Uma substância valiosa e a disputa pela administração e a exploração desse produto no planeta onde ele é extraído está no centro das ações de ambas as versões de "Duna". O duque Atreides é incumbido pelo Imperador para a tarefa de chefiar o planeta Arrakis, mas o que parecia ser uma honra e benefício mostra-se, na verdade, uma armadilha tramada pelo Império com os perigosos Hakkonen para eliminar o duque e seu filho, o jovem Paul Atreides que, gerado da relação com uma bruxa, tem atributos um tanto especiais que se acentuam ainda mais quando o jovem chega a Arrakis. Seus talentos, sua sensitividade, seus poderes que ele própro não domina completamente, mostram-se fundamentais, especialmente depois que seu pai é traído e morto pelos Hakkonen, e o rapaz, fugitivo, é obrigado a se isolar no deserto com sua mãe, se aproximando a cada momento, a cada passo, de uma profecia que anuncia um "escolhido" que liderará o povo de Arrakis e acabará com a tirania do Império. Não estou entre os tantos que deploram a adaptação de David Lynch, de 1984, para o romance de Frank Herbert. O filme tem bom elenco, com Jürgen Prochnow, de "O Barco", Sean Young, de "Blade Runner", Max Von Sydow, de "O Sétimo Selo", Patrick Stewart, que viria estrelar a saga "Star Trek", o astro pop Sting, e Kyle McLachlan que estrelava seu primeiro longa mas que seria, a partir dali, um dos atores preferidos de David Lynch. Os figurinos são incríveis, a direção de arte é bem impressionante, os cenários muito interessantes, a fotografia, na maioria das vezes, é bem competente, e além de tudo isso, a trilha sonora ficava por conta de Toto e Brian Eno. O grande problema do filme de Lynch foi a parte técnica. Os efeitos especiais, para um filme de ficção científica e com o bom orçamento que teve, são, no mínimo decepcionantes. Mesmo se levando em consideração a época, as limitações técnicas, a primariedade de alguns recursos, eles são, em determinados momentos, quase risíveis. A armadura, por exemplo, que envolve o corpo dos guerreiros de Atreides, uma espécie de campo de força, é simplesmente ridícula. Uma animação geométrica constrangedora. E não me venham dizer que era o que dava pra fazer em 1984 porque, àquelas alturas, já tinham sido feitos três "Star Wars" (1977, 1980, 1983), "Blade Runner" (1982), dois "Superman" (1978, 1980), só pra ficar em alguns, com efeitos visuais muito mais impressionantes e convincentes. Mas se ficasse limitado a isso, dava pra dar um desconto. A narrativa é apressada, tem muito texto narrado, o que, ao invés de ajudar, atrapalha mais a compreensão, e a última meia hora é atropelada e confusa. Aí, o resto de boa vontade que podia-se ter com o filme de 1984, foi pro espaço. O que podia ser um gol contra a nova versão de "Duna", que é o fato de não acabar a história (não estou dando spoiler pois todo mundo sabe que vão rodar uma sequência), acaba sendo positivo pelo fato de não correr com a trama pra resolver logo, como fez seu antecessor. O novo "Duna" usa mais tempo mas desenvolve bem a história, sem presa, com paciência, sem precisar recorrer a uma narração explicativa durante todo o filme, e ainda dá mais profundidade e destaque a alguns personagens subutilizados no primeiro, aproximando-os do espectador. Colabora para isso, também, o elenco, igualmente muito qualificado, como no original: Oscar Issac, de "Ex-Machina" e da nova saga "Star Wars", Rebecca Ferguson, de Doutor Sono" e da franquia "Missão Impossível", Jason Momoa ("Aquaman"l), a veterana Charlotte Rampling ("Coração Satânico", "Melancolia"), a carismática Zendaya, dos novos "Homem-Aranha", e, capitaneado o time, o grande queridinho do momento, Timothée Chalamet, de "Me Chame Pelo Seu Nome" e "Não Olhe Para Cima", ente outros, no papel do "messias" Paul Atreides. A parte técnica, então, que era o ponto fraco do outro, é exatamente uma das maiores virtudes do novo, com efeitos visuais e som espetaculares, não à toa indicados ao Oscar, além da fotografia, com seu visual sombrio e suas locações no deserto simplesmente impressionantes.
"Duna" (1984) - trailer
"Duna" (2021) - trailer
Elenco por elenco, vamos deixar no empate; protagonista por protagonista, também não vejo grande vantagem para ninguém; no entanto, na caracterização e desenvolvimento dos personagens, o remake salta na frente no placar. E, a propósito de desenvolvimento, o andamento do filme e sua estrutura garantem mais um para a nova versão. Os cenários e a direção de arte, os figurinos do primeiro garantem um tento para o time de 1984, contudo, a fotografia, magistral, do novo filme acabam com a alegria do antigo "Duna" que tem que buscar mais uma no fundo das redes. De um modo geral, os efeitos especiais do filme de Villeneuve são muito melhores, mais espetaculares e, sem dúvida representam um golaço para o time de 2022, embora tenhamos que fazer justiça para com os vermes do primeiro filme que também era muito impressionantes, mesmo para as limitações da época. Em compensação, o que os habitantes subterrâneos do deserto de Arrakis acrescentam de positivo, a tal armadura que envolve o corpo dos guerreiros, tira. Quase um gol contra. Quanto aos caras da casamata, ou seja, os diretores, são dois maestros competentíssimos e, apesar de ser fã de David Lynch, tenho que reconhecer que, mesmo com um bom material humano, com um bom investimento, ele comete alguns erros que comprometem o desempenho final de seu time, ao passo que Denis Villeneuve conduz seu time com precisão, usa um esquema mais adequado para a situação de jogo e, assim, extrai o melhor de cada um de seus atletas. Duna '84 foi indicado ao Oscar de melhor som mas sua refilmagem atual, além de ser indicada na mesma categoria, ainda recebeu nomeações para outras nove, incluindo melhor filme. Por aí já dá pra ter um pouco da ideia da diferença entre os dois filmes. Duna '21 está muitos anos-luz à frente.
