fértil parceiro de Adriana (a Calcanhoto), e seu filho, o músico e também poeta Cid Campos, versam com muita habilidade e sensibilidade um trecho de “Alice no País das Maravilhas”, clássico do escritor britânico Lewis Carroll, de 1865. O resultado é uma canção delicada, com um refrão de notas abertas tão bonito que é impossível não cantar junto sempre que se ouve: “Quem não diz: - Ave!/ Quem não diz: - Eia!/ Quem não diz: - Opa!/ Que bela Sopa!” E por que uma sopa de uma falsa tartaruga? Ora, alguém já viu uma tartaruga de verdade fazer sopa?...
Rebuscando mais um pouco o variado conhecimento musical, Adriana traz a bossa nova meiga e melancólica “Formiga Bossa Nova”, adaptação do poema do português Alexandre O’Nell que ficara conhecida, em 1969, na voz da cantora lusa Amália Rodrigues. Outra mostra do quanto a proposta de “Partimpim” não é trazer somente temas de fácil assimilação, uma vez que abarca (também) o público infantil. Caso também de “Ser de Sagitário”, composta por Péricles Cavalcanti para sua filha, que ainda não havia nascido e que ele e sua esposa não sabiam nem que sexo teria, apenas que nasceria no começo de dezembro, ou seja, na vigência do signo de sagitário. “Você metade gente/ e metade cavalo/ Durante o fim do ano/ cruza o planetário”, diz a poética e tocante letra, fazendo uma metáfora com o centauro, símbolo do signo no zodíaco.
O poetinha Vinícius de Moraes: inspiração e bênção
Na mesma linha, outra brilhante canção de “Partimpim”: “Ciranda da Bailarina”. Se “Formiga Bossa Nova” e “Ser de Sagitário” não poupam as crianças de refletirem e aguçarem seus sentimentos, esta, clássico de Edu Lobo e Chico Buarque da trilha do balé “O Grande Circo Místico”, de 1983, vale-se da fantasia e da figura de linguagem da comparação para concluir aquilo que é óbvio, mas que nem todo mundo admite: que ninguém é perfeito. Ao dizer que só a bailarina, tão artificial quanto mítica, não tem pereba, marca de bexiga ou vacina e nem dente com comida ou casca de ferida, está se deixando claro que todo mundo é ser humano. E aí é que está a beleza! Afinal,“sala sem mobília/ Goteira na vasilha/ Problema na família/ Quem não tem?” Bela versão de Adriana em que seus violão e vocal apurados funcionam muito bem novamente. Fora que ainda lhe foi permitido finalmente dizer a ridiculamente proibida palavra “pentelho” sem o grosseiro corte da censura como ocorreu na versão original, ainda dos tempos de Ditadura.
Os craques da nova MPB Moreno Veloso, Kassin e Domênico, este último, autor de "Borboleta", canção encomendada especialmente a ele por Adriana para o disco, antecede outra das especiais de “Partimpim”: “Saiba”, que o encerra. Lindamente classificada como“uma canção para ninar adultos”, “Saiba”, de Arnaldo Antunes, fecha o disco com a mais doce e profunda poesia, pondo os baixinhos para refletirem sobre coisa séria, mas necessária - e, por que não dizer, comum. A música leva o ouvinte a pensar sobre a condição humana a partir de uma proposição óbvia, porém pouco elucubrada: a de que “todo mundo foi criança” e que o ciclo da vida, inevitavelmente, se encerra um dia. Como não ficar tocado por versos como estes? “Saiba/ Todo mundo teve infância/ Maomé já foi criança/ Arquimedes, Buda, Galileu/ e também você e eu”. A letra ainda tem a função educativa de apresentar versos e termos rebuscados, como os nomes estrangeiros Nietzsche e Sadam Hussein, ou rimas diferentes do comum: “Simone de Beauvoir” com “Fernandinho Beira-Mar” ou “Pinochet” com “você”, ambas rimas de classificação “preciosa”, um tipo raro que combina palavras de idiomas distintos. Um final emocionante e que lembra, em certa medida, as melancólicas “Menininha” e “O filho que eu quero ter”, que finalizam os dois volumes de “Arca de Noé”, respectivamente.
