2015 acabou e como sempre, fazemos aqui no ClyBlog aquele balanço da movimentação dos álbuns fundamentais no ano anterior: artistas com mais discos na nossa lista, países com mias representantes, o ano e a década que apresentam mais indicados e outras curiosidades. O ano abriu com a publicação de número 300 dos ÁLBUNS FUNDAMENTAIS que teve a especialíssima participação do escritor Afobório falando sobre o grande "Metrô Linha 743", resenha que marcou assim a estreia, mais que merecida, de Raul Seixas no nosso time de fundamentais. Outros que já estavam maIs que na hora de entrarem pra nossa lista e que finalmente botaram seu primeiro lá foram a musa punk, Patti Smith; o poeta do rock brasileiro, Cazuza; a banda cult Fellini; o grande Otis Redding, os new wave punk do Blondie; os na´rquicos e barulhentos Ratos de Porão; o mestre do blues Howlin' Wolf; e em especial o Mr. Dynamite, James Brown, com seu clássico no Apollo Thetre. Alguns, por sua vez, se afirmaram entre os grandes tendo enfim seu segundo disco indicado pra mostrar que não foi acaso, como é o caso de Cocteu Twins, Chico Science com sua Nação Zumbi, Lobão e Björk. Com o ingresso, em 2015, do ótimo Ouça o que eu digo: não ouça ninguém", os Engenheiros do Hawaii finalmente completam sua trilogia da engrenagem; Bob Dylan que foi o primeiro a ter dois álbuns seguidos nos Álbuns Fundamentais, lá em 2010, depois de um longo jejum finalmente botou seu terceiro na lista, o clássico "Blonde On Blonde"; já John Coltrane que passou um bom tempo apenas com seu "My Favourite Things" indicado aqui, de repente, num salto, apenas em 2015, teve mais dois elevados à categoria de Fundamental, muito por conta do cinquentenário destes dois álbuns, bem como de outro cinquentão da Blue Note que também mereceu sua inclusão em nossa seleção, o clássico 'Maiden Voyage" de Herbie Hancock, alem do fantástico The Shape of Jazz to Come" como homenagem merecida a Ornette Coleman, falecido este ano. Por falar em falecido recentemente, não tem como deixar de falar em David Bowie que deixa este mundo na liderança dos ÁLBUNS FUNDAMENTAIS mostrando que toda a idolatria e reconhecimento do qual gozava não era a toa. Mas ele não está sozinho na ponta! Alavancado pela inclusão de seu ótimo "Aftermath", os Rolling Sones alcançam os líderes e empatam com Bowie e com seus "rivais", os Beatles, prometendo grandes duelos para as próximas edições dos A.F. Como curiosidades, se no ano passado tivemos mais trabalhos de séculos passados, no último ano os A.F. tiveram um certo crescimento o número de álbuns produzidos no século XXI. Muito por conta de uma nova galera talentosa que vem surgindo por aí como Lucas Arruda e Tono que tiveram seus álbuns, "Sambadi" e "Aquário", respectivamente, reconhecidos e incluídos no hall dos grandes álbuns. Os garotos também colaboraram para um fato interessante: o altíssimo número de discos nacionais neste ano. Foram 15 no total, empatando com o número dos norte-americanos neste ano e deixando bem para trás os ingleses com apenas 3 em 2015. O pulo brasileiro refletiu-se na tabela geral e pela primeira vez desde o início da seção o Brasil está à frente da Inglaterra em número de discos. A propósito, falando de Brasil, se formos falar em termos nacionais, a principal mudança foi a elevação de Caetano Veloso, Engenheiros do Hawaii e Tim Maia à vice-liderança, dividindo-a ainda com Gil, Legião e Titãs. Na ponta, segue firme o Babulina, Jorge Ben, com 4 álbuns fundamentais. E aí? O que será que nos reserva 2016? Como será a batalha Beatles vs Stones? Alguém alcançará ou passara Jorge Ben na corrida nacional? E os ingleses reagirão contra os brazucas e mostrarão que são a terra do rock? Aguarde as próximas postagens e acompanhe o ClyBlog em 2016. Por enquanto ficamos com os números de 2015 e uma visão geral de como andam as coisas nos ÁLBUNS FUNDAMENTAIS.
PLACAR POR ARTISTA (GERAL)
The Beatles: 5 álbuns
David Bowie 5 álbuns
The Rolling Stones 5 álbuns
Stevie Wonder, Cure, Led Zeppelin, Miles Davis, John Coltrane, Pink Floyd, Van Morrison, Kraftwerk e Bob Dylan: 3 álbuns cada
PLACAR POR ARTISTA (NACIONAL)
Jorge Ben (4)*
Titãs, Gilberto Gil*, Legião Urbana, Engenheiros do Hawaii e Tim Maia; 3 álbuns cada
*contando o álbum Gil & Jorge PLACAR POR DÉCADA
anos 20: 2
anos 30: 2
anos 40: -
anos 50: 13
anos 60: 63
anos 70: 90
anos 80: 82
anos 90: 62
anos 2000: 8
anos 2010: 7
*séc. XIX: 2 *séc. XVIII: 1 PLACAR POR ANO
1986: 15 álbuns
1985 e 1991: 13 álbuns cada
1972 e 1967: 12 álbuns cada
1968, 1976 e 1979: 11 álbuns cada
1969, 1970, 1971, 1973, 1989 e 1992: 10 álbuns cada
PLACAR POR NACIONALIDADE*
Estados Unidos: 125 obras de artistas*
Brasil: 85 obras
Inglaterra: 80 obras
Alemanha: 6 obras
Irlanda: 5 obras
Canadá e Escócia: 4 cada
México e Austrália: 2 cada
Suiça, Jamaica, Islândia, Gales, Itália e Hungria: 1 cada
Sinceramente pensei que havíamos perdido Gal Costa. Por quase duas décadas, ela,
uma das maiores cantoras do Brasil e do mundo havia se afundado numa fase
obscura de falta de criatividade e trabalhos opacos que nem a voz cristalina
conseguia impulsionar. Parcerias ruins, projetos mal elaborados, repertórios
duvidosos, ações de marketing ineficientes. Tudo contribuía para pior a ponto
de quase tirar o brilho da intérprete de tantas glórias e êxitos. Porém, em
2012, renascida das cinzas, Gal Costa chama o “mano” Caetano Veloso para
exorcizar seus demônios e lança o “divisor de águas” "Recanto", no qual não só
retoma uma série de referências que havia deixado no passado quanto,
obviamente, se ergue de novo musicalmente.