Alguns pontos de comparação entre os dois filmes: No alto, a Reverenda Madre da ordem das Bene Gasserit nas duas versões. original, à esquerda, mais requintada e exótica, e à direita, a nova, mais sobria. Na segunda linha, o barão Hakkonen, o original típico das bizarrices de David Lynch, o outro, mais sério, sinistro é mais fiel ao livro. Em seguida, os vermes do deserto, a esquerda o antigo e à direita, o novo. Apesar das deficiências dos efeitos visuais do primeiro filme, os vermes de David Lynch se salvam e até se destacam como uma das coisas boas do filme. Em compensação o escudo virtual do primeiro filme, à esquerda, na quarta faixa, é lamentável, enquanto o outro, da nova versão. é meramente discreto, mas funciona melhor visualmente. E para finalizar, os dois Paul Atreides. Kyle McLaclan, do primeiro filme, não decepciona e vai bem no papel e a derrota não passa por ele, bem como o queridinho do momento, Timothée Chalamet, que se não é brilhante , não compromete também.
Fui cumprimentar os amigos fotógrafos no coquetel de abertura da 1ª Feira da Fotografia Artística, na Galeria e Espaço Cultural La Photo, em Porto Alegre. Ao total, 20 profissionais renomados do circuito gaúcho estão colocando à venda peças de sua autoria até 4 de dezembro. Há valores desde R$ 300 até R$ 4 mil. Para todos os bolsos.
Dos conhecidos, Fredy Vieira, velho parceiro de coberturas jornalísticas e um dos idealizadores do projeto, expôs um dos mais interessantes trabalhos da mostra, como a ótima e comentada foto de David Lynch quando da vinda do cineasta a Porto Alegre, em 2009.
Nilton Santolin foi outro amigo a quem estive lá cumprimentando. Dele, estavam algumas de suas maravilhosas fotos p&b que já tivera o prazer de conhecer na sua exposição própria "Aqui, Ali e Acolá", sobre a qual comentei aqui neste blog em julho. Quem também estava lá era Ivo Gonçalves, mais um companheiro de pautas.
Destaque também para as lindas fotografias de Magdalena Protskof Szabo de closes de superfícies de madeira, criando imagens coloridas e abstratas. Outra que explora muito bem a textura do objeto fotografado é Lou Borghetti na série “A ferro e flor”, como o vistoso quadro de uma porta de ferro enferrujada.
Várias coisas legais. Entre as que mais gostei, uma que evidencia, entre os desbotados prédios do Centro da cidade, uma de minhas maiores admirações da natureza de Porto Alegre: o intenso azul do céu (foto do topo).
Além dos dos citados, participam da mostra: Ana Paula Aprato (co-organizadora), Marcelo G. Ribeiro, Claudio Fachel, Eduardo Seidl, Guerreiro, João Machado, Jorge Aguiar, Kiran León, Leonid Streliaev, Pedro Flores, Regina Peduzzi Protskof, Ricardo Stricher, Roberta Borges, Sandra Genro e Zezé Carneiro.
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1ª Feira da Fotografia Artística de Porto Alegre Até 4 de dezembro Local: La Photo – Galeria e Espaço Cultural (Endereço: Travessa da Paz, 44 - Brique da Redenção – Porto Alegre) Horário de visitação: das 11h às 19h
Quando assisti a "Coração Selvagem", de David Lynch, além de ter me apaixonado pelo filme, a trilha sonora me chamou muito atenção, diversificada, visitando o clássico, como nas composições de Angelo Badalamenti, usual parceiro de Lynch; o metal, na estrondosa "Slaughterhouse" da banda Powermad que pontua o filme diversas vezes ao longo de sua duração; o blues como na cena do posto de gasolina, por exemplo; Elvis Presley por conta da admiração pessoal do protagonista Sailor Ripley que chega a interpretar, com alguma competência "Love Me" do Rei do Rock; e o rock'n roll de uma maneira geral. Uma que se destacava no filme era a canção que tocava no momento em que Sailor e sua namorada Lula decidem vilar a condicional do rapaz e irem para Nova Orleans. Era um rock, agudo, enérgico, vivaz que, na época, na minha ignorância não situei como sendo um rock sessentista, podendo, tal sua qualidade e atemporalidade, ser contemporânea do filme. Gostei tanto da trilha que comprei o LP. Nele descobri que a música chamava-se "Baby Please Don't Go" e que era efetivamente um rock lá dos idos dos anos 60, e era interpretado por uma banda irlandesa chamada Them. Só algum tempo depois quando meu irmão me apresentou o álbum "Astral Weeks" foi que soube que a tal Them era a banda original da carreira do cantor irlandês Van Morrison, a quem passei a admirar muito assim que conheci sua obra solo.
No entanto não conhecia muito do Them a não ser aquela canção do filme, assim fui atrás do álbum em que ela estivesse e para minha surpresa ele não constava na curta discografia da banda com o enfezado Morrison na formação, de apenas dois discos. A faixa havia sido lançada apenas em single com "Gloria", o grande sucesso da banda no lado B. Mas mesmo saindo somente em compacto e em um EP posterior, "Baby Please Don't Go", de tantas outras regravações por diversos artistas, alcançou êxito e popularidade sendo reconhecida como um clássico na versão da banda.
Assim cheguei ao álbum "The Angry Them Young", o primeiro da banda, lá de 1965, e que além do hit "Gloria", marcante pelo seu refrão com pronunciado alto com toda a clareza, traz todo aquela atmosfera de invasão rock dos anos 60, blues acelerados e baladas que começavam a fugir do tradicional pelo som "sujo" de garagem e os vocais rasgados que o vocalista imprimia às canções.
O álbum traz além de "Gloria", o rock frenético de guitarra nervosa "Mystic Eyes" que faz as honras de abrir o álbum; a balada com clima meio western "You Just Can't Win" e a outra "If You And I Could Be As Two", onde Morrison já exercita rumos que seu trabalho viria a tomar; o blues agressivo e gritado "Just A Little Bit"; a versão para "Don't Look Back" de John Lee Hooker; a intensa "I Like It That", e a boa e bem ritmada versão de "Route 66", que fecha o disco.
