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quarta-feira, 5 de agosto de 2015

Sá & Guarabyra - “Pirão de Peixe com Pimenta” (1977)



“Apesar de carioca,
sempre tive uma ‘visão exterior’
ligada ao resto do Brasil.
Meus pais viajavam muito
pelos interiores de Minas, São Paulo e Rio,
e isso, junto com as viagens que fiz com Guarabyra
ao então ignoto e isolado sertão do São Francisco,
me deram o necessário banho-Brasil.
Hoje sou um anel carioca folheado a sertão.”

“Concordo.
E concordo também com a crítica
que acha que outros é que são (risos)."
Guarabyra,
sobre a crítica considerar “Pirão de Peixe com Pimenta”
o melhor disco da dupla


Era começo de 1978, eu recém tinha passado no vestibular. Estava feliz porque tinha entrado no Jornalismo de primeira depois de “matar” o cursinho no sentido de que ia às aulas, mas sentava na última fila, onde se juntavam os malucos, baderneiros e afins. O mês era janeiro, tava um calorão e fui no Zaffari Ipiranga comprar uns discos (é, na época tinha discos pra vender no Zaffari: “economizar é comprar bem”). Dei de cara com um que tinha ouvido no rádio – 1120 Continental, por supuesto – e tinha gostado da música. Se chamava “Pirão de Peixe com Pimenta”, da dupla Sá & Guarabyra. Acompanhava os caras desde os tempos do rock rural que tinha eles mais o Zé Rodrix e do lendário jingle da Pepsi (“Hoje existe tanta gente que quer nos modificar...”). Dei uma ouvida e comprei sem pestanejar. Pois este disco me acompanha desde aquele tempo e é um dos meus discos favoritos.

A aventura musical começa com “Sobradinho”, música deles, talvez uma das primeiras a falar dos desmandos do poder público quando resolve que destruir a natureza é mais importante do que preservá-la. E a letra é explícita desde o começo: “O homem chega/ já desfaz a natureza/ tira gente põe represa/ diz que tudo vai mudar... E passo a passo vai cumprindo a profecia do beato/ que dizia que o sertão ia alagar/ O sertão vai virar mar/ dá no coração/O medo que algum dia o Mar também vire sertão... Remanso, Casa Nova, Sento Sé, Pilão Arcado, Sobradinho, Adeus, Adeus”. Preocupações ecológicas numa roupagem rock rural e a harmônica do mestre Maurício Einhorn percorrendo a canção. Grande sucesso na época, que só foi ofuscado na fase “Roque Santeiro” da dupla.

“Marimbondo”, uma parceria de Xico Sá com Marlui Miranda, bem ao estilo onomatopaico da cantora. “Marimbondo vem fazer sua casa/ em minha asa, za za/Sai azar marimbondo”. A banda base composta por Sérgio Caffa ao piano, Sérgio Magrão (Ex-O Terço, atual 14 Bis) no baixo, Luis Moreno na bateria e Chico Batera na percussão segura todas, enquanto os violões e as violas caipiras de Sá e Guarabyra encontram o bandolim de Quinintinho de Pirapora. No final, o narrador diz ao marimbondo que não pode fazer sua casa lá porque “Eu já sou torto e solto/ e não posso te morar/ ou vai curtir a bananeira/ que tem eira, eira, eira e eu/ não tenho eira nem beira não/ tenho eira nem beira”. Viagens de Xico e Marlui que S&G tornam palatáveis e, especialmente, audíveis.

Nesta fase, Sá e Guarabyra andavam muito curtindo o interior de Minas Gerais e da Bahia, e isso se reflete nas canções. “Trem de Pirapora” faz a defesa da vida interiorana: “O trem de Pirapora já passou por essa pont / perdido em Montes Claros/ achado em Belo Horizonte/ pirapora preta, preta barranqueira/ luz acesa até altas horas da noite... cadeira na calçada fugiu pra dentro de casa/ da porta entreaberta espreita a cara zangada...”. O arranjo de Nelson Ângelo valoriza as flautas de Paulo Jobim, Danilo Caymmi, Franklin e Paulo Guimarães e as cordas no final.

“João Sem Terra” toca no drama dos imigrantes e dos sem-terra numa levada sertanejo roqueira. “Desde pequeno me chamam/ desde pequeno me chamam/ João Sem Terra/ Filho de um sol estrangeiro/ que acabou me renegando/ fico onde chego primeiro/ João Sem Terra”. A questão de quem chega numa terra desconhecida é bem explorada pela dupla sem cair num rame-rame político-ideológico. Lá pelas tantas, a letra diz: “ter de se andar para frente/ sem olhar atrás o que se deixou/ não se deseja o pior inimigo/ tão sujo presente... ter de lembrar todo o dia/ o medo que te fez deixar teu chão/ nem ao pior inimigo/ se quer tão amarga recordação”. A dupla diz tudo e capta bem o sentimento do imigrante e do sem terra. Grande música.

Pra fechar o lado 1 do LP, vem a faixa-título, que dá água na boca só de ouvir: “Carne de Sol, pirão de peixe com pimenta/ e uma boa Januária completando a refeição/ dizendo assim até parece que é mentira/ de Sá & Guarabyra / coisa da imaginação...”. Com um arranjo do mestre Rogério Duprat, a canção vira uma grande celebração num coreto qualquer do interior do Brasil, com direito a bandinha. E esta comilança toda fica lá. Tanto que S&G ficam muito saudosos e dizem: “Eh parada em Carinhanha/ Eh Zé Sales nosso irmão/ Eh Ranchão de CorrentinA/ Eh paizinho de alemão/ vamos voltar no próximo verão/ O Quincas nos espera pra inauguração”. Uma delícia de canção.

Abrindo o Lado 2, tem “Coração de Maçã”, uma metáfora da busca do amor. “Coração de maçã/ uma fruta aqui dentro do peito/ que vive não fala/ tomada de horror/ pelos mistérios do mundo exterior”. Nela, se destaca o piano de Caffa, que percorre a canção enquanto os violões da dupla se misturam com as flautas de Paulo Guimarães e do lendário Copinha, arranjadas por Guarabyra e Duprat. E este coração vive um amor ardente: “Coração de maçã/ lutando contra o verão que queima este corpo/ febre equatorial/ bicho de amor/ Coração de maçã/ fechado e guardado espera/ o sangue vermelho e novo/ da primavera/ pra que possa dar sua flor”. Pelo jeito, tanto Sá quanto Guarabyra tiveram problemas com as garotas com coração de maçã.

O experimento musical mais ousado do disco vem com “Cinamomo”, que tem o baixo de Sérgio Magrão dando o tom e a flauta de Paulo Guimarães e as marimbas de Chico Batera ajudando a criar um clima. A experimentação também se dá na letra, uma poesia com jeito concretista, brincando com as sílabas: “Farta fumaceira/ faz este vapor/ moça marinheira/ quem é teu amor/ nos cabelos belos bibelôs/ nos cabelos bibelôs/ E um cinamo ci ci cinamomo/ E um cinamomo”. Deve se destacar também o piano elétrico de Caffa, que faz harmonias dissonantes.