Não é mesmo à toa que “Recanto” tenha esse título, pois de
fato a partir dele tudo mudou para Maria da Graça Costa Penna Burgos, que
completa louváveis 50 anos de carreira em 2015. E uma das mostras dessa mudança
para melhor é o novo CD “Estratosférica”,
cuja turnê passou por Porto Alegre numa memorável apresentação da baiana e sua
banda de jovens rapazes. Aliás, a nova geração é que, sob a batuta dessa
experiente cantora, dá o tom dos novos trabalho e show. A começar pela direção
musical, a cargo de Pupilo (Nação Zumbi), certamente responsável em boa parte
pelo tom de rock do show. Igualmente, o repertório é recheado de canções de
compositores de agora, como Mallu Magalhães, Marcelo Camelo, Criolo, Zeca Veloso
(sim, filho de Caetano!) e Alberto Continentino.
Maravilhosamente bem iluminado e com uma Gal em boa forma
física e principalmente vocal, “Estratosférica” é uma aula de construção de
repertório e conceito de espetáculo. Mesclando as novas músicas com sucessos e
clássicos da carreira, Gal não faz apenas o que se espera como, assim, reassume
a função que sempre foi sua desde que se tornou a revolucionária resistente do
tropicalismo e a dona de hits incontestes das rádios: a de servir de canal
transformador entre o novo e o tradicional na música brasileira. Afinal, foi
ela uma das principais responsáveis por gravar, nos anos 60 e 70, os então
jovens Caetano, Gilberto Gil, Tom Zé, Jards Macalé, Luiz Melodia, Jorge Ben e
vários outros. stoneano “Sem medo nem esperança”, música
do novato Arthur Nogueira com poesia do veterano Antonio Cícero dando o recado
pela intérprete: “Nada do que fiz/ Por
mais feliz/ Está à altura/ Do que há por fazer” (assim é que nós gostamos
de ver, Gal!). Esta emenda com “Mal Secreto”, de Jards e Waly Salomão, gravada
por ela no histórico “Fa-Tal” ou “Gal a Todo Vapor”, de 1971. Voltando mais no
tempo, Gal revive o ápice do tropicalismo com “Namorinho de Portão”, de Tom Zé,
que ganha arranjo tão parecido com o de 1969 que a guitarra de Guilherme
Monteiro soa até com aquele distorcido rasgado de Lanny Gordin. Grande momento.
Gal e sua excelente banda.
Nessa linha, o show começa detonando com o rockzão
Como todo bom concerto de rock, a base harmônica está na
guitarra, que ganha ora peso ora groove, auxiliado pela bateria de Thomas
Harres, pelo baixo de Fábio Sá e, principalmente, pelos teclados do ótimo Maurício
Fleury, ora modernos ora retrô-psicodélicos, servindo como elemento climático e
de textura. Soa assim a versão de outro clássico, “Não Identificado”, de Caetano,
cujos efeitos do sintetizador cobrem muito bem a orquestração intensa e
espacial de Rogério Duprat da original. “Pérola Negra”, de Melodia, é outra das
antigas que conquista o público. As canções novas não deixam, no entanto, nada
a dever para as já consagradas. É o caso de “Quando você olha pra ela”, gostoso
samba-rock assinado por Mallu com cara do melhor Jorge Ben: melodia suingada, linha
vocal assimétrica e a docilidade romântica de uma “Ive Brussel” e “Moça”.
Aliás, Benjor é reverenciado mais de uma vez: primeiro numa embasbacante
“Cabelo”, parceria com Arnaldo Antunes que ganha arranjo de funk-rock pesado, tipo Parlaiment/Funkadelic (o que é aquilo!). Lá no fim, Babulina volta em alto
estilo para encerrar o show com uma improvável (mas maravilhosa) "Os Alquimistas Estão Chegando", misto de indie
e samba-soul (o que é aquilo, de novo!).
Voltando às novas, ainda surpreendem a doce bossa-nova “Pelo
fio”, de Camelo, com ares de Carlos Lyra ou Ronaldo Bôscoli; “Ecstasy”, joia
nova de João Donato e Thalma de Freitas; a interessante faixa-título, de Maria
Poças, Romário Oliveira Jr. e Barreto; e, principalmente, a genial “Por baixo”,
um malicioso baião eletrônico de Tom Zé encomendado pela conterrânea: “Por baixo do vestido: a timidez/ Baixo da
timidez: a seda fina/ Baixo dela: uma nuvem de calor/ Baixo de calor: um
perfume da China...”. Ainda, a bela “Você me deu”, de Caetano e seu filho
Zeca, revisitando o conceito de “Recanto”; “Muita Sorte", última música
escrita pelo saudoso Lincoln Olivetti (morto em 2014), "Amor, Se
Acalme" (de Marisa Monte, Arnaldo e Cezar Menezes); a sensorial “Anuviar”,
de Moreno Veloso e Domenico; e a rica “Dez Anjos”, parceria de Criolo e Milton Nascimento, também feita especialmente para Gal. Aliás, para abrilhantar a
noite no Araújo Vianna, Bituca, na cidade para um show que faria dali a dois
dias, foi prestigiar a amiga.
Como nos velhos tempos, voz e violão.
O clima especial de quem está reverenciando sua própria obra
faz com que a artista passe por pontos importantes, e Caetano está presente aí
novamente. Além de ser personagem fundamental no resgate da companheira de
Doces Bárbaros e o único a ter quatro composições no set-list, é dele ainda outro feito: a primeira canção gravada por
Gal (ainda como Maria da Graça), “Sim, Foi Você”, em 1965. Para tocá-la, a
própria volta a empunhar o violão, numa das horas emocionantes do show.
A pulsante “Casca” (Jonas Sá e Alberto Continentino), das
melhores do show e que novamente remete ao tom kratrock de “Recanto”, fecha muito bem com o hino “Cartão Postal”,
de Rita Lee e Paulo Coelho, resgatada com muita sensibilidade por Gal. É o que
acontece também com “Arara”, de Lulu Santos, e no desbundante blues de “Como 2
e 2”, em que a cantora repete a performance que faz com que sua interpretação
seja tão definitiva quanto a de Roberto Carlos. Por falar em Roberto, é a
parceria dele com Erasmo Carlos escrita em homenagem à própria em 1969, o
sucesso “Meu nome é Gal”, que fecha o show no bis. Ainda teria mais um
impressionante arranjo, este para o samba dor-de-cotovelo de Lupicínio Rodrigues “Vingança”, que vira um bolero modernista, para encanto dos gaúchos.