A fama de maus fez mal à banda, à gravadora, às vendas, e o já irritadiço e enfezado Morrison não tardou a mandar tudo pro inferno e ir cuidar da própria vida, o que, diga-se de passagem, fez muito bem, pois, embora o Them tenha sido importante para geração britânica da metade dos anos 60, tenha tido papel importante na história do rock e seu lugar reservado nela, o futuro acabou por mostrar que aquele universo de som sujo e caras de mau era reduzido demais para a genialidade e o talento de um cara como ele.
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FAIXAS:
"Mystic Eyes" (Van Morrison) – 2:41
"If You and I Could Be as Two" (Morrison) – 2:53
"Little Girl" (Morrison) – 2:21
"Just a Little Bit" (Ralph Bass, Buster Brown, John Thornton, Ferdinand "Fats" Washington) – 2:21
"I Gave My Love a Diamond" (Bert Berns, Wes Farrell) – 2:48
"Gloria" (Morrison) – 2:38
"You Just Can't Win" (Morrison) – 2:21
"Go On Home Baby" (Berns, Farrell) – 2:39
"Don't Look Back" (John Lee Hooker) – 3:23
"I Like It Like That" (Morrison) – 3:35
"I'm Gonna Dress in Black" (M. Gillon aka Tommy Scott, M. Howe) – 3:34
"Bright Lights, Big City" (Jimmy Reed) – 2:30
"My Little Baby" (Berns, Farrell) – 2:00
"(Get Your Kicks On) Route 66" (Bobby Troup) – 2:22
Um dia 13 do mês 7. Dois números considerados demoníacos por
alguns. Só poderia mesmo ser o Dia do Rock! Afinal, como muito assertivamente diz Raul Seixas em sua
música em parceria com Paulo Coelho: “o diabo é o pai do rock”. Pois o estilo
musical mais popular do mundo é e sempre será relacionado ao obscuro, ao que
nos tira do chão, nos faz pirar a cabeça. Impossível seria se toda essa força
não se entranhasse no cinema. Seja em títulos que abordam o tema, seja na
difusão da “linguagem videoclípica” ou até dos milhares de filmes que se valem
de seu ritmo e potência em trilhas sonoras, o rock ‘n’ roll desde que os
Beatles se aventuraram nas telas com “A Hard Days Night”, de Richard Lester, em
1964, passou a fazer parte do universo do cinema, sendo-lhe fundamental hoje na
construção de estéticas, dramaticidade e conceitos. Para saudar o estilo
musical mais frenético e rebelde da história da arte, elencamos 6 filmes que
trazem o rock em seu coração, seja na trama, argumento ou mesmo como um
elemento fílmico de destaque. Por que 6? Ora, bebê: 13 menos 7…
Coração Selvagem (1990) – Premiado longa de David Lynch com Nicholas Cage e Laura Dern, "Wild at Heart" (Palma de Ouro em Cannes) que entre seus diversos elementos simbólicos típicos do cineasta, como as referências a “Mágico de Oz”, aos road-movies dos anos 70 e aos suspenses psicológicos de John Frankenheimer, um se destaca: Elvis Presley. A figura do Rei do Rock é fundamental na trama, funcionando simbolicamente para o amor verdadeiro mas combatido dos personagens centrais. Na história, Marietta (Diane Ladd, ótima) é uma sulista rica e louca que não aceita que sua filha, Lula (Laura, jamais tão sexy como neste filme) namore Sailor Ripley (Cage) por ciúmes dela. Marietta manda um capanga matar Sailor, que reage e ele, sim, o mata e vai preso. Dois anos depois, ele é solto e foge para a Califórnia com Lula. Passam a ser perseguidos por Marcello Santos (J.E. Freeman), um assassino contratado por Marietta, e conhecem diversos tipos bizarros, como Bobby Peru (Willem Dafoe, incrível), que convence Sailor a participar de um assalto a banco. Claro que a ideia não dá em boa coisa! Além das músicas incidentais brilhantemente bem selecionadas por Angelo Badalamenti, autor de trilha, como “Be-Bop-a-Lu-La”, Gene Vincent, o clássico blues “Baby Please Don’t Go”, com a Them, e o heavy-metal avassalador “Slaughter House”, da Powermad, é em Elvis que o rock aparece com força. Além de cantar “Love Me” durante o filme, no final, Sailor entoa “Love me Tender” para Lula, cena de tirar lágrimas de qualquer espectador. “Coração Selvagem” é puro rock ‘n’ roll, onde não faltam sexo, drogas e muito som.
Pulp Fiction – Tempo de Violência (1994) – Quando Quentin Tarantino trouxe ao mundo do cinema o divisor-de-águas “Pulp Fiction”, com seu turbilhão de referências pop, entre elas do rock ‘n’roll, o mesmo já havia mostrado seu apreço pelo rock no antecessor “Cães de Aluguel” (1992) e no por ele roteirizado “Amor à Queima-Roupa”, de Tony Scott (1993). Mas é em “Pulp Fiction” que sua alma rocker se expõe definitivamente através do rock dos anos 50 e 60, bastante presente na trilha, selecionada a dedo pelo próprio Tarantino. Desde a abertura com a avassaladora surf-music “Misirlou”, com Dick Dale, até o hit “Girl, You’ll Be A Woman Soon”, da Urge Overkill, “Pulp Fiction”, este marco da história do cinema, reverencia o rock na sua forma mais inteligente e sacada, trazendo à tona (como é de praxe a Tarantino) nomes e artistas já esquecidos do grande público. Quem não conhece a famosa cena em que, no encantador pub Jackrabbit Slim, Vincent Vega (John Travolta) e Mia Wallace (Uma Thurman) dançam “You Never Can Tell” de Chuck Berry? Delicioso e divertido, é outro que abocanhou a Palma de Ouro em Cannes.