A brincadeira de assumir outra personalidade foi levada a sério (sic) por Adriana, a Calcanhoto, que deu vida à outra Adriana, a Partimpim. Com nome artístico independente de sua criadora, a criatura Adriana Partimpim deu tão certo, que, além deste primeiro álbum, outros dois ótimos vieram a seguir (2009 e 2012), além de dois DVD’s ao vivo igualmente imperdíveis. Mais do que isso: o projeto Partimpim pareceu simbolizar um salto qualitativo na obra e na carreira de Calcanhoto, um momento em que ela conseguiu reunir sua competência artística, estética e performática a seus mais íntimos sentimentos. E o resultado foi algo genuíno. Infantil? Adulto? Tanto faz. Como conseguira Vinícius de Moraes em “Arca...”, o trabalho das Adrianas, a Calcanhoto e a Partimpim, rompeu as fronteiras da idade dos ouvintes e da idade do tempo. Afinal, contempla, igualmente, as crianças grandes e os pequenos adultos.
Clipe de"Fico Assim sem Você"
********************************** FAIXAS: 1. "Lição de Baião" (Daniel Marechal/Jadir de Castro) - 03:16 2. "Oito Anos" (Dunga/Paula Toller) - 03:08 3. "Lig-Lig-Lig-Lé" (Oswaldo Santiago/Paulo Barbosa) - 02:38 4. "Fico Assim Sem Você" (Abdullah/Cacá Moraes) - 03:08 5. "Canção da Falsa Tartaruga" (Augusto de Campos/Cid Campos sobre texto de Lewis Carroll) - 04:07 6. "Formiga Bossa Nova" (Alain Oulman/Alexandre O'Neill) - 02:28 7. "Ciranda da Bailarina" (Chico Buarque/Edu Lobo) - 02:49 8. "Ser de Sagitário" (Péricles Cavalcanti) - 03:03 9. "Borboleta" (Domênico Lancellotti) - 02:30 10. "Saiba" (Arnaldo Antunes) - 03:01
"É muito fácil ser rubro-negro. Fácil demais (...)
Torcer pelo Fluminense, modéstia à parte,
requer outros talentos.
Precisa saber dançar sem batucada.
O tricolor chora e ri sem ninguém por perto.
Ele merece um campeonato, ele merece."
Chico Buarque
para o Pasquim, em 1970
"Chico Buarque de Hollanda nº4", de 1970, é Chico renegando Chico. É Chico tentando desfazer um pouco a imagem de bom moço, de poeta das coisas belas, cantava coisas de amor. E já começa com a primeira do disco, "Essa Moça Tá Diferente" que é uma espécie de crônica de costumes na qual Chico mostrava que sabia os tempos estavam mudando, em todos os aspectos, e que aquela moça que ficava na janela (remetendo à música "Ela e a Janela" de seu primeiro disco), agora tinha outras necessidades e aspirações, representando, de certa forma, a própria música do artista.
Exemplo mais perfeito ainda dessa confrontação é a porrada "Agora Falando Sério", onde num cote venenoso e agressivo, Chico, atira para todos os lados e acerta em si mesmo (propositalmente) desfazendo do lirismo, das composições rebuscadas, da própria poesia, e renunciando à tarefa que parecia lhe caber de abrandar os espíritos através de sua arte. "Agora Falando Sério", cantada quase declamada em determinados momentos, faz referência à diversas canções do próprio autor, mas foca principalmente em "A Banda", música que o consagrara no Festival de Música de 1966 e que exaltava as coisas boas da vida em plena ditadura militar (Dou um chute no lirismo/ um pega no cachorro/ e um tiro no sabiá/ dou um fora no violino/ faço a mala e corro/ pra não ver a banda passar).