Foi mais um show deste histórico momento de comemorações de
50 anos de carreira e/ou de 70 anos de idade, aos quais já presenciei de dois
anos para cá de Caetano e Gil (tanto juntos quanto separadamente), Milton, Maria Bethânia e da norte-americana Meredith Monk. Ou seja: a celebração de uma
geração que, na faixa ou acima dos 70 anos (ponham-se aí os Rolling Stones, Paul McCartney, Stevie Wonder, Bob Dylan e outros precursores), ainda nos tem
muito para dizer. E Gal, para sorte de todos, voltou ao time de forma inteira. Total.
Legal. Fa-tal. Estratosférica.
"Da Lama ao Caos" de 1994 já havia sido uma sensação, algo impressionante, incrível, notável, "Afrociberdelia" (1996), seu sucessor era a lapidação perfeita da ideia do anterior.
Então com mais tranquilidade,maturidade, liberdade e autonomia a Nação Zumbi liderada por sua cabeça pensante Chico Science ia adiante nos conceitos e princípios de sua música. Balanço, funk, peso, regionalismo, tecnologia eram levados um passo adiante no novo álbum. A banda desta vez mais livre e com crédito da gravadora abusava dos samples e dos recursos de estúdio mas de uma maneira muito sóbria e inteligente, sem fazer com que seu som se tornasse meramente um monte de colagens sem personalidade. "Afrociberdelia" como o nome, em cada um de seus radicais, tenta sugerir une a africanidade musical, a cibernética, o espaço, o futuro e as sensações sonoras possíveis de mexer com a mente.
E nesse emaranhado de música, folclore, tradição e tecnologia, o computador da Nação Zumbi dá o 'Enter' e "Afrociberdelia" se inicializa com Mateus, personagem do maracatu que apresenta o disco: Uma breve vinheta de introdução que parece já vir disposta a derrubar tudo com uma guitarra ruidosa e pesada, disparada à ordem do verso "Eu vim com a Nação Zumbi/ ao seu ouvido falar" chamada "Mateus Enter" começa a dar o recado encaminhar um grande disco.
Quase sem pausa, praticamente emendada, "Cidadão do Mundo" quebra a violência sonora com um funk cadenciado, de ritmo gostoso extremamente bem produzido, cheio de variações rítmicas e alternativas sonoras.
A ótima "Etnia", numa das principais características da banda mescla peso com a brasilidade de forma brilhante, entremeada por samples espertíssimos e bem sacados.
"Macô", com participação de Gilberto Gil, uma das tradicionais crônicas urbanas da turma de Chico Science, foi na verdade, minha primeira mostra do então futuro trabalho numa apresentação no Vídeo Music Awards da MTV Brasil com a presença de Gil no palco, á deixando-me ótima impressão e expectativa desde então. Uma daquelas tradicionais crônicas urbanas e de costumes das áreas pobres de Recife que Chico Science e sua turma tornaram tão características em pouco tempo, embalada por um ritmo extremamente convidativo e com um toque valioso da musicalidade de Gilberto Gil. Uma das melhores do álbum.
Por mais qualidades que tenha a original de Jorge Mautner, "Maracatu Atômico" ganhava sua versão definitiva nas mãos da Nação Zumbi, nume releitura inteligentíssima de alta sensibilidade musical, que transformava, por exemplo, o violino de Mautner num refrão pop altamente sonoro e contagiante, isso sem falar que o título parece ter sido feito sob encomenda para uma grupo musical que funde ritmos regionais com tecnologia. A gravadora enfiou no disco e goela abaixo da banda três remixes de gosto duvidoso e que, mais do que isso, comprometiam um pouco a ideia de álbum, o formato e o conceito, mas a gravação original, a pretendida pela banda, a do disco mesmo é um primor e uma das melhores coisas que fizeram, ouso dizer até, respeitosamente, que, de tão perfeita "Maracatu Atômico" passou a ser mais de Chico Science do que de Jorge Mautner.
Outra das melhores do disco e da banda e que igualmente obteve boa resposta comercial e de execução pública é a embalada "Manguetown", composição brilhante de cabo a rabo, desde o conceito, a letra sobre os catadores de caranguejo nos mangues imundos, a base de baixo, a percussão mais requintada, a guitarra discreta mas eficiente, os samples, o refrão, tudo! Sonzaço!
A segue "Um Satélite na Cabeça" com sua guitarra repetida e agressiva; "Baião Ambiental', mesmo guardando características do ritmo que lhe dá nome, é mais um ponto de umbanda pontuado por um baixo distorcido. Genial!
Provavelmente a mais violenta do disco, em todos os sentidos, "Sangue de Bairro" é um metal impiedoso em que visceralmente Chico enumera os integrantes do grupo de Lampião e descreve de forma cinematográfica sua decapitação ("Quando degolaram minha cabeça passei mais de dois minutos vendo meu corpo tremendo")
Depois da porradaria, a vinheta "Interlude Zumbi" com sua profusão de berimbaus, tocados e sampleados encaminha um momento mais lento do disco com a agradável "Amor de Muito" e a boa "Crianças de Domingo" do ex-Fellini, Cadão Volapato, que faz menção ao belíssimo filme do mesmo nome, dirigido pelo filho de Ingmar Bergman;
"Samidarish" que seria o final do álbum segundo a banda, traz um instrumental psicodélico de tons orientais com uma guitarra viajante e no final um curto segmento onde Chico declama versos sobre uma batida tímida.
Tirando as versões de "Maracatu Atômico" que vinham depois, ali acabava um dos álbuns mais importantes da música brasileira. Uma das últimas vezes que se fez algo realmente relevante, criativo e original no Brasil. Nós brasileiros temos na maioria das vezes a tendência de subestimar o que se produz aqui e nessa síndrome de vira-lata não conseguimos enxergar muitas vezes a extensão de uma obra como esta. O que Chico Science e a Nação Zumbi faziam naquele momento era talvez o que de mais criativo e inovador houvesse na música mundial mas o ranço tupiniquim não permite que se veja e se reconheça algo assim.