Contra a Parede (2004) – Tocante e apaixonante filme alemão do diretor Fatih Akin, um pequeno clássico contemporâneo. Romance moderno, se passa entre a cosmopolita e suburbana Berlim e a exótica e sensual Istambul e narra a história de Sibel (Sibel Kekilli), uma linda muçulmana que conhece em uma clínica de recuperação, após uma tentativa de suicídio, Cahit (Birol Ünel), um rapaz que também tem raízes turcas. Ambos decidem se casar formalmente como fachada para que Sibel escape das regras estritas de sua família conservadora. Embora ela tenha uma vida sexual independente, eles resolvem dividir um apartamento. O junkie Cahit, roqueiro amante de Sisters of Mercy, Siouxsie and the Banshees e Nick Cave, aceita a situação no início, mas se apaixona e, num acesso de ciúmes, mata um dos amantes da companheira. Depois de cumprir pena, Cahit reencontra Sibel, ainda acreditando que eles podem ter um futuro em comum. Duas cenas roqueiras são impagáveis. A primeira é a em que os protagonistas dançam ao som de "Temple of Love", do Sisters of Mercy. A outra é a cena em que o médico da clínica psiquiátrica cita para Cahit “Lonely Planet”, da banda de rock inglesa The The, é engraçada e, ao mesmo tempo, simbólica para a trama, pois diz: “Se você não pode mudar o mundo, mude a si mesmo”.
Os Bons Companheiros (1990) – Clássico do genial Martin Scorsese, “Goodfellas” é o melhor filme de gângster de sua carreira (para muitos, o seu melhor entre todos) e, embora o tema não se relacione diretamente com o rock, a vida junkie de seu protagonista (Henry Hill, vivido por Ray Liotta) e, principalmente, a trilha sonora, fazem com que este estilo musical desenhe o filme de ponta a ponta. A história conta a saga de um trio de golpistas desde os anos 50 ao início dos 80, e a trilha acompanha esta trajetória, pontuando período por período com joias muito bem pinçadas por Scorsese – o maior roqueiro por trás das câmeras ainda vivo. Duas cenas em que músicas do cancioneiro rock marcam o filme são inesquecíveis. Uma delas, a da “limpa” que a gangue pratica, executando diversos adversários e cúmplices, quando os acordes da maravilhosa parte com piano de “Layla”, de Eric Clapton, acompanham o movimento da câmera, que percorre vários lugares mostrando os corpos assassinados. A outra finaliza a fita, quando, já no final dos anos 70, época do estouro do punk-rock, Liotta quebra a "quarta parede" e olha desanimado para a câmera ao som de “My Way” com o Sex Pistols.
Blow-Up – Depois Daquele Beijo (1966) – Um dos maiores filmes da história do cinema, esta pérola de Michelangelo Antonioni, se não aborda diretamente a vida sem sentido de jovens da contracultura norte-americana dos anos 60 como “Vanishing Point”, de cinco anos depois, é, talvez mais do que este, um marco deste período por sua trilha, de ninguém menos que o mestre do jazz moderno Herbie Hancock. Escrevi mais substancialmente sobre “Blow-Up” em 2010, quando tive oportunidade de assistir a uma aula que dissecou o roteiro e concepção desta obra-prima do cinema mundial. Um dos pontos que destaquei é, justamente, a famosa cena do show dos Yardbirds em um clube em que Jeff Beck, detonando um hard-rock de tirar o fôlego, quebra a guitarra no palco e atira o braço todo despedaçado para o público. O protagonista, o cético e desmotivado fotógrafo Cummings (David Hemmings) briga para ficar com o toco de guitarra, sai do clube para que não o tirem dele e, já na rua… joga fora. Atitude que reflete o descrédito e ceticismo da lisérgica geração Swingin’ London. A abertura, com os créditos ao som de um charmoso rock de Hancock, é clássica: simbólica e esteticamente estupenda.
The Wall (1982) – Alan Parker, não sei se por esvaziamento ou preguiça, há muito não filma algo que o valha. Porém, antes de realizar obras-primas como “Coração Satânico” (1987), “Mississipi em Chamas” (1988) e “Asas da Liberdade” (1984), o inglês já havia feito o épico “The Wall”, em que cria, a partir da magistral música de Roger Waters, um musical conceitual e arrojado para o disco homônimo do Pink Floyd, lançado três anos antes. Em imagens muito bem fotografadas por Peter Biziou, cuja estética remete ao pós-guerra, mostra as fantasias delirantes do superstar do rock Pink, um homem que enlouquece lentamente em um quarto de hotel em Los Angeles. Queimado no mundo da música, ele só consegue se apresentar no palco com a ajuda de drogas. O filme acompanha o cantor desde sua juventude, mostrando como ele se escondeu do mundo exterior. Ainda, as intervenções de desenhos animados, trazidos pela habilidosa mão do desenhista Gerald Scarfe, são bastante pioneiras em termos de arte pop no cinema, antecipando, por exemplo, filmes como "Kill Bill" e "Sin City".
Se você gosta de rock, acredito que em alguma vez na sua vida ouviu a seguinte frase: "Isso é do capeta!", ou simplesmente te perguntaram se você tinha pacto com o diabo, entre outros questionamentos que beiram à infantilidade, tal a ignorância das "pessoas normais".Os anos 80 foram marcados por grandes lançamentos e formações de grandes bandas e junto com essas bandas vieram os estereótipos de que todas muitas delas eram satanistas.
Grupos de religiosos fanáticos se aglomeravam próximos aos locais de shows, e com o Iron Maiden não foi diferente. Após o lançamento de "The Number of The Beast", a banda foi diversas vezes acusadas de pacto com o diabo. "Piece of Mind" (1983), o quarto álbum da banda contém uma “mensagem secreta” entre as faixas “ The Trooper” e Still Life” que servira para assustar ainda mais esses perseguidores religiosos, quando na verdade, o que se ouve é o baterista Nicko McBrain imitando o ditador Idi Amin de Uganda. A propósito, "Piece of Mind" é o disco de estréia do baterista na banda e o segundo de Bruce Dickinson à frente dos vocais.
