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segunda-feira, 23 de outubro de 2017

As minhas 20 melhores capas de disco da música brasileira



Dia desses, deparei-me com um programa no canal Arte 1 da série “Design Gráfico Brasileiro” cujo tema eram capas de discos da música brasileira. Além de trazer histórias bem interessantes sobre algumas delas, como as de “Ópera do Malandro”, de Chico Buarque, “Severino”, dos Paralamas do Sucesso,  e “Zé”, da Biquíni Cavadão, ainda entrevistava alguns dos principais designers dessa área aos quais nutro grande admiração, como Gringo Cardia e Elifas Andreato.

Elifas: o mestre do design de capas de disco no Brasil
Motivo suficiente para que eu quisesse montar uma lista com as minhas capas de discos preferidas da MPB. Já tivemos aqui no Clyblog as melhores capas do pop-rock internacional, mas com esse recorte tão “tupiniquim”, ainda não. Além de eu gostar muito da música brasileira, desde cedo admiro bastante também as artes que acompanham. Seja por meio do trabalho de desingers gráficos ou da incursão de elementos das artes visuais, é fato que o Brasil tem algumas das mais criativas e peculiares capas de disco do universo musical.

Assim como ocorre nos Estados Unidos e Europa, a tradição da arte brasileira acabou por se integrar à indústria fonográfica. Principalmente, a partir dos anos 50, época em que, além do surgimento do método de impressão em offset e a melhora das técnicas fotográficas, a indústria do disco se fortaleceu e começou a se descolar do rádio, até então detentor do mercado de música. Os músicos começaram a vender discos e, na esteira, o pessoal das artes visuais também passou a ganhar espaço nas capas e encartes que envolviam os bolachões a ponto de, às vezes, se destacarem tanto quanto o conteúdo do sulco.

Arte de Wahrol para o selo
norte-americano Verve
Lá fora, o jazz e o rock tiveram o privilégio de contar na feitura de capas com as mãos de artistas como Andy Wahrol, Jackson Pollock, Saul Bass, Neil Fujita, Peter Saville e Reid Miles. No Brasil, por sua vez, nomes como Caribé, Di Cavalcanti, Glauco Rodrigues, Rubens Gerchman e Luiz Zerbini não deixaram por menos. Além destes consagrados artistas visuais, há, igualmente, os especialistas na área do designer gráfico. Dentre estes, o já mencionado Gringo, modernizador da arte gráfica nesta área; Elifas, de que é impossível escolher apenas um trabalho; Rogério Duarte, com seu peculiar tropicalismo visual; Cesar Vilela, o homem por trás da inteligente economia cromática das capas do selo Elenco; e Aldo Luiz, autor de uma enormidade delas.

No Brasil, em especial, a possibilidade de estes autores tratarem com elementos da cultura brasileira, rica e diversa em cores, referências étnico-sociais, religiosas e estéticas, dá ainda, se não mais tempero, elementos de diferenciação diante da arte gráfica feita noutros países. Assim, abarcando parte dessa riqueza cultural, procurei elencar, em ordem de data, as minhas 20 capas preferidas da música brasileira. Posso pecar, sim, por falta de conhecimento, uma vez que a discografia nacional é vasta e, não raro, me deparo com algum disco (mesmo que não necessariamente bom em termos musicais) cuja capa é arrebatadora. Quem sabe, daqui a algum tempo não me motive a listar outros 20?

Sei, contudo, que estas escolhidas são de alta qualidade e que representam bem a arte gráfica brasileira para o mercado musical. Impossível, aliás, não deixar de citar capas que admiro bastante e que não puderam entrar na listagem pelo simples motivo numérico: “Eu Quero É Botar Meu Bloco Na Rua”, de Sérgio Sampaio (Aldo Luiz); “Minas”, de Milton Nascimento (do próprio Milton); “Nervos de Aço”, de Paulinho da Viola; “Espiral da Ilusão”, de Criolo; “Bicho”, de Caetano Veloso (Elifas); “Paratodos”, de Chico; “Barulhinho Bom”, de Marisa Monte; “Besouro”, de Paulo César Pinheiro; “Com Você Meu Mundo Ficaria Completo”, de Cássia Eller (Gringo); “Wave”, de Tom Jobim (Sam Antupit); “Caça à Raposa”, de João Bosco (Glauco); “O Rock Errou”, de Lobão (Noguchi); “Nos Dias de Hoje”, de Ivan Lins (Mello Menezes); “Paulo Bagunça & A Tropa Maldita” (Duarte); “Getz/Gilberto”, de João Gilberto e Stan Getz (Olga Albizu).

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1 - “Aracy canta Noel” – Aracy de Almeida (1954)
Arte: Di Cavalcanti 


Era o começo da indústria dos “long playing” no Brasil, tanto que se precisou fazer um box com três vinis de 10 polegadas reunindo as faixas dos compactos que Aracy gravara entre 1048 e 1950 com o repertório de Noel Rosa. A Continental quis investir no inovador produto e chamou ninguém menos que Di Cavalcanti para realizar a arte do invólucro. Como uma obra de arte, hoje, um disco original não sai por menos de R$ 500.



2 - “Canções Praieiras” – Dorival Caymmi (1954)
Arte: Dorival Caymmi

É como aquela anedota do jogador de futebol que cobra o escanteio, vai para a área cabecear e ele mesmo defende a bola no gol. “Canções Praieiras”, de Caymmi, é assim: tudo, instrumental, voz, imagem e espírito são de autoria dele. E tudo é a mesma arte. “Pintor de domingos”, como se dizia, desde cedo pintava óleos com o lirismo e a fineza que os orixás lhe deram. Esta capa, a traços que lembram Caribé e Di, é sua mais bela. Como disse o jornalista Luis Antonio Giron: ”Sua música lhe ofereceu todos os elementos para pintar”.