Infelizmente a trajetória da banda com Chico Science que era inegavelmente o cérebro eletrônico do projeto foi abreviada com um acidente automobilístico e, com ele, a banda produziu apenas dois álbuns. Mesmo com os demais integrantes tendo continuado e tendo feito bons trabalhos depois, fica evidente que a genialidade, a visão, a ousadia de Chico fazem falta e mesmo o melhor da Nação Zumbi sem ele, não chega nem perto do que eles fizeram e de onde poderiam chegar. A vantagem, se é que se pode ver pelo lado bom, é que em pouco tempo de vida Chico Science nos proporcionou nada mais nada menos do que duas das maiores obras do rock nacional... e internacional, por que não?
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FAIXAS: 1. Mateus Enter (Chico Science & Nação Zumbi) 2. O Cidadão do Mundo (Chico Science/ Nação Zumbi/ Eduardo BID) 3. Etnia (Chico Science/ Lucio Maia) 4. Quilombo Groove (instrumental) 5. Macô (Chico Science/ Jorge du Peixe/ Eduardo BID) 6. Um Passeio no Mundo Livre (Chico Science & Nação Zumbi) 7. Samba do lado (Chico Science & Nação Zumbi)8. Maracatu Atômico (Jorge Mautner / Nelson Jacobina) 9. O Encontro de Issac Assimov com Santos Dumond no céu (Chico Science / Jorge Du Peixe/ H.D. Mabuse) 10. Corpo de Lama (Chico Science / Jorge Du Peixe/ Lucio Maia / Dengue) 11. Sobremesa (Chico Science & Nação Zumbi / Renato L.) 12. Manguetown (Chico Science / Lucio Maia / Dengue) 13. Um satélite na cabeça (Chico Science & Nação Zumbi) 14. Baião Ambiental (instrumental) 15. Sangue de Bairro (Chico Science & Nação Zumbi) 16. Enquanto o Mundo explode (Chico Science & Nação Zumbi) 17. Interlude Zumbi (Chico Science / Gilmar Bolla 8 / Gira / Toca Ogan) 18. Criança de Domingo (Cadão Volpato / Ricardo Salvagni)19. Amor de Muito (Chico Science & Nação Zumbi) 20. Samidarish (instrumental) 21. Maracatu Atômico (Atomic Version) 22. Maracatu Atômico(Ragga Mix Version) 23. Maracatu Atômico (Trip Hop) ************************* Ouça: Chico Science & Nação Zumbi Afrociberdelia
“Meu
som não deixa nada a desejar para o que houve,
há e haverá no
mercado musical.
Digo, repito, atesto e assino embaixo,
sem medo de
errar e sem falsa modéstia.
É muito swing, balanço, molho,
charme e malemolência,
pois nem Santo Antonio com gancho consegue
segurar,
nem o boato ou disse-me-disse de que
eu havia morrido de
desastre de moto.
Se esqueceram de uma coisa: que eu sou imorrível!”
Di Melo
Assim
como não seria exagero dizer que tudo em Seu Jorge que não é João
Nogueira é Carlos Dafé, a mesma comparação dialética serve muito
bem para outro ídolo da música brasileira da atualidade: tudo que
não é Sabotage em Criolo é Di Melo. A constatação, embora
um tanto capciosa, denota o quanto a arte musical de hoje no Brasil
anda a reboque daquilo que já foi produzido e, principalmente, o
quanto artistas do passado foram, de fato, precursores. No caso de Di
Melo, este é pioneiro de muito do que se considera “inovação”
na música brasileira de hoje e, novamente em comparação a Criolo,
a poética afiada e o ecletismo que se percebem neste último chegam
a quase parecer uma cópia.
Todo o
pioneirismo de Di Melo está, curiosamente, em apenas um disco, o
álbum homônimo produzido por ele em 1975, um marco na história da
música pop brasileira. Idolatrado por artistas como Otto, Nação Zumbi, Leo Maia, Simoninha, Max de Castro e Charles Gavin (que, como
produtor, o verteu para CD em 2004), “Di Melo” é tomado
de lendas para os apreciadores e colecionadores, assim como a própria
figura do simpático e bonachão músico pernambucano. Saído de sua
Recife natal nos anos 60 para São Paulo, onde gravou este álbum em
alto estilo, Roberto de Melo Santos é daqueles músicos cheios de
talento e criador de uma única grande obra que, com o passar do
tempo, caíram no ostracismo. Porém, como muitas vezes acontece com
artistas brasileiros esquecidos no seu próprio país, o retorno de
Di Melo à mídia tem a ver com a apreciação que veio de fora. Nos
anos 90, seu LP tornou-se sucesso entre DJ’s europeus e teve uma de
suas faixas incluída numa coletânea da gravadora norte-americana de
jazz Blue Note. O suficiente para a galera tupiniquim voltar correndo
para conhecer aquilo que desprezava. Logo “Di Melo” passou a ser
valorizado nas lojas de bolachões paulistanas até esgotar e virar
raridade no mercado negro, chegando a custar 300 Reais em média um
vinil.
Os
músicos que participaram de sua gravação dão ao disco uma aura
ainda mais épica: contou com uma cozinha com Cláudio Bertrame
(baixo), Bolão (sax), Luiz Melo (teclado), Geraldo Vespar (maestro,
arranjos e violão), José Briamonte (maestro), Waldemar Marchette
(arregimentação) e ainda participações de gente do calibre de Hermeto Paschoal nos arranjos (!) mais Heraldo Dumont, Capitão,
Ubirajara (pai do Taiguara) e até de um músico da banda de Astor
Piazzola.
Já
para com Di Melo, a falácia chegou ao nível de este ser considerado
morto após um hipotético acidente de moto. Tudo boato: Di Melo mora
no subúrbio de Recife com filha e esposa, vive da venda dos quadros
que pinta e, segundo o próprio, tem mais de 400 canções prontinhas
para serem gravadas (inclusive parcerias com Geraldo Vandré).
Dessas, as que conseguiu pôr no acetato no famoso disco de 1975 são
verdadeiras joias da música brasileira moderna, onde demonstra uma
versatilidade e um groove de deixar muito medalhão da MPB com
inveja.
“Di
Melo” começa com a gostosa “Kilariô”, um arrasador jazz-funk
com uma pitada caribenha e cuja melodia de voz é daquelas que pegam
no ouvido de cara: “Kilariô, raiou o dia/ Eu fiz chover em
minha horta/ Ai ai meu Deus do céu, como eu sofri ao ver a natureza
morta”. A voz de timbre abençoado de Di Melo, algo entre o tom
metálico de Moraes Moreira e a pronúncia aberta de Wilson Simonal,
é ainda mais realçada pelo belo sotaque pernambucano (com suas
pronúncias “holandesas” do “T” como “Tí” e do “D”
como “Dí”). Além disso, Di Melo canta ao estilo dos mestres da
soul music norte-americana, mas também referenciando-se em
artistas nordestinos como ele, desde o swing de Jackson do
Pandeiro até o vocal rasgado de Genival Lacerda.