Encorpada e original , "The Tropper" virou cerveja até artesanal e foi lançada pela banda em parceria com cervejeiros da família Cheshire Robinson, em 2013.
Entretanto todo fanatismo religioso é causado por mera ignorância, já que "Piece Of Mind" explora, na verdade, letras sobre guerras, filmes e obras literárias, como é caso de "The Tropper", por exemplo, que é inspirada no poema de Lord Alfred Tennyson, "A Carga da Brigada Ligeira", e que narra a Batalha de Balaclava , durante a Guerra da Crimeia, em 1854. Nos shows, a narrativa do ponto de vista do cavaleiro britânico que avança contra as linhas russas é interpretada por Dickinson que veste uma farda do exército e empunha a bandeira do Reino Unido.
Com o objetivo de alcançar fãs americanos, além de "The Tropper", a banda lançou outro single, “Flight of Icarus”, por sua vez inspirada na história de Ícaro, personagem da mitologia grega que ambicionava voar com suas asas feitas de cera.
E as inspirações e referências não param por aí: Em "Revelations" a banda faz referências às teorias de Aleister Crowley, escritor e ocultista inglês e estudioso também de elementos hindus; "Where Eagles Dare" , canção que abre o álbum, é inspirada no romance com mesmo titulo do escritor escocês Alistair MacLean; "Die With Your Boots On" fala sobre charlatões que induzem os fiéis acreditarem em suas auto realizações; "Still Life", fala sobre um cara que fica atraído por uma piscina, tem pesadelos, vê nela seu rosto e, num fim trágico, pula nela e morre, "Quest for Fire" conta a saga de três tribais que vão atrás do fogo que sua tribo perdera, como descrito no romance de J.H Rosny Aîne; "Sun and Steel" narra a história do Samura Miyamoto Musashi (1584 – 1645) que, com apenas 13 anos já matara seu primeiro inimigo e veio a criar o Niten ichi-ryû, um estilo de luta que utiliza duas espadas;e por fim, "To Tame a Land", a faixa que encerra o álbum, foi inspirada em Dune, livro de ficção científica de Frank Herbert’s que veio também a ser adaptado para o cinema por David Lynch, em 1984.
Além do singles, o álbum possuem duas covers, “ I’ve Got the Fire”, da banda de hard-rock dos anos 70, Montrose, e “Cross-eyed Mary”, do Jethro Tull.
"Piece of Mind" foi gravado entre janeiro e março de 1983 no Compass Poin Studios, nas Bahamas, e lançado no dia 16 de maio de 83 em formatos LP, cassete e CD pela gravadora EMI, com produção de Martin Birch, tendo alcançado terceiro lugar da parada inglesa, além de ter sido o primeiro a alcançar o top 100 da Billboard 200(chegando à 70ª posição).
Uma obra verdadeiramente inspirada e inspiradora tanto para gerações dos anos 90 como também para as dos dias atuais.
porDiego Almeida
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FAIXAS: 1. Where Eagles Dare
2. Revelations 3. Flight of Icarus 4. Die With Your Boots On 5. The Trooper 6. Still Life 7. Quest For Fire 8. Sun And Steel 9. To Tame A Land
extras da reedição de 1995 10. "I've Got the Fire" (cover do Montrose) 11. "Cross-Eyed Mary" (cover do Jethro Tull)
Depois de uma manhã e uma tarde lotadas de passeios por São Paulo, o horário da visitação gratuita ao Masp, fim de tarde, se aproximava. Já sabíamos que as entradas online estavam esgotadas dada a alta procura, ainda mais porque naquela semana havia estreado justamente a exposição que mais atraía as pessoas (e a nós): "A Ecologia de Monet". Mas estávamos Leocadia e eu próximos, andando pela Av. Paulista e, mesmo cansados, pensamos: "por que não tentar?" Talvez esse espírito flaneur tenha nos presenteado com dois ingressos, que nos foi alcançado logo que chegamos em frente ao lindíssimo prédio projetado pela arquiteta Lina Bo Bardi.
Com muita fila e sala lotada, pudemos mesmo assim, apreciar as poucas (32) mas bem reunidas obras de Claude Monet, um dos maiores gênios das artes de todos os tempos. Já havia tido a oportunidade de ver Monet numa exposição interativa em Porto Alegre anos atrás, onde não havia nenhuma obra original dele, apenas reproduções, e lembro de, apesar da beleza inconteste, ficar um tanto frustrado de não ver um “Monet Monet”. Dessa vez, realizei o sonho.
A seleção da exposição evidencia a relação de Monet com a natureza, as transformações ambientais, a modernização da paisagem e as tensões entre ser humano e natureza, mostrando como ele estava adiantado no tempo no que se refere ao pensamento ecológico, algo mais evidente somente no final do século 20.
O interessante recorte dado pela curadoria pinça obras dos diferentes ambientes naturais que o artista impressionista pintou em sua vida, desde Havre, na Normandia, Belle-Ille, na Bretanha, Vétheuil, no interior da França, a seu famoso jardim em Giverny, próximo a Paris, onde realizou algumas de suas mais marcantes obras, como a série das “Ninfeias” e a famosa ponte chinesa de seu quintal, as quais mereceram uma sessão especial na mostra.
Porém, não apenas estas, mas as paisagens da Normandia começando a ser turística e moderna ao mesmo tempo, como registrou em “Vista do antigo porto de Havre”, de 1874. Ou a beleza impactante das rochas milenares de Port-Gouphar (1886), em que a brutalidade de suas formas contrasta, primeiro, com a delicadeza do céu nublado em tons leves, mas, principalmente, com a organicidade da água à sua frente, cujas pinceladas curtas e marcadas fazem o quadro parecer vivo.