3 - “Orfeu da Conceição” – Antonio Carlos Jobim e Vinicius de Moraes (1956)
Arte: Raimundo Nogueira


A peça musical inaugural da era de ouro da MPB tinha, além do brilhantismo dos dois autores que a assinam, ainda Oscar Niemeyer na cenografia, Leo Jusi, na direção, e Luis Bonfá, ao violão-base. Só feras. Quando, por iniciativa do eternamente antenado Aloysio de Oliveira, a trilha da peça virou disco, Vinicius, homem de muitos amigos, chamou um deles, o pintor Raimundo Correa, para a arte da capa. Alto nível mantido.



4 - “À Vontade” – Baden Powell (1963)
Arte: Cesar Vilela

O minimalismo do P&B estourado e apenas a cor vermelha fazendo contraponto deram a Elenco – outro trunfo de Aloysio de Oliveira – a aura de cult. Além de, musicalmente falando, lançar diversos talentos no início dos anos 60, os quais se tornariam célebres logo após, o selo ainda tinha um diferencial visual. A capa de "À Vontade" é apenas uma delas, que junta o estilo cromático de Vilela com um desenho magnífico do violeiro, representativo da linhagem a qual Baden pertence. Uma leitura moderna da arte dos mestres da pintura brasileira aplicada ao formato do vinil.




5 - “Secos & Molhados” – Secos & Molhados (1971)
Arte: Décio Duarte Ambrósio


Impossível não se impactar com a icônica imagem das cabeças dos integrantes da banda servidas para o banquete. Impressionam a luz sépia e sombreada, o detalhismo do cenário e o barroquismo antropofágico da cena. E que disco! Fora o fato de que as cabeças estão... de olhos abertos!


6 - “Ou Não” ou "Disco da Mosca" - Walter Franco (1971)
Arte: Lígia Goulart

Os discos “brancos”, como o clássico dos Beatles ou o do pré-exílio de Caetano Veloso (1969), guardam, talvez mais do que os discos “pretos”, um charme especial. Conseguem transmitir a mesma transgressão que suas músicas contêm, porém sem a agressividade visual dos de capas negras. Ao mesmo tempo, são, sim, chocantes ao fazerem se deparar com aquela capa sem nada. Ou melhor: quase nada. Nesta, que Lígia Goulart fez para Walter Franco, o único elemento é a pequena mosca, a qual, por menor que seja, é impossível não percebê-la, uma vez que a imagem chama o olho naquele vazio do fundo sem cor.



7 – “Fa-Tal - Gal a Todo Vapor” - Gal Costa (1971)
Arte: Hélio Oiticica e Waly Salomão

Gal Costa teve o privilégio de contar com a genial dupla na autoria da arte de um trabalho seu. Em conjunto, Oiticica e Waly deram a este disco ao vivo da cantora um caráter de obra de arte, dessas que podem ser expostas em qualquer museu. Além disso, crítica e atual. A mistura de elementos gráficos, a foto cortada e a distribuição espacial dão à arte uma sensação de descontinuidade, fragmentação e imprecisão, tudo que o pós-tropicalismo daquele momento, com Caetano e Gil exilados, queria dizer.





8 - “Clube da Esquina” – Milton Nascimento e Lô Borges (1972)
Arte: Cafi e Ronaldo Bastos

Talvez a mais lendária foto de capa de todos os tempos no Brasil. Tanto que, anos atrás, foi-se atrás dos então meninos Tonho e Cacau para reproduzir a cena com eles agora adultos. Metalinguística, prescinde de tipografia para informar de quem é o disco. As crianças representam não só Milton e Lô como ao próprio “movimento” Clube da Esquina de um modo geral e metafórico: puro, brejeiro, mestiço, brasileiro, banhado de sol.




9 - “Lô Borges” ou “Disco do Tênis” - Lô Borges (1972)
Arte: Cafi e Ronaldo Bastos

Não bastasse a já simbólica capa de “Clube da Esquina”, que Cafi e Ronaldo idealizaram para o disco de Milton e Lô, no mesmo ano, criam para este último outra arte histórica da música brasileira. Símbolo da turma de Minas Gerais, os usados tênis All Star dizem muito: a sintonia com o rock, a transgressão  da juventude, a ligação do Brasil com a cultura de fora, o sentimento de liberdade. Tudo o que, dentro, o disco contém.



10 – “Cantar” – Gal Costa (1972)
Arte: Rogério Duarte

Mais um de Gal. As capas que Rogério fez para todos os tropicalistas na fase áurea do movimento, como as de “Gilberto Gil” (1968), “Gal Costa” (1969) e a de “Caetano Veloso” (1968) são históricas, mas esta aqui, já depurados os elementos estilísticos da Tropicália (que ia do pós-modernismo à antropofagia), é uma solução visual altamente harmônica, que se vale de uma foto desfocada e uma tipografia bem colorida. Delicada, sensual, tropical. A tradução do que a artista era naquele momento: o “Cantar”.


11 - “Pérola Negra” – Luiz Melodia (1973)
Arte: Rubens Maia

Somente num país tropical faz tanto sentido usar feijões pretos para uma arte de capa. No Brasil dos ano 70, cuja pecha subdesenvolvida mesclava-se ao espírito carnavalesco e ao naturalismo, o feijão configura-se, assim como o artista que ali simboliza, a verdadeira “pérola negra”. Além disso, a desproporção dos grãos em relação à imagem de Melodia dentro da banheira dá um ar de magia, de surrealismo.