Em
seguida, outra que vem ratificar definitivamente a veia soul:
“A vida em seus métodos diz calma“, seu maior sucesso tanto na
época quanto na sua “retomada”, visto que foi esta a faixa que
os gringos escolheram para a coletânea de “novidades” da Blue
Note. A letra, igualmente pegajosa, é um destaque, tanto pela
mensagem quanto pela melodia de voz que lhe é empregada: “A
vida em seus métodos diz calma/ Vai com calma, você vai chegar/ Se
existe desespero é contra a calma, é/ E sem ter calma nada você
vai encontrar”. Nesta fica evidente a afinação da banda e a
qualidade da produção de Zilmar R. de Araújo. Tudo certo, tudo no
lugar: o groove da batida, os timbres, a levada da guitarra, o
arranjo dos sopros.
Na
sequência, vêm três maravilhas altamente críticas à sociedade
moderna e à condição do homem oprimido pela cidade grande, algo
que a percepção de nordestino na gigantesca São Paulo ajuda a
enxergar com mais clareza. Primeiro, “Aceito tudo”, de poética
letra que remete ao modernismo e ao fraseado de um estilo musical que
ainda nem existia, o rap, visto seu jeito de cantar e organizar os
versos na melodia. Música que lembra muito a maneira de escrever e
cantar de Chico Science (até por causa do sotaque) e que
provavelmente é tudo o que Criolo sempre quis fazer: espécie de
repente moderno marcado na guitarra com letra sacaca e de sinapses
ligeiras (Aí eu pensei que ia indo caminhando mas não fui/ para
um sonho diferente que se realiza e reproduz/ E pensando fui seguindo
num caminho estreito cheio de toco/ Esqueci de lembrar de pensar que
todo penso é torto...”). No fim, desemboca em um funk
irrepreensível comandado pelos vocais espertos de Di Melo.
A
outra é mais uma pérola: "Conformopolis". Mas, peraí: essa
melodia é uma... milonga?! Sim, uma milonga, ritmo hispano-ibérico
típico do Rio Grande do Sul e dos vizinhos portenhos Uruguai e
Argentina. Esta gravação é algo sem precedente dentro da MPB fora
dos pagos gaúchos. Não eram os irmãos Ramil, não era Hartlieb,
não eram os Almôndegas nem Ellwanger. É um pernambucano em terras
paulistanas totalmente sintonizado com a arte musical – pois,
afinal, música boa não tem fronteira. Pungente, realista,
melancólica: “A cidade acorda e sai pra trabalhar/ Na mesma
rotina no mesmo lugar/ Ela então concorda que tem que parar/ Ela não
discorda que tem que mudar...”. Das grandes do disco, que já
foi motivo de Cotidianas aqui no ClyBlog.
Mais
um apelo crítico à vida maquinal e desumanizadora da sociedade
moderna, desta vez na balada marcial “Má-lida”. Os versos,
confessionais, traduzem através da repetição fonética e de
sentenças curtas o deslocamento existencial de um homem no mundo:
“Ah! tenho de pouco surrados miúdos malditos/ Fui entrelaçado
e já fui casado/ Um tanto inibido/ E pra muita gente sou um
depravado.” E completa: “Ah! julgo não ser enxerido nem
intrometido/ Tampouco ousado/ É que estou saturado de tanta má-lida/
Mesmo trabalhando como um condenado”. E os arranjos de cordas
são preciosos.
E se
pensa que as surpresas param por aí, é porque não se tem noção
do que vem a seguir. Depois de três exemplos de soul, de uma
canção mais contemplativa e de uma surpreendente milonga, Di Melo
manda ver um tango! Sim, “Sementes” é um tango, ainda mais
platino que “Conformópolis”. É nesta em que toca um dos músicos
da banda de Piazzola que Di Melo em entrevista diz não lembrar do
nome, mas que, afora esse detalhe importante, dá um show de
acordeom. Os versos acompanham a elegância dramática deste estilo
musical: “Vai, flor que se mata a espera do amanhã/ Vai,
desembaraça teu sorriso a uma irmã/ Vai, que quando passas tu
perfumas chão ardente/ Vai, que o tempo atrai de ti sua semente...”.
“Pernalonga”
retoma o swing num balanço irresistível, o mesmo com outra
ótima do disco: “Minha Estrela”, de letra romântica mas no
ritmo chacoalhante da soul. De novo, a voz variante de Di
Melo, que vai do som aberto ao aveludado, bem como a pronúncia
pernambucana, se sobressai: “Minha estrela/ Girai na noite até
o raiar do dia/ Se tiver fossa vem que eu canto a melodia/ Não quero
ver o teu sorriso magoado”. O samba-rock “Se o mundo acabasse
em mel” pode ser considerado uma "Construção" pop, porém não
narra a morte repentina de um trabalhador pobre como no clássico de Chico Buarque, mas sim de um milionário do mundo do business
publicitário. “Deu pane no nervo do cérebro/ Taquicardia e
reverbério/ Momentos trágicos, instantes sórdidos/ Tombou perplexo
em pleno orbe”. Que versos!
Bucólica,
“Alma gêmea” começa com um dedilhado de violão a la
Bach que marca sua base, acompanhado de acordes de flauta que
explicitam a tocante canção. É outra que faz lembrar bastante Moraes e Chico Science, mas também da MPB rural da época. Em
“João”, a força melódica e letrística de Di Melo volta com
tudo para uma nova análise existencial do homem, um “João”
qualquer que vive submerso nas exigências sociais (trabalho,
casamento, amigos, lazer) e naquilo que ele deve ou não ser mas que,
justamente por isso, faz com que se perca de si como indivíduo. Na
alta variedade de ritmos do disco, ele finaliza com um xote.
“Indecisão” ainda termina com versos quase proféticos vindos de
um artista que conheceria o estrelato e o ostracismo, mas que nunca
deixaria de seguir pelo caminho da música: “Tem gente que nasce
pra ter e tem gente que vem pra cantar”.