Depois, vem outro sucesso do disco, a popular “Espanhola”, gravada por eles antes de estourar com Flávio Venturini, o autor da música junto com Guarabyra. Esta versão traz uma banda completamente diferente: Cartier no viola elétrica de 12 cordas; Burnier no violão; Gilson ao piano; Fernando Leporace no baixo; e Nonato na bateria mais o arranjo maravilhoso de cordas de Eduardo Souto Neto. A dupla só canta nesta linda canção que muita gente conhece, mas deveria ouvir esta linda versão. “Por quantas vezes/ eu andei mentindo/ só por não poder/ te ver chorando/ te amo espanhola/ te amo espanhola/ se vais chorar/ Te amo”. Vale a pena conferir.

O momento mais divertido do disco vem a seguir com “Canção dos Piratas”. O arranjo de Eduardo Souto Neto agora se utiliza dos metais com trompas, trombones e tuba pra dar um ar de trilha sonora de filme de pirata. E a letra é divertida: “Hoje o tempo parece tranquilo/uma brisa soprada de leve/ ahey, ahey/ Hoje o mar mais parece um espelho/ refletindo bonecos de neve/ ahey, ahey/ Diz o capitão que amanhã de manhã/ se continuar esta viração/ nós vamos chegar no mar do Japão”. Os backing vocals de Lizzie Bravo, Rosana, Ismail, Betinho e Didito ajudam S&G a dar o recado na canção, que tem o arranjo mais rebuscado de todo o disco.

“Pirão de Peixe com Pimenta” termina com uma canção linda que remete aos passeios no interior do Brasil, onde se pode ver a “Água Corrente”, pura e cristalina (ou pelo menos se podia naquela época). A banda está reduzida ao máximo com Sá na viola caipira, bandolim e guitarra slide; Guarabyra no violão; Sérgio Caffa ao piano; Sergio Magrão no baixo e Moreno na bateria. A letra é tão bonita que foi reproduzi-la inteira: “Água corrente, pedra rolante/ desce contigo o meu coração/ leito de rio, esconderijo e doce, doce prisão/ Deixa eu molhar minha voz e repetir a canção/ Água corrente, pedra redonda/ Onde os segredos se vão afogar/ Leva a saudade pra quem te espera longe/junto do mar/ Que nenhum desvio te possa deter/ por entre os barrancos/ palavras de amor/ lá se vão na corrente”. Linda canção, que encerra este disco e que tem um quê de country rock, o irmão americano do rock rural brasileiro.

Sou fã desta dupla e dois anos depois eles lançaram mais um disco muito bom e que, em breve vai estar aqui chamado “Quatro”. Mas isso é outra história.
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FAIXAS:
1. Sobradinho  
2. Marimbondo (Xico Sá/Marlui Miranda)
3. Trem De Pirapora      
4. João-Sem-Terra         
5. Pirão De Peixe Com Pimenta               
6. Coração De Maçã      
7.  Cinamomo   
8. Espanhola (Flávio Venturini/Guarabyra)
9. Canção Dos Piratas   
10. Água Corrente

todas as composições de autoria de Sá/Guarabyra, exceto indicadas.
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OUÇA O DISCO




sábado, 24 de agosto de 2013

Herbie Hancock - Credicard Hall - São Paulo/SP (22/08/2013)



Desde que eu soube que Herbie Hancock viria ao Brasil, fiquei com vontade de ver o show. Gosto tanto da fase Blue Note quando da Headhunters. Aí, vi um vídeo no YouTube do show de Montevidéu e o Gopala, o baterista Julio Falavigna, colocou suas impressões do espetáculo em Buenos Aires no Facebook. Posso dizer que em São Paulo, no Credicard Hall, as coisas não foram diferentes, mas acabei vendo um outro show.

Ao começar com "Actual Proof", do disco "Thrust", Herbie mostrou que teríamos uma espécie de viagem nostálgica aos seus "greatest hits". Digo isso porque não faltaram, entre outras, "Watermelon Man" - aqui na versão Headhunters e mesclada com "Seventeen", do guitarrista africano Lionel Loueke. Ao apresentar a música, HH destaca a qualidade dos três músicos que estiveram com ele no palco: o baixista James Genus - irreconhecível, portando um baixo elétrico, ele que sempre tocou acústico, especialmente com Michael Brecker; o cultuado baterista Vinnie Colauita, realmente um músico de exceção; e o percussionista indiano Zakir Hussain, armado de um arsenal de tablas, kalimba e outras milongas mais. Herbie se revezava entre o piano acústico e o teclado e as programações. E resgatou do limbo - para alguns, de onde nunca deveriam ter saído - o keytar, aquela mistura de teclado com guitarra, de muito sucesso nos anos 80, e o vocoder, o sintetizador de voz, também muito em moda naquela década maldita. Não sou um purista, mas tendo um piano de qualidade para tocar, foi decepcionante ver HH, aos 70 anos, desperdiçar seu tempo com estes jurássicos gadgets de antão.
foto: Manuela Scarpa
Photo Rio News

Pode-se dizer que as passagens em quarteto foram muito mais interessantes do que os solos. Concordo pela metade com o Gopala. Afinal de contas, o especialista em tabla é ele e não eu. Mas confesso que cortaria meio solo de Zakir, que parecia não saber onde terminar, apesar de possuir uma técnica exuberante. Dez minutos de tablas solo foram um pouquinho demais pra mim. Assim como Hancock, que começou sozinho uma digressão pianística muito interessante do conhecido tema "Maiden Voyage", mas logo trocou o piano Steinway pelo Korg e pelo vocoder. A partir daí, Hancock resolveu disputar o espaço destinado a chatos insuportáveis como Kitaro e Yanni, num clima da pior New Age. Felizmente, o grupo voltou ao palco e partiu para mais uma das viagens de Hancock sobre temas conhecidos. Agora em cima de "Cantaloupe Island", que deu espaço para Colaiuta mostrar porque é adorado pelos bateristas de todo mundo. Ele alia uma supertécnica a um approach muscular, surrando sem dó nem trégua aqueles couros e pratos. E no bis, Hancock, jogando pra torcida, entrou com "Rockit", seu hit dos anos 80 e, de repente, invadiu sua própria praia com "Chameleon" do disco "Headhunters", um clássico do funk-jazz dos 70's, que levantou a plateia do Credicard Hall.