12 - “Todos os Olhos” – Tom Zé (1973)
Arte: Décio Pignatari

A polêmica capa do ânus com uma bolita foi concebida deliberadamente para mandar um recado aos militares da Ditadura. Não preciso dizer que mensagem é essa, né? O fato foi que os milicos não entenderam a ofensa e a capa do disco de Tom Zé entrou para a história da arte gráfica brasileira não somente pela lenda, mas também pela concepção artística revolucionária que comporta e o instigante resultado final.



13 – “A Tábua de Esmeraldas” - Jorge Ben (1974)
Arte: Aldo Luiz

Responsável por criar para a Philips, à época a gravadora com o maior e melhor cast de artistas da MPB, Aldo Luiz tinha a missão de produzir muita coisa. Dentre estas, a impactante capa do melhor disco de Jorge Ben, na qual reproduz desenhos do artista e alquimista francês do século XII Nicolas Flamel, o qual traz capítulos de uma história da luta entre o bem e o mal. Dentro da viagem de Ben àquela época, Aldo conseguiu, de fato, fazer com que os alquimistas chegassem já de cara, na arte da capa.




14 - “Rosa do Povo” – Martinho da Vila (1976)
Arte: Elifas Andreato

Uma das obras-primas de Elifas, e uma das maravilhas entre as várias que fez para Martinho da Vila. Tem a marca do artista, cujo traço forte e bem delineado sustenta cores vivas e gestos oníricos. De claro cunho social, a imagem dos pés lembra os dos trabalhadores do café de Portinari. Para Martinho, Elifas fez pelo menos mais duas obras-primas das artes visuais brasileira: “Martinho da Vila”, de 1990, e “Canta Canta, Minha Gente”, de 1974.




15 - “Memórias Cantando” e “Memórias Chorando” Paulinho da Viola (1976)
Arte: Elifas Andreato


Podia tranquilamente escolher outras capas que Elifas fez para Paulinho, como a de “Nervos de Aço” (1973), com seu emocionante desenho, ou a premiada de “Bebadosamba” (1997), por exemplo. Mas os do duo “Memórias”, ambas lançadas no mesmo ano, são simplesmente magníficas. Os “erês”, destacados no fundo branco, desenhados em delicados traços e em cores vivas (além da impressionante arte encarte dos encartes, quase cronísticas), são provavelmente a mais poética arte feita pelo designer ao amigo compositor.




16 - “Zé Ramalho 2” ou “A Peleja do Diabo com o Dono do Céu” – Zé Ramalho (1979)
Arte: Zé Ramalho e Ivan Cardoso

A inusitada foto da capa em que Zé Ramalho é pego por trás por uma vampiresca atriz Xuxa Lopes e, pela frente, prestes a ser atacado por Zé do Caixão, só podia ser fruto de cabeças muito criativas. A concepção é do próprio Zé Ramalho e a foto do cineasta “udigrudi” Ivan Cardoso, mas a arte tem participação também de Hélio Oiticica, Mônica Schmidt e... Satã! (Não sou eu que estou dizendo, está nos créditos do disco.)





17 - “Almanaque” – Chico Buarque (1982)
Arte: Elifas Andreato

Mais uma de Elifas, é uma das mais divertidas e lúdicas capas feitas no Brasil. Além do lindo desenho do rosto de Chico, que parece submergir do fundo branco, as letras, os arabescos e, principalmente, a descrição dos signos do calendário do ano de lançamento do disco, 1982, é coisa de parar para ler por horas – de preferência, ouvindo o magnífico conteúdo musical junto.





18 - “Let’s Play That” – Jards Macalé (1983)
Arte: Walmir Zuzzi

Macalé sempre deu bastante atenção à questão gráfica de seus discos, pois, como o próprio diz, não vê diferença entre artes visuais e música. Igualmente, sempre andou rodeado de artistas visuais do mais alto calibre, como os amigos Hélio Oiticica, Lygia Clark e Rubens Gerchman. Nesta charmosa capa de figuras geométricas, Zuzzi faz lembrar muito Oiticica. Em clima de jam session basicamente entre Macalé e Naná Vasconcelos, a capa traz o impacto visual e sensorial da teoria das cores como uma metáfora: duas cores diferentes em contraste direto, que intensifica ainda mais a diferença (e semelhanças) entre ambas.




19 - “Cabeça Dinossauro” – Titãs (1986)
Arte: Sérgio Brito 

Multitalentosa, a banda Titãs tinha em cada integrante mais do que somente a função de músicos. A Sérgio Brito, cabia a função “extra” da parte visual. São dele a maioria das capas da banda, e esta, em especial, é de um acerto incomparável. Reproduzindo desenhos de Leonardo da Vinci (“Expressão de um Homem Urrando”, na capa, e “Cabeça Grotesca”, na contra, por volta de 1490), Brito e seus companheiros de banda deram cara ao novo momento do grupo e ao rock nacional. Não poderia ser outra capa para definir o melhor disco de rock brasileiro de todos os tempos.


