Já houve a quem surpreendi com essa afirmação: Pedro Almodóvar não me é uma unanimidade. Pelo menos, por certo tempo em sua filmografia, seu cinema, mesmo inequivocamente admirável, desagradava-me em algum grau, como se algo oculto, mas grave, estivesse fora do lugar. Desde sempre sei claramente de sua excelência nos vários aspectos fílmicos: roteiro, enquadramento, fotografia, direção cênica, arte, sensibilidade musical. Sei de tudo isso, mas era como se algo me incomodasse que eu não soubesse exatamente como explicar. Recapitulando melhor: minha relação com os filmes do cineasta espanhol vem desde praticamente o início de sua carreira, mais precisamente a partir de “Matador”, de 1986. Claro que me assombrei com aquele cinema potente, repleto de erotismo, crítica social e política, sarcasmo e lirismo, o que se confirmou nos seguintes “A Lei do Desejo” (1987) e “Mulheres à Beira de Um Ataque de Nervos” (1988). Porém, já a partir de “Ata-me!” (1989), seguindo de “De Salto Alto” (1991), “Kika” (1994) e “Carne Trêmula” (1997) esse desconforto passou a aparecer. O que seria?
Assistindo a seu novo filme, no entanto, o candidato a Oscar de Melhor Filme Internacional “Mães Paralelas”, foi que finalmente compreendi o que me perturbava em Almodóvar. Mas vamos ao filme primeiro: na história, duas mulheres, Janis (Penélope Cruz) e Ana (Milena Smit), dão a luz no mesmo dia e no mesmo hospital. Janis, de meia idade, teve a gravidez planejada e já se sente preparada e eufórica para ser mãe. Ana, adolescente, engravidou por acidente e sente medo do que está por vir, além de estar assustada, arrependida e traumatizada. As duas enfrentam essa jornada como mães solos e estreitam o vínculo entre si. Porém, o destino lhes guarda acontecimentos inesperados, que vão mudar profundamente suas vidas e remexer em questões originárias de ambas.
A abordagem realista de “Mães…” trouxe-me à luz que minha antiga questão com Almodóvar era nada estética e totalmente filosófica. Já nos primeiros minutos do filme o cineasta deixa claro que a trama encadeia com a mesma força os espectros existencial e sociopolítico ao evidenciar a situação das duas mães e da sua desafiadora condição feminina e, paralelamente, do resgate da memória de perseguidos políticos pela ditadura de Franco e cujos laços familiares são essenciais ao autorreconhecimento das personagens. Essa visão bastante autobiográfica, seja íntima ou coletivamente, não poderia ser abordada de outra forma que não a realista, contrariamente ao que por muito tempo prevaleceu como discurso nos filmes de Almodóvar, que era uma visagem reiteradamente excêntrica, quando não bizarra ou surreal. Essa linha de raciocínio transmitiu a mim por muito tempo que não havia outra visão de mundo para o diretor que não o decadentismo. Não que um autor, assim como muitos o fazem desde que a arte pensa o mundo, não possa – ou deva – expressar seu pessimismo. Não fosse assim, desconsideraria, por exemplo, o cinema de Angelopolus, Von Trier ou Bergman, quase sempre amargos. Mas a impressão que dava na filmografia de Almodóvar, mais precisamente até “Tudo Sobre Minha Mãe” (1999), marco desta quebra para uma incursão mais realista e biográfica, resultava em algo um tanto simplista, como se tudo se resolvesse pelo bizarro. Desde pequenos detalhes do roteiro até “soluções” ou comportamentos inesperados dos personagens, havia como que uma inquietação que não permitia que as verdades se despissem: careciam sempre estarem vestidas de ironia, choque, de arroubos.
trailer de "Mães Paralelas"
Seria simplista, aí sim, de minha parte, no entanto, atribuir isso à homossexualidade, sempre tão presente em suas temáticas, embora propositadamente geradora de perturbação, um possível indicativo. Mas não era só isso. Havia no ar – assim como a sensação de suspensão obtida pela câmera de Resnais ou a de sonho que Buñuel magicamente atribuía a seus filmes surrealistas – um sentimento de deslocamento constante, uma revolta inquietante. Tudo, claro, com o invólucro extremamente bem acabado, que lhe é marca registrada, o que me confundia até certo ponto – além, claro, da própria qualidade de filmes como “Ata-me!” e “Kika”, por exemplo. Porém, tudo formava, por fim, algo inevitavelmente um tanto repetitivo, para mim insuficiente a um autor tão capaz de vislumbrar um paradigma mais amplo. O bastantemente autobiográfico “Dor e Glória” (2019), seu longa imediatamente anterior a “Mães…”, parece com este último mostrar um Almodóvar maduro, por mais estranho que essa afirmação possa parecer quando se refere a um dos mais talentosos cineastas da atualidade. Nada de rompantes dos personagens, falas chocantes, ações excêntricas como se a alma do ser ibérico fosse necessariamente sempre assim. Até mesmo o thriller“A Pele que Habito” (2011), filme que marcou uma recente virada de prestígio na carreira de Almodóvar, o elemento bizarro funciona a favor da narrativa fantástica por natureza.