Entre mortos e feridos, salvaram-se todos. Mas eu gostaria de um pouco mais de música acústica. A culpa é minha. Esqueci que Herbie Hancock sempre fez estas misturas a vida inteira. E não seria aos 70 que ele iria mudar.




segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

João Donato - "Quem é Quem" (1972)


“Senão ninguém cantava,
ninguém gravava.”
João Donato
sobre gravar pela primeira vez
músicas com cantadas por ele



Depois de ter atravessado os anos 60 vivendo na Califórnia, João Donato estava com saudades do Brasil. O cachê conseguido com os discos “A Bad Donato” e “Donato/Deodato“ (parceria com o também compositor e arranjador brasileiro Eumir Deodato e com participações de Airto Moreira, Randy Brecker e Ray Barreto) seria usado para pagar a passagem de volta. Chegou ao país como um nome das “internas” da bossa nova. Era um músico dos músicos, respeitado pelos seus pares mas pouco conhecido pelo público. Da convivência com o cantor Agostinho dos Santos, um grande incentivador de seu trabalho, nasceu a ideia de colocar letras nas suas músicas.

Assim, em 1972, surgiu “Quem é Quem”, disco que trazia a novidade de ter no repertório músicas com letras cantadas pelo próprio compositor, com destaque para “Até Quem Sabe”, “Mentiras” (as duas feitas em parceria com o irmão, Lysias Ênio) e “Chorou, Chorou” (com Paulo César Pinheiro).

Revigorado pela temporada americana, João Donato se sentia também mais seguro para dar às inspiradas melodias e letras os arranjos que, pela primeira vez, eram todos assinados por ele. Donato confessa que, na época, lembrava muito do seu amigo, o maestro Laércio de Freitas, um de seus principais incentivadores. “Ficava na dúvida sobre uma frase musical e perguntava: Laércio, é melhor isso ou isso? Ele respondia simplesmente: ‘Acredita!’”.

por Márcio Pinheiro

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FAIXAS:
1. Chorou, Chorou (Paulo César Pinheiro, João Donato) (2:40)
2. Terremoto (Paulo César Pinheiro, João Donato) (2:28)
3. Amazonas (Keep Talking) (João Donato) (2:10)
4. Fim De Sonho (João Carlos Pádua, João Donato) (3:39)
5. A Rã (João Donato) (2:31)
6. Ahiê (Paulo César Pinheiro, João Donato) (2:52)
7. Cala Boca Menino (Dorival Caymmi) (2:23)
8. Nãna Das Águas (Geraldo Carneiro, João Donato) (2:20)
9. Me Deixa (Geraldo Carneiro, João Donato) (2:18)
10. Até Quem Sabe? (Lysias Ênio, João Donato) (2:11)
11. Mentiras - com Nana Caymmi – (João Donato, Lysias Ênio) (4:15)
12. Cadê Jodel? (Marcos Valle, João Donato) (2:01)
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Ouça:
João Donato Quem é Quem



Jornalista gaúcho, Márcio Pinheiro é especialista na área de jornalismo cultural, principalmente literatura, história, televisão e música. Em duas décadas de profissão, passou pelas redações de Zero Hora, Jornal do Brasil, Jornal da Tarde, Gazeta Mercantil, RBS TV e TVCOM, além de ter colaborado com sites, jornais e revistas como Usina do Som, Jornal Musical, O Estado de S. Paulo, Showbizz, Placar e Revista Imprensa. Realiza trabalhos de redação e edição de textos para diferentes publicações e projetos em TV e cinema, tendo escrito o roteiro dos documentários “Mais uma Canção", sobre o cantor e compositor gaúcho Bebeto Alves, de 2013, e o premiado “Renato Borghetti - Quarteto Europa”, de 2010. Ocupa há cerca de 3 anos e meio o cargo de coordenador do Livro e da Literatura da Secretaria de Cultura de Porto Alegre.


quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

David Bowie Eternamente

Bowie, imenso caleidoscópio

É difícil mensurar a real dimensão de um artista como David Bowie. E são vários os motivos desta dificuldade: 1. o fato de que ele se encontra em plena atividade criativa, tendo retornado à vida pública com o ótimo álbum "The Next Day", em 2013, após um silêncio voluntário de dez anos; 2. o fato de que se encontra inserido no coração mesmo da cultura do espetáculo e do entretenimento de massas, dispensando certas reservas e certa imunidade crítica das quais poderia lançar mão caso fosse associado às“belas artes”e ao campo mais tradicional das artes instituídas – Bowie, ao contrário, é um legítimo artista pop e, como tal, é um típico produto de consumo –; 3. o fato de que se constituiu artisticamente em função de sua permanente mutabilidade e reinvenção – Bowie, o andrógino; Bowie, o camaleão; Bowie, esperada surpresa, incógnita e esfinge –; 4. o fato de que atravessou, ao longo dos anos, ao longo de cinco décadas de intensa vida artística, praticamente todos os formatos, as modalidades e os nichos midiáticos de nossa contemporaneidade – além da música, o cinema, o teatro, a moda, a dança, a performance e as artes do vídeo. Nem mesmo as artes plásticas lhe escaparam.
Mas, acima de tudo, é muito difícil dimensionar-lhe o real valor, sua real importância, simplesmente porque o amamos. Amamos Bowie e envelhecemos com ele. Não há, portanto, a menor capacidade de avaliá-lo sem que estejamos contaminados por esta paixão, impregnados pela memória afetiva que tecemos juntos. Assim, é muito difícil distanciar-se. Diante dele, é difícil ser comedido e justo.
Em síntese, foi esta a sensação que tive, recentemente, ao visitar a Mostra David Bowie, realizada no Museu da Imagem e do Som (MIS), em São Paulo. Opulência e variedade, encanto e maravilhamento são palavras óbvias demais para descrevê-la. Aliás, são termos recorrentes na própria fortuna crítica do cantor inglês, no curso quase completo de sua biografia. Bowie, de fato, parece fadado a nos inebriar e seduzir. Inventividade, delicadeza e elegância não lhe faltam, de modo nenhum. A Mostra dá sólidas evidências disto.
Particularmente, interessei-me por aspectos relativos a seu processo criativo, pelos recursos técnicos empregados em certos álbuns e/ou canções, tais como o Verbasizer, um aplicativo concebido para o embaralhamento randômico de manchetes de jornal, derivando daí a produção dos versos a serem cantados, e o Stylophone, uma espécie de proto-sintetizador empregado em "Space Oditty", por exemplo. Além disso, há um fascínio estranho em observar de perto os rascunhos das canções, as partituras originais, as letras escritas e reescritas à mão, os rabiscos nas margens comuns de uma folha de papel. E o que dizer dos figurinos exatos, vestidos em tantas performances memoráveis? E quanto às botas de salto, os sapatos efetivamente calçados? É como se o corpo do artista estivesse ali presente, imobilizado e oferecido à vista, à visitação. É como se o corpo da obra estivesse sendo examinado por dentro, vasculhado e dissecado.
Enquanto observava, uma questão insistente me vinha à mente: “a quem está endereçada esta exposição”? Ao público leigo ou ao fã incondicional, conhecedor altamente especializado? Estaria dedicada ao admirador médio (como eu)? De início, suspeitei que estivesse dirigida aos dois primeiros. Depois, me convenci de que está direcionada a todos aqueles que se disponham a montar um quebra-cabeças e a encontrarem-se refletidos no imenso caleidoscópio que é a obra de David Bowie.