20 - “Brasil” - Ratos de Porão (1988)
Arte: Marcatti

O punk nunca mandou dizer nada. Esta capa, do quarto álbum da banda paulista, diz tanto quanto o próprio disco ou o que o título abertamente sugere. “Naquele disco, a gente fala mal do país o tempo inteiro, desde a capa até a última música”, disse João Gordo. Afinal, para punks como a RDP não tinha como não sentar o pau mesmo: inflação, Plano Cruzado, corrupção na política, HIV em descontrole, repressão policial, a lambada invadindo as rádios, Carnaval Globeleza... Os cartoons de Marcatti, que tomam a capa inteira, são repletos de crítica social e humor negro, como a cena dos fiéis com crucifixos enfiados no cu ou dos políticos engravatados assaltando um moleque de rua. É ou não é o verdadeiro Brasil?



por Daniel Rodrigues
com a colaboração de Márcio Pinheiro

segunda-feira, 7 de setembro de 2015

Caetano Veloso & Gilberto Gil – “Dois Amigos, Um Século de Música” – Auditório Araújo Vianna – Porto Alegre/RS (28/08/2015)





Caetano e Gil, pura genialidade.
foto: Júlio Cordeiro
“Gil é um rouxinol de grandes mistérios”.
Caetano Veloso


“Eu faço música primeiro pra mim,
depois pra ele e depois pros outros”.
Gilberto Gil,
sobre Caetano



Sabe aqueles acontecimentos em que se cria uma grande expectativa e a recompensa vem completa? Pois ter assistido Caetano Veloso e Gilberto Gil juntos e ao vivo foi assim: momento completo de se guardar para a vida. Folgados os nós dos sapatos, das gravatas, dos desejos e dos receios, fui, na doce e astral companhia das hermanas Leocádia e Carolina, ao Araújo Vianna presenciar uma noite inesquecível na cidade (ao menos, a nós). Dois gênios vivos da arte mundial celebrando algo incomparável e irrepetível: a união de 50 anos de carreira de cada um. As vivências artísticas e próprias ou em comum; as conexões com vários tempos e movimentos; a confluência com diversas manifestações da Arte e culturas; a musicalidade e a poesia constantemente desenvolvidas ao longo dos muitos anos; as parcerias entre eles e com outros. A significância inequívoca de cada um dentro do cenário sociocultural brasileiro e mundial. Enfim: uma gama de motivos que fazem de “Dois Amigos, Um Século de Música” um marco só por sua realização.

Porém, no palco, Caetano e Gil justificam o show, cuja turnê, iniciada na Europa, em junho, passou pelo Brasil e já ganha a América Latina. Repertório escolhido com inteligência e cuidado, como sempre fizeram em seus projetos. Aliás, conheço essa qualidade não só dos discos ao vivo mas por já ter assistido tanto a um quanto outro por duas ocasiões. Coincidentemente, as duas primeiras vezes nos anos 90, quando cinquentões, e as recentes há bem pouco tempo: 2013 (Gil, “Concerto de Cordas & Máquinas de Ritmo”), e 2014 (Caetano, "Abraçaço"), já passados dos 70 anos. Pela tevê ainda tive, em 1993, a oportunidade de assisti-los num memorável megashow aberto em São Paulo com duas superbandas mais a cozinha da Timbalada com Brown e tudo por ocasião do disco “Tropicália 2” (à época, gravei em VHS e revi várias vezes o que hoje tem no Youtube). Ou seja: vê-los agora de novo e reunidos é como se fechasse um panorama de compreensão da extensão e da perenidade de suas obras ao longo do tempo, esse “tambor de todos os ritmos”.

E foi justo a diversidade de ritmos que, trazidos pelo ecletismo tropicalista ainda hoje revolucionário, pautaram o show. O arrebatamento se deu do primeiro ao último acorde. O inicial, aliás, foi de emocionar qualquer um que admire e entenda um pouco de suas obras. A música escolhida para abrir o espetáculo foi a magistral “Back in Bahia”, rock ‘n’roll escrito por Gil na volta do exílio de Londres, início dos anos 70, na qual ele expõe de forma madura, consciente e transformadora tudo o que aprendeu com a (que poderia ter sido) traumática experiência. O tom de identificação de um se refletiria no outro durante todo o desenrolar do show – aliás, uma mostra daquilo que um sempre foi para o outro: um espelho. Foi o que aconteceu no número seguinte. Se “Back...” traz as reminiscências de Gil de um período marcante de sua vida, Caetano preferiu reviver outro tipo de memória afetiva com a bossa nova que abriu seu primeiro disco (na voz de Gal Costa, à época), em 1966: “Coração Vagabundo”.

Arranjos bem pensados, ambos dividiram os violões e os microfones nas duas de abertura para, na sequência, trazerem uma cantada por cada um. E foram dois hinos tropicalistas: a própria “Tropicália”, numa bela e impensável versão acústica (difícil imaginá-la sem a orquestração de Duprat) com Caetano à voz, e a tocante “Marginália II”, poesia brasilianista de Torquato Neto que Gil, magistralmente, musicara para o disco-manifesto “Tropicália” ou “Panis et Circensis”, de 1968. Primeiro momento do show a me levar às lágrimas ao ouvir Gil entoando aquela letra do mais alto lirismo e identidade: “A bomba explode lá fora/ E agora, o que vou temer?/ Oh, yes, nós temos banana/ Até pra dar e vender/ Olelê, lalá/ Aqui é o fim do mundo/ Aqui é o fim do mundo...”

Passeando por suas histórias, foi a vez de reverenciar com afinco a bossa nova e, mais que isso, ao ídolo João Gilberto. Outras duas dividindo os vocais: “É Luxo Só”, samba de Ary Barroso “convertido” em bossa por João quando da inauguração do estilo, em 1959, e “É de Manhã”, primeira composição de Caetano e mais antiga escrita por um dos dois em todo o show, em 1963. Nesta, destacaram a importância de Maria Bethânia, primeira da turma dos baianos a gravá-la e a registrar uma música do irmão, então um jovem compositor iniciante.