Penélope noutra ótima atuação com Almodóvar, concorre ao Oscar de Melhor Atriz
Este pisar no chão de Almodóvar em “Dor...” e agora em “Mães...” acaba por repercutir principalmente no roteiro, precioso no entendimento das complexidades humanas e, consequentemente, na direção de atores – o que põe Penélope, vencedora do Oscar de Atriz Coadjuvante em 2009 por "Vicky, Cristina, Barcelona" a concorrer pela segunda vez na carreira ao de Melhor Atriz (a outra, também com Almodóvar, por "Volver", em 2007). Afinal, quer algo mais inesperado do que as reações do ser humano diante do medo? Não precisa de exagero para expressar isso com contundência.
O resultado é um filme preciso, em que Almodóvar deixa aquela sensação que somente os grandes conseguem, que é a de ter se superado. E isso é ainda mais louvável considerando que, assim como Allen, o espanhol é daqueles cineastas que sempre produziram muito e há muito tempo, o que, naturalmente, leva a maior probabilidade de erros e acertos. Decerto, o Oscar de Filme Internacional fique com o acachapante “Drive My Car”, o qual, assim como “Roma” em 2018, e “Parasita”, em 2020, concorre também ao de Melhor Filme, mas que dificilmente repetirá o feito deste último ao arrebatar as duas estatuetas. Independentemente de premiação ou não, como obra “Mães...” vem com pertinência discutir questões femininas com tamanha sensibilidade, ineditismo, beleza e verdade. Um filme que diz, a rigor, tudo sobre todas as mães do mundo.
melhor jogadora de futebol do mundo, na atualidade.
Pela rambla o estandarte das cores Catalunya, Barceloneta, Blaugrana A mirar-lhe o olhar de mil homens Bailarina dança na roda sardana
Chove chuva, molha o chão Nuvem, samba do avião Ela vai jogar
Hendrix, Elvis, Messi e hoje Brilha nova estrela dessa galáxia Flashes, lights, likes, closes Compartilha agora a beleza de Alexia
Vai começar mais um jogo
Menina mulher da pele branca Com a classe de quem sabe a arte de jogar bem futebol A bela da tarde com charme encanta Filme de Buñuel, obra de Gaudi ou tela de Miró
Hendrix, Elvis, Messi e hoje Brilha nova estrela dessa galáxia Inverte os pés, caem os cones Dribla as zagueiras e a guarda-metas
Jean-Claude Carrière disse certa vez que “quem faz cinema é herdeiro dos grandes contadores de histórias do passado”. Pois é isso: cineastas são contadores de histórias. Afinal, quase invariavelmente, quanto mais original a obra cinematográfica, mais se sente a “mão” do seu realizador. Um filme, na essência, vem da cabeça de seu diretor. Fato. Tendo em vista a importância inequívoca do cineasta, convidamos 5 apaixonados por cinema que, cada um à sua maneira – seja atrás ou na frente das câmeras –, admiram aqueles que dominam a arte de nos contar histórias em audiovisual e em tela grande.
Então, dando sequência às listas dos 5 preferidos nos 5 anos do clyblog, 5+ cineastas:
1.Gustavo Spolidoro cineasta e professor (Porto Alegre/RS)
"Se Deus existe, ele se chama Woody Allen"
O pequeno gênio,
Woody Allen
1 - Woody Allen 2 - Stanley Kubrick 3 - Rogário Sganzerla 4 - François Truffaut 5 - Agnes Varda ***************************************
2.Patrícia Dantas designer de moda (Caxias do Sul/RS)
"Gosto destes"
1 - Quentin Tarantino 2 - Stanley Kubrick 3 - Sofia Coppola 4 - Woody Allen 5 - Steven Spielberg *************************************** 3.Camilo Cassoli
Chego ao meu 50° ÁLBUM FUNDAMENTAL por um motivo especial. Embora todos
os discos sobre os quais escrevi sejam caros a mim, quando percebi que chegava
a essa marca não queria que fosse apenas mais um texto. Tinha que ser por um
motivo especial. Escreveria sobre os artistas brasileiros a quem ainda não
resenhei: Chico Buarque, Edu Lobo, Milton Nascimento, Paulinho da Viola? Ou das minhas queridas bandas britânicas, como The Cure, The Smiths, Cocteau Twins,
Echo and The Bunnymen? De algum dos gênios da soul, Gil Scott-Heron, Otis Reding, Curtis Mayfield, que tanto
admiro? Do para mim formativo punk rock
(Stranglers, Ratos de Porão, New York Dolls)? Obras consagradas de um Stravinsky ou alguma sinfonia de Beethoven? Outro de John Coltrane ou Miles Davis? Nenhum desses, no entanto, me pegava em cheio. A resposta me veio no
último dia 11 de junho, quando o saxofonista norte-americano Ornette Coleman deu adeus a esse
planeta. Aos 85 anos, Coleman morreu deixando não apenas o mérito da criação do
free-jazz como uma das mais revolucionárias
obras do jazz. A cristalização da proposta de inovação musical – e espiritual –
de Coleman veio pronta já em seu primeiro disco, o memorável “The Shape of Jazz to Come”.