Pode-se
tranquilamente colocar “Di Melo” junto a outros grandes álbuns
da soul music brasileira como os “Tim Maia Racional”, “Pra
que vou recordar o que chorei”, de Dafé, ou “Saci Pererê”, da Black Rio. Esse sentimento é compartilhado por vários apreciadores
desta obra, o que pode ser visto no bom curta documentário “Di
Melo, O imorrível”, de Alan Oliveira e Rubens Pássaro, realizado
em 2011 e que retrata a vida do compositor hoje, relembrando
histórias, coletando depoimentos de fãs e amigos e mostrando sua
ainda tímida volta aos palcos. Oxalá Di Melo possa tornar a gravar
e, quem sabe, fazer o sucesso que lhe é cabido. Para quem já foi
dado como morto e que, de certa forma realmente “reviveu”, nada é
tão improvável assim. Certo é que sua obra, mesmo passados tantos
anos (40 anos), segue sendo cada vez mais admirada. E, afinal, como Di Melo diz
de si próprio: “Para o imorrível nada é impodível”.
Nascer é depois, é nadar
após se afundar e se afogar...”
Waly Salomão,
trecho do poema “Sargaços”
“Que o leitor, livre dos
lugares-comuns, possa agora,
perambular livremente entre as falanges das
máscaras que povoam
os libanos de sonho da mente régia de Waly Salomão,
um dos
poetas mais originais e vigorosos do nosso tempo.”
Antonio Cícero
Cada vez que
escuto uma canção ou sua voz falando verborragicamente sobre algum tema, paro.
Ler não é a mesma coisa. Parece que a
voz de Waly Salomão ou a sua poesia transformada em canção tem que estar no
volume máximo. Assim, daquele jeito que o coração dispara, os olhos se fixam no
interlocutor e a mente divaga.
Sempre uma
cena mágica abre-se com sua presença. Ora pela risada estrondosa, ora pelo seu porte
de Rei Salomão. Lá de cima, com o limite cacheado dos cabelos, observa com
muita acidez o que ocorre nas entrelinhas da sociedade. E não perdoa. Solta as
palavras como leões ferozes, coreografados como se fossem um cardume infindável
de peixes dançarinos em nossa frente, chamando a atenção, hipnotizando.
Waly sempre intenso, escrevendo ou falando
Confesso que
o conheci por vias tortas. Explico. Custo a perceber as autorias, e olha que minha
desatenção já foi pior. Só quando alguma composição me toca é que mergulho nos
créditos, senão deixo um espaço livre para que as informações que valem a pena
se fixem. Talvez uma forma de backup
saudável em tempos que tudo interessa, tudo é cool, tudo deve ser fixado, aprendido numa mente que não pode ser
ampliada com acréscimos de memória eletrônica. Afinal “A memória é uma ilha de
edição”, não?
Não soube da
existência e paradeiro de Waly por muitos anos. Tempo demais, mas que me permitiu
escutá-lo numa palestra em Porto Alegre na Usina do Gasômetro, junto com a
minha irmã, em 1998. E lá estava Waly, ocupando um dos lugares na mesa, o homem
das Artes múltiplas, dos dizeres não-óbvios, das filosofias vãs e das frases
sem comprometimento com o dever de dizermos o que deve ser dito. Diga você o
que quiser, mas escute também o que vier. Dali em diante prestei atenção nele.
E descobri muito lentamente onde ele estava morando. Em quais espaços estava
presente. Desde então sempre quis saber por “Onde
estava o nosso Waly?” como se um mapa sinônimo da personagem Wally criado
pelo ilustrador americano Martin Handford pudesse avistá-lo, numa terra à
vista, em meio a tantos cacarecos desnecessários à essência humana. Afinal é
fundamental selecionar o que queremos receber, privilegiar aquelas produções
que sejam sintonizadas conosco, abrir espaço para aquilo que nos desacomoda. A
vida sem desafios torna-se muito tediosa e improdutiva.
Waly era
assim, desafiava a todos, começando por si próprio. Não poupava os seus
compatriotas, não poupava sua nação de escutá-lo. Baiano, filho de Xangô e
virginiano (“Eu deliro, mas tenho os pés
no chão porque sou de virgem”) sempre esteve ligado aos coletivos. Gostava de dizer: “Chega do papo furado de que o sonho acabou: A Vida é Sonho. A Vida é
Sonho. A Vida é Sonho.” como um cale-se a quem dizia que o sonho havia
acabado, gerando uma onda de baixa estima a tudo que fosse revolucionário.
Irreverente, sempre. Múltiplo também. Porque dizer algo que não tenha um pouco
de poesia, humor e sarcasmo misturados? De origem síria, não escondia suas
raízes “estrangeiras”, mas também sua relação com essa pátria em que todos
vivemos paridos pelo caos. Isso não o assombrava: o que seria diferença para
outros, para ele era semelhança.
Lemisnki
dizia que Waly “se não chegou a se tornar
tudo, foi muitas coisas”. Isso, claro, para a nossa sorte que bebemos um
pouco de lucidez através da sua poesia. Entre 1970 e 2000, Waly atuou como
poeta, ensaísta, letrista, articulador cultural, diretor de espetáculos,
artista visual e homem público. Dirigiu entre outros o espetáculo “FA-TAL – Gal
a todo vapor”; de Gal Costa, esteve na Direção da Fundação Gregório de Matos de
Salvador e coordenou o Carnaval da Bahia. Seus poemas foram musicados por
muitos artistas, entre eles: Caetano Veloso, Gilberto Gil, Jards Macalé, João Bosco e Adriana Calcanhoto.
Depois de 11
anos da sua passagem, em 2003, a editora Companhia da Letras lançou com a
bênção dos herdeiros a poesia completa de Waly, “Poesia Total”. Cada vez que a família de algum artista faz essa
ação de compartilhar de forma organizada e acessível à obra de quem não pode
mais decidir sobre publicações, sinto-me esperançosa. As publicações são formas
de perpetuar a obra de um artista, daí meu agradecimento pela reunião da
produção do artista.
Ali estão os
poemas e as reflexões de Waly. Minhas prediletas são os poemas que viraram
canções: “Vapor Barato” com Gal; “Mal Secreto” com Jards; “Mel” e “Cobra Coral”,
ambas na voz de Caetano Veloso; “Fábrica do Poema”, em homenagem à arquiteta
italiana Lina Bo Bardi, a hipnótica “Pista de Dança” e a recente “Teu nome mais
secreto”, todas na voz de Adriana Calcanhoto; “Zumbi (A Felicidade Guerreira)”
e “Ganga Zumba (O Poder da Bugiganga)”, que encantam no filme “Quilombo”, na
voz de Gil; a descontraída e pontual “Assaltaram a Gramática”, musicada por Lulu Santos e gravada por Paralamas do Sucesso; “Memória da Pele”, musicada e
gravada por João Bosco e outros poemas dedicados em pura palavra-sentimento a
Solange Farkas, in memoriam à Lygia
Clarck e a Luiz Zerbini, além do amoroso poema “Mãe dos Filhos Peixes” a sua
Yemanjá: Martha.