Contraponto à canção mais antiga, num dos momentos especiais do show, eles apresentaram uma composição de 2015, primeira parceria em 22 anos escrita em São Paulo quando retornaram da temporada europeia. Ou seja: somente São Paulo e Curitiba, shows imediatamente anteriores ao de Porto Alegre, a tinham escutado. Uma joia chamada “As camélias do Quilombo do Leblon”, samba poético e filosófico que repensa as condições socioculturais que o Brasil tem de criar e colher, como dizem os versos, “as camélias da Segunda Abolição”. Numa resposta a toda polêmica gerada pela tentativa de boicote do ex-Pink FloydRoger Waters, ativista anti-Estado de Israel, quando da passagem dos brasileiros por Tel-Aviv, a letra não deixa por menos, evidenciando as possibilidades emancipadoras que o miscigenado e “cordial” povo brasileiro (aka Sérgio Buarque de Hollanda e Domenico de Masi) tem diante de outras civilizações do planeta: “Vimos as tristes colinas logo ao sul de Hebron/ Rimos com as doces meninas sem sair do tom/ O que fazer/ Chegando aqui?/ As camélias do Quilombo do Leblon/ Brandir.”

Caetano, uma das maiores forças criativas da MPB.
foto: Júlio Cordeiro
Uma sequência de várias de Caetano emocionou o público – de uma complacência um tanto fria até então, mas que a partir dali se derreteu de vez. Não era para menos, pois vieram a clássica “Sampa” e a não menos épica “Terra”, talvez a mais bem arranjada de todo o show. Somente aos dois violões, de longe superou a versão original, revelando toda a atmosfera etérea da melodia, com seus traços árabes e folks. Enquanto Caetano cantava com emoção e destreza, Gil percutia levemente na madeira do pinho. No refrão, providenciava para o amigo todos os complementos que o arranjo original suscita. As percussões cintilantes, o som da cítara, a viola, o andamento cadenciado: tudo é substituído e condensado no dedilhar magistral de Gil. De arrepiar.

Caetano emenda outras de três momentos importantes de sua carreira: “Nine Out of Ten”, presente em "Transa", de 1972, seu melhor disco e que, gravado em Londres, foi responsável por fazê-lo sair da depressão do exílio; “Odeio”, do visceral “Cê”, já dos anos 2000, uma confissão de amor ao estilo rock: fazendo sexo virtual a esmo, o que ele queria mesmo era a ex ali consigo; e a castelhana “Tonada de Luna Ilena” (de Simón Diaz, que gravou em 1994, em “Fina Estampa”), numa impressionante interpretação que, claro, tocou a nós gaúchos tão próximos dos irmãos portenhos.

Mais outras três encantadoras tocadas em dupla: a excelente bossa nova “Eu Vim da Bahia”, das primeiras composições de Gil; “Come Prima”, em que ambos mandaram um afiado italiano; e "Super-Homem, a canção", noutro momento de emoção. Caetano, com a afinação e o timbre doce que lhe foram presenteados por Deus, começa cantando. Na segunda parte, Gil, comovido por ouvir o parceiro, engasga a voz e é aplaudido.

Gil e o violão qu expressa tudo.
foto: Júlio Cordeiro
O repertório, seguindo o conceito de espelhamento, trouxe, então, uma série com Gil, começando pela gostosa “Esotérico”, cantada em coro pela plateia. Tomado pela acolhedora egrégora criada pelos dois, me deu até a impressão de esta ser uma música de Caetano – embora saiba que é de fato de Gil – devido às repetições de versos, às assimetrias de métrica e o tom desafiador típicos deste. Depois, esmerilhando as cordas, Gil sacou uma impecável “Tres Palavras”, do mexicano Osvaldo Farrés, para, na sequência, emocionar novamente todos com “Drão” que – assim como ocorrera antes, quando o companheiro desnuda-se ao tocar “Odeio” – revela a dor da separação da antiga esposa. Caetano, que a gravou em 1998 (no ao vivo “Prenda Minha”), nem ousou cantar junto. 

Aliás, a deferência e a admiração de Caetano para com Gil ficam visíveis. Não que ele se apequene; não que desconheça seu tamanho e relevância; mas Caê reverencia “aquele preto que ele gosta” e deixa que ele estabeleça o clima do show, o qual se dá de forma leve e elevada. Bonito de se perceber. Em “Expresso 2222”, obra-prima visionária de Gil, é ele quem, além de tanger os complexos acordes da melodia, comanda o forró que se instala. O Araújo Vianna dança. No embalo da animação, vem o afoxé “Toda Menina Baiana”, outro clássico.

Junto com a nova composição já apresentada, a lírica “São João, Xangô Menino” é a única do set-list composta em parceria. Linda, outra que me emociona sempre (e não foi diferente desta feita), principalmente no refrão de versos móveis, um verdadeiro canto de louvor à riqueza do folclore nacional e às forças da natureza: “Viva São João/ Viva o milho verde/ Viva São João/ Viva o brilho verde/ Viva São João/ Das matas de Oxóssi/ Viva São João”. A crença e a espiritualidade voltam em outro sucesso de Gil: “Andar com Fé”. Na mesma atmosfera, eles enfim me desmontam ao tocarem "Filhos de Gandhi". Das melhores e mais significativas canções de todo o vastíssimo cancioneiro de Gil. Um privilégio ouvi-la ali naquela ocasião tão especial, acompanhado de quem estava e, tendo recentemente ido à Bahia e sentido todo esse universo que a canção carrega. E ainda mais com Caetano entoando junto essa verdadeira oração aos orixás (“Omolu, Ogum, Oxum, Oxumaré/ Todo o pessoal/ Manda descer pra ver/ Filhos de Gandhi...”).