Gravado no mesmo ano de 1959 que pelo menos outros dois colossos do
jazz moderno – "Kind of Blue", de Miles, arcabouço do jazz modal (agosto), e
“Giant Steps”, de Coltrane, a cria mais madura do hard-bop (dezembro) –, “The Shape...”, vindo ao mundo a 22 de maio,
não aponta para o lado de nenhum deles. Pelo contrário: engendra uma nova
direção para a linha evolutiva do estilo. Nascido no Texas, em 1930, Coleman
era daquelas mentes geniais que não conseguiam pensar “dentro da caixa”. No
início dos anos 50, já em Nova York, nas contribuições que tivera na banda de
seu mestre, o pistonista Don Cherry, ele, saudavelmente incapaz de seguir as
progressões harmônicas do be-bop, já
demonstrava um estilo livre de improvisar não sobre uma base em sequências de
acordes, mas em fragmentos melódicos, tirando do seu sopro microtons e notas
dissonantes, arremessadas contra às dos outros instrumentos, contra si
próprias. Fúria e espírito. Carne e alma.
Seu processo era tão complexo que, exorcizando clichês, atinge um
patamar até psicanalítico de livre associação e reconstrução do inconsciente
coletivo, o que levou um dos pioneiros do cool
jazz, John Lewis, a dizer: “Percebi
que Coleman cunhou um novo tipo de música, mais semelhante ao ‘fluxo de
consciência’ de James Joyce do que o entretenimento operado por Louis Armstrong com sua variação sobre uma melodia familiar”. Se na literatura este é seu
melhor comparativo, faz sentido colocá-lo em igualdade também a um Pollock nas
artes plásticas ou um Luis Buñuel no cinema. Na música, remete, claro, a Charlie Parker e Dizzie Gillespie, mas tanto quanto a compositores atonais da avant-garde como John Cage e György
Ligeti.
Em “The Shape...”, a desconstrução conceitual já se dá na formação da
banda. Traz o desconcertante sax alto de Coleman, a bateria ensandecida de Billy Higgins, o duplo baixo de outro craque, Charlie Haden (de apenas 22 anos
à época), e o privilégio de se ter o próprio Cherry, com sua mágica e não menos
desafiadora corneta. Nada de piano! Tal proposta, tão subversiva da timbrística
natural do jazz a que Coleman convida o ouvinte a apreciar, assombra de pronto.
“Lonely Woman”, faixa que abre o disco, é uma balada fúnebre e intempestiva. O free jazz, consolidado por Coleman um
ano depois no LP que trazia o nome do novo estilo, dá seus primeiros acordes nesse
brilhante tema. Dissonâncias na própria estrutura melódica, compasso
discordante da bateria e um baixo inebriado que parece buscar um plano etéreo,
longe dali. Algo já estava fora da ordem, anunciava-se. Coleman e Cherry,
pupilo e mestre, equiparados e expondo uma nova construção composicional aberta,
incerta, em que a música se cria no momento, numa exploração dramática conjunta.
Na revolução do free jazz, cada
membro é tão solista quanto o outro. “Eventually”, um blues vanguardista em
alta velocidade, e “Peace”, com seus 9 minutos de puro improviso solto, sem as
amarras do encadeamento tradicional, são mostras disso. Cada músico está ligado
ao outro primeiramente pelo estado de espírito, não apenas pela habilidade
técnica. E eles perdem o apelo momentâneo? Jamais, apenas o centro melódico é
outro. Os riffs e o tom estão lá como
os do be-bop; a elegância do blues trazida
do swing também. Mas o conceito e a
dinâmica aplicados por Coleman e seu grupo fazem com que se desviem das formas
tradicionais a as diluam, direcionando a uma tonalidade expandida como
praticaram Debussy, Messiaen e Stravinsky.
Nessa linha, "Focus on Sanity" se lança no ar inquieta, mas
logo freia para entrar o maravilhoso baixo de Haden, suingando, serenando-a.
Não por muito tempo: por volta dos 2 minutos e meio, Coleman irrompe e o grupo
retorna em ritmo acelerado para seu novo solo da mais alta habilidade de fúria
lírica. O mesmo faz Cherry, que entra raspando com o pistão e forçando que o
compasso reduza-se novamente. “Foco” e “sanidade”, literalmente. A inconstância
desse número dá lugar ao blues ligeiro "Congeniality". Mais
“comportada” das faixas, traz, entretanto, a fluência do quarteto dentro de um
arranjo em que se prescinde da referência harmônica das cordas – o piano. Pode
parecer um be-bop comum, mas, ditado
pela intuição e não pelo arranjo pré-estabelecido (tom, escala, variação),
definitivamente não é. Fechando o álbum, “Chronology” mais uma vez ataca na desconstrução
da progressão acorde/escala. As explosões emocionais súbitas de Coleman e seu
modo atritado e carregado de tocar estão inteiros neste tema.
Wayne Shorter, Anthony Braxton, Eric Dolphy, Albert Ayler, Pharoah
Sanders e o próprio Coltrane, mesmo anterior a Coleman, não seriam os mesmos depois
de “The Shape...”. O fusion e o pós-jazz nem existiriam. Coleman
influenciou não apenas jazzistas posteriores como, para além disso, roqueiros do
naipe de Jimi Hendrix, Don Van Vliet, Frank Zappa e Roky Erickson. Ele seguiu aprofundando esse alcance em vários momentos de sua trajetória. No ano seguinte
ao de sua estreia, emenda uma trinca de discos, começando pelo já referido
“Free Jazz” (dezembro) mais “Change of the Century” (outubro) e “This Is Our
Music” (agosto). Em 1971, surpreende novamente com a sinfonia cageana “Skies of
America”, para orquestra e saxofone. No meio da década de 70, ainda, adere ao fusion, quando lança o funk-rock “Body Meta” (1976),
recriando-se com uma música dançante e suingada.
