Acontece que, com a pandemia, não apenas eu como milhares de outros espectadores pude ter essa maior proximidade que a exigência de exclusividade do festival sempre afastou. Desde o ano passado, os filmes concorrentes passaram a ser exibidos não no icônico Palácio dos Festivais para poucos afortunados e com pessoas se acotovelando para conseguir uma poltrona, mas, sim, dada a necessidade de distanciamento social, através de sessões pelo Canal Brasil. No conforto da poltrona de casa. Aí, foi um abraço. Se em 2020 já havia conseguido assistir a alguns títulos como espectador, este ano, convidado pela organização do festival, tive a honra de compor, como membro da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul o Júri da Crítica, na qual tive como colegas Ela Bittencourt, Pedro Butcher, André Bozetti e Joyce Pais. A missão: escolher os melhores filmes nas categorias de Curta-Metragem Brasileiro, Longa-Metragem Brasileiro e Longa-Metragem Estrangeiro, 24 títulos no total.
A maratona, embora um pouco cansativa, foi extremamente prazerosa, bem como o processo de seleção junto aos colegas de júri, com quem pude aprender mais sobre o papel do crítico, principalmente para situações como a de um corpo julgador a qual nos cabia. Com temas e abordagens variadas, tanto a seleção de curtas quanto a de longas trouxeram obras bem interessantes, algumas empolgantes. Particularmente, destaco dois títulos de duas das categorias que pude ter maior aprofundamento – Curta-metragem Brasileiro e Longa-Metragem Brasileiro – sem deixar, contudo, de abordar outros filmes juntamente:
"Entre Nós e o Mundo", de Fábio Rodrigo (2019)
Curta-metragem que já havia assistido, primeiramente na mostra competitiva do 1º Festival Cinema Negro em Ação, do qual participei também como jurado justamente para esta categoria, e, posteriormente, quando fui mediador de debates do 14º Cine Esquema Novo, em abril deste ano, ocasião em que tive a oportunidade de conversar diretamente com o cineasta e discutir mais sobre este pequeno documentário gigante em profundidade e sensibilidade. O filme relata a história de Erika, prima de Rodrigo e moradora da comunidade de Vila Ede, na periferia São Paulo. Ela sofre por ter perdido seu filho mais novo durante uma abordagem policial, ao mesmo tempo que teme pela vida de seu outro filho e da nova que está trazendo ao mundo, a pequena e resistente Alicia.
Impressiona em “Entre...”, escolhido por nós da crítica e também ganhador como Melhor Filme pelo Júri, é a abordagem não óbvia para um problema crônico da sociedade brasileira, que é a violência urbana e o racismo. Denunciativo sem ser escancarado, consciente sem ser agressivo, o curta deixa ao espectador, em sua montagem peculiar (aliás, vencedora nesta categoria em Gramado também) – que formula um “work in progress” cuja bússola é o processo emocional do diretor, também personagem da história – o sentimento raro em um momento de revolta da beleza e da continuidade da vida. Competente, bem à frente de seus concorrentes, “Entre...” ainda rendeu a Rodrigo Melhor Direção e Montagem.
"Animais na Pista", um dos destaques entre os curtas |
Menciono também outra produção paraibana: “Animais na Pista”, de Otto Cabral (vencedor de Melhor Trilha Musical e Melhor Fotografia), um ousado e difícil exercício de plano-sequência para um drama que faz uma crítica dura à sociedade e a raça humana; o paulista “Fotos Privadas”, de Marcelo Grabowsky (Melhor Ator para Lucas Galvino e Melhor Roteiro), de personagens e situações muito bem construídas; e o ousado doc-denúncia “O Que Há em Ti”, do igualmente paulista Carlos Adriano, que quebra os limites entre Brasil e Haiti – se é que ele “não é aqui”.
As atuações, portanto, não se restringem a uma ou outra de destaque – principalmente se comparado com outros filmes da mostra competitiva, os bons “Homem Onça”, conduzido pelo personagem principal vivido por Chico Diaz, ou “A Suspeita”, protagonizado por Glória Pires, vencedora, inclusive do prêmio de Melhor Atriz – mas a pelo menos 16 atores, a excelente Isabél Zuaa o os irmãos, apresentados na história em três momentos temporais ao longo de três décadas. O feito de “O Novelo” neste sentido é, justamente, o de equalizar tantas atuações intensas que, por sua vez, entregaram o que lhes foi exigido.
Carro Rei: vitória contestada de Gramado 2021 |
Curiosamente, nem “O Novelo” e nem “A Primeira...” – quanto menos outro forte concorrente, “Homem Onça” – ficaram perto em termos de realce do errático “Carro Rei”, o grande vencedor da noite, uma ficção futurista com seus méritos (venceu, entre seus 4 Kikitos, os de melhor Trilha Musical, Direção de Arte e Desenho de Som), mas que não se situa nem entre o filosofal e nem no pop. Até mesmo “Jesus Kid” obteve, no pesar das premiações, mais destaque. Comédia boa em direção de arte e fotografia, mas que se consagrou justamente naquilo mais peca: a direção, apressada e destoada do curitibano Aly Muritiba (muito em razão da fraca atuação do seu ator principal, Paulo Miklos), e o roteiro, que, embora baseada na obra do celebrado escritor Lourenço Mutarelli, é o responsável pelo resultado desigual do filme. Vai entender.