Pensa que pára por aí? Não. A espetacular "Rosa-dos-Ventos" é outra que vem derrubando tudo pela frente, cheia de figuras, de metáforas, mas clamando por liberdade, por igualdade e, mais atual do que nunca, diante de Felicianos e outros homofóbicos, servindo muito bem à onda de preconceito que toma a sociedade atualmente. Versos como "E do amor gritou-se o escândalo/ do medo criou-se o trágico..." ou "...e a multidão vendo em pânico ainda que tarde/ seu despertar", por mais que não tenham sido compostos com a intenção de chamar atenção das pessoas para acordarem diante de seus preconceitos, inegavelmente se prestam para este necessário despertar ao qual Chico se referia.
"Cara a Cara", é mais uma extremamente forte e contundente, contrariando o Chico de outrora. Com seus metais altos, imponentes parecendo fazer uma espécie de espiral musical, e com o vocal coletivo intenso do grupo MPB4, Chico incita a atitude, condena o comodismo e classifica seu próprio ofício de, simplesmente, inútil.
O disco traz também o gostoso samba-canção "Nicanor"; a bela parceria com o maestro Tom Jobim em "Pois é"; o ótimo samba cotidiano "Samba e Amor"; a delicada e melancólica "Gente Humilde" de Vinícius de Moraes; e fecha o disco de maneira também muito contundente com "Os Inconfidentes", adaptação do texto de Cecília Meirelles, composta para a peça de mesmo nome, que mesmo remetendo ao episódio histórico do final do século XVIII, vinha muito muito a calhar no contexto político daquele momento (Toda vez que um justo grita/ um carrasco vem calar/ quem não presta fica vivo/ quem é bom mandam matar). Mais uma daquelas que Chico dava o recado driblando a censura da época.
Agora, o que é que tudo isso tem a ver com futebol? Por que é que este disco está relacionado aos ÁLBUNS FUNDAMENTAIS Clybola?
Bom, só os fatos do cantor ser um aficcionado por futebol, frequentemente mencionar o esporte em suas músicas tendo inclusive uma delas com o nome "O Futebol", ter um time amador com 'estádio' próprio e, pelo que se diz, além de tudo não fazer feio com a redondinha, já poderiam ser razões o suficiente, mas o caso é que "Chico Buarque de Hollanda nº4" tem uma música tratando do assunto e mais especificamente sobre a rivalidade Fla-Flu. Na música "Ilmo. Sr. Cyro Monteiro ou Receita Pra Virar Casaca Desde Neném", Chico, num samba-choro, de letra brilhantemente composta, 'agradece' ao amigo do título da música, o presente, uma camisa do Flamengo, que o mesmo tentara dar à filha de Chico recém nascida, mas educadamente declina do mimo, argumentando que as cores da menina já estavam definidas e que até poderia manter o vermelho da camisa do rival, mas trocaria o preto pelo verde e pelo branco, do Fluminense.
O disco seguinte, "Construção", confirmaria a mudança de atitude com um Chico mais agressivo e contundente e menos lírico, o que teria suas consequências, uma vez que cada vez mais a censura o marcava de cima. Como um zagueiro implacável. Batendo sempre e muito forte. E o pior é que não adiantava nem reclamar pro juiz.
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FAIXAS: 1. "Essa Moça Tá Diferente" 2. "Não Fala de Maria" 3. "Ilmo. Sr. Ciro Monteiro ou Receita Pra Virar Casaca de Neném" 4. "Agora Falando Sério" 5. "Gente Humilde" (Chico Buarque, Garoto, Vinícius de Moraes) 6. "Nicanor" 7. "Rosa dos Ventos" 8. "Samba e Amor" 9. "Pois É" (Chico Buarque, Tom Jobim) 10. "Cara a Cara" 11. "Mulher, Vou Dizer Quanto Te Amo" 12. "Os Inconfidentes" (Cecília Meireles, Chico Buarque)
todas as músicas de Chico Buarque, exceto as indicadas