Além disso, Coleman teve a coragem de legar ao jazz um sobgênero, o
que, juntamente com o contemporâneo “Kind of Blue”, referência inicial do jazz
modal, ajudou a desafiar conceitos e padrões estabelecidos. O jornalista e
escritor Ashley Kuhn, em “Kind of Blue: a história da obra de Miles Davis”,
recorda a receptividade de “The Shape...” à época entre músicos e críticos, os
quais vários deles (como um dos pioneiros do fusion, o pianista Joe Zawinul),
colocavam os dois discos em polos opostos: free
jazzversus modal. No entanto,
como ressalta Kuhn: “No fim das contas,
Coleman e Davis parecem mais filosoficamente compatíveis do que musicalmente
opostos: ambos dedicaram suas carreiras a reescrever as regras do jazz”.
Desde que meu amigo Daniel Deiro, que mora em Nova York, disse-me anos
atrás tê-lo assistido em um bar da Greenwich Village, fiquei esperançoso de
também vê-lo no palco um dia. Não deu. O astronauta do jazz, capaz de fazer
quem o ouve também flutuar sem gravidade, deixa como suficiente consolo uma
obra gigantesca e densa a ser decifrada, sorvida, descoberta. Como a de um
Joyce, Pollock ou Buñuel. Se a função do astronauta é desbravar o espaço,
Ornette Coleman cumpriu o mesmo papel através da arte musical, que ele tão bem
soube explorar em sua dinâmica atômica e imaterial através da propagação dos
sons no ar, na atmosfera. E o fez de forma livre, como bem merece um free jazz. Agora, então, foi ele que se
libertou para poder voar sobre outros planetas igual à sua própria música.
Certos marcos temporais não se completam à toa. Em cinema, fenômeno com pouco mais de um século de existência e menos ainda de indústria, décadas contam muito em ternos de significado, ainda mais numa nação jovem como a brasileira. Por isso, diz muito o fato de, há 40 anos, o cinema brasileiro ter perdido Glauber Rocha, principal artífice do Cinema Novo e autor de obras essenciais para a formação do cinema nacional, entre os quais “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, de 1964. Primeiro grande marco do Cinema Novo, esta obra divisional é o produto mais pungente de uma rica leva da produção cinematográfica brasileira motivada por um contexto histórico-social e político implosivo nutrido por abissais contradições. Entre a modernidade nacionalista dos tempos pós-Vargas e a embrionária globalização, havia, em mesma proporção, o alarme pelo alto índice de desigualdade social e a forte tensão de forças políticas que resultaria no Golpe Civil-Militar daquele mesmo fatídico ano de lançamento de “Deus e o Diabo...”.
Incandescentes como o sol que assola a terra destas duas forças, a materialização destas motivações em aspectos fílmicos e narrativos dão à obra de Glauber, seguidamente considerada difícil e cerebral, uma representação estética possível de ser revisitada à luz de produções atuais do cinema nacional. A perspectiva pop que traz “Jesus Kid”, de Aly Muritiba, recentemente exibido – e premiado – no Festival de Cinema de Gramado, entreabre, quase 60 anos depois, portas escancaradas com fúria e poesia por Glauber e sua geração. O filme de Muritiba busca explorar artifícios pop já experimentados com êxito anteriormente, numa tentativa digna de estabelecer diálogo com um público aberto a esta abordagem e, principalmente, com condições de transmissão/replicação das propostas discursivas de “vanguarda” na sociedade, a fatia jovem-adulta dos chamados “formadores de opinião”.
Antes mesmo de rodar “Deus e o Diabo...”, Glauber, um iniciante cineasta e ativo crítico de cinema, exaltava em seu “Revisão Crítica do Cinema Brasileiro”, editado em 1963, o potencial “popular” do Cinema Novo. A ideia dos jovens realizadores do movimento era engendrar um cinema de autor que refletisse a alma de um povo, fosse econômica ou esteticamente. Para isso, vestiam suas obras de características ora muito próprias, mas também de natureza “pop” comuns na acepção mais abrangente do termo. A exemplo do que observava com entusiasmo no cinema de colegas como Paulo César Saraceni, Joaquim Pedro de Andrade e Nelson Pereira dos Santos, Glauber trazia para seu olhar elementos “pop” dentro de seu contexto cultural, histórico e social, como o cinemão norte-americano, a fragmentação sequencial dos quadrinhos a e correlação entre erudito e folclórico – visto, por exemplo, na trilha sonora de “Deus e o Diabo...” dotada de Villa-Lobos e dos cantos de violeiro de Sérgio Ricardo. Igualmente, estão-lhe presentes o cinema de Sergei Eisenstein, Humberto Mauro, John Ford, Luis Buñuel e Roberto Rosselini, todos, à exceção do primeiro, vivos e ativos à época. Elementos que faziam sentido num contexto de “popficação” nos anos 60. Glauber e seus correligionários entendiam que cabia aos autores do cinema uma visão formativa desta inserção de propostas cultas no tecido social. Transformar a alta cultura em hits deglutíveis.