Vai em Paz, David Bowie
por Paulo Moreira


Quando eu era um adolescente de 12, 13 anos, surgiu nas páginas da revista POP (a única na época) uma figura andrógina, com cabelo, olho pintado e francamente gay. Como todo mundo, fiquei curioso com aquele cara que se colocava como uma figura andrógina naquele mundo pop altamente macho. Aí, começaram a aparecer os discos no Brasil, as músicas no rádio ("Rebel, Rebel", "Ziggy Stardust" e "Life on Mars", que o Cascalho rolava o clipe no Portovisão). Quando lançou o "Young Americans", comprei o LP e quase furei de tanto ouvir. A partir daí, fiquei acompanhando a carreira dele à distância (confesso que com 17 anos, não consegui entender "Low" e "Lodger", apesar de achar o "Heroes" interessante. "Ashes to Ashes" ganhou todo mundo com aquele clipe maluco.
Só voltei a mergulhar no Bowie em 1983 com o incrível "Let's Dance", onde ele pegava o som do Nile Rodgers e subvertia totalmente. Era como se o Chic tivesse enlouquecido e misturado com altas doses de DB e saiu um disco que era pop e experimental ao mesmo tempo. Ouçam "Ricochet" com sua levada "My Favourite Things" do John Coltrane (influência normal para um cara que era saxofonista). Ou "China Girl" que tem toda a cara de Bowie com o Tony Thompson destruindo a bateria e o Carmine Rojas dando um banho no baixo. Ou talvez "Cat People". Todas elas com o Steve Ray Vaughan comendo a guitarra com farofa. Aliás, descoberta para o mundo do sr.David Jones.
Daí pra frente, foram momentos esporádicos ("Loving the Alien" e a versão de "God Only Knows", que eu adoro), mas ele sempre surpreendendo aqui e ali. Há três anos atrás, comprei o "The Next Day" e confesso que achei mais do mesmo. Mas este "Blackstar" é um clássico. Vai em paz, David Bowie.



Alma de Influência Infinita
por Tatiana Viana
(convidada)

Há poucos dias atrás, no dia do aniversário (8 de janeiro) de David Bowie estava eu a comentar sobre a importância de alguns músicos e de suas obras na história de nossas vidas e com certeza muitas pessoas compreendem o que quero dizer.
Cresci ouvindo, assistindo e colecionando o que podia de David Bowie, sempre contemplei de forma apaixonada sua forma camaleônica de ser. Suas músicas habitaram muitos de meus dias e noites e foram fundamentais para instigar em mim o desejo de conhecer e buscar mais sobre a mutabilidade e a constante evolução do som através deste grande mestre que a cada canção e aparição se reinventava me causando sempre a surpresa de a cada vez gostar mais de suas composições, sem entender como suas músicas nunca me cansavam.
Lembro das vezes que fui assisti-lo no cinema mais de uma vez seguida o mesmo filme, minha primeira fita cassete que foi "Ziggy Stardust", depois vieram as VHS e a cada play parecia ver ou ouvir algo novo que surgia através do seu magnetismo impresso em sua marca pessoal.
Um cara tão complexo e genial que sua transcendência não coube nesse mundo.
Bela alma de influência infinita!




A Morte
por Cly Reis


Poucas vezes lamentei tanto a morte de uma figura pública quanto a que ocorreu no último domingo. David Bowie, um dos artistas mais influentes de todos os tempos, que vinha lutando contra um câncer descoberto não há muito tempo, deixou nosso mundo e foi juntar-se a outras lendas que habitam um lugar especial no céu ou seja lá onde for. Sou um tanto pragmático quanto à morte, entendendo-a como parte inevitável da vida e, normalmente, não me sensibilizo excessivamente com os desencarnes, até mesmo de pessoas próximas ou familiares, passando às vezes até por insensível. Se essa 'insensibilidade' é usual até mesmo em familiares, quem dirá a um estranho, uma pessoa que não  tem nada a ver comigo, que vive a milhares de quilômetros de mim, que nunca me deu nada. Assim, minha comoção com artistas costuma ser ainda menor, ainda mais com os de idade mais avançada, cujo ciclo da vida de certa forma já se completou, e mais ainda com os que é sabido que não colaboraram muito em suas vidas para que sua estada neste planeta não fosse mais longa.
Mas não sou uma pedra de gelo!
Lamento muito por artistas novos, muito jovens, de evidente talento que, depois de amostragens iniciais, um ou dois álbuns gravados, um filme apenas, um livro publicado, etc., indicavam que teriam coisas incríveis a fazer, apresentar, nos surpreender e foram levados precocemente. Imagine o que Kurt Cobain estaria fazendo hoje? Chico Science, Amy Winehouse? Também há aqueles que estabelecem uma relação tão próxima conosco que parecemos sentir como se uma parte nossa tivesse sido arrancada. Lembro quando da morte de Renato Russo que preferi, simplesmente, não pensar no assunto. Se eu '"tivesse consciência" que ele estava morto, minha tristeza naquele momento seria incomensurável. E acho que, no fundo, continuo agindo assim sobre Renato Russo até hoje.
Houve exceções destes já mais velhos e que colaboraram para seu fim: Miles Davis já beirava os 70, tinha quase se matado um zilhão de vezes, mas os projetos que vinha realizando nos anos anteriores à sua morte me faziam imaginar onde poderia chegar ainda aquele cara. Esse era daqueles que não poderia ter ido.
Ontem com David Bowie foi um misto das duas sensações, da emocional, que costumo ter poucas vezes, com a egoísta de não querer prescindir da obra daquela criatura no planeta Terra. O motivo que faz com que sua partida seja tão dificilmente aceita se confunde e funde. Sua obra, seu talento, sua capacidade artística, sua imprevisibilidade que o tornam tão imprescindível para mim no cenário musical e das ideias no mundo de hoje, são os mesmos motivos que me moldaram meu apego a esse gênio. Diferentemente de um Renato Russo, quase um amigo conselheiro, meu carinho por David Bowie edificou-se a partir da admiração o que, por mais que também admire muitos outros artistas, não toma essa forma com facilidade. E na segunda pela manhã, quando topei com a notícia na internet eu percebi isso. Não era só mais um astro pop que havia morrido. Eu realmente estava triste por aquilo.
Mas como triste? Que que ele tinha a ver comigo, tava lá do outro lado do oceano, nunca fez nada por mim... Engano! Esse é o tipo do cara que a gente lamenta ter ido embora exatamente porque tem tudo a ver com você. Pode viver no outro lado do mundo mas está sempre pertinho da gente. E pode ter certeza que, com sua música, já fez mais por mim do que muita gente poderia ter feito.
De qualquer forma, se era hora de ir, então vá, David. Vá em paz. Eu, egoísta queria mais. Queria mais de você. Queria que você virasse o mundo de cabeça pra baixo de novo como já fez tantas vezes e como, acho, só você poderia fazer novamente. Outras atitudes revolucionárias, outros discos fundamentais, outras auto-reinvenções, outros sucessos. Mas vá, eu entendo. Você já deixou o suficiente aqui para que nos deleitemos ainda por muito e muito tempo. É justo. Você estava mesmo precisando descansar. Descanse em paz. Você merece. Já nos deu muito.