O primeiro bis teve uma que já nasceu clássica: “Desde Que o Samba e Samba”, a qual parece ter sido composta por aqueles bambas dos anos 30/40 tipo Wilson Baptista ou Ataulfo Alves. Mas não: é do próprio Caetano e do já mencionado “Tropicália 2”, dos anos 90 – que teve também a eletrizante “Nossa gente” no repertório. “Luz de Tieta”, forte e cantarolável, não foi suficiente para que os deixassem ir embora. Teve ainda um segundo bis com a beatle “Leãozinho”, muito querida da plateia, uma impressionante "Domingo no Parque", em que Gil novamente faz daquele violão uma orquestra completa e, fechando de vez a apresentação, “Tree Little Birds”, de Bob Marley. Um final alegre e sereno.
Caê e Gil, andando com fé pela música.
foto: Júlio Cordeiro

Poucas foram as repercussões pré ou pós na cidade. Parafraseando Caetano, o “silêncio sorridente de Porto Alegre” de quem não quer admitir admiração por outrem. Talvez, em decorrência de um intimidamento provocado pela interferência internacional de Roger Waters ao show de Israel (muitos pensaram alarmados: “Nossa, um estrangeiro importante dando atenção para tupiniquins como eu?!”) ou pela polêmica em torno do valor dos ingressos, “caros demais para artistas que se dizem populares”, como ouvi. Uma proposital confusão entre “popular” e “populista” de quem não se autoentendeu diante da situação de existirem representantes do seu país com merecido destaque tanto lá fora quanto aqui – haja vista que a turnê de “Dois Amigos, Um Século de Música” foi um sucesso na Europa. Detração que vem, certamente, de quem criticou o preço do ingresso de um show como este (que não teve nada de diferente de qualquer outra bilheteria de artista brasileiro, muitas vezes infinitamente menos expressivo) mas paga caro para ver algum dinossauro do rock caquético e descontado que vem tirar uma grana naquela cidade que se submete a isso. Desculpe frustrá-lo, Caetano, mas Porto Alegre não faz jus à sentença de que a “verdadeira Bahia é o Rio Grande do Sul”.

De minha parte, só elogios. Uma ocasião que, até pelo mote, jamais se repetirá, e sabe-se lá se ainda tocarão assim juntos novamente em vida. Óbvio que, como fã, passou-me pela cabeça músicas das preferidas que não foram incluídas, como “Trilhos Urbanos”, “Trem das Cores”, “Cajuína”, “Cores Vivas”, “Palco”, "Lamento Sertanejo", “Aqui e Agora”. Ou mesmo não terem escolhido apenas duas das coautorias: quiçá uma “Divino Maravilhoso”, “Iansã”, “Haiti”, “Panis et Circensis”, “Cinema Novo” ou “Beira-mar”. Mas é evidente que, em 100 anos de carreiras somadas tão profícuas quanto extensas e constantes, fica impraticável condensar tudo em uma hora e meia. Ao menos, foi possível neste tempo sentir a riqueza infindável da arte que emana de Caetano Veloso e de Gilberto Gil. Minutos, na verdade, dentro de toda a amplidão. Minutos que valeram por um século.

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Caetano Veloso e Gilberto Gil - As Camélias do Quilombo do Leblon - Porto Alegre 28/08/2015






terça-feira, 22 de dezembro de 2015

Flávio Basso, 1968 - 2015

À memória de Flávio Basso
por Fabrício Silveira
                                    
Flávio Basso, há duas semanas no Panama Studio Pub
foto: Clarissa Daneluz
Ainda posso me lembrar da cor do dia, uma clara manhã de sol estourado no inverno de Porto Alegre. Não era sequer 8h. Flávio Basso estava sentado, sozinho, à mesa de um bar fuleiro na Lima e Silva. Era um daqueles bares que recebem os notívagos radicais, os insones, os madrugadores profissionais e os perdidos da noite anterior. Ele tomava uma xícara de café. Reparei que estava concentradíssimo naquilo que ouvia em seu walkman. Foi a primeira vez que o avistei, enquanto me dirigia, apressado, para algum compromisso na Universidade Federal. Hoje, 20 depois, onde havia o bar, há uma academia de ginástica.

Produziu-se, nos últimos anos, um culto mórbido em torno de Júpiter Maçã – tal como Basso, recém-falecido, tornou-se popular. Vê-lo apresentar-se bêbado, trôpego, quase inconsciente, virou esporte radical de uma certa juventude burguesa, autocentrada, sem capacidade real de empatia. Produziu-se, para alguns, um atrativo bizarro, o gozo regulado de uma desgraça alheia. O fã disfarçando-se de abutre. Pior do que isto, sempre me pareceu, era a condenação moral, a desaprovação de sua suposta “decadência” com base nos valores do “profissionalismo”, dos “bons tempos” ou do “respeito à própria obra”. O fã disfarçado então de crítico hipócrita. O que matou Flávio Basso foi tentar se equilibrar entre estes dois extremos: abutres e hipócritas.

Sempre tive a impressão de que Júpiter nos colocava permanentemente em xeque, com a exuberância de seu talento, com sua imprevisibilidade, seu nonsense desbocado. Era como se estivesse nos cobrando, de algum modo, amor e reconhecimento incondicionais. Com certeza, já me senti constrangido e abalado diante de algumas de suas vexatórias performances ao vivo (assim como também já me senti recompensado e extasiante, em seus momentos de gênio e plenitude). Mas quero crer que, para um artista como ele, estes abalos, estas pequenas decepções – o próprio alcoolismo – eram coisa mundana, eram detalhes miúdos, coisas que vêm e vão. Ele não cabia, de fato, nisto. Isto não falava sobre ele, verdadeiramente.

De resto, a morte irá libertar Flávio Basso do “rock gaúcho”. Ele será celebrado como um dos mais importantes músicos do Brasil. Será saudado como um dos principais representantes da psicodelia nacional.