filme"Deus e o Diabo na Terra do Sol", de Glauber Rocha
O uso de elementos “pop” no cinema brasileiro maturou-se ao longo das décadas juntamente com a produção audiovisual nacional. Porém, embora tenha ganho em experiência e até em condições econômicas, alguns ensinamentos parecem ter se dispersado. Em “Jesus Kid”, justamente por seus méritos técnicos, essa inconsistência fica bem evidente. De caprichadas fotografia e direção de arte, o filme de Muritiba se esvazia, por outro lado, naquilo que, certamente, mais almejou realizar, que é uma narrativa de apelo pop. Fugindo do padrão comum, mas também sem recair na proposta alternativa, este formato tenta criar um espaço simbólico que comporta ideias modernas capazes de gerar identificação com o público, sendo um destes recursos a alusão a produtos “do mercado”. Estética e formalmente, “Jesus Kid” apropria-se de referências diretas dos filmes “Barton Fink - Delírios de Hollywood”, de Joen e Ethan Coen (1991), “Cidade dos Sonhos”, de David Lynch (2002) e bastante de Quentin Tarantino, desde os westerns “Os Oito Odiados” (2015) e “Django Livre” (2013) ao episódio de “Grande Hotel” (1995).
Acontece que “Jesus Kid”, mesmo que tenha atingido sua assimilação junto a quem intenta dirigir-se, apresenta duas grandes travas que o impedem de alçar: uma estrutural e outra formal. A começar, o roteiro. Baseado num romance do celebrado escritor Lourenço Mutarelli, o que se verteu das páginas para a construção audiovisual parece ter se descompassado, haja vista, principalmente, o ritmo apressado dos acontecimentos e encadeamentos do filme. Saliente-se: ritmo frenético numa narrativa não pressupõe falta de respiros, visto que a psique do espectador comum – inclusive, o de simpatia ao dito “pop” – carece da tradicional alternância de estados psicológicos da dramaturgia clássica. Subverter isso é optar pelo caminho alternativo, o que está longe de ser-lhe a intenção.
Enquadramento e tonalidades semelhantes de "Jesus Kid" com "Barton Fink": referências diretas
Tanto Tarantino quanto os Coen, os cineastas cujas obras são as mais referidas em “Jesus Kid”, sabem bem disso, pois são conhecidos pelo apreço ao exercício de extensão-distensão da narrativa. O primeiro, com seus longos diálogos preparativos para clímaces; já os irmãos Coen, pelo consciente uso dos espaços vazios visual e narrativamente. Por que, então, pegar-lhes emprestado justo o mais superficial, a estética? Impossível não entender isso como um subterfúgio (pouco assertivo) de atração quase publicitária para a obra. A tarantinesca resolução do filme brasileiro, igualmente, não peca pelo tom satírico ou pela bizarrice – aceitáveis dentro da trama – mas pela falta de preparo a um momento tão importante para a história, visto que o espectador é colocado até ali constantemente num indistinto frenesi de imagens e ações.
Miklos: atuação que enfraquece o filme
Este mesmo raciocínio pode ser aplicado ao outro aspecto analisável de “Jesus Kid”, que é ligado à sua forma: a escolha de Paulo Miklos como protagonista para o papel do escritor Eugênio. Não é difícil perceber que, já no primeiro diálogo, fica evidente o despreparo técnico deste para com os recursos cênicos, visto que recai sobre ele a responsabilidade de sustentar um papel cômico, trágico e cheio de nuanças, difícil até para um ator profissional. Resposta a qual Miklos, ator não-profissional, fatalmente não dá. Mesmo espirituoso e carismático, falta-lhe olhar, falta-lhe tempo de articulação, falta-lhe consciência de movimentos. Se a estratégia era se valer, como na publicidade e seus “garotos-propaganda”, da figura pop de um conhecido astro da música, havia de se avaliar que, como ator, este desempenhou bem no cinema apenas 20 anos atrás em “O Invasor”, de Beto Brant (1997), justo quando teve, conceitualmente, liberdade de uma atuação naturalista dentro da “marginalmente” que o papel exigia, o que supunha desvencilhar-se de balizamentos técnicos. Para “Jesus Kid”, no entanto, a opção por Miklos prejudica sobremaneira todo o andamento, visto que a história se centra no escritor ao qual ele interpreta. Não é difícil imaginar algum ator profissional assistindo o filme e lamentando pelo desperdício de um roteiro promissor.