autorretrato capa álbum "Outside"


David Robert Jones
(David Bowie)
08/01/1947 - 10/01/2016

segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

Air - "80º Below '82" (1983)



"'80° Below '82' foi o 'canto do cisne' do trio, um retorno ao formato e à magia dos primeiros anos. Como improvisador, Threadgill parecia criar um vocabulário e uma persona diferentes para cada instrumento que tocava. Todos eles compartilhavam uma paixão quase científica pela complexidade."
Piero Scaruffi,
historiador e crítico musical



Entre os discos que marcaram a minha história, está "80º Below '82", do trio Air, que não é o grupo francês. Este disco foi trazido para Porto Alegre pelo meu querido amigo David Barcellos, em 1982, a partir de uma lista feita por mim e pelo Mauro Magalhães.

O trio formado pelo saxofonista e flautista Henry Threadgill, pelo baixista Fred Hopkins e pelo baterista Steve McCall estava com tudo na época. A Down Beat só falava neles. É claro que aproveitamos a viagem do Davizinho pra Inglaterra, e ele trouxe esta maravilha pra gente. Gravei um cassete imediatamente e, quando surgiram os CDs graváveis, fiz uma cópia pra mim, que toquei muitas vezes no programa Sessão Jazz.

Como dizem os americanos, o interplay entre os caras é impressionante. O CD tem uma versão de "Chicago Breakdown", do Jelly Roll Morton, que vale o preço do disco. Infelizmente, o trio terminou. Em 1989, morreu o baterista McCall e, dez anos depois, o baixista Hopkins. Pra nossa sorte, o Threadgill está vivíssimo e esteve em São Paulo no Festival Jazz na Fábrica do SESC, em 2018, com seu grupo Zooid.

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FAIXAS:
1. "Chicago Breakdown" (Jelly Roll Morton) – 7:58
2. "The Traveller" – 9:28
3. "80° Below '82" – 8:02
4. "Do Tell" – 9:50
Todas as composições de autoria de Henry Threadgill, exceto indicada

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OUÇA O DISCO:

Paulo Moreira

sábado, 20 de maio de 2017

Alceu Valença, Elba Ramalho e Geraldo Azevedo – O Grande Encontro – Auditório Araújo Vianna – Porto Alegre/RS (19/05/2017)



Alceu Valença, Elba Ramalho e Geraldo Azevedo
dividem o palco do Araújo Vianna


Ainda resta uma esperança! Numa semana em que a República parece ter desmoronado, a música brasileira não só salva, como renova o espírito de nação. Foi isso que aconteceu ontem à noite no Araújo Vianna. O show “O Grande Encontro”, que reuniu Alceu Valença, Elba Ramalho e Geraldo Azevedo, deu um banho de civilidade e brasilidade nas três mil pessoas que lotaram o local. De Gonzagão a Dominguinhos, passando por Vital Farias e Jackson do Pandeiro, os três artistas demonstraram vitalidade e altíssima qualidade musical, cada um em sua especialidade.

Alceu com sua energia inesgotável e seus sucessos; Geraldo Azevedo com suas composições e sendo uma espécie de diretor artístico do espetáculo e Elba cantando como nunca. Aliás, devo confessar que nunca fui muito fã da paraibana mas ela me ganhou. Seu resgate de "Sangrando", de Gonzaguinha, fez um arrepio de emoção percorrer as fileiras do Araújo Vianna.

Acompanhados por uma banda com destaque para o guitarrista Paulo Rafael - velho parceiro de Alceu desde os anos 70 - os nordestinos fizeram o público cantar, dançar e perceber que a saída está na variada e luminosa cultura do nosso país, atualmente afastada da mídia tradicional mas permanente nos corações de cada um.

por Paulo Moreira

terça-feira, 6 de agosto de 2013

Stevie Wonder - “Songs In The Key Of Life” (1976)





“Songs In The Key Of Life’é apenas
um aglomerado de pensamentos
no meu subconsciente que meu Criador
decidiu me dar como força,
amor + amor – ódio = energia do amor capaz de fazer 
o possível para
trazer 
à minha consciência 
uma ideia.
Uma ideia para mim
é um pensamento formado
 no subconsciente,
o desconhecido e, 
por vezes,
aquilo que se procura no impossível.” 
Stevie Wonder
texto do encarte original



Chegou a hora de falar de um monumento da música do Século XX e que vai ficar pra sempre na vida de todo mundo: “Songs In The Key Of Life”, de Stevie Wonder. Conheci este disco nas ondas da Continental Superquente 1120, em 1976. A rádio começou a tocar o primeiro de muitos hits do disco, "Isn't She Lovely". E aí me apaixonei. Comprei o disco em 1979 e começou uma longa história de amor e devoção com este disco com D maiúsculo.

Ele começa com um gospel wonderiano de arrepiar chamado "Love's in Need of Love Today". Nela, todos os instrumentos são tocados por ele - especialmente os sintetizadores -, a não ser uma percussão incidental. Os vocais também são todos de Stevie, que se esmera em criar um efeito de coral de igreja batista norte-americana. Um começo de impacto. O Stevie religioso se manifesta com "Have a Talk With God", na qual novamente está no comando de todos os instrumentos. Nela, SW diz: "Quando você achar que a vida está muito difícil/ apenas tenha uma conversa com Deus". Religiosidade sem pregação. "Village Ghetto Land" mostra o lado de preocupação social. Os sintetizadores - uma obsessão wonderiana na época - tão o tom sombrio de um gueto cheio de violência, lixo e descaso das autoridades.

Na sequência, uma das surpresas do disco: uma faixa instrumental chamada "Contusion". Uma espécie de homenagem de Stevie ao guitarrista Jeff Beck, que participou de vários discos dele durante a década de70 e recém havia lançado o também monumental "Blow by Blow". "Contusion" não ficaria mal como bonus track do disco de Beck. Comandada pela guitarra de Michael Sembello (que faria sucesso no começo dos anos 80 com "Maniac", lembram?) a música ganha os vocais de SW e outros vocalistas e se transforma em um fusion soul. Só ele mesmo poderia fazer algo do gênero. Pra fechar o Lado 1, um tributo ao mestre Duke Ellington e ao jazz: "Sir Duke" tem um naipe de sopros que faz lembrar a big bands de Duke e Count Basie, entre outros. O arranjo esperto de SW faz a gente bater o pé numa batida irresistível. Uma delícia!