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Duas semanas atrás, Júpiter Maçã apresentou-se no Panamá Studio Pub, na Cidade Baixa, perto de onde eu moro. Não poderia deixar de vê-lo, mais uma vez. Ao final do show, disse-lhe que havia sido publicado, no México, há poucos meses, um livro sobre rock e cidades na América Latina. Disse-lhe que eu havia escrito um capítulo, falando justamente sobre o trabalho dele e sobre sua relação com Porto Alegre. Júpiter resmungou alguma coisa, mostrou-se espantado, agradecido e pediu para ver o livro. Disse-lhe que mandaria um exemplar, assim que pudesse.




Nem Flávio, nem Júpiter, nem Apple, nem Maçã

Por andei nesse mundo eu sempre comentei as pessoas que existia sim um Rock de expressão sul americano. Para mim o gênero teve muitas vertentes importantes; a primeira delas o icônico Rock Argentino, aquele de Charly, Espinetta, Nebbia, Vírus, Soda, Sui Generis, Pappo e por ai vai. Depois deles, o rock brasileiro com seus MutantesSecos e Molhados, a turma de Brasília esculpida a la Renato Russo e sua legião. O Barão de Cazuza e Frejat. Os Titãs de Cabeça de Dinossauro, os Paralamas de Hebert, Bi e Barone. Cara! E tantos outros que não caberia aqui.

Mas no sul do Brasil, a 500 km do Uruguai – que também figura com um rock não tão expressivo quanto o argentino, mas de grande amplitude artística –, ali surgiu o Rock Gaúcho (leva acento). O mais original desse país a meu ver. Talvez não o melhor ou mais politizado, mas foi o mais visceral e "sujo" ao estilo punk inglês. Flávio Basso e cia. foram a vanguarda de um movimento que hoje não existe mais. Não, esse movimento não queria tocar rock de protesto ou agradar tanto quem os ouvia. Estes caras queriam abominar a caretice, dizer menstruada em horário nobre de TV, bater uma punhetinha de verão e depois ir todos para um lugar do caralho chutar o gato preto.

Quanto a Flávio Basso, ele já não era mais Flávio, foi Júpiter, era Apple, maçã e tanta coisa que talvez tenha se perdido em seu way of life outsider. Sem ele o rock do sul fica sem pai, até meio sem vida. Não, ele não virou anjo, nem foi um mito na Terra. Ele apenas é e foi o tal do Rock Gaúcho.



Flávio Basso
1968 - 2015



quinta-feira, 12 de novembro de 2020

Iggy Pop - "Brick by Brick" (1990)


 

"Trabalhar com David Bowie é um prazer, mas uma tortura também. Ele é um músico incrível e um grande produtor, tem ideias excelentes, mas os álbuns acabam soando 50% Bowie e 50% Iggy. Eu queria um disco apenas com ideias minhas."
Iggy Pop

"Esta canção tem a melhor letra que já ouvi."
Butt-Head, da série Beavis & Butt-Head, sobre “Butt Town”

O camaleão é um réptil capaz de fazer com que sua pele mude de aspecto. Não à toa, este era o apelido de David Bowie pela incrível capacidade que este teve de se transformar com total desenvoltura em diversos personagens, como Ziggy Stardust, Major Tom e Alladin Sane. Porém, outra espécie também é mestre em camuflagem e disfarces: a iguana. Muito próximo de Bowie desde os anos 70, Iggy Pop merece, com certeza, esta alcunha. Não somente pela derivação nominal, afinal, quem surfou pela garage band, pelo punk, hard rock, industrial, pós-punk, new wave, heavy metal e por aí vai, só pode mesmo ser considerado um ser de várias aparências. O eterno líder da Stooges e dono de uma obra que perpassa tudo o que foi produzido no rock desde os anos 60 tem estofo para isso. Em 1990, após pouco mais de 20 anos de carreira, o junkie provocativo tornava-se um homem maduro (humm... talvez, nem tanto) e realiza o disco que melhor resume a sua extensa e variante trajetória: “Brick by Brick”, que completa 30 anos de lançamento em 2020.

No entanto, dúvidas quanto ao talento de Iggy Pop pairavam àquela época. Ele vinha de um novo sucesso em anos após alguns de ostracismo com “Blah Blah Blah”, de 1986, coescrito e produzido por Bowie. Sua gravadora de então, A&M, queria repetir a fórmula, mas o que o rebelde Iggy fez, ao lado do sex pistol Steve Jones, foi, sim, um álbum que pode ser classificado como “Cold Metal”, o representativo título da faixa inicial de “Instintic”, de 1988. O preço por seguir os próprios instintos custou caro a Iggy, que foi dispensado do selo. Foi então que o veterano roqueiro olhou para si e percebeu que algo estava errado. No espelho, James Osterberg viu, na verdade, um artista prestes a completar duas décadas de carreira sem ter, de fato, uma obra inteiramente sua com respeito de crítica e público. Iggy deu-se conta que todos os seus êxitos até então haviam sido divididos com outros: na Stooges, com o restante do grupo; nos discos de Berlim dos anos 70 e em “Blah...”, com Bowie; em “Kill City”, de 1977, com James Williamson, fora outros exemplos. Por incrível que parecesse, o cara inventou o punk, que liderou uma das bandas mais revolucionárias do rock, que colaborou para o engendro da música pop dos anos 80 era ainda olhado de soslaio. Foi com este ímpeto, então, que, desejoso de virar uma importante página, ele assina com a Virgin para realizar um trabalho essencialmente seu.