Há de se entender, contudo, que a caminhada para um cinema de apelo “pop-cult” no Brasil, a exemplo do que outros polos mundiais produzem, principalmente os Estados Unidos, está em pleno curso. Desde que “Deus e o Diabo....” iluminou este caminho, títulos importantes para essa viragem como “O Bandido da Luz Vermelha” (Rogério Sganzerla, 1969), “A Rainha Diaba” (Antonio Carlos da Fontoura, 1974) e “Faca de Dois Gumes” (Murilo Salles, 1989) evoluíram em linguagem e aproximaram os conceitos “brutos” da vanguarda para a massa. Mais proximamente, o cinema pós-retomada dos últimos 30 anos captou bem este espírito a exemplo de “Cidade de Deus” (Fernando Meirelles e Katia Lund, 2002), a franquia “Tropa de Elite” (José Padilha, 2007 e 2010), “Fim de Festa” (Hilton Lacerda, 2019) e o talvez mais bem-sucedido de todos nesta linha: “Bacurau”, de Kleber Mendonça Filho (2019). Todos entenderam o que Glauber avaliava como essencial a uma obra de cinema que se pretende popular: cada um à sua medida, dosa discurso e poesia. Equilíbrio difícil, porém, o que talvez explique a inconstância de obras desta potência e natureza no Brasil. Linguagem em cinema também é continuidade da prática.
Se custou a Glauber e ao Cinema Novo o preço muitas vezes da incompreensão, é curioso perceber como o movimento serviu para emancipar o cinema nacional justamente no aspecto que teve menos êxito, que foi o de representar e dialogar com o público – ou o mais amplo possível deste. Como acontece em processo semelhante na música erudita para com a música pop, as bases lançadas pela primeira passam por tamanho burilo que, quando chegam aos ouvidos da massa, pouco se identifica de seus arrojados acordes geradores. A Glauber, especialmente, homem de poucas concessões e cujo cinema intensificou-se em complexidades alegóricas cada vez mais ao longo dos anos, ficou a pecha de alguém genial, mas de ínfima aceitação e entendimento popular. Independentemente disso, faz quatro décadas que Glauber Rocha deixou, dentre outros legados, as bases de um “cinema pop” para o Brasil sob uma perspectiva doméstica. É justo e genuíno, então, buscá-lo e aperfeiçoá-lo. Talvez, contudo, seja preciso ainda que bata muito sol sobre esta terra para que o diabo da inovação e o deus do gosto popular se harmonizem.
fica o orgulho de dividir alguns momentos da música
com o
Brasileiro Antonio das águas de março,
do matita, do porto das caixas, do
amparo, das luísas,
da sinfonia de Brasília, das saudades do Brasil.
O maior
compositor da música popular
de todos os países.”
Edu Lobo, sobre Tom Jobim
Há momentos em que uma obra-prima surge do acaso. Não foi assim com o
sonho em comum tido por Salvador Dali e Luís Buñuel na mesma noite e que os
motivou a filmar “Um Cão Andaluz”? Ou o processo intuitivo de Jackson Pollock,
que formava seus quadros com tintas de pura aleatoriedade? Pois em música
acasos como estes também acontecem. Em 1981, Edu Lobo, cantor, compositor e arranjador, um dos mais criativos e
respeitados artistas da música brasileira pós-Bossa Nova, estava de saída de
sua então gravadora, a PolyGram. Como era de praxe, haveria de realizar um
disco com a participação de vários artistas, como uma despedida festiva pelos
anos de casa. Em cumplicidade com o produtor Aloysio de Oliveira, o primeiro a
ser convidado sem pestanejarem foi Tom Jobim.
Num clima de admiração mútua, auxiliados pela direção não menos afetuosa
e sábia de Aloysio, chamaram Tom para tocar piano em “Pra dizer adeus”, faixa
de um dos primeiros discos de Edu, logo após esse ser descoberto por Vinícius de Moraes, no início dos anos 60. Tom o fez, mas não sem lançar contracantos, cantar
alguns versos e ainda adicionar-lhe acordes, os quais passariam a partir dali a
integrar a partitura da canção. Ou seja: chegou para uma participação e mudou a
música para sempre. Ao final da gravação, visto que todos estavam felizes com o
resultado e com a egrégora formada no estúdio, Tom pergunta: “Era só isso?”. Aloysio propôs, então,
de modo a não desapontar o maestro, que se gravasse outra de Edu, desta vez,
uma parceria com aquele que representava o elo entre os dois: Vinicius. Edu,
claro, gostou da ideia.
Mandaram ver, então, “Canção do Amanhecer”, esta, do primeiro álbum de
Edu, de 1965, dando à precoce parceria daquele jovem músico de 22 anos com o
tarimbado e mítico poetinha uma versão amadurecida. A presença de Vinicius,
como ele gostava de fazer com os amigos, mesmo que imaterial nesta ocasião só vinha
a reforçar a afinidade entre Edu e Tom. Como no primeiro take, o resultado foi incrível novamente: sintonia pura,
descontração e musicalidade aflorando. Quando termina, Tom capciosamente solta
de novo a pergunta: “Era só isso?”.
Aloysio, que conhecia bem o parceiro desde os anos 50 – época em que já
compunham juntos clássicos como “Dindi” e “Inútil Paisagem” –, entendeu o
recado e ligou para o executivo da gravadora. Estava claro que o “canto do
cisne” de Edu Lobo na PolyGram não teria vários músicos convidados, mas apenas
um: Antonio Carlos Jobim. O maior deles.