No formato vinil, o lado 2 começa com Stevie recordando seus tempos de criança em Detroit, já cego em "I Wish". Nela, SW manda ver na bateria, base de todo o arranjo. Tirando o baixo de Ben Watts e os sopros, Stevie comanda o show dizendo "Eu gostaria que aqueles dias pudessem voltar uma dia / Eu gostaria que aqueles dias nunca tivessem desaparecido". Uma evocação da infância difícil, mas de muita luta. Foi lá que ele começou a tocar os primeiros instrumentos. Depois deste momento balançado de memória, vem a minha música preferida por motivos sentimentais: "Knocks Me Off My Feet". Uma balada tendo o piano como base, mas a letra é que dá o tema: "Não quero te incomodar/mas tem alguma sobre o teu amor/ que me faz fraco e me deixa fora de mim", numa tradução nada literal. Linda canção e que me emociona sempre que a ouço. E vendo ouvindo há mais de 30 anos. Isso é o que se pode chamar de uma música que fica contigo. Lembranças sentimentais à parte, vem "Pastime Paradise", cujo riff de sintetizadores imitando cordas virou a base de "Gangsta Paradise" de Coolio na década de 90. Novamente, as preocupações sociais de Stevie Wonder afloram: segregação, exploração, mutilação são os problemas que ele aponta. A solução deve ser integração, consolação, salvação para a paz no mundo. Tudo temperado com coro de Hara Krishnas e de uma igreja de Los Angeles.

É neste disco que Stevie dá vazão à suas indagações sobre o mundo. Contextualizando: os Estados Unidos tinham passado por uma tempestade social com o caso Watergate, a crise do petróleo e o crescimento da violência urbana, especialmente nos guetos. Estes fatos iriam desembocar nos anos 80 com o surgimento do rap e do hip hop, levando adiante a mensagem de Wonder. "Summer Soft" inicia como mais uma balada de SW, mas se transforma na segunda parte, quando o destaque fica com o órgão pilotado pelo grande Ronnie Foster (cuja importância para a música brasileira acontece em 1982, quando produz "Luz", o grande disco de Djavan). "Ordinary Pain" também tem uma ligação com a MPB. Em 84, no seu disco "Fullgás", Marina Lima fez uma versão da primeira parte desta música ("Pé na Tábua") . Mas SW foi engenhoso. Faz uma música de amores perdidos e a divide em duas, apresentando a versão masculina, suave, e a feminina, uma funkeira cantada por Shirley Brewer.

O Lado 3 começa com Aisha, a filha recém nascida de Wonder chorando. Esse choro se transforma na batida irresistível de "Isn't She Lovely", uma das canções mais conhecidas dele. O solo de harmônica desta canção é das melhores performances instrumentais que eu já ouvi. Um mega hit merecido e cantado até hoje nos shows, onde Stevie apresenta Aisha já adulta - e maravilhosa! "Joy Inside My Tears" traz SW outra vez no comando de todos os instrumentos, excetuando os teclados de Greg Phillinganes. Esta é daquelas canções que vão te pegando aos poucos. São necessárias várias audições pra entrar no clima. Mas depois te garanto, tu vais sair na rua cantando o refrão "You, you, you / have made life history / You brought some joy inside my tears".

"Black Man" é a epítome da preocupação de Wonder em integrar todas as raças. Ele traz para o final da música um professor que pergunta aos alunos questões sobre aventureiros, descobridores, políticos que tiveram grande feitos e as crianças respondem a raça de cada um deles. Brancos, negros, índios, todos mencionados e mostrando que somos iguais. Uma bela mensagem de integração numa base funk. Fechando o disco, o lado 4 abre com uma preciosidade: "Ngiculela", onde Wonder canta uma história de amor em uma língua africana, em espanhol e em inglês, sobre uma base instrumental feita somente por ele. Mágico, assim como a próxima faixa. "If It's Magic" é outra surpresa. O arranjo traz Dorothy Ashby na harpa e Wonder no vocal e na harmônica somente no final. Suavidade e beleza num momento de reflexão.

Na sequência, Stevie traz ninguém menos que Herbie Hancock pra pilotar o piano elétrico Fender Rhodes em "As", outra música de amor onde ele declara sua paixão dizendo que "Eu sempre te amarei/ Até que os arco-íris queimem o céu/ Até que os oceanos cubram todas as montanhas/ Até que a Mãe Natureza diga que seu trabalho está pronto". Nada vai impedir Stevie de sentir este amor por uma mulher, pelas crianças e pela humanidade. E se você conseguir ficar parado nesta canção, é porque está morto!!! Fechando o disco original, vem um petardo dançante chamado "Another Star" com as participações de George Benson na guitarra e Bobbi Humphrey na flauta. Stevie compreende o ideário pop e faz a gente cantar o tempo inteiro com um coro de backing vocais entoando apenas "lálálá". Impressionante o comando que ele tem das formas musicais que formam o que se convencionou chamar de "música pop". E o tempo todo em "Songs in The Key of Life” somos surpreendidos pelas sacadas geniais que ele arma, transformando e transmutando as formas do soul, do jazz, do funk, do gospel. Uma hora com um grupo convencional de guitarra, teclados, baixo,bateria e percussão. E em outra fazendo dos sintetizadores uma orquestra de cordas ou um órgão de igreja para passar sua inquietação sobre os destinos do mundo. Tudo isso em 1976!

No disco original ainda vinha um compacto duplo (vocês sabem o que é isso? Um disquinho de vinil com duas músicas de cada lado). A primeira é "Saturn", na qual tirando duas guitarras e um teclado, ele toca todos os instrumentos e faz todas as vozes. "Ebony Eyes" tem sabor de bubblegum pop com a novidade daquele momento, o talk box, que Peter Frampton tinha popularizado em seu disco "Frampton Comes Alive". Destaque também pro solo de sax de Jim Horn. "All Day Sucker" é um funkão que traz três guitarras (!!) fazendo a base para Stevie e os backing vocais de Carolyn Denis. E o compacto termina com ma faixa que se poderia chamar de balada jazzy chamada "Easy Goin' Evening (My Mama 's Call)”. O Fender Rhodes e a harmônica tocam a melodia, enquanto Nathan Watts faz a base para este final sereno de um totem da música de todos os tempos. Se você não conhece, aqui vai um presentinho do tio Paulo Moreira: logo abaixo um link para o disco completo. Desculpem o tamanho do texto, mas um disco desses merece!