Produzido pelo experiente Don Was (Bob Dylan, Rolling Stones, George Clinton e outros papas da música pop), “Brick...” é rock ‘n’ roll em sua melhor acepção: jovem, pulsante e melodioso. A começar, tem na sua sonoridade forte e impactante, a exemplo de grandes discos do rock como “Album” da PIL e os clássicos da Led Zeppelin, um de seus trunfos. Igualmente, parte da banda que acompanha o cantor é formada por Slash, na guitarra, de Duffy McKagan, no baixo, nada mais, nada menos do que a “cozinha” da então mais celebrada banda da época, a Guns n’ Roses, além de outros ótimos músicos como o baterista Kenny Aronoff, o guitarrista Waddy Wachtel e o tecladista Jamie Muhoberac. Isso, aliado ao apuro da mesa de som, potencializava a intensidade do que se ouvia. Garantida a parte técnica, vinha, então, o principal: a qualidade das criações. Nunca Iggy Pop compusera tão bem, nunca estivera tão afiado em suas melodias e no canto, capaz de variar da mais rascante vociferação ao elegante barítono.

Com o parceiro de várias jornadas Bowie: Iggy busca a emancipação artística

Se em discos anteriores Iggy às vezes se ressentia de coesão na obra, como os bons mas inconstantes “Party” (1981) e “New Values” (1979), em “Brick...” ele mantém o alto nível do início ao fim. E olha que se trata de um disco extenso! Mas Mr. Osterberg estava realmente em grande fase e imbuído de pretensões maiores, o que prova na canção de abertura: a clássica “Home”. Rock puro: riff simples e inteligente; refrão que gruda no ouvido; pegada de hard rock de acompanhar o ritmo batendo a cabeça; vocal matador; guitarras enérgicas; bateria pesada. Não poderia começar melhor. Já na virada da primeira faixa para a segunda, a grandiosa balada “Main Street Eyes” – das melhores não só do disco como do cancioneiro de Iggy –, percebe-se outra sacada da produção: interligadas – tal os álbuns de Stevie Wonder ou o mitológico “Sgt. Peppers”, dos Beatles –, as músicas se colam umas às outras, dando ainda mais inteireza à obra. 

Assim é com I Won't Crap Out”, na sequência (noutra ótima performance dele e da banda), e aquele que é certamente o maior hit da carreira de Iggy Pop: “Candy”. Dividindo os vocais com Kate Pearson (B52’s), a música estourou à época com seu videoclipe (28ª posição na Billboard e quinta na parada de rock) e ajudou o disco a vender de 500 mil de cópias. Como classifica o jornalista Fábio Massari, trata-se de um “perfect pop”. Tudo no lugar: melodia envolvente, refrão perfeito, conjugação de voz masculina e feminina e construção harmônica irretocável. Um clássico do rock, reconhecível até por quem não sabe quem é Iggy Pop e que, ao chamar Kate para contrapor a voz, “deu a morta” para a R.E.M. um ano depois fazer o mesmo na divertida e de semelhante sucesso “Shiny Happy People”.

Unindo a experiência de um já dinossauro do rock com um poder de sintetizar suas melhores referências, Iggy revela joias, como as pesadas "Butt Town", com sua letra desbocada e crítica, e "Neon Forest", onde faz as vezes de Neil Young. Também, as melodiosas "Moonlight Lady" e a faixa-título, puxadas no violão e na sua bela voz grave, bem como a animada “Stary Night”. Don Was, que manja da coisa, intercala-as, dando à evolução do disco equilíbrio e garantindo que o ouvinte experimente todas as sensações: da intensidade à leveza, da agressividade à doçura. Por falar em intensidade, o que dizer, então, do heavy “Pussy Power”, em que, resgatando o peso do seu disco imediatamente anterior, faz uma provocativa ovação ao “poder da buceta”. Iggy Pop sendo Iggy Pop.

Mas não é apenas isso que Iggy tinha para rechaçar de vez a desconfiança dos críticos. O Iguana revela outras facetas, sempre pautado no melhor rock que poucos como ele são capazes de fazer. Novas aulas de como compor um bom rock ‘n’ roll: "The Undefeated" – daquelas que viram clássicos instantâneos, emocionante no coro final entoando: “Nós somos os invictos/ Sempre invictos/ Agora!” –; "Something Wild" e a parceria com Slash "My Baby Wants To Rock And Roll". Não precisa dizer que esta última saiu um exemplar à altura de dois músicos que escreveram hinos rockers como “No Fun” e “Sweet Child O’Mine”. 

O disco termina com outra balada, "Livin' On The Edge Of The Night", do premiado músico Jay Rifkin, que figura na trilha de “Chuva Negra”, filme de sucesso de Ridley Scott e estrelado por Michael Douglas e Andy Garcia, das poucas que não têm autoria do próprio Iggy entre as 14 faixas de um disco irreparável. Iggy Pop, finalmente, consegue ser ele mesmo sendo os vários Iggy Pop que há dentro de sua alma versátil e liberta. E se havia alguma dúvida de que tinha competência de produzir uma obra autoral sem a ajuda dos parceiros, “Brick...” é a prova cabal. Literalmente, não deixa “pedra sobre pedra” e nem muito menos “tijolo por tijolo”.

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Clipe de "Candy" - Iggy Pop e Kate Pierson


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FAIXAS:
1. "Home" – 4:00
2. "Main Street Eyes" – 3:41
3. "I Won't Crap Out" – 4:02
4. "Candy"(partic.: Kate Pierson) – 4:13
5. "Butt Town" – 3:34
6. "The Undefeated" – 5:05
7. "Moonlight Lady" – 3:30
8. "Something Wild" (John Hiatt) – 4:01
9. "Neon Forest" – 7:05
10. "Starry Night" – 4:05
11. "Pussy Power" – 2:47
12. "My Baby Wants To Rock And Roll" (Iggy Pop/Slash) – 4:46
13. "Brick By Brick" – 3:30
14. "Livin' On The Edge Of The Night" (Jay Rifkin) – 3:07
Todas as músicas de autoria de Iggy Pop, exceto indicadas

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OUÇA O DISCO:


Daniel Rodrigues