Com trabalhos solo recentemente lançados, ambos tinham poucas novidades
em suas pautas. Uma das inéditas, entretanto, abre o lado A do LP: a graciosa
“Ai quem me dera”, composição antiga de Tom em parceria com Marino Pinto até
então guardada para uma ocasião especial. A ocasião surgiu. Sente-se o sabor
dos primeiros temas da Bossa Nova, aquele mais carioca e gingado, com Tom e Edu
cantando em uníssono com perfeição. É nítida a afinidade entre os dois. Outra
de ânimo florescente é “Chovendo na Roseira”, composição instrumental de 1970 regravada
por Elis Regina quatro anos depois com a participação de Tom e já com a letra lírico-ecológica
do próprio autor. Aqui, esta valsa de cores tipicamente debussyanas (“Olha, que chuva boa, prazenteira/ Que vem
molhar minha roseira/ Chuva boa, criadeira/ Que molha a terra, que enche o rio,
que lava o céu/ Que traz o azul!”) recebe um tratamento harmônico de alto
requinte. A voz de Edu se apropria de tal forma que parece um tema coescrito
por ele.
Equilibrando as autorias – ora de um ora de outro com ou sem parceiros
–, escolheram-se mais duas em que Tom assina letra e melodia. Uma delas é
“Ângela”, das obras-primas do compositor. Tema da segunda fase da Bossa Nova
presente no clássico disco “Matita Perê” (1973), a romântica e melancólica
“Ângela” guarda traços da complexidade harmônica da música de Chopin. Ivan
Lins, um dos ilustres aprendizes do “maestro soberano”, contou certa vez que
esta é canção que ele gostaria de ter escrito – precisa dizer mais? A outra,
igualmente lírica e impressionista, é “Luíza”, a segunda e última inédita do
disco, das mais queridas do cancioneiro jobiniano e que abre o lado B do vinil.
Composta recentemente por Tom para o tema de uma novela da Globo, de tão
vigorosa, saiu neste álbum e ainda na trilha sonora da novela, ficando meses
nos ouvidos dos brasileiros todos os dias sem que jamais tenha se desgastado. E
que letra! “Rua/ Espada nua/ Boia no céu
imensa e amarela/ Tão redonda a lua/ Como flutua/ Vem navegando o azul do
firmamento/ E no silêncio lento/ Um trovador, cheio de estrelas/ Escuta agora a
canção que eu fiz/ Pra te esquecer, Luiza...”.
Os parceiros de Tom e de Edu são de extrema importância no repertório
afetivo escolhido pela dupla para este projeto quase acidental. É o caso de Chico Buarque. Assim como Vinicius, o autor de “Olhos nos Olhos” é outro que os
liga musical e afetuosamente. Parceiro de Tom desde os anos 60, tivera a mão de
Edu nos arranjos da trilha de sua peça/disco “Calabar/ChicoCanta”, em 1973.
Mas, por incrível que pareça, toda a grande obra da parceria Chico-Edu, que
hoje faz parte do inconsciente coletivo da música brasileira, veio somente depois
de “Moto-contínuo”, esta, sim, a primeira dos dois, escrita naquele ano e
lançada praticamente junto com a versão do álbum “Almanaque”, de Chico. Já na
estreia da parceria, Chico se esmerava na letra, uma de suas melhores. Ao
expressar em hipérboles a admiração intrínseca do homem pela figura feminina,
lança, através de anáforas e epíforas (“Um
homem pode...” e “se for por você”),
versos da mais alta beleza poética: “Juntar
o suco dos sonhos e encher um açude/ se for por você (...) Homem constrói sete
usinas usando a energia/ que vem de você”. Ainda, Tom faz-se presente
categoricamente, introduzindo neste samba cadenciado e denso ricos contracantos
de seu piano e a voz em uníssono com Edu – com timbres muito parecidos, aliás.
Outros dois sambas melancólicos: “É Preciso Dizer Adeus”, de Tom e
Vinicius (“É inútil fingir/ Não te quero
enganar/ É preciso dizer adeus/ É melhor esquecer/ Sei que devo partir/ Só nos resta
dizer adeus”), representando a reverência à parceria gênese de toda a
geração da qual Edu pertence; e “Canto Triste”, mais uma dele com Vinicius,
esta imortalizada, assim como “Chovendo...”, por Elis (“E nada existe mais em minha vida/ Como um carinho teu/ Como um silêncio
teu/ Lembro um sorriso teu/ Tão triste”), fechando o disco de forma
altamente melodiosa: só ao violão e a voz de seu autor.
Não sem antes, entretanto, registrarem a talvez melhor do disco: “Vento
Bravo”. Faixa do obscuro e hoje cult
“Missa Breve”, gravado por Edu em 1972, trata-se de uma composição feita com
outro parceiro e amigo em comum com Tom: Paulo César Pinheiro. Em entrevista
para o programa O Som do Vinil, do Canal Brasil, Edu comenta que não entendera
bem porque Tom, que pedira para incluí-la no set-list, gostava tanto desta música. Parece, porém, evidente. A
letra, com marcas da literatura regionalista – remetendo à prosa de Guimarães Rosa de “Sagarana” e a de Monteiro Lobato de “Urupês” –, confere estilisticamente com o que o próprio Pinheiro escrevera para Tom anos antes
para a música "Matita Perê". As leis dos homens e da natureza, com emboscadas e
perseguições, bem como a implacável ação do tempo, são marcas de ambas as
obras. “Vento virador no clarão do mar/
Vem sem raça e cor, quem viver verá/ Vindo a viração vai se anunciar/ Na sua
voragem, quem vai ficar/ Quando a palma verde se avermelhar/ É o vento bravo/ O
vento bravo”, diz a letra, que narra a fuga de um escravo mata adentro. O
refrão, melodicamente intrincado e encantador, ainda diz: “Como um sangue novo/ Como um grito no ar/ Correnteza de rio/ Que não
vai se acalmar...”. Ao contrário da sinfônica peça de Tom, porém, traz uma
melodia intensa baseada no som dos violeiros folclóricos do sertão. Remete ainda,
no trítono do piano que lhe faz base, às trilhas de filmes e séries policiais norte-americanas
dos anos 50/60, as quais Edu sempre soube adicionar à sua música com
brilhantismo.