Por falar em vivacidade da água, a ecologia fluvial de Monet é um dos aspectos mais investigados e valorizados da exposição, visto que justifica duas sessões: "O Sena como Ecossistema", onde podem ser vistos quadros como “O Passeio de Argenteuil” (1872), e "Os Barcos de Monet", que mostram a relação deste com o curso d'água do afluente do rio Sena em uma imersão. As barcas são mostradas de pontos de vista elevados, eliminando, assim, a noção de uma linha do horizonte. Para um apaixonado por cinema, é impossível não enxergar na forma de enquadrar de Monet referências daquilo que se tornaria gramatical no cinema, a qual ele viu nascer enquanto arte. Não são à toa os planos incomuns de Dreyer em "A Paixão de Joana D'Arc" ou o constante distorção imagética do Expressionismo Alemão.
Note-se a correnteza do rio é destacada por pinceladas onduladas em tons de vermelho e amarelo que se somam ao verde intenso. O traço impressionista, embora caracterizado pela dissolução, se modificado conforme a necessidade: ora mais intenso, mais sutil, mais ou menos carregado, o que vai provocando diferentes texturas e sensações. Novamente recorrendo ao cinema, há quadros das plantas ninfeias que, afora o "enquadramento" fora dos padrões, jogando a linha do horizonte para a parte superior da tela, as plantas aquáticas ganham como vizinhas o reflexo das árvores no lago, provocando aquilo que em cinema se chamaria facilmente de sobreposição como as que David Lynch e Alain Resnais usavam largamente em seus filmes.
Há ainda o núcleo “Neblina e Fumaça”, que discute como Monet representou as transformações urbanas e industriais de seu tempo com a chegada da energia a vapor, da expansão das fábricas e a produção de carvão, que mudaram radicalmente as cidades europeias do fim do século XIX. A sequência de trabalhos em que o artista retrata as pontes de Waterloo e de Charing Cross, de Londres, são emblemáticos, pois dão a ver a forma como Monet explorou a perspectiva atmosférica com cores e pinceladas singulares, conferindo espessura à neblina e evidenciando o ar carregado pela fumaça liberada pelas indústrias instaladas às margens do rio Tâmisa. A poluição, sim: a poluição!
Por fim, outro núcleo é “O Pintor como Caçador”, que explora as trilhas por onde caminhava em busca de pontos de vista originais. Traz visões muito poéticas de Monet em pinturas realizadas em suas viagens pela costa francesa - Normandia, Bretanha e Mediterrâneo -, além de passagens por outros países, como a Holanda.
Saímos ainda mais cansados do que já estávamos, mas completamente arrebatados e preenchidos por termos a sorte de conseguir entrar e presenciar a arte maior de Monet. Era um objetivo nesta ida a São Paulo, que pareceu por algum momento que não seria possível realizar. Foi.
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A impressionante “Vista do antigo porto de Havre”: começo do turismo de praia no Mediterrâneo
Composição magistral dos barcos atracados
Genialidade: as rochas de Port-Gouphar e o espelho d'água
Público embasbacado com tamanha maestria na pintura
Dos mais impressionantes, “O Passeio de Argenteuil”
Muito público para ver a exposição
no final de tarde/início de noite no Masp
A série das "Ninfeias". Basta admirar
Sessão das Ninfeias disputada
Aula de enquadramento e de fusão de imagens: totalmente cinema
Mais das Ninfeias, aqui na famosa ponte chinesa de Giverny
A ponte de Waterloo e a... poluição, já em fins do século 19. Ah, o homem...
Outra cena linda de barcos sob o céu nublado
Detalhe de uma das cenas de "caça" de Monet. Sempre em busca de novos olhares
Duo de quadros que junta o trato com a água e o enquadramento diferenciado de Monet...
...Que fecham/abrem a exposição magistralmente
E estes dois flaneurs em estado de graça após verem a exposição
Sabe quando a gente brinca assim, "Já é ano novo na Austrália!"? Pois é, em "Réveillon Maldito" (New Year's Evil), a frase poderia ser "Alguém já morreu na Costa Leste!". Neste terror trash de ano novo, um psicopata pretende matar uma pessoa em cada fuso-horário dos Estados Unidos. O maluco liga para um programa de TV de rede nacional, uma espécie de Top of the Pops de boas vindas para o ano novo, para uma apresentadora que é uma espécie de diva punk-new wave, Diane Sullivan, conhecida como Blaze, e usando o codinome "Maldito", ameaça cometer crimes cada vez que o ano novo chegar em alguma parte do país. Promete matar pessoas próximas a ela, a cada hora e, por fim, a própria Blaze quando chegar no fuso de Chicago. Só que num programa cheio de bizarrices, jovens desajustados, comportamentos antissociais e artistas com apelidos tão esquisitos quanto o do misterioso homem ao telefone, ninguém leva o aviso muuuito a sério num primeiro momento (embora a pop-star fique levemente intrigada). Contudo, logo depois do primeiro assassinato, de uma enfermeira, gravado em K7 pelo maníaco, ele volta a ligar para Diane, rodando a gravação com os sons de golpes e gritos e só então ela e as autoridades passam a dar verdadeira atenção ao desequilibrado.
O filme não é nada de mais. Pra falar a verdade é bem fraco e tem problemas de amarração e estrutura bastante evidentes. Mas, além de ser um prato cheio para os apreciadores de um slasher trash de serial-killer, "Réveillon Maldito" até que tem alguns méritos e alguns momentos bem interessantes e tensos. Nosso assassino, por exemplo, é apresentado desde o início, sem máscaras, sombras, meios rostos, costas, etc., apenas vemos que ele utiliza um equipamento para modificar a voz ao fazer as ligações. Só que, embora conheçamos seu rosto, seus artifícios para chegar às vítimas, não sabemos, contudo, sua identidade nem sua motivação, o que só virá a ser revelado, mesmo, na parte final. Outro elemento interessante é o filho da estrela, Derek, um desajustado, desequilibrado, carente, ignorado por ela, que fala sozinho, se droga, usa roupas da mãe e meia de nylon na cabeça, ao melhor estilo dos personagens esquisitos de David Lynch.
No alto, à esquerda, a pop-star Blaze, à direita, os "tipos" que frequentam a plateia do programa; abaixo, à esquerda, o filho esquisitão Derek, e, à direita, nosso matador, boa pinta, 'recrutando' sua primeira vítima.