Waly,
diferente da personagem americana que tem em seu protagonista um jovem
adolescente, cresceu. Ele que diz: “Tenho
fome de me tornar em tudo que não sou”, porém soube ser muitos sendo um só.
Amadureceu cedo demais. O poeta Alexei Bueno comenta uma obra de Waly, “Lábia,
1998”, sua retomada cortante e límpida com as palavras, mais adiante na resenha
diz que está na sintaxe sua mais poderosa característica. Senão isso, talvez a
clareza e a assertividade de pensamento fazem de Waly um poeta que nos deixa
suspensos numa ponte pênsil a cada palavra dita. Em Desejo&Ecolalia, de
1995, ele diz: “O que é que você quer ser
quando crescer? Poeta polifônico”. E foi assim que ele nos alcançou em meio
ao caos pertinentes da mesma pátria em que vivemos.
O "Pocket Waly", apresentado na
60ª Feira do Livro de POA
Ainda no ano
passado, uma dupla de músicos, Thiago Pirajira e Ricardo Pavão, levaram sua poesia em canção em plena Feira do
Livro de Porto Alegre – 60ª edição no “Pocket Waly”. A performance sonora misturava canções e dizeres de Waly e lotou a
Tenda de Pasárgada, tradicional palco para apresentações montado durante a
Feira. Waly estava ali cintilando de dourado e negro em meio aos violões e
vozes. Podia ver-se Waly vestido num parangolé
pamplona junto com Oiticica, enfeitado de muita sensibilidade e delicadezas
que ele possuía igualmente a sua capa de devaneio concreto. Vivo.
Se você
nunca esbarrou na obra de Waly Salomão ou nem pensou em procurá-lo, mude de
rota. Estabeleça uma meta e persiga-o incessantemente. Se conseguir alcançá-lo
não desista nas primeiras leituras: siga sereno, mas constante. Leia, cante e diga em voz alta sua poesia. Aos brados retumbando
suas frases você sentirá o que ele tinha internamente. Um vulcão prestes a
explodir! E sabemos que as terras próximas aos vulcões são sempre as mais
férteis, mas suas lavas podem queimar. Mesmo assim siga em frente, rompa essa
fronteira. Se necessário queime-se, transforme-se. Vale a pena.
As Dunas da Gal, o Vapor Barato, ‘a mulher
mais elegante do Brasil’
(no dizer de Danuza Leão na época),
Baby, Divino
Maravilhoso, Índia:
todo um mundo brasileiro do qual
não podemos abrir mão
se
quisermos ser o que devemos ser."
Caetano Veloso
Caetano Veloso é, como todos sabem, irmão de Maria Bethânia. Mas sua
ligação e sinergia musicais com Gal Costa talvez sejam até maiores do que com a
cosanguínea. Baiana como ele, poucos anos mais nova mas da mesma geração, foi
com Gal que o cantor e compositor gravou seu primeiro disco, “Domingo”, de 1966
– embora o elo, inclusive familiar, já viesse de antes. Além disso, no entanto,
foi Gal quem, embarcada com os dois pés no Tropicalismo liderado por ele e Gilberto Gil na segunda metade dos anos 60, manteve acesa a explosão
transgressora e criativa aberta pelos tropicalistas quando do exílio da dupla
em Londres de 1969 a 1972. Ao contrário de Bethânia – que sempre soube seguir o
seu caminho fugindo ao máximo das rotulações e estereótipos –, Gal por escolha não
só segurou a barra enquanto única remanescente da formação original da
Tropicália durante os anos de chumbo da Ditadura como, mais ainda, avançou a
MPB em todos os sentidos, da confluência de estilos e referências (objetivo-fim
tropicalista) a, obviamente, sua própria arte maior: a técnica do canto.
Não se começou a falar em Caetano Veloso num texto sobre Gal Costa à
toa. Como aconteceria no espetacular "Recanto" – disco de 2012 cujo diálogo estreito
com este forma um díptico de 38 anos de ínterim –, é o quase-irmão Caetano quem
dá o tom do “cantar” de Gal. Produzido por ele em parceria com outro mestre da
retaguarda tropicalista, Perinho Albuquerque, é um disco totalmente maduro da
talentosa cantora, já deixando a extravagante e raivosa Gal do início da Tropicália
um pouco para trás. Aqui, ela está dona de si, de seu conceito como artista e
do posto de maior cantora de seu tempo ao lado de Elis Regina, também no auge à
época. E Caetano, dirigindo um projeto para ela pela primeira vez (até então
haviam exercido tal função Wally Salomão, Jards Macalé, Rogério Duprat e Guilherme Araújo), é um pouco responsável por esse amadurecimento.
Desfilam pelo disco músicos de primeira linha, como o genial João Donato, o mestre da raça Gil, o “Clube da Esquina” Noveli, o baterista Tuty
Moreno e, claro, os próprios Perinho e Caetano. O resultado é um álbum
resplandecente, florido como sugere a belíssima arte forjada pelo artista visual Rogério Duarte. A contestação de “Divino, maravilhoso”, a fúria de “Eu sou
terrível”, a psicodelia de “Dê um role” ou a estridência de “Meu nome é Gal”,
agora, refazem-se, remolduram-se. Estão ali, porém sob outro olhar. Um sopro de
pólen colorido no negror dos anos de chumbo.
O começo não é nem um desabroche: é a flor já em pleno estado de vida.
“Barato Total”, hit do álbum, é das melhores músicas de Gilberto Gil cujo
presente não se encerra somente no fato de este tê-la dado especialmente para a
amiga. Gil também empunha o violão durante a faixa, e Gil ao violão sabe-se
como é, né? Além de sua altíssima técnica que une a batida de João Gilberto ao
ritmo frenético do rock – e mais o congado, o maxixe, o jazz e o baião –, o
grande compositor simplesmente arrasa nas cordas, sustentando a melodia num
toque swingado e cheio. É tão intenso que, na regravação feita por Gal com a Nação Zumbi, em 2004 (também produzida por Caetano), bastou à banda traduzir
para os tambores pernambucanos a batida de violão de Gil. A letra traz, já na abertura
do disco, a mesma ideia de ressaltar a beleza da vida para além de toda a
situação política e moral do país: “Quando
a gente tá contente/ Tanto faz o quente, tanto faz o frio, tanto faz”. E
finaliza, numa exclamação: “Quando a
gente tá contente/ Nem pensar que está contente a gente quer/ Nem pensar a
gente quer, a gente quer/ A gente quer, a gente quer é viver”.