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FAIXAS:
1. "Love's in Need of Love Today” - 7:06
2. "Have a Talk with God" (Wonder, Calvin Hardaway) - 2:42
3. "Village Ghetto Land" (Wonder, Gary Byrd) - 3:25
4. "Contusion" - 3:46
5. "Sir Duke" - 3:54
6. "I Wish" - 4:12
7. "Knocks Me Off My Feet" - 3:36
8. "Pastime Paradise" - 3:28
9. "Summer Soft" - 4:14
10. "Ordinary Pain" - 6:23
11. "Saturn" (Michael Sembello, Wonder) – 4:54
12. "Ebony Eyes” – 4:11
13. "Isn't She Lovely?" - 6:34
14. "Joy Inside My Tears" - 6:30
15. "Black Man" (Wonder, Byrd ) - 8:30
16. "Ngiculela” “(Es Una Historia)” “(I Am Singing)" - 3:49
17. "If It's Magic" - 3:12
18. "As" - 7:08
19. "Another Star" - 8:28
20. "All Day Sucker" – 5:06
21. "Easy Goin' Evening (My Mama's Call)" – 3:55

todas de Stevie Wonder, exceto indicadas

(ordem da versão em CD)

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OUÇA:




segunda-feira, 4 de abril de 2016

Herbie Hancock e Wayne Shorter - Brasil Jazz Fest - Vivo Rio - Rio de Janeiro (01/04/2016)



A permanente reinvenção
por Daniel Rodrigues

As lendas vivas do jazz apaludidas de pé pelo Vivo Rio.
foto: Leocádia Costa
No final do longo documentário “Jazz”, que soma mais de 12 horas de registros e documentação, Ken Burns, seu realizador, lança o questionamento de que rumos o jazz tomaria no futuro. Entre promessas e incertezas, um dos argumentos era o de que o estilo sempre soube se reinventar, e que seus artífices têm gravado em seu espírito essa incumbência. Não que se trate da criação de um novo gênero no jazz, mas o que se viu no Vivo Rio na noite do último dia 1º de abril foi, certamente, fruto dessa alma inquieta e pulsante dos verdadeiros jazzistas. Herbie Hancock e Wayne Shorter, justamente dois dos músicos mais revolucionários do jazz e da música moderna do século XX, subiram ao palco para justificar que o estilo ainda tem muito, mas muito fôlego em ternos de criação e improviso.

Em apenas sete números, presenciou-se dois músicos completamente absorvidos por sua arte. Mesmo num espaço amplo e lotado (não apenas de fãs, mas infelizmente também de protoadmiradores que, claro, não tiveram paciência para apreciar o que estava acontecendo), Hancock e Shorter exibiram uma apresentação intimista. Altamente concentrados em cada nota, em cada ataque, em cada hesitação para, aí sim, entrar no tempo certo que sua emoção diz. Hancock, mais vivaz, era quem comandava a harmonia, fosse em seu piano de cauda, em seu teclado Korg ou no sintetizador, do qual extraía climas em loops e efeitos não raro desconcertantes. Shorter, um pouco fechado no início (intimidado não é o mais adequado ou provável), soltou-se de tal forma que foi ele quem, por outro lado, conduziu a emoção do público em vários momentos. Os improvisos são econômicos e nunca extensos; às vezes, quase lacônicos. Há quem possa lhe atribuir à idade avançada e a inevitável perda de capacidade pulmonar (82 anos, enquanto Hancock, mesmo também vovô, tem sete a menos), mas a sensação nítida que me ficou foi a de um Shorter ainda mais dominador dos tempos e das figuras sonoras que cria. Muitas vezes, foi possível ver Miles Davis no palco, o mestre que ensinou à dupla a arte do essencial – embora ambos tenham aprendido também a intempestividade do free-jazz.

Aliás, uma reelaboração do free-jazz talvez seja uma definição possível para o show apresentado pelos jazzistas norte-americanos. Entretanto, a classificação não é assim tão simplória, visto que não deixaram de lado as vivências do fusion, da música clássica, da vanguarda erudita e, por que não, do próprio jazz que lhes formou, o hard bop e o modal, que tanto dominam. Em meio a improvisos e construções baseadas nessa premissa, houve momentos de viagens cósmicas, motivados pelo piano e teclado transcendentes de Hancock, e da mais fina delicadeza, seja no dedilhado sensível ou nas frases budistas do sax soprano de Shorter. Uma montanha-russa de emoções.

O que se viu foi, de fato, duas entidades, duas velhas entidades da música em pleno exercício de liberdade, como amadores cheios de vida. Propondo um conteúdo denso e hermético, com altas cargas de musicalidade, Hancock e Shorter tiveram a jovial e admirável coragem de inovar. Com aplausos garantidos somente pelo que representam, eles podiam muito bem tocar para a galera apenas os clássicos, quando muito intercalando algum tema mais “difícil” para facilitar a deglutição do público. Não. Eles seguiram o caminho de seus corações e da arte que tanto respeitam e militam. Entraram e fizeram aquilo que se propunham, que faz sentido para eles. E se fizer sentido para alguém do público, que bom: intenção atingida. No meu caso, foi mais do que plenamente. A honestidade deles era tanta que até mesmos no meio de solos engendrados ali, no calor do improviso, era possível identificar seus estilos, seus modos e até referenciar a alguns temas do passado em que tocaram juntos, como “The All Seeing Eye”, composição de Shorter de 1965, na abertura do show.

O bis não poderia ter sido melhor: no mesmo clima free, a dupla lançou "Encontros e Despedidas", de Fernando Brant e Milton Nascimento – este último, na plateia prestigiando os amigos como já o vi fazendo. O riff da canção se funde ao próprio solo do saxofone, diluindo-se nos acordes e no andamento. Se por um lado esse número foi o único respiro àqueles que esperavam standarts cantaroláveis para contar aos amigos que ouviram a música que conheceram no Youtube, o clássico da MPB (e do jazz moderno mundial) fechou com a mesma dignidade de toda a apresentação: com densidão e alma. Herbie Hancock e Wayne Shorter nos presentearam com uma celebração do jazz em seu estado essencial: o da permanente reinvenção.

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Enterprise de sons e timbres
por Paulo Moreira

Herbie manipulando os teclados e sntetizadores.
foto: Leocádia Costa
Foi um começo de luxo! O Vivo Rio esteve completamente lotado para ver a abertura do Brasil Jazz Fest com Herbie Hancock e Wayne Shorter. O zum-zum vinha de São Paulo: eles não tocam nenhum hit. Nem "Cantaloupe Island", nem "Footprints". Nem música reconhecível. "É só viagem...". Por mais de 70 minutos – e com direito a DOIS bis – Herbie & Wayne transportaram a plateia para um outro universo. Um outro estágio. Basicamente fazendo uso de um piano e um sax soprano - e intervenções esporádicas de um teclado - os veteranos músicos mostraram que a idade avançada (Herbie tem 75 anos e Wayne 82!) não é sinônimo de acomodação. Ambos tiveram a coragem de apostar no desconhecido e nas habilidades técnicas e de feeling para nos carregar a outro patamar sensitivo-musical.

Percebendo o convite, os presentes embarcaram nesta Enterprise de sons e timbres e se deixou viajar no cosmos musical sem precisar de gasolina. Até mesmo as eventuais explorações do teclado foram digeridas pelo público. Em certo momento, Herbie & Wayne me lembraram outra parceria de piano e sax soprano que também se utilizou do free-jazz como base nas improvisações: Mal Waldron & Steve Lacy, que tocaram no início dos anos 2000 no falecido e saudoso Chivas Jazz Festival.