A indefinição na morte do terceiro fuso-horário é outro ponto legal do filme. O assassino até tem boas ideias, organização, tem bons planos, mas é amador e, em especial nessa vítima ele se complica. Tem dificuldades para capturar a vítima no drive-in, depois tem problemas com um motoqueiros, bate na moto de um deles, é perseguido pela gangue, se livra dos caras mas aí quase atropela dois bêbados e, nisso, a garota consegue escapar do carro e ele é obrigado a persegui-la mato a dentro. Toda essa situação gera a expectativa de se ele conseguirá cumprir o plano, se conseguirá recapturá-la antes da meia-noite, se conseguirá cumprir o prazo daquele fuso... Sua imperícia lembra um pouco o assassino do clássico "Pânico", de Wes Craven, imortalizado na máscara de Ghostface, mas muito incompetente e atrapalhado em diversas ocasiões.
A sequência final, sem dar spoiler, também é bem interessante, quando o criminoso, cercado pela polícia, sem muitas alternativas, recorre a um artifício que, se não lhe garante êxito total em seu intento, com um simples objeto, propõe que seu propósito seja levado adiante, deixando o desfecho em aberto. A indefinição fica ainda mais salientada pela voz do rádio que encerra o filme anunciando que no Hawaii, estado norte-americano no Pacífico, já é meia noite.
Filme B, produção um tanto tosca, mas um bom exemplar de slasher do início dos anos 80, quando esta categoria do terror ainda não estava de todos consolidada mas ainda nos traria ícones como Jason, Freddy e outros.
Sem nenhum maluco mascarado nas festas de vocês, por aí, desejamos a todos um feliz ano novo.
Comemorem, comemorem! Afinal, no outro lado do mundo já é ano novo.
Certos marcos temporais não se completam à toa. Em cinema, fenômeno com pouco mais de um século de existência e menos ainda de indústria, décadas contam muito em ternos de significado, ainda mais numa nação jovem como a brasileira. Por isso, diz muito o fato de, há 40 anos, o cinema brasileiro ter perdido Glauber Rocha, principal artífice do Cinema Novo e autor de obras essenciais para a formação do cinema nacional, entre os quais “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, de 1964. Primeiro grande marco do Cinema Novo, esta obra divisional é o produto mais pungente de uma rica leva da produção cinematográfica brasileira motivada por um contexto histórico-social e político implosivo nutrido por abissais contradições. Entre a modernidade nacionalista dos tempos pós-Vargas e a embrionária globalização, havia, em mesma proporção, o alarme pelo alto índice de desigualdade social e a forte tensão de forças políticas que resultaria no Golpe Civil-Militar daquele mesmo fatídico ano de lançamento de “Deus e o Diabo...”.
Incandescentes como o sol que assola a terra destas duas forças, a materialização destas motivações em aspectos fílmicos e narrativos dão à obra de Glauber, seguidamente considerada difícil e cerebral, uma representação estética possível de ser revisitada à luz de produções atuais do cinema nacional. A perspectiva pop que traz “Jesus Kid”, de Aly Muritiba, recentemente exibido – e premiado – no Festival de Cinema de Gramado, entreabre, quase 60 anos depois, portas escancaradas com fúria e poesia por Glauber e sua geração. O filme de Muritiba busca explorar artifícios pop já experimentados com êxito anteriormente, numa tentativa digna de estabelecer diálogo com um público aberto a esta abordagem e, principalmente, com condições de transmissão/replicação das propostas discursivas de “vanguarda” na sociedade, a fatia jovem-adulta dos chamados “formadores de opinião”.
Antes mesmo de rodar “Deus e o Diabo...”, Glauber, um iniciante cineasta e ativo crítico de cinema, exaltava em seu “Revisão Crítica do Cinema Brasileiro”, editado em 1963, o potencial “popular” do Cinema Novo. A ideia dos jovens realizadores do movimento era engendrar um cinema de autor que refletisse a alma de um povo, fosse econômica ou esteticamente. Para isso, vestiam suas obras de características ora muito próprias, mas também de natureza “pop” comuns na acepção mais abrangente do termo. A exemplo do que observava com entusiasmo no cinema de colegas como Paulo César Saraceni, Joaquim Pedro de Andrade e Nelson Pereira dos Santos, Glauber trazia para seu olhar elementos “pop” dentro de seu contexto cultural, histórico e social, como o cinemão norte-americano, a fragmentação sequencial dos quadrinhos a e correlação entre erudito e folclórico – visto, por exemplo, na trilha sonora de “Deus e o Diabo...” dotada de Villa-Lobos e dos cantos de violeiro de Sérgio Ricardo. Igualmente, estão-lhe presentes o cinema de Sergei Eisenstein, Humberto Mauro, John Ford, Luis Buñuel e Roberto Rosselini, todos, à exceção do primeiro, vivos e ativos à época. Elementos que faziam sentido num contexto de “popficação” nos anos 60. Glauber e seus correligionários entendiam que cabia aos autores do cinema uma visão formativa desta inserção de propostas cultas no tecido social. Transformar a alta cultura em hits deglutíveis.
filme"Deus e o Diabo na Terra do Sol", de Glauber Rocha
O uso de elementos “pop” no cinema brasileiro maturou-se ao longo das décadas juntamente com a produção audiovisual nacional. Porém, embora tenha ganho em experiência e até em condições econômicas, alguns ensinamentos parecem ter se dispersado. Em “Jesus Kid”, justamente por seus méritos técnicos, essa inconsistência fica bem evidente. De caprichadas fotografia e direção de arte, o filme de Muritiba se esvazia, por outro lado, naquilo que, certamente, mais almejou realizar, que é uma narrativa de apelo pop. Fugindo do padrão comum, mas também sem recair na proposta alternativa, este formato tenta criar um espaço simbólico que comporta ideias modernas capazes de gerar identificação com o público, sendo um destes recursos a alusão a produtos “do mercado”. Estética e formalmente, “Jesus Kid” apropria-se de referências diretas dos filmes “Barton Fink - Delírios de Hollywood”, de Joen e Ethan Coen (1991), “Cidade dos Sonhos”, de David Lynch (2002) e bastante de Quentin Tarantino, desde os westerns “Os Oito Odiados” (2015) e “Django Livre” (2013) ao episódio de “Grande Hotel” (1995).