Como todo grande disco, “Cantar” larga com uma de encher os olhos. O
que virá a seguir superará ou se equiparará? Pois o lirismo da cantora estava
realmente germinado. Ela arrebenta na interpretação da clássica “A Rã”. É a primeira
das quatro de autoria de Caetano no disco, e justo uma em parceria com outro
personagem fundamental desta obra: João Donato. Ele, além desta, assina o
arranjo da canção de ninar que finaliza o disco, “Chululu” (de autoria da mãe
de Gal, Mariah Costa, que costumava cantá-la para a filha na infância), e de outras
duas: “Até quem Sabe”, só piano e voz, lindíssima e altamente erudita; e “Flor
de Maracujá”, um soul funkeado ao
estilo de “A Bed Donato” (referencial álbum gravado pelo acreano nos Estados
Unidos em 1970). Esta, última do lado A do vinil, dialoga maravilhosamente com
a primeira da segunda face: “Flor do Cerrado”, que, assim como “Barato Total” é
das melhores composições de Gil não gravadas por si próprio, também é das mais
belas de Caetano nunca registradas por ele mesmo. Letra de poesia caetaneana,
vocal cristalino de Gal e uma rica incursão do autor contracantando “Garota de
Ipanema”, de Tom e Vinícius. No refrão, ainda, Gal, afinadíssima, executa um
portamento de notas muito bonito e técnico, subindo gradualmente até finalizar
lá em cima da escala na última palavra: “Mas
da próxima vez que eu for a Brasília/ Eu trago uma flor do cerrado pra você”.
Antes, entretanto, o primeiro lado ainda guarda duas ótimas faixas.
Lua, lua, lua, lua”, mais uma de Caê, que, junto com outra que vem mais
adiante, “Joia” (um espetacular trabalho de percussões africanas e piano
monotonal que antecipa trabalhos de Caetano de 1997 e 2000, “Livro” e “Noites
do Norte”, respectivamente, quando ele aproxima a vanguarda erudita às raízes
da África), foram gravadas por Gal um ano antes do próprio usá-las no seu disco
– por sinal, intitulado “Joia”. E diferentemente da versão barroca que gravaria
para si, “Lua...” traz um elemento interessantíssimo: sob a voz dela, Caetano exercita
uma espécie de beat-box, expediente
que o mesmo se valera na concepção da trilha sonora do filme “São Bernardo”,
dois anos antes, encomendada pelo cineasta Leon Hirszman a ele quando ainda no
exílio.
A outra maravilha que completa a primeira parte de “Cantar” é “Canção
que morre no ar”, clássico da bossa-nova de Carlos Lyra e Ronaldo Bôscoli,
somente com a voz e um apaixonante e ornado arranjo de cordas de Perinho e
regência de Mário Tavares. Aqui, Gal encarna Billi Holliday acompanhada da
orquestra de Ray Ellis em "Lady in Satin"; Ella Fitzgerald conduzida pela batuta
de Nelson Riddle em “Sings the George and Ira Gershwin Songbook”; ou Dalva de
Oliveira com o conjunto sinfônico de Roberto Inglez. Gal está jazzística e
lírica em seu timbre de soprano. A letra faz uma fusão entre as atmosferas
lunar e flórea do disco como um todo: “O
mundo é sempre amor/ O pranto que desliza/ No seio de uma flor/ É a luz lá do
céu”.
Também síntese do álbum é “O Céu e o Som”, do cantor, compositor e
poeta Péricles Cavalcanti. Ritmada e gostosa, contrapõe cantos entre ela e um
coro masculino (que desconfio seriamente serem Os Golden Boys, embora não haja crédito
disso). “Cantar, cantar/ Há uma asa na
alma no ar/ Me ensina a cantar, amor”. E, lá pelas tantas, perguntam
retoricamente: “Quem foi que disse que a
mulher não voa?” Voa, sim.
Tanto voa que, antes de terminar o disco, Gal faz o ouvinte levitar no sensualíssimo
jazz “Lágrimas Negras”, composição de Jorge Mautner e Nelson Jacobina. Das
melhores do álbum, sua cadência suave remete (e serve muito bem para isso,
diga-se de passagem) ao momento de uma transa embalada ao ritmo da
guitarra-ponto dedilhada por Perinho. E quando Gal, diz, num compasso hiper sexy: “E você, baby, vai, vem, vai...”, é de arrepiar até o tal “astronauta
da saudade” mencionado na letra!
“Cantar” gerou um show que não foi bem recebido pelo público por ser
taxado de “muito suave”, contrastando com a imagem forte que a cantora criara a
partir do movimento tropicalista. À época, bom que se lembre, artistas de
sucesso como ela eram exigidos pela opinião pública burra de permanente e
abertamente lutarem contra a Ditadura na concepção de suas obras. Queriam
canções de protesto, não arte. Uma bobagem tamanha, uma vez que a premissa do
artista é exatamente a liberdade tão desejada por estes que os retalhavam.
Afora isso, visto noutro enfoque, há formas distintas de se lutar e se engajar
sem necessariamente bater de frente com a força bruta – e sair perdendo, como
geralmente acontece. Foi o que Gil e Caetano, enquanto tropicalistas como ela,
fizeram a seu modo. E venceram. Hoje, completando 40 anos de seu lançamento,
“Cantar” é um trabalho de uma riqueza descomunal que tem ainda muito a se
revelar e cuja participação destes protagonistas foi fundamental. Uma flor que
não morreu e ainda colore o jardim de quem entende que “o caminho do céu” está
“no caminho do som”. Gal nos ensina a cantar e voar.
"Barato Total" - Gal Costa
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FAIXAS:
1. Barato Total (Gilberto Gil) - 3:48
2. A Rã (Caetano Veloso, João Donato) - 3:52
3. Lua, Lua, Lua, Lua (Veloso) - 3:02
4. Canção que Morre no Ar (Carlos Lyra, Ronaldo Bôscoli) - 1:50
5. Flor de Maracujá (Veloso/Lysias Ênio) - 2:56
6. Flor do Cerrado (Veloso – música incidental: “Garota de Ipanema”,
Tom/Vinicius) - 3:13