Como bônus, Wayne troca de palheta em pleno palco e ataca de "Encontros e Despedidas", de Milton Nascimento, que estava na plateia, brincando com a melodia e fazendo um jogo de gato-e-rato com citações de músicas do repertório do amigo brasileiro. A reação do público foi tão carinhosa que Hancock, ao final, espantado, perguntou se tinha sido divertido. Claro que foi, seu Herbert. Quem esteve lá compreendeu que grandes instrumentistas e criadores estão sempre de olho no futuro. Mesmo tendo uma bagagem de 50 e tantos anos de serviços prestados à música dos Séculos XX e XXI.

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A Magia da Música
por Cly Reis


Hancock e Shorter em pleno improviso.
foto: Leocádia Costa
Um daqueles momentos sublimes que se vive poucas vezes na vida. A oportunidade de presenciar a apresentação de dois gênios da humanidade justificando plenamente toda a expectativa que se cria quando se fala em verdadeiras lendas da música reunidas em um palco. E digo gênios sem medo de pecar pelo exagero porque tudo o que desfilaram na noite gloriosa no palco do Vivo Rio não foi nada menos que genialidade. Numa apresentação memorável Wayne Shorter empunhando seu saxofone e Herbie Hancock comandando seu piano e eventualmente um teclado, exibiram técnica, criatividade e ousadia em números longos inspirados e cheios de improvisações quase impensáveis para nós pobres mortais. Podem ter decepcionado um pouco aos que já tivessem ido com alguma preconcepção do espetáculo e com expectativas prontas de repertório, uma vez que não tocaram seus clássicos ou suas obras mais badaladas, mas tenho certeza que todos que perceberam o verdadeiro espírito do show e que deixaram suas sensibilidades os guiarem não só não tiveram nenhum tipo de desapontamento, como, pelo contrário, ficaram gratos pela opção da dupla. Alguns foram embora cedo, é verdade, e lamento por eles, não penas por não terem entendimento para o que estava ocorrendo ali mas também pelo que perderam pois nós que ficamos pudemos nos regozijar com aquela magia que pairava no ar a ponto de quase abandonarmos nossos corpos levados pela música.
Uma noite mágica em que dois gigantes da música nos proporcionaram momentos de prazer e elevação espiritual e, em meio a este universo atualmente tão saturado de coisas pobres, repetitivas, insignificantes e descartáveis, fizeram o favor de nos lembrar porque a música é, antes de mais nada, arte.


domingo, 11 de novembro de 2018

Queen - "A Night At The Opera" (1975)



"Disseram que ela era demasiado longa
e não iria funcionar.
Podemos pensar, 'Bem que poderíamos cortar ela,
mas ela não faria qualquer sentido', não faz muito sentido agora e teria ainda menos sentido naquele momento; você iria perder todos os humores diferentes da canção.
Por isso, dissemos que não."
Roger Taylor, 
baterista,
sobre "Bohemian Rhapsody"

"Ele [Freddie Mercury] sabia exatamente
o que estava fazendo…
nós só ajudamos ele dar vida a ela."
Brian May,
guitarrista,
também sobre "Bohemian Rhapsody"


Em 1976, ouvia eu a Rádio Continental quando meu querido amigo Beto Roncaferro rodou no seu programa "Death on Two Legs" do disco "A Night At The Opera", do Queen, uma banda da qual eu já andava ouvindo uma fita-cassete do disco "Queen II", que me fora emprestada pelo meu colega de aula João Eduardo Costa. Me apaixonei na hora
Um ano depois, o Queen estourava com "Somebody to Love", do disco "A Day At The Races", que eu e minha irmã Cristina de Andrade Moreira ouvíamos sem parar. Na dúvida sobre qual comprar, acabamos com os dois em altíssima rotação em casa. Daí, pra "You're my Best Friend", "Seaside Randezvous" e, é claro, "Bohemian Rhapsody" foi um passo. Chamava a atenção a variedade de estilos e o uso dos clichês de cada gênero dentro do som da banda. E Freddie Mercury era Freddie Mercury!!! Faz muito tempo que não ouço mas tenho certeza de que, se colocar a rodar, cantarei de cor TODAS as músicas.



por Paulo Moreira



"A Night at the Opera" é o quarto álbum de estúdio da banda britânica de hard rock Queen, lançado em 21 de novembro de 1975 na Europa e em 2 de dezembro de 1975 nos Estados Unidos.
Assim que foi lançado, o álbum estreou direto no topo da UK Albums Chart, do Reino Unido, e chegou ao quarto lugar na Billboard 200 dos Estados Unidos, sendo o disco que levou definitivamente o Queen à consagração mundial. O disco também foi um sucesso de crítica, frequentemente apontado como um dos melhores discos da música de todoso os tempos, tendo vendido mais de cinco milhões de cópias nos anos 70, uma número impressionante para os mercados da época.


fonte: Wikipedia


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FAIXAS:
 01 Death On Two Legs (Dedicated To....)
 02 Lazing On A Sunday Afternoon
 03 I'm In Love With My Car
 04 You're My Best Friend
 06 Sweet Lady
 07 Seaside Rendezvous
 08 The Prophet's Song
 09 Love Of My Life
 10 Good Company
 11 Bohemian Rhapsody
 12 God Save The Queen

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Ouça:




segunda-feira, 13 de novembro de 2017

Madeleine Peyroux - Teatro Bourbon Country - Porto Alegre/RS (09/11/2017)



Pra começar, um aviso: se você é fã da cantora Madeleine Peyroux, não siga em frente. Você vai ficar muito irritado e vai me xingar, me destratar e até vai ter vontade de me dar uns tapas. Por quê? Porque nunca gostei de sua voz (aquele timbre "billieholidayesco" só funciona com a própria) e acho que o resultado final de sua música é mediano. Não tem brilho.

Com seus músicos no palco
Posto isso, depois de ignorar os shows anteriores dela, resolvi dar uma chance de ser surpreendido. Afinal, a formação é jazzística - violão e ukulele mais guitarra e baixo acústico – para o show no Teatro Bourbon Country, em Porto Alegre. E o guitarrista era o grande Jon Herrington, que toca com o Steely Dan há muito tempo.

O show começou morno, demorando pra deslanchar. Diga-se a favor de Peyroux, que ela foi muito simpática ao se comunicar com a plateia em português. Musicalmente, os altos momentos foram "A Good Man is Hard to Find", dedicada às mulheres; "Everything I Do Gonna be Funky", do mestre de New Orleans, Allen Toussaint; e até mesmo "um cantchinho e um violaaaao", "Corcovado". Em compensação, o pior veio logo depois: uma versão horrorosa de "Água de Beber", também de Tom Jobim, interpretada ao ukulele, como se o maestro tivesse vivido em Maui, ao invés do Rio.

Para salvar o show, Peyroux e seus rapazes puxaram da cartola "Dance me to the End of Love", de Leonard Cohen, no encerramento. Ainda não foi desta vez que Madeleine Peyroux me convenceu. Não sei se terá outra chance.

texto: Paulo Moreira
fotos: Cris Moreira/Divulgação