E como conjugar tanto talento, tanta sabedoria musical e sensibilidade
artística e de tão vastos cancioneiros? Por incrível que pareça, nem sempre juntar
isso resulta em boa coisa, pois se pode pecar para mais ou para menos. Em “Tom
& Edu”, primeiro, a opção foi por uma estética limpa, enxuta. Nada de grandes
bandas ou orquestra. Pretendeu-se, já que “só tinha de ser com você”,
reproduzir o clima de admiração mútua. A ausência das cordas, que chegou a ser
motivo de crítica à época do lançamento na “vira-latas” imprensa brasileira –
que achava um desperdício dois regentes dispensarem a orquestração – é de um
acerto categórico. Basicamente, ouve-se o piano de Tom e/ou de Edu, o violão de
Paulo Jobim e Luiz Cláudio Ramos, o baixo dividido por Sérgio Barroso e Luiz
Alves e apenas a bateria como percussão, tocada por Paulo Braga. Quando muito,
o flugehorn impecável de Marcio
Motarroyos, como em “Chovendo...” e “Vento...”. E, claro, o canto dos dois experientes
artistas. A essência clássica de ambos, cujas musicalidades não à toa são
parecidas, retraz naturalmente harmonias ao estilo de Debussy, Ravel, Bach e
Villa-Lobos. Menos, para quem tem conteúdo, é sempre mais.
O segundo motivo de acerto do projeto é a presença de Aloysio como
produtor. Parceiro dos dois de longa data, o ex-dono do selo mítico selo Elenco
(pelo qual gravara e lançara inúmeros artistas fundamentais à MPB nos anos 60,
entre os quais o próprio Edu Lobo) tinha a mão apurada nas mesas de som,
conhecia com profundidade harmonia e composição, compartilhava-lhes do mesmo
carinho e, principalmente, tinha maturidade para saber influir apenas no que
devia. Afinal, quem ousaria mandar em Edu Lobo e Tom Jobim dentro de um
estúdio? Tendo recentemente coordenado dois projetos de Tom semelhantes àquele
(os discos com Miúcha de 1977 e 1981), Aloysio soube dar a arquitetura sonora
certa às faixas.
Já mais satisfeito ao final das 10 gravações que acabava de ajudar a deixar
para a história, Tom enaltece o pupilo: “Eu
vos saúdo em nome de Heitor Villa-Lobos, teu avô e meu pai”. Edu, por sua
vez, contou em entrevista que tem a felicidade de ter dito em vida a Tom de que
este era o maior nome da música brasileira de todos os tempos, palavras que,
segundo ele, emocionaram Tom. “De todos
os arquitetos da música da música que conheço, Antonio Carlos Brasileiro de
Almeida Jobim é, sem dúvida, o de traço mais amplo e perfeito”, pontuou o
seguidor inconteste do maestro. Tanta identificação, tanta confluência entre os
artistas, que somente o próprio Aloysio de Oliveira, no alto de sua sapiência,
para saber definir: “Edu e Tom, Tom e
Edu. E até, se você quiser, Tu e Edom”. Definitivamente, não foi por acidente que eles se juntaram para esse encontro, pois eram almas irmãs.
*************
FAIXAS:
1. Ai Quem Me Dera (Tom Jobim/Marino Pinto) - 2:13
Saura foi um dos cineastas que me formaram. Na infância/pré-adolescência, "Carmen", "El Amor Brujo" e "Bodas de Sangre" me impactaram. Logo depois, a Trilogia de Ana ("Ana y los Lobos", "Cría Cuervos..." e "Mamá Cumple 100 Años"), paixões. Mais tarde, descobri os mais antigos "La prima Angélica" e "La Caza". Ele me fez ficar uma semana chocado com a morte da protagonista de "Ay, Carmela!"., aquilo que só os diretores que sabem envolver o espectador a tal ponto conseguem.
Foi Saura quem me apresentou a uma das minhas deusas do cinema, Geraldine Chaplin, que além de ser linda e ter um nome lindo, foi sua esposa e é filha de Charlie Chaplin! Mais recentemente, como se não bastasse ter ajudado a fundar o novo cinema espanhol pós-Buñuel, o já idoso Saura faz um daqueles filmes sem erros, "El Séptimo Día", sua última ficção, lá de 2004, além de ricos documentários unitemáticos como "Tango", "Fados" e "Flamenco", os que assisti.
No último dia 10, a lente se fechou. Levou consigo seu cinema misto de poesia, crítica político-social e força imagética. Pegando emprestado os versos da memorável música da trilha de "Cría Cuervos...": "Por que te vás?". R.I.P. e obrigado, mestre aragonês.