Acontece que “Jesus Kid”, mesmo que tenha atingido sua assimilação junto a quem intenta dirigir-se, apresenta duas grandes travas que o impedem de alçar: uma estrutural e outra formal. A começar, o roteiro. Baseado num romance do celebrado escritor Lourenço Mutarelli, o que se verteu das páginas para a construção audiovisual parece ter se descompassado, haja vista, principalmente, o ritmo apressado dos acontecimentos e encadeamentos do filme. Saliente-se: ritmo frenético numa narrativa não pressupõe falta de respiros, visto que a psique do espectador comum – inclusive, o de simpatia ao dito “pop” – carece da tradicional alternância de estados psicológicos da dramaturgia clássica. Subverter isso é optar pelo caminho alternativo, o que está longe de ser-lhe a intenção.
Enquadramento e tonalidades semelhantes de "Jesus Kid" com "Barton Fink": referências diretas
Tanto Tarantino quanto os Coen, os cineastas cujas obras são as mais referidas em “Jesus Kid”, sabem bem disso, pois são conhecidos pelo apreço ao exercício de extensão-distensão da narrativa. O primeiro, com seus longos diálogos preparativos para clímaces; já os irmãos Coen, pelo consciente uso dos espaços vazios visual e narrativamente. Por que, então, pegar-lhes emprestado justo o mais superficial, a estética? Impossível não entender isso como um subterfúgio (pouco assertivo) de atração quase publicitária para a obra. A tarantinesca resolução do filme brasileiro, igualmente, não peca pelo tom satírico ou pela bizarrice – aceitáveis dentro da trama – mas pela falta de preparo a um momento tão importante para a história, visto que o espectador é colocado até ali constantemente num indistinto frenesi de imagens e ações.
Miklos: atuação que enfraquece o filme
Este mesmo raciocínio pode ser aplicado ao outro aspecto analisável de “Jesus Kid”, que é ligado à sua forma: a escolha de Paulo Miklos como protagonista para o papel do escritor Eugênio. Não é difícil perceber que, já no primeiro diálogo, fica evidente o despreparo técnico deste para com os recursos cênicos, visto que recai sobre ele a responsabilidade de sustentar um papel cômico, trágico e cheio de nuanças, difícil até para um ator profissional. Resposta a qual Miklos, ator não-profissional, fatalmente não dá. Mesmo espirituoso e carismático, falta-lhe olhar, falta-lhe tempo de articulação, falta-lhe consciência de movimentos. Se a estratégia era se valer, como na publicidade e seus “garotos-propaganda”, da figura pop de um conhecido astro da música, havia de se avaliar que, como ator, este desempenhou bem no cinema apenas 20 anos atrás em “O Invasor”, de Beto Brant (1997), justo quando teve, conceitualmente, liberdade de uma atuação naturalista dentro da “marginalmente” que o papel exigia, o que supunha desvencilhar-se de balizamentos técnicos. Para “Jesus Kid”, no entanto, a opção por Miklos prejudica sobremaneira todo o andamento, visto que a história se centra no escritor ao qual ele interpreta. Não é difícil imaginar algum ator profissional assistindo o filme e lamentando pelo desperdício de um roteiro promissor.
Há de se entender, contudo, que a caminhada para um cinema de apelo “pop-cult” no Brasil, a exemplo do que outros polos mundiais produzem, principalmente os Estados Unidos, está em pleno curso. Desde que “Deus e o Diabo....” iluminou este caminho, títulos importantes para essa viragem como “O Bandido da Luz Vermelha” (Rogério Sganzerla, 1969), “A Rainha Diaba” (Antonio Carlos da Fontoura, 1974) e “Faca de Dois Gumes” (Murilo Salles, 1989) evoluíram em linguagem e aproximaram os conceitos “brutos” da vanguarda para a massa. Mais proximamente, o cinema pós-retomada dos últimos 30 anos captou bem este espírito a exemplo de “Cidade de Deus” (Fernando Meirelles e Katia Lund, 2002), a franquia “Tropa de Elite” (José Padilha, 2007 e 2010), “Fim de Festa” (Hilton Lacerda, 2019) e o talvez mais bem-sucedido de todos nesta linha: “Bacurau”, de Kleber Mendonça Filho (2019). Todos entenderam o que Glauber avaliava como essencial a uma obra de cinema que se pretende popular: cada um à sua medida, dosa discurso e poesia. Equilíbrio difícil, porém, o que talvez explique a inconstância de obras desta potência e natureza no Brasil. Linguagem em cinema também é continuidade da prática.
Se custou a Glauber e ao Cinema Novo o preço muitas vezes da incompreensão, é curioso perceber como o movimento serviu para emancipar o cinema nacional justamente no aspecto que teve menos êxito, que foi o de representar e dialogar com o público – ou o mais amplo possível deste. Como acontece em processo semelhante na música erudita para com a música pop, as bases lançadas pela primeira passam por tamanho burilo que, quando chegam aos ouvidos da massa, pouco se identifica de seus arrojados acordes geradores. A Glauber, especialmente, homem de poucas concessões e cujo cinema intensificou-se em complexidades alegóricas cada vez mais ao longo dos anos, ficou a pecha de alguém genial, mas de ínfima aceitação e entendimento popular. Independentemente disso, faz quatro décadas que Glauber Rocha deixou, dentre outros legados, as bases de um “cinema pop” para o Brasil sob uma perspectiva doméstica. É justo e genuíno, então, buscá-lo e aperfeiçoá-lo. Talvez, contudo, seja preciso ainda que bata muito sol sobre esta terra para que o diabo da inovação e o deus do gosto popular se harmonizem.