CURTAS-METRAGENS BRASILEIROS
· Melhor Filme – “A Fome de Lázaro”, de Diego Benevides
· Melhor Direção – Fabio Rodrigo, por “Entre Nós e o Mundo”
· Melhor Ator – Lucas Galvino em “Fotos Privadas”
· Melhor Atriz – Tieta Macau em “Quanto Pesa”
· Melhor Roteiro – Marcelo Grabowsky, Aline Portugal e Manoela Sawitzki, por “Fotos Privadas”
· Melhor Fotografia – Rodolpho Barros, por “Animais na Pista”
· Melhor Montagem – Caroline Neves, por “Entre nós e o Mundo”
· Melhor Trilha Musical – Eli-Eri Moura, por “Animais na Pista”
· Melhor Direção de Arte – Torquato Joel, por “A Fome de Lázaro”
· Melhor Desenho de Som – Breno Nina, por “Quanto Pesa”
· Melhor Filme pelo Júri Popular – “Desvirtude”, de Gautier Lee
· Melhor Filme pelo Júri da Crítica – “Entre Nós e o Mundo”, de Fábio Rodrigo
· Prêmio Especial do Júri – Fabio Rodrigo, por “Entre Nós e o Mundo” por responder de forma consciente em termos estéticos, afetivos e narrativos a pergunta “Como falar da dor da perda e ainda ter esperança?”.
· Menção honrosa da Comissão Julgadora para os curtas brasileiros vai para o filme “A Beleza de Rose”, de Natal Portela, por fazer um delicado recorte da vida de muitas mulheres negras no nordeste do Brasil.
· Prêmio Canal Brasil de Curtas – “A Beleza de Rose”, de Natal Portela
LONGAS-METRAGENS ESTRANGEIRO
· Melhor Filme – “La Teoría De Los Vidrios Rotos”, de Diego Fernández Pujol
· Melhor Filme Júri Popular – “La Teoría De Los Vidrios Rotos”, de Diego Fernández Pujol
· Melhor Filme pelo Júri da Crítica – “Planta Permanente”, Ezequiel Radusky
· Prêmio Especial do Júri – Pela abordagem de temas tão presentes em nossa sociedade, que refletem as consequências de um sistema corrompido e afetam diretamente os valores humanos; e pelas interpretações das protagonistas femininas que representam a força das mulheres latinas em nosso cinema. O Júri de Longas-metragens estrangeiros do 49º Festival de Cinema de Gramado decidiu conceder o Prêmio Especial do Júri ao filme “Planta Permanente”, de Ezequiel Radusky.
LONGAS-METRAGENS GAÚCHOS
· Melhor Filme – “Cavalo de Santo”, de Carlos Eduardo Caramez e Mirian Fichtner
· Melhor Direção – Gilson Vargas, por “A Colmeia”
· Melhor Ator – João Pedro Prates, por “A Colmeia”
· Melhor Atriz – Luciana Renatha, Alexia Kobayashi e Veronica Challfom, por “Extermínio”
· Melhor Roteiro – Carlos Eduardo Caramez, por “Cavalo de Santo”
· Melhor Fotografia – Bruno Polidoro, por “A Colmeia”
· Melhor Direção de Arte – Gilka Vargas e Iara Noemi, por “A Colmeia”
· Melhor Montagem – Joana Bernardes e Mirela Kruel, por “Extermínio”
· Melhor Desenho de Som – Gabriela Bervian, por “A Colmeia”
· Melhor Trilha Musical – Cânticos Sagrados dos Orixás preservados pelos Terreiros gaúchos e Alabê Oni, por “Cavalo de Santo”
· Melhor Filme pelo Júri Popular – “Cavalo de Santo”, de Carlos Eduardo Caramez e Mirian Fichtner
LONGAS-METRAGENS BRASILEIROS
· Melhor Filme – “Carro Rei”, de Renata Pinheiro
· Melhor Direção – Aly Muritiba, por “Jesus Kid”
· Melhor Ator – Nando Cunha, em “O Novelo”
· Melhor Atriz – Glória Pires, em “A Suspeita”
· Melhor Roteiro – Aly Muritiba, por “Jesus Kid”
· Melhor Fotografia – Bruno Polidoro, por “A Primeira Morte de Joana”
· Melhor Montagem – Tula Anagnostopoulos, por “A Primeira Morte de Joana”
· Melhor Trilha Musical – Dj Dolores, por “Carro Rei”
· Melhor Direção de Arte – Karen Araújo, por “Carro Rei”
· Melhor Atriz Coadjuvante – Bianca Byington, por “Homem Onça”
· Melhor Ator Coadjuvante – Leandro Daniel Colombo, por “Jesus Kid”
· Melhor Desenho de Som – Guile Martins, por “Carro Rei”
· Melhor Filme pelo Júri Popular – “O Novelo”, de Claudia Pinheiro
· Melhor Filme pelo Júri da Crítica – “A Primeira Morte de Joana”, de Cristiane Oliveira
· Prêmio Especial do Júri para Matheus Nachtergaele, em “Carro Rei”, pela construção e domínio do personagem e pela brilhante capacidade de se reinventar.
· Menção honrosa para Fernando Lufer, Michel Gomes, Victor Alves, Kaike Pereira, Pedro Guilherme e Caio Patricio por seu talento e potência em “O Novelo”
· Menção honrosa para Isabél Zuaa pela bela e impactante atuação em “O Novelo”
Daniel Rodrigues